Preâmbulo
Apesar da tardia prevalência da sua dimensão piscatória sobre a sua vocação militar defensiva e rural, a vila de Sesimbra converteu-se num proeminente centro de captura de pescado em todo o Portugal continental, a par com Póvoa de Varzim, Matosinhos, Aveiro, Figueira da Foz, Nazaré, Peniche ou Olhão (Proença 1994 [1924]; Bernardo 1941; Franca, Martins e Carneiro 2001; Ramos 2009; Garrido 2018), pela antiguidade da sua indústria, pelo número e percentagem de habitantes envolvidos e pelo valor anual da sua pescaria,1 que tem consistido primordialmente, mas não só, na captura de sardinha, pescada, espadarte, carapau, peixe-espada branco e preto, polvo e cavala (Silva 1991 [1891]; Bernardo 1941; Moreira 1987; Docapesca 2015). A actividade2 piscatória em Sesimbra é um exemplo de como a designada pesca artesanal continua a ser “o meio de subsistência e um modo de vida para milhões de pessoas em todo o mundo. Esta pesca local é absolutamente vital para assegurar a segurança alimentar, em benefício das suas comunidades, e desta forma sustentar a sua identidade cultural” (Bailey 2018: 5-6), o que revela não apenas a sua relevância social e económica como a sua obstinada persistência.
O caso de Sesimbra não é único. Nem em Portugal nem no resto do mundo. Um incontável número de povoações marítimas sofreu transformações análogas à de Sesimbra. A escolha desta vila como objecto de estudo dentro da temática que aqui nos propomos explorar deve-se a um conjunto de razões que congregam problemáticas da antropologia marítima, da ecologia política, da alimentação e do turismo. Desde há muito tempo que esta povoação tem ocupado um dos lugares cimeiros no discurso da maritimidade portuguesa, dada a relevância, entre outros factores, da sua prolífera actividade piscatória. A partir dos anos 40 e 50 do século XX, encontra-se incluída no roteiro turístico do itinerário da Arrábida, um dos percursos mais divulgados da região da grande área metropolitana de Lisboa. Antes da grande “explosão turística”, no final dos anos 70, a vila de Sesimbra era sobejamente reconhecida, quer pela actividade da sua frota de pesca artesanal, quer pela sua oferta gastronómica de pescado marítimo fresco e destino habitual do designado turismo excursionista e de cariz familiar. Esta povoação geograficamente inserida num quadro natural de uma paisagem singular, em que o apelo abismal do sublime é omnipresente e uma mais-valia para a sua promoção turística que convida a saborear “o seu peixe vindo diretamente do mar para a sua mesa”.
No contemporâneo mosaico alimentar global emerge uma realidade em que “tantas pessoas no mundo inteiro já não produzem o que consomem ou consomem o que produzem, e tanta comida flui e em tal volume e velocidade que a unidade de produção e consumo muitas vezes se perde ou se oculta” (Mintz 2001: 33), daí que a minha abordagem coloque uma particular atenção nos discursos ocultos, uma vez que, “se não tivermos o privilégio de espreitar o que se passa nos bastidores ou de assistir a uma ruptura na representação, não temos maneira de questionar a natureza de uma actuação que pode ser tão fingida quanto convincente” (Scott 2013 [1992]: 31). No contexto da implementação do turismo e da sua relação com os espaços de comida desta comunidade marítima, e da presença avassaladora do mar, o sustentáculo da sua economia haliêutica e as práticas alimentares alicerçadas no pescado abriram caminho para a imersão antropológica deste artigo numa problemática que este particular contexto encerra: a relevância simbólica da maritimidade e a actividade artesanal da pesca associadas à história e a práticas sociais dos lugares na orla costeira entre a fluida e labiríntica natureza do pescado nas suas múltiplas transfigurações, desde a sua captura até chegar à mesa dos comensais.
O peixe apresentou-se-me assim como uma profunda metáfora para o entendimento antropológico da sociedade de Sesimbra, na sua condição histórica e actual e em particular da sua pesca artesanal. Daí que, consciente do método de pesquisa assente em seguir algo, presente na pesquisa antropológica clássica - como é o caso de Evans-Pritchard (1940) que, ao acompanhar o roteiro do gado bovino (“cherchez la vache”, como registou o próprio), procurou entender melhor o quotidiano dos Nuer -, eu tenha decidido seguir o peixe, procurando revelar algumas das mais pertinentes dimensões antropológicas do vasto mundo líquido para as quais a fluidez da vida marítima me apontou o caminho.
A transformação do peixe em pescado
O trabalhador marítimo desempenha um relevante papel na transferência do peixe do meio aquático para o meio terrestre nos primórdios do processo de transfiguração do pescado. Esta capacidade advém, em primeiro lugar, do conhecimento que o pescador possui sobre o mar, a sua natureza, as suas armadilhas e as suas possibilidades. O seu domínio sobre as variantes de cada espécie, os seus disfarces, os respectivos refúgios e pesqueiros, hábitos e fraquezas de cada peixe conferem ao homem do mar um poder absolutamente avassalador sobre a invisível existência das profundezas aquáticas. É com ele e através da sua acção que se dá a primeira transfiguração do peixe ao longo do caminho até à superfície e que tecnologicamente se prolonga desde a lota até à banca de pedra da peixaria e ao domicílio e estabelecimentos de restauração.
No entanto, antes mesmo de qualquer embarcação da frota pesqueira se fazer ao mar, em Portugal existem três instituições que são responsáveis pela regulamentação dos produtos marinhos que podemos pescar, capturar, colher, comercializar e comer. O Instituto Português do Mar e da Atmosfera (IPMA) é o organismo público e científico responsável pela monitorização dos recursos marinhos, indicação de quotas3 para o pescado e, aliado à investigação biológica e nutricional, apresentação de propostas para novos produtos do mar. Entre os vários projectos recentemente desenvolvidos pelo IPMA contam-se a implementação de projecto de recifes artificiais ao largo da enseada da Nazaré, a conservação de espécies marinhas protegidas em Portugal continental, o apoio às indústrias de aquacultura e pescas, o controlo dos níveis e efeito do processamento na utilização de polifosfatos na indústria transformadora do pescado e a valorização e promoção da qualidade do polvo da costa portuguesa.
