Imediatamente antes ou logo a seguir à morte de Claude Lévi-Strauss, em 2009, assistiu-se a um crescimento significativo de publicações consagradas à sua obra. Muitas dessas publicações eram - como seria de esperar - de autores franceses. Entre eles contavam-se antropólogos que haviam privado de perto com Lévi-Strauss, como Maurice Godelier (2013) ou Philippe Descola (2012). Mas muitas outras, assinalando uma espécie de consagração filosófica de Lévi-Strauss, eram de filósofos como Pierre Guenancia que - em conjunto com o sociólogo Jean-Perre Sylvestre - organizou o volume Claude Lévi-Strauss et ses contemporains (2012) -, Gildas Salomon (2013) ou Patrice Maniglier, que, no livro Le moment philosophique des années 1960 en France (Patrice Maniglier 2011) - de que foi o organizador - consagrou uma das secções à figura do antropólogo francês. Outras foram publicadas por autores de língua inglesa como Boris Wiseman (2007, 2009) ou Patrick Wilcken (2010).1
O interesse por Lévi-Strauss não esmoreceu nos anos subsequentes à sua morte. O melhor exemplo disso é a publicação, em 2015, da mais completa e extensa biografia de Lévi-Strauss, da autoria de Emmanuelle Loyer. Com 910 páginas, o livro, para além de se basear no conhecimento da obra do antropólogo e da bibliografia secundária a ela dedicada, tira sobretudo partido da pesquisa de arquivo conduzida pela autora. Esta, para além do arquivo pessoal de Lévi-Strauss, depositado na Biblioteca Nacional de França, e dos arquivos do Laboratoire d’Anthropologie Sociale, compreendeu ainda outros arquivos, no Brasil, nos EUA e em França (Loyer 2015: 765-766) e envolveu a realização de inúmeras entrevistas. Já tínhamos retratos muito desenvolvidos da obra de Lévi-Strauss, mas o que faz a diferença do livro de Loyer é o modo como dá a ver os bastidores da obra e o homem que está por detrás dela.
Outra das expressões deste continuado interesse pela vida e obra de Lévi-Strauss em anos mais recentes tem que ver com a edição de escritos seus, inéditos ou menos conhecidos. O destaque vai para a publicação de núcleos relevantes da sua correspondência. “Chers tous deux”. Lettres à ses parents (C. Lévi-Strauss 2015), organizado pela sua viúva, Monique Lévi-Strauss, reúne a correspondência de Lévi-Strauss com os seus pais entre 1931 e 1942. E, mais recentemente, Emmanuelle Loyer e Patrice Maniglier publicaram a correspondência entre Lévi-Strauss e Roman Jakobson desde 1942 a 1982 (Jakobson e Lévi-Strauss 2018). Simultaneamente, outras publicações de escritos de Lévi-Strauss viram também a luz. É o caso de L’Abécedaire de Claude Lévi-Strauss, editado por Monique Lévi-Strauss e Emmanuelle Loyer (2021), que reúne um conjunto de citações da obra do antropólogo organizadas por grandes temas dispostos por ordem alfabética, de “Académie Française” (primeira entrada) a “XIXème Siècle” (última entrada). E é sobretudo o caso de Anthropologie structurale 0 (C. Lévi-Strauss 2019) que reúne os artigos e ensaios escritos por Lévi-Strauss entre 1940 e 1949 - os seus anos nova-iorquinos - que não foram retomados em Anthropologie structurale 1 (1958).
Este ensaio bibliográfico selecionou, neste conjunto vasto de livros, três que - para citar o próprio Lévi-Strauss - fazem mais sistema. Anthropologie structurale 0 revela-nos o Lévi-Strauss pré-estruturalista que ainda era no Brasil e que continuou a ser em Nova Iorque - até que o seu encontro com Jakobson começou a fazer dele um estruturalista. Claude Lévi-Strauss, ao mesmo tempo que esmiúça esses anos americanos do antropólogo francês, fala-nos da sua vida antes deles, mas diz-nos sobretudo o que fez depois, na sua vida e na sua obra, com essa sua dupla filiação brasileira e norte-americana. Sendo, pela sua extensão e detalhe, um livro mais demorado, a sua leitura pode ser complementada pela leveza de L’Abécédaire de Claude Lévi-Strauss, uma espécie de Lévi-Strauss de poche, cujas 200 entradas tentam captar algumas das passagens mais fulgurantes dos milhares de páginas que escreveu.
Anthropologie structurale 0
Anthropologie structurale 0 recolhe artigos de Lévi-Strauss escritos entre 1940 e 1949 que foram deixados de fora da seleção efetuada pelo próprio autor para Anthropologie structurale 1 (1958). Foram, portanto, quase todos maioritariamente publicados durante o período - de 1941 a 1947 - em que Lévi-Strauss viveu em Nova Iorque. Muitos deles acusam as marcas da sua circunstância norte-americana, uns porque remetem diretamente para a sua experiência de vida em Nova Iorque - como “La technique du bonheur” ou “L’art de la côte nord-ouest à l’American Museum of Natural History” - outros porque testemunham dos resultados do seu contacto com a bibliografia americanista que Lévi-Strauss leu exaustivamente durante esses anos. Outros - mais ambiciosos - dão conta, por vezes breve, das afinidades e desafinidades antropológicas que Lévi-Strauss foi amadurecendo nesses seus anos nova-iorquinos: com a sociologia e antropologia francesas, com Westermarck ou Malinowski. Para além de “L’Art de la côte nord-ouest à l’American Museum of Natural History”, um outro artigo - “Indian Cosmetics” - dá conta do seu fascínio pelo universo da “arte primitiva” ameríndia.
