Grupos corporados
Já não é novidade a crítica ao “grupismo” característico da antropologia clássica - sobretudo aquela de inspiração durkheimiana e radcliffe-browniana, popular até à década de 1970.1 Pela desconjuntada expressão “grupismo” refiro-me não à ideia de que as pessoas se agregam e agem em conjunto de variadas maneiras (ou seja, socialmente) - isto podemos tomar como dado. Chamo de “grupismo” uma forma de conceber a sociedade como ancorada, em última instância, em grupos corporados. Daí entende-se ser tarefa da antropologia descrever cientificamente esses grupos (morfologia) e categorizar seus diferentes arranjos (tipologia). Já foi notado que tal concepção guarda conexões genealógicas com o contratualismo (Stocking Jr. 1984) e com a obsessão europeia acerca da ordem dos sujeitos coletivos coloniais (Asad 2017 [1973]). Mas uma terceira conexão amiúde é ignorada: nestas teorias, os grupos corporados são sinônimos (sob o ponto de vista econômico, político e jurídico) das corporações, das empresas.2 Em outras palavras, o conceito de grupo corporado é parente próximo do de pessoa jurídica.
É em Ancient Law, tratado do jurista Henry Maine (1908 [1861]), que o conceito de corporação entra no debate antropológico. Maine argumenta que, nas sociedades que chama de primitivas, a unidade básica não é o indivíduo e sim a família, que age como uma corporação, num sentido próximo dado ao termo pela tradição jurídica britânica. A sociedade primitiva seria baseada no status (direitos adquiridos pela pertença a um grupo) e não no contrato entre indivíduos livres (que fundamenta a sociedade moderna). O autor constrói a corporação como alternativa ao indivíduo, e coloca a imortalidade como uma de suas características definidoras - obviamente ausente nas pessoas físicas.
Alternativa ao indivíduo, mas não exatamente seu oposto. Como afirma Marcio Goldman, “[…] esses ‘grupos corporados’ acabam sendo concebidos à imagem e semelhança dos indivíduos, como verdadeiras ‘superpessoas’ dotadas de interesses, necessidades, desejos, direitos e deveres específicos” (1996: 97). De fato, algumas das primeiras linhas de fuga teóricas ao “grupismo” apontaram justamente para o indivíduo (ou “ego”, ou “pessoa”) como aquilo que estaria sendo deixado de lado pela antropologia social. Conceitos como “quase-grupos” (Mayer 2010 [1966]) ou “não-grupos” (Boissevan 1968) fizeram contraponto ao estrutural-funcionalismo com fins de resgatar a agência individual, sufocada sob a obsessão sociologizante com obrigações e papeis sociais. “Não-grupos” e “quase-grupos” seriam coalizões de pessoas, formas sociais pouco institucionalizadas, centradas em um ego, nas quais cada pessoa agiria visando seus interesses, mas com objetivos comuns. Tais propostas, derivadas da análise de sociedades ditas complexas (Índia e Mediterrâneo) apenas deslocam as limitações do “grupismo” do polo coletivo para o individual, completando mais um período do movimento pendular das ciências sociais europeias entre indivíduo e sociedade - o mesmo pêndulo que Maine empurrara para o extremo coletivo, Spencer para o individual, Durkheim para o coletivo… Descrever o motor da sociedade como sendo os indivíduos empreendedores (Boissevan 2010 [1970]: 215), em vez de empresas supraindividuais, traz ganhos teóricos nulos.
Uma genealogia dos conceitos de corporação e suas variantes na antropologia demonstraria mais conexões interessantes. Porém, para o presente texto interessam menos as críticas genealógicas e mais as críticas etnográficas e etnológicas, que emergem da percepção de que, em certos lugares do mundo, a ideia de grupo corporado mais atrapalha do que ajuda a entender a forma como as pessoas se agregam e agem em conjunto, suas socialidades.