De acordo com as decisões políticas da União Europeia (UE), o âmbito decisório e vinculativo das pescas marítimas, em Portugal, é regido pela Direção-Geral de Recursos Naturais, Segurança e Serviços Marítimos (DGRM). Efectivamente, para a DGRM o peixe é aqui encarado a partir de uma representação quantitativa e territorial. Um objecto não visível na cartografia dos recursos. Uma imensa quadrícula desenhada com compasso, régua e esquadro sobre as águas oceânicas e litorais onde as embarcações, com diversas envergaduras e diferentes potências, constantemente monitorizadas, evoluem na sua faina. Esta instituição responsável pelo licenciamento de todas as embarcações e de todas as estruturas físicas implementadas em terra e ligadas à actividade marítima da pesca, assegura a legitimidade de todos os instrumentos utilizados na exploração dos recursos naturais marinhos enquanto estabelece, organiza, promove e corrige o espaço onde eles operam. Ainda oculto dos radares pela imensa coluna de água, o pescado consiste numa fórmula onde se combina o território, a capacidade bruta de transporte, a força motriz e energia despendida no trajecto, e a captura deste recurso natural.
A Docapesca é a empresa pública que aplica a regulamentação emanada pela DGRM e que gere todos os portos de pesca em Portugal continental, integrando 22 lotas e 31 postos de vendagem, que funcionam diariamente, ao longo da costa portuguesa, desde Vila Praia de Âncora até Vila Real de Santo António. Encontram-se, igualmente, sob a jurisdição da Docapesca 14 marinas e docas de recreio ao longo da costa continental, habitualmente localizadas na área do respectivo porto de abrigo. O elevado consumo de peixe exige uma maior preocupação e responsabilidade ao nível da sustentabilidade das espécies capturadas, daí que a certificação ecológica (eco-labels) e a rastreabilidade do pescado com informação histórica de cada peixe, de cada barco, do mestre do barco e do local de origem do pescado, e a cooperação com todos os intervenientes na fileira da pesca sejam as etapas para o objectivo final de valorizar o pescado português. De acordo com esta postura, a Docapesca tem apostado na divulgação e implementação da sua estratégia em escolas de restauração e hotelaria (com o apoio dos chefs e alunos), na formação dos funcionários da grande distribuição, de modo a “garantir a presença da cavala nos mercados”, em aulas de culinária (show cooking) nos mercados municipais com o auxílio das autarquias, chefs e alunos da área da restauração e, finalmente, na presença assídua em feiras, seminários e outros eventos gastronómicos. “São justamente os chefs que devem estar na linha da frente para a imperativa mudança de hábitos alimentares. Como figuras públicas com acesso à comunicação social, podem exibir as suas capacidades criativas com espécies em bom estado de conservação. E nisso eles são mesmo bons” (Pacheco 2020: 8). No contexto de uma acentuada visibilidade mediática, a que a criação e o negócio da restauração se encontram intimamente associados, esta tem sido a estratégia definida para a implementação de uma transformação nos hábitos alimentares dos portugueses.
No átrio das instalações da Docapesca, em Algés, logo que entramos no edifício somos surpreendidos por um gigantesco armário reforçado, rematado no topo por dois monitores modernos. Aqui, é indicada a quantidade de energia eléctrica despendida por cada lota ao longo de todo o país. Em tempo real, minuto a minuto, podemos assistir à evolução dos quilowatts/hora em todas as primeiras vendas legais exercidas em toda a costa continental. Este controlo sobre a energia permite conferir o caudal de pescado que entra em cada lota, a cada hora do dia e durante todos os dias da semana, e estabelecer uma relação directa com o consumo de energia eléctrica. O domínio sobre o movimento de cada lota, combinado com a monotorização exercida pela DGRM sobre o movimento das embarcações envolvidas na pesca, permite, pelo menos teoricamente, estabelecer previsões gerais sobre o funcionamento de cada um destes pontos geridos pela Docapesca e sobre toda a frota pesqueira que anda no mar.
Uma nova associação de pescadores: a ArtesanalPesca
A ArtesanalPesca é uma cooperativa de armadores de pesca fundada em 1986, com o objectivo de valorizar os produtos do mar capturados pelos pescadores artesanais de Sesimbra, assegurando a garantia de subsistência e laboração assalariada para muitos pescadores desta vila. A partir de 2005, quando é formalizada a situação de excepção ou dispensa de presença do pescado no leilão na lota por parte da Docapesca, que se encontra prevista no artigo 8.º do Decreto-Lei n.º 81/2005, de 20 de abril, dedicado aos contratos de abastecimento de pescado, o projeto da ArtesanalPesca implementou a valorização do pescado capturado exclusivamente de forma artesanal e sustentável, através da construção de um novo complexo industrial em terra que permitisse organizar uma cadeia de transformação e comercialização deste pescado.
Assim, o pescado capturado pelos “membros desta organização de produtores” entra na lota para ser pesado e ser avaliado o seu grau de frescura, através do controlo de qualidade, mas não entra no mercado de leilão e é conduzido directamente para as instalações da ArtesanalPesca. O mesmo acontece com o pescado desembarcado no porto da Figueira da Foz, pelas embarcações pertencentes a esta associação, e que chega a Sesimbra no mesmo dia da sua captura, transportado por camiões frigoríficos para igual processamento industrial.