Mas os mais relevantes artigos agora republicados em Anthropologie structurale 0 testemunham sobretudo da importância da estadia de Lévi-Strauss no Brasil entre 1935 e 1939. Foi no decurso desses anos brasileiros que efetuou as expedições etnográficas que haveriam de o conduzir até aos Nambikwara. Dessa sua experiência etnográfica - que, embora relativamente curta, marcou decisivamente a sua obra - os resultados mais conhecidos são as páginas a ela consagradas em Tristes tropiques (1955). Mas ela está presente noutros textos de Lévi-Strauss, entre os quais ocupa lugar de destaque “La vie familiale et sociale des Indiens Nambikwara” (1948). Anthropologie structurale 0 tem o mérito de reunir e tornar acessíveis outros artigos que resultaram diretamente dessa sua experiência etnográfica, desde as entradas mais descritivas que escreveu para o famoso Handbook of South-American Indians, até ensaios de maior fôlego, como “Guerre et commerce chez les Indiens d’Amérique du Sud”, “La théorie du pouvoir dans une société primitive”, “À propos de l’organization dualiste” ou “La politique étrangère d’une société primitive”.
É sobretudo nestes últimos artigos que podemos ficar surpreendidos com alguns temas que se virão a tornar centrais na antropologia madura de Lévi-Strauss. Todos eles, de facto, são atravessados pela centralidade do tema da troca e da reciprocidade como fundamentos da vida social. Em 1942, em “Guerre et commerce”, o tópico é tratado a propósito da oscilação das relações intertribais Nambikwara entre guerra e comércio (ou entre conflitualidade e reciprocidade). Particular destaque é dado ao modo como os próprios encontros intertribais, que teoricamente se situariam do lado do comércio, oscilam realmente entre reciprocidade e conflitualidade. Retomado mais brevemente num artigo de 1946 (“Réciprocité et hiérarchie”) o tema é de novo tratado em “La politique étrangère”, onde - antecipando a perspetiva continental que se tornará decisiva nas Mythologiques (1964-1971) - as referências aos Nambikwara se articulam com referências a outros grupos ameríndios, como os Hopi ou os Esquimós. Colocado de novo sob o signo da oscilação entre o conflito e a troca nas relações intertribais, o artigo é também uma reflexão sobre o laço social. Nele, depois de escrever sobre “a necessidade de ser dois para que as relações sociais se instaurem” (2019: 217), Lévi-Strauss acrescenta: “Todas as organizações indígenas […] implicam necessariamente um esforço para que existam sempre parceiros entre os quais a colaboração se possa estabelecer e também entre os quais os antagonismos devam ser instaurados” (2019: 217). A reciprocidade é ainda convocada em “La théorie du pouvoir”. Consagrado a uma conceptualização da figura do “chefe” entre os Nambikwara, a partir da qual Lévi-Strauss propõe uma reflexão mais larga sobre o consentimento como “origem e limite do Poder” (2019: 188), o artigo define também a reciprocidade como um atributo fundamental do poder: “o chefe tem o poder, mas deve ser generoso. Tem obrigações, mas pode receber várias mulheres. Entre ele e o grupo estabelece-se um equilíbrio perpetuamente renovado de prestações e privilégios, de serviços e obrigações” (2019: 189). Tão importante como esta aproximação à reciprocidade como fundamento do poder, é a tematização da reciprocidade como fundamento da vida social dos grupos, incluindo aí - numa antecipação da tese principal de Les structures élémentaires de la parenté (1949) - as “regras de casamento” baseadas na “proibição do incesto” (2019: 190). Esta última “significa, no seu sentido mais geral, que cada membro do grupo é obrigado a ceder a sua irmã ou a sua filha a um outro homem; e reciprocamente, que cada homem tem o direito de receber uma mulher de um outro homem” (2019: 190).
Dada a importância que Lévi-Strauss atribui nos seus escritos nova-iorquinos à reciprocidade, não é de admirar que neles possamos também encontrar as primeiras referências a Mauss como seu “mestre espiritual”. Ainda em “La théorie du pouvoir”, sublinha que é a Mauss “que se deve a introdução da noção de reciprocidade” (2019: 108). Mas é sobretudo em 1945, no artigo “La sociologie française”, que é mais enfático. Contrastando Durkheim com Mauss, Lévi-Strauss escreve a propósito deste último:
“não somente [Mauss] ‘sabe tudo’ [como dizem os seus alunos], como uma imaginação audaz, um faro quase genial em relação à realidade social, permitem-lhe fazer um uso altamente original dos seus conhecimentos ilimitados. Na sua obra e sobretudo no seu ensino florescem comparações imprevistas […] e intuições fulgurantes que durante meses suscitam a reflexão. Em casos assim, sente-se que se atingiu o fundo das coisas […]. Este esforço constante de procura do essencial, essa vontade de examinar, sem descanso, uma massa enorme de dados até que fique apenas o material mais puro explicam que Mauss tenha preferido o ensaio ao livro” (2019: 88-89).