Nos anos 1970, evidenciou-se a baixa serventia, em certas regiões etnográficas, dos modelos “grupistas” que prevaleceram na antropologia até meados do séc. XX, amparados sobretudo pelo africanismo britânico. Refiro-me às “novas etnografias” das terras baixas da Amazônia e da Melanésia e seus textos hoje clássicos: Wagner (2010 [1974]); Overing-Kaplan (1977); DaMatta, Seeger e Viveiros de Castro (1979); Strathern (2014 [1989])… Dois pontos dessas críticas nos são relevantes. O primeiro é o fato de elas serem capazes de, ao atacar o “grupismo” (e o conceito de sociedade, o maior dos grupos corporados), criticarem também seu reverso, o indivíduo. Não sem motivo, as teorias que daí surgem passam pelo corpo: o perspectivismo ameríndio (Viveiros de Castro 1996; Lima 1996) e a androginia, dividualidade e fractalidade melanésias (Strathern 2006 [1988]; Wagner 2011 [1991]).
O segundo ponto é que tais autoras fizeram um esforço teórico de simetrização, de conferir status conceitual a discursos, categorias, práticas e atos das pessoas com quem trabalharam. Suas críticas vieram não apenas de uma insatisfação teórica com o excesso de ordenamento imposto pelo “grupismo”; e tampouco apenas de uma insatisfação genealógica que via, nas teorias da corporação, a continuação de uma ideologia burguesa e colonialista do indivíduo e da sociedade. Ambas insatisfações são legítimas, mas tais críticas derivaram de teorias etnográficas e comparações etnológicas: partiram da percepção de que o vocabulário grupista não dava conta do que as pessoas na Amazônia e na Melanésia faziam, diziam, pensavam. Tal aparato conceitual datado atrapalhava o processo de tradução antropológica. Não tinham, em suma, aderência etnográfica.
Essa história não é novidade. A relembrei porque, apesar de ter feito trabalho de campo na Amazônia, o fiz com um grupo que guarda certas aproximações com comunidades estudadas pelos africanistas do período clássico: os saamaka do Suriname.3 Imaginem meu espanto quando, na aldeia, ouvi afirmações que me puseram a pensar que, apesar de tudo que eu havia aprendido com a antropologia contemporânea, certos conceitos criados pela antropologia clássica “grupista” poderiam ali ter aderência etnográfica.
No que segue, tratarei de duas formas de agência dos mortos centrais na vida dos saamaka com quem convivi:4 fantasmas vingativos chamados kunu, e os neseki, espíritos auxiliares que formam um componente da pessoa saamaka. Os kunu, em particular, remetem aos conceitos estrutural-funcionalistas com os quais começamos. Veremos que o fato de o kunu não se vingar apenas do culpado pela sua morte, mas de toda sua matrilinhagem, é parte do que parece dar aderência etnográfica à ideia de grupos corporados no universo estudado. Foi fácil, para os etnógrafos que trabalharam com os saamaka e povos vizinhos, interpretá-los como “símbolo” ou “materialização ideológica” das linhagens, seguindo a linha simbólico-funcionalista em voga na antropologia dos anos 1960 e 70. Mas se optarmos por uma dose maior de simetria, a descrição toma outros rumos. Ademais, colocando os neseki ao lado do kunu, perceberemos outros efeitos disruptivos ao “grupismo”. Não sem motivo, apesar de sua enorme importância na vida das pessoas, os neseki (ou padrinhos espirituais) chamaram pouca atenção dos etnógrafos que foram às Guianas em meados do século passado.
Matrilateralidade, espíritos vingativos e a estrutura das linhagens saamaka
Os saamaka são um dos seis povos businenge ou maroons, descendentes de pessoas que fugiram para se libertar da escravidão, com territórios tradicionais nas florestas do Suriname e Guiana Francesa, e crescente presença urbana na região. Habitam um espaço entre Caribe e Amazônia. Constituídos pela aglutinação de diversos núcleos de fugitivos de plantations que, desde o séc. XVII, foram cristalizando-se enquanto “grupo” ou “tribo” ao longo de guerras contra o poder colonial neerlandês. A partir de um tratado de paz com a coroa, em 1762, os saamaka garantiram sua liberdade em seu território no entorno do Alto Suriname. A particular etnogênese dos businenge das Guianas contribui para o fato de terem sido as únicas populações de ascendência africana no Novo Mundo descritas como compostas por grupos de descendência unilineares.