As principais espécies capturadas pelos associados da ArtesanalPesca são o peixe-espada preto (3000 toneladas anuais), a cavala e o carapau. O peixe-espada preto representa 70% das vendas da ArtesanalPesca, e as espécies pelágicas, sobretudo o carapau e a cavala, representam cerca de 30%, enquanto a presença do polvo foi nos últimos anos praticamente residual. Dos pequenos pelágicos, 85% é vendido congelado e apenas 15% fresco. No caso do peixe-espada preto é o inverso, 85% do volume é vendido fresco e o restante congelado. No que respeita à frota pesqueira associada da ArtesanalPesca, das 16 embarcações que se dedicam exclusivamente à pesca do peixe-espada preto em todo a área de Portugal continental, 15 são associadas da ArtesanalPesca e representam mais de 90% das capturas desta espécie no mesmo espaço geográfico. Com mais de 60 funcionários e cerca de 400 pescadores congregados em embarcações suas associadas, a ArtesanalPesca é, a par com os serviços públicos e municipais, a mais importante unidade empregadora desta vila piscatória. Numa vila com a dimensão de Sesimbra, esta realidade tem uma influência absolutamente determinante na economia local. Ao mesmo tempo, e dada a perspectiva de sustentabilidade ecológica da política monitorizada dos subsídios atribuídos pela União Europeia ao desenvolvimento de actividades directamente relacionadas com os recursos marinhos, o exponencial crescimento da ArtesanalPesca como complexo industrial veio, de acordo com os membros desta associação e todos os residentes e empregados locais contactados no âmbito deste trabalho, assegurar a preservação da frota pesqueira artesanal local.
O peixe em terra e a primeira venda
A lota de Sesimbra, gerida pela Docapesca, funciona das 06.00 horas às 24.00 horas diariamente, sendo a lota o único ponto da rede de distribuição alimentar a lidar exclusivamente com peixe do mar. Geralmente o período da noite é dedicado à pesca do cerco, o período da manhã (de terça a sábado) e o período da tarde (de segunda a sexta) à pesca artesanal (pesca de anzol e de emalhar) e de arrasto. No período entre as 20.00 e 24.00 horas, há um funcionário permanentemente disponível para vendagem por amostra de pescado capturado em grande quantidade e proveniente da pesca do cerco, tal como a sardinha, a cavala ou o carapau. Neste ponto, tal como refere Kevin Bailey, parece-me importante realçar que:
“existe uma linha difusa entre artesanal e pescarias tradicionais em pequena escala. A maior parte das instituições não faz qualquer diferenciação entre as duas. Na minha perspetiva, o termo artesanal tem evoluído de tal modo que nem todas as ‘pescarias tradicionais em pequena escala’ são ‘artesanais’ […] Parece-me que as novas gerações de pescadores artesanais têm orgulho na qualidade dos produtos que fornecem ao mercado, e no equilíbrio do ecossistema de onde são originários. Assim, o termo artesanal reflete um modo de vida, um exercício profissional de profundo respeito e paixão pela faina e artes da pesca. Deste modo, pesca artesanal é uma subcategoria das pescarias tradicionais em pequena escala, ainda que os pescadores de ambos os grupos, frequentemente, tenham de enfrentar problemas similares.” (Bailey, 2018: 4, itálicos no original)
A implementação, desde 1993, na lota de Sesimbra, do leilão electrónico permite uma operação de venda mais rápida e uma mais eficaz preservação da frescura do pescado. Com o leilão online disponível desde 2014 é possível ao comprador efetuar as licitações a distância, normalmente com o auxílio de alguém contratado para o efeito, e que presencialmente se certifica da qualidade do pescado.
À parte a contabilidade da quantidade e valor do peixe controlado e transaccionado na lota, há o designado peixe “fora da lota”, proveniente normalmente de pescadores apeados (porque a captura ou recolha é proveniente de indivíduos sem embarcação). De acordo com o Decreto-Lei n.º 81/2005, de 20 de abril, todo o pescado marítimo tem obrigatoriamente de entrar na lota para recepção, leilão e entrega ao comprador da primeira venda de pescado, encontrando-se isentos desta disposição o pescado capturado de acordo com o enquadramento legal dos contratos de abastecimento de pescado (ArtesanalPesca e Doca Marinha em Sesimbra), o pescado capturado nas águas interiores não marítimas e não submetidas à jurisdição das autoridades marítimas, o pescado proveniente da exploração de estabelecimentos de culturas marinhas, e o pescado capturado para fins científicos.
Antes do início da operação de rastreamento e licitação propriamente dita, os compradores circulam pelo cais, nas traseiras da lota, onde o desembarque tem lugar e o pescado arriba a terra. Nos bastidores do leilão, é possível dar uma espreitadela à quantidade, tamanho, espécie e qualidade que a embarcação tal e tal capturou, e assim calcular o potencial valor do pescado em lota e relacionar este preço com o interesse e procura do próprio comprador. Este primeiro passo permite ao “olheiro” (ainda não comprador) estabelecer a sua estratégia de compra e avaliar o interesse dos restantes compradores (ainda apenas olheiros). Como compradores, têm acesso à lota os clientes autorizados através de certidão de actividade relacionada com o pescado (pescador, peixeiro ou comerciante declarado deste ramo) ou procuração para aquisição em nome de uma empresa relacionada com a transação do pescado (peixaria, mercado ou supermercado).
Na etapa da recepção e pesagem, o pescado entra na lota em uniformizadas caixas abertas cor-de-laranja ou azuis, rectangulares e estriadas de plástico resistente. Cada caixa de pescado ou cada lote de caixas (com a mesma espécie, qualidade e calibre de pescado) são pesados e dão entrada na lota com um talão de papel térmico impresso e lançado manualmente pelo funcionário da lota sobre cada lote de pescado, onde se encontram indicados o código e o nome da embarcação, data e hora da compra, código e nome do pescado, número identificador da caixa ou das caixas, o código e o nome do comprador, o preço, o lugar do parque coberto do comprador para onde as caixas são transportadas após a compra, o tipo de venda (leilão) e o peso do pescado.
A espécie, qualidade, calibre e frescura do pescado atribuídos a cada lote pelo funcionário são inseridos no sistema informático e acompanham o pescado até à sua venda. A espécie, qualidade e frescura são atribuídas por verificação visual e táctil. É avaliado, por ordem decrescente da sua frescura, com as letras E (extra, praticamente vivo), A (muito fresco), B (fresco mas com algumas mazelas devido à captura ou transporte), e C (rejeitado). O calibre é por vezes atribuído de modo empírico com a ajuda e comparação do tamanho do pescado com o comprimento ou largura das próprias caixas de plástico, sendo, para tal efeito, o pescado alinhado ao comprido numa das bordas destas caixas. Após ser pesado e identificado, o pescado é levado para junto de uma das duas cabines brancas e envidraçadas existentes no meio do pavilhão e dispostas, em exposição, de frente para a bancada onde se encontram sentados os compradores que irão licitar o pescado. Não é rara a presença de crianças ou amigos a acompanharem um familiar ou conhecido, mas a recolha de fotografias ou vídeos é discretamente desaconselhada.