Ao mesmo tempo que reivindicam Mauss como seu “mestre espiritual”, os escritos nova-iorquinos de Lévi-Strauss registam sinais vários de crítica a diferentes correntes teóricas em antropologia, com destaque para o culturalismo - em particular para a sua teoria da aculturação - ou o funcionalismo. Mas é sobretudo em relação ao evolucionismo que as suas críticas são mais sistemáticas. Partindo da sua experiência etnográfica indígena (e também das suas leituras australianas), Lévi-Strauss sublinha várias vezes o modo como sociedades de nível tecnológico muito rudimentar podem coexistir com “complexos sistemas sociais” (2019: 169) e defende que muitas delas não testemunhariam tanto de uma fase primitiva da humanidade, mas de um processo de “regressão” cultural, provocada por movimentos migratórios que expulsaram grupos - como os Nambikwara - do seu habitat original, empurrando-os para as zonas pobres da savana. Já em relação ao difusionismo - como mostra esta última formulação - a sua atitude é de maior abertura, expressa no modo como aceita discutir os processos históricos de formação das culturas ameríndias (ver em particular “À propos de l’organisation dualiste en Amérique du Sud”). O reconhecimento da importância desses processos, conjugada com as suas convicções acerca da unidade cultural das Américas, serão decisivas para a arquitetura global das Mythologiques e de outros livros que, posteriormente a estas, Lévi-Strauss consagrará às mitologias do continente americano.
Posicionando-se em relação a algumas tendências importantes da cena antropológica dos anos 1940, Lévi-Strauss fá-lo em nome de uma conceção da antropologia caraterizada - ainda que de uma forma embrionária - por teses que se tornarão centrais no seu percurso posterior. É sobretudo no seu ensaio sobre a sociologia francesa, no quadro da crítica que aí faz a Durkheim, que expõe essas teses. Entre elas encontra-se a insistência na “natureza psíquica dos fenómenos sociais” (2019: 65), o primado do simbolismo em relação ao social (2019: 77) e o papel do inconsciente na estruturação dos sistemas simbólicos: “é preciso reconhecer que os sistemas objetificados de ideias são inconscientes ou que as estruturas psíquicas inconscientes os subentendem e os tornam possíveis” (2019: 89).
Em resumo: se os escritos nova-iorquinos coligidos em Anthropologie structurale 0 revelam um Lévi-Strauss que ainda não é estruturalista, eles põem em evidência o modo como, mesmo assim, já lá estão alguns dos principais temas que marcarão posteriormente a sua antropologia estrutural. Mostram, nesse sentido, um Lévi-Strauss que, no preciso momento da invenção “americana” do método estrutural - evidente no ensaio “L’analyse structurale en linguistique et anthropologie”, esse sim republicado em Anthropologie structurale 1 - ainda tateia o seu caminho. E evidenciam também - como comecei por sublinhar - o peso que nessa procura de um caminho têm as suas pesquisas indígenas brasileiras (ausentes dos escritos do mesmo período retidos em Anthropologie structurale 1).
Os mundos de Lévi-Strauss
Os anos nova-iorquinos - e também os anos brasileiros - de Lévi-Strauss ocupam igualmente um lugar de destaque na biografia que Emmanuelle Loyer consagrou ao autor, correspondendo a uma das grandes partes - intitulada “Les nouveaux mondes (1935-1947)” - do seu livro. Esta é antecedida por uma primeira parte consagrada à sua infância e juventude (“Les arrières mondes (…-1935)”). Aí, entre outros aspetos, Loyer evoca o background judaico de Lévi-Strauss e a sua militância política socialista. A terceira parte - intitulada “L’ancien monde (1947-1971)” - é por sua vez dedicada aos seus anos de ouro, desde o seu regresso a França em 1947, até à sua aposentação em 1971. Finalmente, a última parte - “Le Monde (1971-2009)” - acompanha Lévi-Strauss desde a sua aposentação até à sua morte. No final, a autora procede a um balanço da importância - e da contemporaneidade - da sua obra.
Tirando partido da pesquisa conduzida no arquivo pessoal de Lévi-Strauss, a biografia de Loyer tem, como referi antes, o mérito de deixar ver não apenas a obra- que vai sendo apresentada ao longo dos sucessivos capítulos -, mas também os bastidores dessa obra e o homem por detrás dela. Como muitas outras biografias de escopo similar, está por isso recheada de pequenos detalhes e revelações curiosas.