Os compradores são o grande e pequeno retalho, a Horeca4 e associações sem fins lucrativos. O grande retalho compra directamente em lota o pescado que seguirá para as grandes superfícies comerciais e mercados abastecedores, como o Mercado Abastecedor da Região de Lisboa (MARL); o pequeno retalho é constituído por peixeiros, comerciantes do interior/intermediários que se abastecem directamente na lota para posterior revenda direccionada a mercados e peixarias; a rede Horeca compra directamente em lota, ou através de um único intermediário (grossista), claramente identificado, que irá fornecer os clientes desta rede; e finalmente as associações sem fins lucrativos e profissionais da restauração, estes últimos com pouca visibilidade local, que também adquirem o pescado na lota mas em muito pequenas quantidades. Após ser rematadas, as caixas ou lotes de pescado são dispostas no parque. Uma área cimentada com rectângulos marcados no pavimento com tinta amarela, cada qual com o código do comprador (assemelhando-se por isso a um parque de estacionamento automóvel). Daqui o pescado segue para os veículos frigoríficos de cada comprador, estacionados no exterior. Ao comprador da primeira venda de pescado é entregue uma guia de pescado ou transferência emitida em triplicado que indica a data, hora e local da carga; o código do controlo veterinário; a identificação do armador e o código da embarcação, assim com a respectiva arte de pesca utilizada (A = arrasto; T = artesanal; S = cerco); o nome comum e científico da espécie; o seu calibre e grau de frescura; e o peso do lote, assim como o preço a que foi comprado com todas as taxas associadas descritas detalhadamente. Legalmente, este documento deve acompanhar os produtos do mar ao longo de todo o circuito comercial, desde a sua carga em lota, durante toda a transferência até à peixaria, mercado, supermercado ou restaurante, até serem adquiridos pelo consumidor, quando termina a longa jornada do peixe. Ou melhor, do pescado.
O palco terrista da pesca artesanal
Na sequência do fim do acordo das pescas com Marrocos,5 da crise daí decorrente que conduziu ao abate6 de um grande número de embarcações em Sesimbra e conversão de outras para a captura de outras espécies, e do grande declínio da pesca do cerco entre 2009 e 2011, foi alterada a legislação referente à aposentação dos seus trabalhadores. O pescador profissional (profissão de desgaste rápido) pode agora reformar-se aos 55 anos, mas fica sem licença profissional e não pode mais pescar nessa situação. Isto deveu-se ao facto de diferentes governos necessitarem de abater pessoal, tal como abateram embarcações no passado recente. Estes pescadores podem pedir uma licença de pesca desportiva, mas não podem levar o peixe para a lota, encontrando-se restringidos pelas normas da pesca desportiva, que pouco devem aos conhecimentos empíricos da tradicional pesca costeira. Como grande parte das reformas são baixas, gerou-se aqui a situação ideal para a criação de uma economia paralela: impossibilitados de vender na lota, muitos destes pescadores ficam com algum do pescado para o seu agregado familiar e vendem o restante directamente à restauração local, que pode assim comprar pequenas quantidades de peixe fresco a preços mais baixos, uma vez que se encontram livres da taxa e do resultado do leilão da lota e do intermediário que compra na lota em grandes quantidades e depois faz o seu próprio preço consoante a relação entre quantidade e procura de cada espécie. Simultaneamente, o pescador vende as espécies capturadas sem pagar as taxas referentes à sua inscrição na lota e pode gerir directamente o preço do pescado com um único revendedor e intermediário neste processo.
Na actual situação, os pescadores tradicionais estão a perder a competição com as grandes empresas da indústria das pescas, não apenas no mar mas também nos mercados em terra. Devido à sua gigantesca dimensão, que lhes permite uma grande redução dos custos e alta eficiência, as grandes empresas podem, assim, vender os seus produtos a preços mais baixos do que os pescadores locais. Graças à sua intrincada e hiper-racionalizada rede de distribuição, as grandes corporações da indústria alimentar colocam, muito rapidamente e a preços mais baixos, os seus produtos no mercado global (Bailey 2018), eliminando da nossa sociedade de consumo a exasperante sazonalidade e garantindo, em simultâneo, a permanente abundância, ainda que a origem do pescado seja cada vez mais indefinida e opaca, e incalculável o seu desperdício final. Ao mesmo tempo, este sistema combinado de organização e coordenação industrialmente produzido pode ter enormes impactos negativos na sustentabilidade alimentar (Truninger 2019), tal como, por exemplo, se tornou visível no cinema com Les glaneurs et la glaneuse da realizadora Agnés Varda,7 ou mais recentemente com a série documental de televisão Rotten, emitida via plataforma Netflix desde 2018, na qual além da moderna produção alimentar, se analisa o papel desempenhado pelos diversos agentes envolvidos no sistema de distribuição de diferentes e basilares produtos alimentares.