Mas é pela sua visão de conjunto das grandes etapas da vida de Lévi-Strauss que a biografia de Loyer se distingue. Entre essas etapas, algumas são particularmente relevantes. Uma delas tem a ver com os anos brasileiros, quando o antropólogo francês ensinou na Universidade de São Paulo e realizou as suas expedições etnográficas indígenas. Ao longo de três capítulos, Loyer procede a um mapeamento preciso dos “terrenos indígenas” de Lévi-Strauss, entre os Caduveo (15 dias), os Bororo (três semanas), mas sobretudo entre os Nambikwara. Este último terreno teve lugar entre maio de 1938 e janeiro de 1939, mas, na realidade, entre deslocações morosas e pausas forçadas, envolveu apenas seis meses de trabalho de campo efetivo (Loyer 2015: 225). Para além dos Nambikwara, assentou ainda em estadias mais curtas entre os Mundé (seis dias) e entre um grupo Tupi. Como sublinha Loyer, embora na altura o trabalho de campo à la Malinowski fosse já praticado em várias pesquisas sobre índios brasileiros - designadamente por Buell Quain, Charles Wagley ou William Lipkind - a pesquisa de Lévi-Strauss seguia um modelo diferente, com algumas similitudes com a extensive survey típica da etnografia praticada em França nos anos 1930, designadamente no quadro da “célebre missão Dakar-Djibouti” (Loyer 2015: 210). Contando com a participação inicial de Dina Lévi-Strauss - a sua primeira mulher, que já o havia acompanhado entre os Caduveo e os Bororo - e integrada também pelo antropólogo brasileiro Castro Faria, a expedição caracterizou-se por uma pesada logística, envolvendo 15 mulas, 30 bois e 15 auxiliares. Como enfatiza Loyer, “os ‘visitantes’ eram frequentemente mais numerosos do que os índios visitados” (Loyer 2015: 209).
Simultaneamente a uma atenção sustentada aos terrenos indígenas de Lévi-Strauss, Loyer sublinha como, antes deles, o autor experimentou outros terrenos, seja estimulando os seus estudantes a realizar pesquisas sobre a cidade de São Paulo, seja sob a forma de excursões nos arredores dessa cidade focadas em aspetos da cultura popular. No quadro de uma dessas excursões, Dina Lévi-Strauss filmará mesmo uma festa do Espírito Santo em Moji das Cruzes (Loyer 2015: 176). As primeiras tentativas de pesquisa “indígena” de Lévi-Strauss são também evocadas, com particular destaque para uma deslocação ao Paraná, onde o antropólogo francês entra em contacto com um grupo Kaingang, sobre o qual escreverá em Tristes tropiques que “não eram completamente nem ‘verdadeiros índios’, nem sobretudo ‘selvagens’ ” (in Loyer 2015: 167). O papel de Dina Lévi-Strauss no estabelecimento de redes de sociabilidade com os intelectuais brasileiros baseados em São Paulo - particularmente com Mário de Andrade - é também sublinhado. De acordo com o testemunho de um contemporâneo citado por Loyer, “Mário tinha um fraco por [Dina], como todos nós, porque ela era uma bela rapariga mais ou menos da nossa idade. Lévi-Strauss tinha ciúmes dessa situação - com razão” (in Loyer 2015: 176).
Marcados pelos seus terrenos indígenas, aos anos brasileiros seguir-se-ão, entre 1941 e 1947, os seus anos nova-iorquinos, cuja importância na transformação estruturalista de Lévi-Strauss é desenvolvidamente tratada por Loyer, com destaque para o seu relacionamento com Jakobson, que rapidamente se transformará numa longa amizade intelectual e pessoal. Além dos inúmeros ensaios republicados em Anthropologie structurale 0 e Anthropologie structurale 1, é então que Lévi-Strauss redige Les structures élémentaires de la parenté (1949) e “La vie familiale et sociale des Indiens Nambikwara”, que no seu regresso a França serão apresentados nas suas provas de doutoramento. Mas é também então que descobre - no American Museum of Natural History - a arte dos índios da costa noroeste. Circula com facilidade quer entre os intelectuais e artistas franceses que - como ele - se refugiaram em Nova Iorque, quer no meio antropológico norte-americano, onde Franz Boas e Robert Lowie são dois dos seus interlocutores principais. Politicamente encostado ao gaulismo, chega a ser locutor nas emissões em francês da Voice of America. Depois da Libertação, é também nomeado conselheiro cultural da embaixada francesa em Nova Iorque. Divorciado de Dina Lévi-Strauss desde antes da guerra, é então que casa com Rose-Marie Ullmo, de quem terá, em 1947, um filho (Laurent), que, tal como o pai, foi circuncisado. Foram, em resumo, como refere Loyer, anos felizes e intelectualmente muito produtivos os que Lévi-Strauss passou em Nova Iorque.
É por isso um “novo” Lévi-Strauss aquele que - recusando convites para continuar nos EUA - regressa a Paris em 1947, ano que marca o início dos seus anos de ouro, que se estenderão até 1971. Esses anos iniciam-se, entretanto, de modo pouco auspicioso. Começa então uma fase da sua vida que Loyer caracteriza convincentemente como sendo de crise pessoal e profissional. É então que se separa de Rose-Marie Ullmo. Vê-se também forçado a vender a sua coleção de objetos de arte primitiva. Embora tenha realizado com sucesso as suas provas de doutoramento em 1948, vê sucessivamente recusada a sua entrada para o Collège de France, devendo “contentar-se” com a V Secção da École Pratique des Hautes Études - onde sucedeu a Mauss e a Leenhardt - e com o lugar de subdiretor do Museu do Homem. Para as suas ambições, era pouco.
É neste quadro que nasce, como sublinha Loyer, o livro Tristes tropiques, que rapidamente se tornará na obra mais conhecida de Lévi-Strauss. Composto de rajada entre outubro de 1954 e março de 1955, com a ajuda de Monique Roman - com quem Lévi-Strauss se havia casado anos antes -, Tristes tropiques foi escrito, segundo o próprio, “com raiva” (in Loyer 2015: 415), tendo a sua escrita sido marcada por “momentos de desencorajamento […] e sobretudo de dúvida sobre o valor e a oportunidade” (Loyer 2015: 417) do livro. Contactado para o escrever “mais pelos seus talentos de fotógrafo, do que de etnólogo” (Loyer 2015: 414), Lévi-Strauss redige Tristes tropiques com o sentimento “de queimar as pontes e de saltar para o vazio. Persuadido que já não tem futuro universitário, pode pagar-se o luxo de ‘escrever sem precaução’ ” (Loyer 2015: 414). Deixa para trás aquele que seria o segundo volume de Les structures élémentaires de la parenté e concentra-se - não sem remorsos - na escrita de um livro que ele próprio chegou a descrever como um pecado “contra a ciência” (in Loyer 2015: 421). Como escreveu a Merleau-Ponty, “eu estou a escrever um livro (Tristes tropiques) que quando você e os professores do Collège o lerem, não pensarão mais em tentar eleger-me [para o Collège]” (in Loyer 2015: 414). Como se sabe, esta profecia não se cumpriu: não só Lévi-Strauss será eleito, em 1959, para o Collège de France, como o sucesso de Tristes tropiques parece ter sido um dos fatores que pesou na decisão dos seus colegas, tomada por 36 votos favoráveis num universo de 44 votantes.
Um ano antes, Lévi-Strauss havia publicado Anthropologie structurale 1 (1958). E em 1962 seriam publicados Le totémisme aujourd’hui e La pensée sauvage(1962). Em cinco anos apenas publica três das suas mais importantes obras. Como escreve Loyer, “de repente, nalguns anos, tudo se desbloqueia” (2015: 443). Não só a crise fica para trás, como a sua carreira conhece o seu zénite. É então que Lévi-Strauss - que entre 1964 e 1971 publicará os quatro volumes das Mythologiques - conhece a sua consagração nacional e internacional e é promovido a um dos maîtres à penser da época.
Na abordagem muito completa a que Loyer procede deste período, o lugar de destaque vai, entretanto, para a atenção conferida ao lado institucional da atividade de Lévi-Strauss, pouco presente em outras obras sobre o antropólogo, mais orientadas para o mapeamento do seu itinerário teórico. De facto - tal como nos casos de Franz Boas e de Margaret Mead, ou, em Portugal, de Jorge Dias -, consagração intelectual e consagração institucional andaram de mãos dadas. Essa consagração institucional assentou, no caso de Lévi-Strauss, no Laboratoire d’Anthropologie Sociale (LAS), ao qual Loyer dedica o capítulo 16, sugestivamente intitulado “La fabrique de la science”. O espaço físico do laboratório é descrito, assim como a sua luta por instalações condignas. São anotados os nomes dos seus primeiros investigadores: Jean Pouillon e Isac Chiva (que partilharam com Lévi-Strauss a direção do laboratório), Françoise Zonabend, Nicole Belmont, Tina Jolas, Michel Izard, Lucien Sebag, Robert Jaulin. Há uma secção consagrada ao importante papel das mulheres antropólogas no LAS e são reconstituídas as sociabilidades - frequentemente marcadas pela endogamia - que caracterizavam a sua vida interna. É descrito o seu modo de funcionamento: “uma monarquia esclarecida baseada na autoridade carismática” (Loyer 2015: 519) combinada com uma democracia direta apoiada em assembleias gerais de todos os membros do laboratório.
Na abordagem proposta há dois pontos cuja importância merece ser sublinhada. Em primeiro lugar: a amplitude geográfica das pesquisas do LAS e o modo como esta - de acordo com uma tendência mais geral da antropologia norte-americana e inglesa dos anos 1960 e 1970 - não traçava uma linha divisória entre sociedades “exóticas” e sociedades rurais europeias. Em segundo lugar, o modo como esta “liberdade” geográfica ia de par com um certo pluralismo teórico. Não é que nas pesquisas dos diferentes membros do LAS não se sinta um certo “ar de família”, mas como sublinha Loyer, “não havia uma linha teórica ortodoxa no LAS” (2015: 513). Segundo Isac Chiva - citado por Loyer - isso fazia com que o próprio Lévi-Strauss dissesse que “no LAS, não havia um único estruturalista [para além dele próprio]” (2015: 513). Embora seja manifestamente exagerada - havia vários estruturalistas no LAS - essa afirmação dá de qualquer forma conta desse lado plural do laboratório, reforçado certamente pelo modo liberal como Lévi-Strauss dirigia as teses dos seus orientandos, muitas vezes mais preocupado com a solução de questões práticas relacionadas com a sua pesquisa do que com a imposição da sua linha teórica. Um exemplo disso, relatado por Philippe Descola (2016: 33), é o modo como Lévi-Strauss - que era o seu orientador - só leu a sua tese de doutoramento depois de esta ter sido entregue.