No entanto, apenas uma parte do volume do peixe, em particular as grandes capturas como a sardinha, ou as espécies mais valiosas como a dourada e o marisco, chegam à lota. Na azáfama da chegada e venda do peixe em lota é difícil para o forasteiro ocasional perceber este esquema paralelo elaborado sobre acordos preestabelecidos, sinais, gestos, olhares, chamadas de telemóvel entre terra e as embarcações, um dialecto ou calão conhecidos apenas de quem vende e de quem compra, como é o caso das caixas ou baldes vazios empilhados sobre caixas ou baldes cheios de peixe. Neste caso, a utilização de sinais quase imperceptíveis, da gíria ou de um dialeto local, como forma de distinção social cujo significado é desconhecido para o visitante (visitante, excursionista ou turista), é claramente um atributo desta cuidadosa encenação, que assim possibilita organizar e adequar a acção consoante as diferentes situações e de acordo com as vicissitudes de cada performance, mantendo oculta a totalidade desta complexa rede de significados em que se sustenta todo o conjunto da performance (Goffman 1993 [1959]). Nesta área, simultaneamente palco restrito e bastidor da transfiguração do pescado, através do uso de disfarces linguísticos, sociolectos, falatórios, rumores, gestos, anedotas e outros códigos, é criado e defendido um novo espaço social no qual pode ser expressa abertamente a dissidência dos intervenientes tanto em relação ao seu desempenho e à representação a decorrer no “palco”, como aos discursos e registo oficial das estabelecidas relações de poder (Scott 2013 [1992]). Orelhas que não escutam, olhos que não vêem, coração que não sente.
Este peixe ocasional, acessório ou peixe vadio é disposto no fundo das caixas de plástico sob outro peixe convencional de baixo valor, como a cavala ou o carapau, e segue o seu caminho sem passar pelo escrutínio do leilão. Esta “substituição” de um peixe por outro é facilitada pela própria natureza de algumas espécies, uma vez que há diferentes espécies do mesmo peixe cuja distinção é impossível no ambiente da lota e só podem ser verificadas por pescadores com muita experiência ou em ambiente de laboratório como são os casos exemplares das duas espécies de peixe-espada preto que frequentam o Atlântico: o Aphanopus carbo e o Aphanopus intermedius, e as diferentes espécies de raias, entre as quais a raia comum, a raia pintada, a raia de quatro olhos, a raia pregada, a raia bicuda, a ratão, ou a tremelga.
Neste contexto, a taxa de 23% aplicada sobre todo o marisco leva a que, por vezes, este alimento de luxo seja registado com a designação de outro peixe de modo a aliviar o comprador que já tem de pagar a taxa de 12% sobre a licença de compra em lota. Quanto às espécies cuja captura é proibida por se encontrarem em período de defeso, esgotamento de quotas atribuídas ou por serem consideradas como um risco alimentar, são vendidas na lota com uma designação diferente de uma espécie fisionomicamente semelhante que não se encontra proibida.8
Na verdade, este delicado e oscilante sistema de compensações, designado oficialmente como “fuga à lota”, não tem as características de uma rede inamovível e permanente com carácter sistemático, até porque os intervenientes vão mudando e a fiscalização vai aparecendo, sendo avultadas as multas sobre os infractores, chegando no limite à erradicação da lota do comprador implicado na transgressão ou à perda da licença de pesca por parte do armador ou pescador - ambos acontecimentos raros. O valor da venda na candonga deste ou daquele quinhão de peixe que escapa ao controlo das instituições acaba por reverter para os pescadores e intermediários, acabando o comprador final, restaurador ou peixeiro por não ter de pagar os impostos estabelecidos por lei, o que vai permitindo a sobrevivência do pequeno comércio e da pequena restauração. Quanto ao consumidor final na restauração, este representa a figura do mexilhão no famoso adágio português. A fuga à escalada dos preços do pescado marítimo nas áreas costeiras, incentivada pelas menores capturas e maior afluência de turistas endinheirados e fiscalizada pelos serviços tributários e de segurança alimentar, é, hoje, praticamente impossível.
O que são os pescadores na actual pesca artesanal?
Aqui chegados, neste ponto em que o pescado finalmente arriba a terra firme, parece-me importante sublinhar que tanto a natureza do trabalho no mar como a interacção com a primeira venda apresentam características muito diversas nos casos da pesca local, costeira, de largo ou longínqua. Habitualmente, quer seja em termos académicos, jornalísticos ou políticos, o discurso sobre as pescas usa o termo pescador para indicar o protagonista desta actividade, quando na verdade estamos a aglutinar diversos actores socio-económicos num padrão idealizado e rudimentar da actualidade. Assim, o pescador tornou-se numa abstração ou numa referência nostálgica a um passado idealizado. Arrais, armadores, mestres, pescadores (por conta própria ou por conta de outrem), marítimos (no mar ou em terra), pilotos e contratados empregados nos grandes barcos-fábrica, pescadores do arrasto, do cerco ou da linha têm experiências, necessidades, hábitos, rotinas, rendas e possibilidade de acesso a isenções fiscais, subsídios ou empréstimos bancários promovidos por diferentes instituições e autoridades de modos completamente diversos.
Por exemplo, se a lota é absolutamente necessária para o escoamento das capturas da pesca do largo e longínqua, o mesmo pode não acontecer forçosamente com a pesca costeira e local. Em particular, no caso da pesca local, o acesso à lota é uma obrigação, uma contrariedade que, dado o baixo rendimento frequentemente auferido, bem podia ser evitada. Do mesmo modo, será legítimo atribuir-se o conceito de pesca artesanal à pesca longínqua, apenas porque não utiliza aparelhos de arrasto não selectivos, apesar de todos os modernos meios tecnológicos que actualmente tem ao seu dispor? A largada simultânea de múltiplos palangres de profundidade com milhas de comprimento e dezenas de milhares de anzóis acoplados?
Os resultados e a existência dos homens que chefiam e praticam esta pesca altamente mecanizada pouco têm em comum com a actividade dos avieiros no Tejo, com a comunidade piscatória da Carrasqueira no Sado, os pescadores da Arrifana ou do Porto Formoso na ilha de São Miguel nos Açores, ou com a pesca costeira em Sesimbra. Se, por um lado, no caso da pesca artesanal, esta se encontra constantemente ameaçada pelos processos de industrialização e capitalização e neste confronto acaba por se articular com os elementos de modernização sem que tal adaptação implique mudanças estruturalmente profundas no exercício da sua actividade, no caso da pesca industrial prevalecem as relações patronais formalizadas e a contratação de assalariados “em que grupos de trabalho e de decisão diferentes se ocupam dos diversos momentos da sua realização” (Maldonado 1994: 26), tal como numa linha de montagem. Por um lado, há pescadores cujo meio de vida está relacionado com a pesca em águas profundas, e cuja relação com o mar se estabelece maioritariamente em mar aberto, com as suas embarcações mecanizadas e aparelhos de pesca de feição artesanal, mas providos de uma larga amplitude, em que a faina nocturna, em que passam dias seguidos no mar, faz parte da sua habitual labuta marítima. “O retrato estilizado dos pescadores como fiéis discípulos de Tanatos, personagens de um teatro de egoístas e do caos social e ecológico, além de se encontrar desajustado da imagem anterior, tem-se revelado insuficiente para um entendimento dos problemas das pescas. Os seus defensores colocam-se, em geral, ao lado de um modelo de gestão governamental e centralizada dos recursos piscícolas” (Martins 1999: 236).