Igualmente interessante é o tratamento dado por Loyer aos anos jubilados de Lévi-Strauss, que se estendem desde 1971 até à sua morte. Esses anos, apesar da crise do estruturalismo, consolidaram a projeção nacional e internacional de Lévi-Strauss. Eleito em 1973 para a Académie Française, entra também na lista restrita de autores franceses cuja obra foi publicada pela famosa Bibliothéque de la Pléiade (Oeuvres, 2008). As homenagens multiplicam-se, particularmente em França, onde se torna numa espécie de “monumento nacional” (Loyer 2015: 715).
Mas a aposentação de Lévi-Strauss é uma aposentação ativa e o relato que Loyer lhe consagra pode mesmo ser visto como uma espécie de “manual savant de envelhecimento”. Como é sabido, é nesses anos que - depois dos quatro volumes das Mythologiques - Lévi-Strauss publicará as “petites Mythologiques” (La Voie des Masques, 1975; La Potière Jalouse, 1986; Histoire de Lynx, 1991). É também então que é publicado, em 1973, o II volume de Anthropologie structurale. Apesar das reservas que a sua obra suscita - vindas nomeadamente de Robert Jaulin, Pierre Bourdieu ou Georges Balandier - Lévi-Strauss continua fiel a si mesmo.
Mas trata-se - como sublinha Loyer - de uma fidelidade relativa. De facto, aquilo que é mais notório nesses anos é a sua vontade de trilhar novos caminhos. Fá-lo quando viaja para a British Columbia e, ao descobrir o renascimento das artes indígenas locais, conclui que a antropologia poderia ser não tanto a ciência dos “primeiros” ou dos “últimos” homens - como antes escrevera - mas “a ciência dos novos primeiros homens” (Loyer 2015: 644). É também nesses anos que Lévi-Strauss se deixa fascinar pelo Japão, onde descobrirá “a experiência feliz de uma alteridade relativa” (Loyer 2015: 696). Mas é sobretudo nesses anos que Lévi-Strauss pratica - antes mesmo da invenção dessa expressão - uma antropologia simétrica, assente em crónicas originalmente publicadas no jornal italiano La Repubblica e posteriormente reunidas no livro Nous sommes tous des cannibales (2013). Analisando com uma lente antropológica temas contemporâneos como a doença das vacas loucas ou a procriação artificial, para Lévi-Strauss “o desafio não é de uma simples aproximação entre ‘eles’ e ‘nós’, mas uma verdadeira requalificação selvagem da nossa contemporaneidade” capaz de “se inspirar nas sociedades antigas ou exóticas que se defrontaram com os mesmos problemas e oferecer soluções ‘boas para pensar’ ” (Loyer 2015: 735). Como sublinha Loyer, este é “um programa que é similar, em parte, ao de Bruno Latour: tornarmos a ser os não-modernos que jamais deixámos de ser” (2015: 736).
Escrevendo sobre temas contemporâneos, Lévi-Strauss regressa de alguma forma à sua juventude e ao seu engajamento político como “militante socialista ardente” (Loyer 2015: 10). Iniciada em 1924, essa sua militância irá conduzi-lo, em 1928, ao cargo de secretário-geral da Federação Nacional de Estudantes Socialistas e, posteriormente, ao lugar de assistente parlamentar do deputado socialista Georges Monnet. Em 1931 - depois de terminado o seu curso de filosofia - Lévi-Strauss é colocado como professor em Landes e terá também um intenso envolvimento na vida política local. Apesar da amnésia posterior de Lévi-Strauss em relação a esse engajamento, este foi vivido na altura com entusiasmo. Era aí - e não na filosofia - que estava “a verdadeira vida” (Loyer 2015: 78). A política foi então para ele “uma espécie de ‘Universidade paralela’, exaltante, exigente, conectada com o mundo político, económico, social” (Loyer 2015: 82). Como enfatiza Loyer, havia então um envolvimento ativo de Lévi-Strauss com o mundo que, com o tempo, se foi transformando em estranhamento. É certo que nos seus anos nova-iorquinos - como anteriormente referido - Lévi-Strauss ainda se envolveu de forma decidida com a resistência gaulista. Mas no seu regresso a França, esse estranhamento acentua-se. Como sublinha Loyer, são várias as expressões desse desencantamento. Passam pelo seu distanciamento em relação à arte moderna, com a qual, entretanto, convivera bem em Nova Iorque (e antes). Prolongam--se no seu desalento crítico em relação a grandes eventos transformadores da segunda metade do século XX, com particular destaque para o Maio de 1968. Gradualmente, Lévi-Strauss desliza para posições conservadoras, por vezes polémicas.
Mas, sobretudo, será a partir desse estranhamento que emergirá uma faceta de Lévi-Strauss que não tem sido suficientemente valorizada: a sua crítica radical da modernidade, construída a partir do seu fascínio pelo mundo ameríndio. Como escreve Loyer, Lévi-Strauss “gostaria, se isso fosse possível, de um retorno ao neolítico” (2015: 611) e desconfiava do progresso, tema sobre o qual escreveu em Tristes tropiques, uma célebre frase: “naquilo que nós chamamos progresso, há 90% de esforços para remediar os inconvenientes decorrentes das vantagens asseguradas pelos restantes 10%” (in Loyer 2015: 611). As suas posições pessimistas sobre as consequências da explosão demográfica, ou sobre a homogeneização cultural decorrente da globalização, fazem dele um antimoderno que - à semelhança do Mauss do Ensaio sobre a Dádiva ou de Boas e de outros boasianos - combina antropologia com crítica cultural.
Lévi-Strauss entre os “resplendores da luz perpétua”
Esta faceta do pensamento de Lévi-Strauss é de novo explorada por Emmanuelle Loyer no seu prefácio a L’Abécédaire de Claude Lévi-Strauss. Segundo a autora, a reabilitação lévi-straussiana do pensamento selvagem anteciparia “a inteligência ecológica reclamada hoje por muitos: uma inteligência, de resto antiga, que se apercebe, desde o início, da interdependência do vivo (mais do que da independência dos humanos)” (Loyer 2021: 10). “Profundamente marcado pela experiência brasileira dos anos 1935-1939” (2021: 11), Lévi-Strauss é “hipersensível à desfiguração do seu próprio mundo […] mas sobretudo vê nos índios os pioneiros-especialistas da sobrevivência em tempos de catástrofe” (Loyer 2021: 11). Quanto ao pessimismo de Lévi-Strauss “ele é hoje plenamente o nosso” (Loyer 2021: 16).
O acento colocado nesta faceta do pensamento de Lévi-Strauss - de resto também presente no prefácio de Vincent Debaene a Anthropologie structurale 0 - reflete-se no relevo que L’Abécédaire de Claude Lévi-Strauss dá a entradas colocadas sob o signo da crítica lévi-straussiana à modernidade. Em “Lazare”, por exemplo, é explicado o modo como a experiência etnográfica da alteridade transforma para sempre a relação do antropólogo com a sua própria sociedade. O etnógrafo
“é vítima de uma espécie de desenraizamento crónico: nunca mais se sentirá em casa em parte alguma […]. Submetendo à prova experiências sociais irredutíveis às suas tradições e crenças, autopsiando a sua própria sociedade, ele morreu verdadeiramente para o seu mundo: e se consegue regressar […] continuará a ser. mesmo assim, um ressuscitado.” (M. Lévi-Strauss e Loyer 2021: 98)
A catástrofe demográfica do mundo contemporâneo é evocada em “Avenir” (M. Lévi-Strauss e Loyer 2021: 27), em “Catastrophe (démographique)” (M. Lévi-Strauss e Loyer 2021: 39), ou em “Optimum de population” (M. Lévi-Strauss e Loyer 2021: 124). Em “Environnement” somos relembrados que, para Lévi-Strauss, “o direito do ambiente, de que se fala tanto, é um direito do ambiente sobre o homem, não um direto do homem sobre o ambiente” (M. Lévi-Strauss e Loyer 2021: 64). A crítica à homogeneização cultural percorre também, de forma pessimista, várias entradas. O modo como este olhar crítico sobre o mundo seu contemporâneo se traduziu em tomadas de posição polémicas também não é ignorado. Assim, a entrada “Islam” (M. Lévi-Strauss e Loyer 2021: 91-92), retoma a condenação do Islão inicialmente publicada em Tristes tropiques, e a entrada “Houellebecq” (M. Lévi-Strauss e Loyer 2021: 82-83) relembra - mais de meio-século depois - que Lévi-Strauss mantinha a mesma posição crítica em relação ao Islão.
Mas o que é mais relevante na escolha de citações contidas no L’Abécédaire de Claude Lévi-Strauss é o seu carácter deliberadamente heterogéneo. Estão lá passagens dos livros mais conhecidos de Lévi-Strauss - sobretudo de Tristes tropiques - mas também citações de artigos e escritos políticos de jeunesse, extratos de entrevistas, ou passagens de cartas. Estão lá indicados os seus autores de referência, desde os mais antigos (Montaigne, de Léry, Rousseau) até aos contemporâneos (Jakobson, Dumézil, Aron), mas estão também lá os “clássicos” (Marx, Durkheim, Freud, Mauss). Os grandes temas estruturantes do pensamento antropológico de Lévi-Strauss - como o parentesco, o totemismo, o “pensamento selvagem” ou a mitologia - fazem-se presentes, mas são também reunidas ideias ou apontamentos mais soltos e, muitas vezes, inesperados. É o caso da saudade: “contração do coração que se sente quando nos lembramos de certos lugares. Somos penetrados pela evidência que não há nada do mundo de permanente ou estável a que nos possamos agarrar” (M. Lévi-Strauss e Loyer 2021: 157).