Por outro lado, há os pescadores, cuja pesca se estabelece nas proximidades da beira-mar, ocorrendo principalmente em águas abrigadas ou em mar raso próximo à costa. Usufruindo de aparelhos e embarcações de pequena dimensão, encontram-se sujeitos a um complexo calendário de plantio e colheita. A sua faina é cuidadosamente delineada de acordo com os diversos factores atmosféricos e haliêuticos. Ambas as experiências, subordinadas à influência dos reboiços do tempo, das alterações do clima das condições do mar, são de modo diverso, é certo, irremediavelmente marcadas pela incerteza e pelo risco. No entanto, em termos práticos e no âmbito da pesca artesanal em Sesimbra, a designação de pescador é utilizada no caso do homem que vai ao mar sozinho na sua pequena embarcação e se dedica à pesca de proximidade, em que todo o conhecimento, experiência e acção se concentram num único indivíduo; ou então, é empregue para nomear o proprietário da embarcação responsável por uma tripulação cujos membros não são designados como pescadores. Além da organização das pescarias, o dono do barco tem o conhecimento geral do mar, da faina e do rendimento do pescado, enquanto o entendimento parcial detido pelos outros os coloca no patamar de simples tarefeiros não qualificados.
A crescente falta de mão-de-obra na faina marítima tem levado a uma reiterada contratação de homens que andam no “desenrascanço”. Atribuladas situações familiares que conduziram a uma vida de penúria, uma genealogia marginalizada, um consumo excessivo de álcool, periódicas reincidências com estupefacientes, uma grande deficiência na formação escolar e um desinteresse em assumir outras responsabilidades fizeram deles “pau para toda a obra”, no mar e em terra, sem nunca chegarem a ser apresentados como pescadores. São moços para toda a vida e, na maioria dos casos a mocidade há muito que já lá vai. Frequentemente, são homens dedicados, obedientes, calados, retraídos e imensamente tímidos, que procuram passar despercebidos. O seu trabalho e a sua sobrevivência dependem disso. A particular noção de competitividade entre pescadores e ocultação de informação sensível na pesca faz com que, quando questionados sobre um aspecto técnico da sua actividade, estes homens remetam as explicações para o pescador e proprietário.
Neste contexto, “com raras mas significativas excepções, os subordinados tendem, por prudência, medo e desejo de cair nas boas graças dos mais fortes, a moldar o seu comportamento público face às expectativas dos poderosos […] Os subordinados simulam uma atitude de deferência e consentimento, ao mesmo tempo que tentam discernir e interpretar as verdadeiras intenções e o estado de ânimo dos poderosos” (Scott 2013 [1992]: 28 e 30). Quase inabordáveis, não querem correr riscos além dos necessários nem ser apanhados em inconfidências. Apenas no ambiente do café tal pode acontecer, mas sob os efeitos do álcool, e a informação tanto pode ser incentivada e reconhecida com matreirice como publicamente desvalorizada. Dado que “o discurso oculto é sempre específico de um determinado espaço social e de um conjunto particular de actores”, nestas ocasiões “o discurso oculto é produzido para um público diferente e sob constrangimentos de poder distintos daqueles que condicionam o discurso público” (idem: 43, 32). Os árduos e recorrentes hábitos da faina fazem deste conjunto heterogéneo uma equipa coesa e silenciosa de onde se destaca a voz do pescador. Os grandes riscos inerentes a esta actividade fazem com que a quebra desta dinâmica, seja por desrespeito, transgressão, negligência ou absentismo, conduza, muitas vezes, ao abrupto afastamento do infractor e à sua segregação da comunidade marítima, acabando os reincidentes por arranjar uma ocupação em terra, uma vez que “não davam para a vida no mar”.9 Em resumo, as embarcações, os aparelhos, as capturas e a visão que estes homens do mar têm das suas actividades são diferentes e frequentemente antagónicas entre si. Essencialmente, parece-nos que apenas tendo em consideração este conjunto heterogéneo e diferenciado de perspectivas, actividades laborais, posições sociais e o papel desempenhado por cada um destes diferentes pescadores é que podemos avaliar e definir com algum rigor o que, presentemente, é a pesca em Portugal.
O mercado e a encenação da segunda venda
As espécies mais pequenas encontram-se mergulhadas em água salgada e gelo, as espécies maiores alinhadas em camadas e envoltas num lençol de plástico transparente coberto por uma estreita faixa de gelo entre cada camada, de modo a impedir o peixe mais sensível de ficar queimado pelo gelo. A peixeira agarra, com cuidado, cada ponta deste lençol, deixando o peso concentrar-se no meio, fazendo um saco de modo a retirar o gelo todo sem este se derramar sobre o peixe. Este gelo é reaproveitado e acamado nas bancadas/expositores. Alguns peixeiros usam tinas baixas de plástico para melhor separarem e apresentarem o peixe sem o danificar no seu manuseamento. Arranjam-se as bancadas como um opulento jardim marítimo.
Habitualmente, são as mulheres que estabelecem a cotação do pescado e o vigiam, tal como fiscalizam as idas do marido ao café e os descontos que este tende a praticar com os consumidores conhecidos ou amigos de ocasião. Há favores recentes que merecem ser retribuídos, porém, como não foi tida nem achada nessas trocas prévias, a mulher alveja o marido com uma expressão mortífera. “Deixa-te de brincadeiras, ma’zé e trás práqui a caixa dos chocos”. A caminho dos chocos, ele murmura algo entredentes para o conhecido. Meias palavras chegam e bastam. Este virá mais tarde buscar o seu saco de peixe quando ela for tomar o galão e o pão quentinho com manteiga na pastelaria ali mesmo ao lado.
Nas rectangulares placas de plástico, os nomes e preços do dia anterior são apagados com um trapo embebido em álcool e aí se escreve com um marcador grosso o nome popular de cada espécie de pescado, é assinalada a arte de pesca utilizada e o preço para hoje. O local de captura, normalmente assinalado com uma cruz, é tão vago como Atlântico Nordeste ou ZEE de Portugal, e alguns comerciantes possuem as suas próprias placas personalizadas onde se pode ler “peixe de Sesimbra”. O espaço dedicado ao método de produção é frequentemente deixado em branco. Quando é considerado necessário valorizar o pescado, salienta-se a técnica utilizada na captura de certas espécies, grafando a palavra “anzol” ou “linguado da areia” ao lado do preço do pescado. A cotação de cada espécie depende da abundância desta no mercado e da previsão do movimento, com base na amostra das primeiras horas da abertura do mercado e das solicitações da restauração. Por exemplo, hoje havia muita sardinha e chocos que foram adquiridos na lota, mas grande parte dela seguiu diretamente para a restauração. Assim, o remanescente é pouco para a afluência calculada no mercado, e o seu preço sobe exponencialmente. A azáfama cresce à medida que a manhã entra pelo dia e pelo mercado adentro.
Diariamente, ao final da manhã, os desperdícios do pescado são recolhidos por um funcionário municipal e armazenados numa caixa frigorífica. Posteriormente, uma empresa certificada faz a recolha desta considerável porção de pescado, onde se incluem as espinhas, cartilagens, pele, vísceras e cabeças para processamento industrial. Idealmente, os peixeiros deveriam proceder à separação dos resíduos de peixe selvagem e de aquacultura e aqui apartado o peixe inteiro fora de validade ou danificado, as vísceras e os restantes despojos.
Em ambiente doméstico, se forem empregues pelo pescador e seu agregado, estes resíduos têm a sua utilidade, e as gorduras, peles, espinhas e últimos resíduos acabam por ficar para o gato da casa ou da vizinhança. No caso do aproveitamento sustentável dos resíduos alimentares, e dada a sua natureza e composições químicas distintas, cada um destes grupos pode ser “valorizado” e transformado industrialmente. Assim a economia do sector pesqueiro aliada às preocupações ambientais e de sustentabilidade permite que os resíduos de pescado, à semelhança do que acontecia no passado com o mexoalho, o sargaço ou os carapaus em Sesimbra, sejam aplicados como fertilizantes da terra agrícola que produz os acompanhamentos nos pratos de pescado, assim como alimento para o pescado criado em aquacultura.
O culminar da transfiguração do pescado
O culminar da transfiguração do pescado tem o seu desfecho final no consumo alimentar. Os festivais gastronómicos, as escolhas e estratégias da restauração e as práticas culinárias no recolhimento doméstico são o desenlace de todo este processo. De acordo com o discurso público apresentado nas últimas quatro décadas, o conceito de reconstituição e divulgação dos hábitos da cozinha caseira sesimbrense, com o objetivo de integrarem as escolhas da restauração local das primeiras festas do peixe e do marisco (anos 80-90), deu progressivamente lugar aos actuais festivais e eventos cujo objectivo é a promoção do concelho através do incentivo ao consumo do pescado e dos produtos tradicionais da economia local. Em resumo, e aqui entramos no domínio dos discursos públicos, da promoção do património, das tradições e da identidade local como forma de legitimação do novo poder democrático que, sem renunciar à inconveniente herança de um passado de privação e parcimónia, se converteu visivelmente no incremento da construção das tradições e da identidade alimentar através da exuberante promoção patrimonial do objecto que os apoiantes e patrocinadores destes eventos conceberam de acordo com as suas próprias expectativas e aspirações económicas e turísticas para esta região. Ao trabalho como espectáculo (Nunes 2003), e uma vez que os turistas não são participantes e o turismo é em grande parte um desporto para espectadores (Hannerz 1990), adicionou-se o espectáculo consumista e contemplativo do lazer (Corbin 1989). A tendência expressiva destes desempenhos públicos assume sempre as características de uma celebração e, uma vez que nas celebrações se assinala algo de relevante que influenciou ou inspira a nossa atual vivência, ficar de fora destes eventos é estar ausente da realidade. Longe dos outros, longe da novidade. Daí que, numa perspectiva holística, o turismo seja uma manifestação essencial da cultura de massas. O turismo é o modo como, no contexto cultural mais ou menos democrático do actual capitalismo, todos nós vivemos hoje em dia. Quer estejamos em casa como algures, noutro lugar, noutra cidade ou noutro país.
O ambiente é eminentemente festivo. Aqui celebra-se a vitalidade do mar e dos seus recursos, a frescura dos produtos alimentares disponíveis e as práticas desempoeiradas da preparação culinária. “O expositor está lá fora, é só escolher”. “Nós tratamos do resto”. “O grelhador está mesmo ali, é só ir lá ver”. Ao contrário do que acontece com os ingredientes campesinos, o peixe fresco tem de brilhar efusivamente para que a verdadeira dimensão da sua relevância culinária possa vir ao de cima. E possa assomar à superfície envolto pela desigual textura deixada pelas brasas ou pelo enriquecido caldo dourado que deve agregar os diferentes sabores sem os confundir numa mescla entropista.