Outras entradas retomam frases curtas de Lévi-Strauss, assim transformadas em aforismos. Em “Commencement” lê-se que “o homem não cria verdadeiramente senão no princípio” (M. Lévi-Strauss e Loyer 2021: 46). Na entrada “Ennui” (2021: 62), Lévi-Strauss escreve sobre o conhecimento como forma de combater o aborrecimento. Em “Patience” o aforismo é sobre a brevidade da vida: “a vida é curta, é uma questão de ter um pouco de paciência” (M. Lévi-Strauss e Loyer 2021: 129).
Mas talvez um dos méritos de L’Abécédaire de Claude Lévi-Strauss seja o de reunir num mesmo espaço gráfico frases e ideias que dão a ver algumas constantes mais difusas do pensamento de Lévi-Strauss. É o que se passa com as várias caracterizações que Lévi-Strauss faz das disciplinas antropológicas (etnografia, etnologia, antropologia). Na letra A, a antropologia social é apresentada como a única das ciências “a fazer da subjetividade mais íntima um meio de demonstração objetiva” (M. Lévi-Strauss e Loyer 2021: 22). Na letra C, é sob o signo da conservação que a antropologia é definida:
“O que é que eu tento fazer? Tento testemunhar a favor de algumas sociedades desaparecidas ou prestes a desaparecer. Tento conservar presentes na memória dos homens da nossa civilização e das civilizações futuras géneros de vida profundamente diferentes daqueles que nós conhecemos. É uma tarefa de conservador, não uma tarefa de inovador.” (M. Lévi-Strauss e Loyer 2021: 47)
Na letra D, em “Dépaysement”, Lévi-Strauss compara o ensino das línguas clássicas à etnografia. Ambas praticariam “um método intelectual […] que eu chamaria de bom grado a técnica do estranhamento” (M. Lévi-Strauss e Loyer 2021: 53). Como se sabe, esta ideia havia sido inicialmente formulada no artigo de 1952, “La notion d’archaïsme en ethnologie”, e é retomada numa citação da página 68. Na letra I, a entrada “Indigène” propõe uma formulação particularmente radical sobre o primado do ponto de vista indígena à la Malinowski: “contra o teórico, o observador deve ter sempre a última palavra; e contra o observador, o indígena” (M. Lévi-Strauss e Loyer 2021: 88). Os novos termos que nos anos 2000 teriam passado a caracterizar a relação entre filosofia e antropologia são relembrados em “Philosophie”:
“quer nos alegremos, quer nos inquietemos, a filosofia ocupa de novo a dianteira da cena antropológica. Não mais a nossa filosofia, à qual a minha geração havia pedido aos povos exóticos que ajudassem a desfazer-se dela; mas, por um surpreendente retorno das coisas, a deles.” (M. Lévi-Strauss e Loyer 2021: 134)
Em “Sagesse”, a etnologia é definida não apenas como recolha de “documentos científicos”, mas como escuta de “lições de sabedoria nas quais o Ocidente se poderia inspirar” (M. Lévi-Strauss e Loyer 2021: 155). E a experiência etnográfica como “uma revolução interior que fará [do antropólogo] um homem novo” (M. Lévi-Strauss e Loyer 2021: 178), é evocada na letra T (“Terrain”).
Não é que algumas destas formulações sobre a disciplina antropológica sejam estranhas aos leitores de Lévi-Strauss, mas a sua reunião neste volume permite não só que as tenhamos mais à mão, como que possamos mais facilmente relembrar constantes e variações do seu pensamento. O mesmo se passa com o tema da arte, tanto a moderna, como a primitiva, objeto de várias entradas, desde “Art” e “Art primitive” até “Impressionnisme”, passando pelo elogio à audácia estética dos melanésios (em “Mélanésiens”) e de Bill Reid (figura essencial no renascimento das artes da costa noroeste do Canadá), até à desconfiança em relação à pintura moderna, que “tem vindo de crise em crise” (M. Lévi-Strauss e Loyer 2021: 131).
Procedendo a este digest do pensamento de Lévi-Strauss, L’Abécédaire de Claude Lévi-Strauss pode ser visto como um esforço de seduzir, para o culto do mais importante antepassado da antropologia do século XX, um público que se atemoriza perante a vastidão e complexidade da sua obra. Mas é também, para aqueles que estão mais familiarizados com Lévi-Strauss, uma oportunidade para reler algumas das suas frases mais cintilantes e regressar a uma visão de conjunto da sua obra, tanto nas suas realizações, como nas suas oscilações e impasses. Não dispensa, entretanto - sobretudo para aqueles que queiram conhecer de perto a sua vida e obra - a leitura da biografia que Loyer lhe consagrou. Quanto a Anthropologie structurale 0, é o livro que faltava na obra republicada de Lévi-Strauss: a sua frescura analítica é - citando Lévi-Strauss - a do “tempo dos começos”.
Seja como for, em tempos que são de protagonismo da antropologia ontológica, revisitar Lévi-Strauss é muito recomendável. É na sua obra - conversando com ela, concordando ou divergindo dela - que se alicerçam os novos desenvolvimentos que dois dos seus mais famosos orientandos - Philippe Descola e Eduardo Viveiros de Castro - imprimiram à sua reflexão sobre as ontologias (as nossas e as dos outros). Essa é mais uma razão para que Lévi-Strauss - que dizia de si mesmo ser um homem do século XIX - continue connosco no século XXI.