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A altura depende da maré, mas acontece quase todos os dias. Homens taciturnos e metidos consigo próprios a subir a rua. Sozinhos ou em parelhas. Vêm do mar. Encalorados, de t-shirt, calções e chinelos de verão. Trazem na mão sacos de plástico bem fechados dentro de sacos de rede. Sobem da praia aos pares e separam-se no largo, seguindo caminhos diferentes. Em silêncio. Não falam. Não se despedem. Não dizem “Até amanhã”. Num dos sacos, através do contorno fino e húmido do plástico vislumbram-se alguns objectos e equipamento de pesca: óculos de mergulho, touca de neopreno ou silicone. O restaurante está virado para o largo do Município. Tem uma renovada sala média no interior e uma esplanada no exterior com vista para todo o largo, com uma ampla perspectiva sobre todo o espaço em redor. O fogo alimentado a carvão vegetal encontra-se incrustado, tal como uma caixa retangular aberta para fora, na parede exterior do restaurante, e funciona a dois tempos. Sob a grelha fixa, à direita, há um monte de carvão a queimar e, à esquerda, temos as brasas espalhadas numa camada horizontal prontas para grelhar o peixe. Estamos em Novembro e ainda sabe bem estar a almoçar na esplanada com o fogo afastado nas nossas costas.
O proprietário/gerente/assador faz questão de cumprimentar de modo exuberante todos os conhecidos que passam a pé ou de carro nas imediações da sua casa de comida. Os remoques são sempre familiares e levemente provocadores: “Então já almoçou?”, “Não quer almoçar aqui hoje?”, ou “Vai almoçar?”. Simultaneamente, a conversa estabelece-se entre o proprietário (cá fora) e os clientes na sala (lá dentro): “Parece que tem havido massacotes [besugos pequenos] e corvina”, atiram lá de dentro. “Tem, tem, diz que sim”, responde sem se comprometer, enquanto controla as brasas próximas e o largo adjacente. Um rapaz na casa dos 20 e picos ou 30 anos, magro, voz baixa em surdina, tímido, quase acabrunhado, conversa intervaladamente com o proprietário e a esposa deste: “São 600 euros”, “Passa cá mais logo”, “Nã’ dá, tenho de ir buscar os miúdos à escola”, “Então, passa logo lá em casa”, “Não fá’mal, passo aqui amanhã”. Trata-se de uma dívida a um fornecedor de peixe, mas devido à elevada quantia é preferível fechar a venda num espaço particular onde o comprador fará o pagamento em dinheiro vivo, e dada a proximidade entre os dois o pagamento é, assim, adiado para o dia seguinte, sem qualquer problema. Nem burocracia. Um condutor apeado traz consigo na mão um saco de plástico opaco. “Então o que há hoje?”, “Há choco.” “Quanto?”, “São cinco quilos e meio. Tá bom?”, “Deixa aí. É já p’ró almoço!”.
Desde sempre as casas de comida contribuíram para a valorização de espécies que anteriormente pouco valor possuíam ou até eram simplesmente rejeitadas. A raia, o tamboril, o pregado, o peixe-galo e todo o marisco são exemplos dessa transfiguração social do pescado. Outros peixes anteriormente apreciados e reputados em Sesimbra, como a pescada, desapareceram das ementas locais apesar de a sua qualidade continuar a subsistir na memória e nos hábitos domésticos locais. No caso de Sesimbra, existe uma persistente reciprocidade das influências entre os espaços públicos e privados devidamente assinalada de acordo com os testemunhos registados que garantem a vivência cruzada que se estabeleceu entre a vida marítima e a sua herança familiar, o investimento na restauração e o recolhimento doméstico.
Notas finais
A maritimidade dos lugares não é unicamente fruto de um conjunto de actividades directamente relacionadas com a pesca, manifestações culturais de carácter religioso, erudito ou popular, ou hábitos pitorescos e ostensivamente gregários, e uma delicada organização local sustentada por um conhecimento empírico apuradíssimo do meio em que laboram, décadas de experiência na gestão de conflitos e relações de poder, relacionadas com o aproveitamento dos recursos marinhos. Ela é igualmente e praticamente indefinível, fruto de uma diversidade de contradições e desequilíbrios que rotineiramente ameaçam a existência e continuidade das comunidades ribeirinhas.
Ao contrário das múltiplas representações e discursos sobre o peixe fresco, este não é produto de um simples movimento de magia em que, depois de morder o isco e preso no anzol, o peixe é extraído do mar, e após uma série de acrobáticas e graciosas piruetas pelo ar acaba directamente no nosso prato ou do chef reconhecido e predileto, à maneira das pescarias que habitualmente eram representadas nos enredos cómicos das antigas fantasias da Disney ou das animações da Looney Tunes na televisão. Longe disso, convertido em pescado dada a sua nova natureza de alimento concreto, ainda que temporalmente este nos pareça curto, o peixe percorre um longo e sinuoso trilho antes do seu consumo final. Ainda muito antes da sua captura, com a materialização da sua presença a bordo ou nos baldes de plástico dos pescadores à linha, o peixe já foi alvo das mais diversas estratégias, estudos, contabilizações, estatísticas, previsões e especulações. Ao contrário do que faria supor, a sua chegada a terra prolonga este jogo de espelhos em que a rigorosa certificação e controlo implementados não impedem que ele se escape, diluído na multitude de espécies, canais e etapas do seu processamento. Qualquer que seja a etapa que analisemos e mesmo utilizando a malha mais apertada, a sua dispersão, fuga e transfiguração são inevitáveis. Dada a natural ausência de terroir, apenas o peixe que arriba a terra através da lota local pode ser designado como “peixe de Sesimbra”, mas incerta é a sua origem. A intrincada rede alimentar permite que o pescado presente na nossa alimentação seja de todo o lado e de lado nenhum. A única excepção a esta situação é o peixe da candonga, pescado, transportado e vendido à margem da lei mas com uma origem de captura e trilho terrestre bem precisos. Assim, com uma existência num meio ambiente estranho ao homem, altamente fluido e mutável, desde o primeiro momento, o peixe e a pesca resistem a todas as classificações que lhe são atribuídas. Talvez melhor seria dizer que, com todas as diferentes designações que lhe atribuímos, acabamos por comprometer, de modo involuntário em alguns casos, mas também consciente noutros momentos, a fixação destes objectos. Dado o seu potencial económico, o pescado também se encontra sujeito à enorme expectativa criada pelas previsões das suas capturas e ganhos daí decorrentes, todavia, como costumam dizer os pescadores, “pode parecer, mas o peixe nunca anda sozinho”.