“Clã” é a palavra usada na academia para traduzir o termo saamaka lo, que significa, num uso amplo, algo como “um bocado”. No uso restrito, trata-se das mais amplas divisões internas do socius saamaka: cada lo formou-se por “um bocado” de fugitivos de uma plantation específica. Os clãs dividem-se em um número de bee, palavra que, no jargão antropológico, pode ser traduzida como “grupo corporado exogâmico matrilinear”. Na língua saamaka, bee significa “linhagem” ou “ventre”, apontando para o fato de que todos os membros de uma matrilinhagem são descendentes de uma ancestral apical, de um mesmo ventre. Linhagens, por sua vez, são subdivididas em wosu dendu (lit. “interior de uma casa”), algo como “matrissegmentos”, e estas em bobi (lit. “seio”), algo como “segmento mínimo”.
Por que o bee pode ser traduzido por “grupo corporado exogâmico matrilinear”? Primeiro, porque autores que etnografaram os businenge, especialmente nos anos 1970, assim o fizeram.5 Mas não se trata de simples inércia conceitual. Há características dos bee que permitem tal descrição. Deixemos de lado “matrilinear” e “exogâmico” e foquemos nos “grupos corporados”. De maneira similar às corporações de “tempos primitivos”, quais descritas por Maine,6 os bee saamaka (e os lo, wosu dendu e bobi) têm como característica o fato de que seus membros são eticamente corresponsáveis pelos atos uns dos outros. Se um homem é acusado de estupro, digamos, a punição legítima a ele destinada - espancamento coletivo pelos homens da família da vítima - pode ser efetuada em um de seus irmãos classificatórios matrilaterais (baaa).7 Ademais, matrilinhagens são tratadas como unidades em questões de transmissão de elementos políticos e econômicos fundamentais. A propriedade de uma posição de capitão de uma aldeia, ou de um terreno para construir casas, não é exatamente da pessoa, mas seu bee ou lo. A pessoa possui direito de uso (amiúde vitalício) desses bens, mas eles, a princípio, não podem ser alienados do clã ou linhagem. Como regra geral, não há propriedade privada individual de cargos políticos ou terra, e a herança é matrilateral: quando uma mulher morre, seus filhos e filhas herdam seus bens; no caso de um homem, a prole de suas irmãs. Terra, cargos políticos, exogamia: tudo isso define os bee saamaka e, assim, faz sentido chamá-los de grupos corporados.
Há, entretanto, outra força por detrás da definição e da unidade das matrilinhagens, algo que as faz mais do que instituições jurídicas, fundiárias e econômicas: os kunu, uma das piores formas de mal ou perigo concebidas pelos saamaka. São espíritos vingativos que surgem quando alguém é culpado (diretamente ou indiretamente) pela morte de alguém. O espírito do morto, tomado pelo desejo de vingança, atacará não apenas o assassino, mas toda sua matrilinhagem por toda a eternidade. Infortúnios, doenças e mortes são muito creditados a ataques de kunu. Quando uma pessoa mata alguém (ou é responsável por desencadear uma série de eventos que culminam na morte de alguém), cria uma maldição eterna para seu bee: sua ação maldosa ou descuidada gera um espírito vingativo cujo objetivo final é a destruição total da linhagem de seu provocador. Vejamos um par de casos (adaptados de Pires 2015: 235-ss).
1) Uma mulher e um homem saamaka casaram-se e foram morar na Guiana Francesa. Porém, como me disseram, “a maneira como ela vivia não era boa”: traiu, roubou e abandonou o marido. O homem entristeceu, adoeceu, acabou morrendo. Tornou-se kunu da matrilinhagem da ex-esposa, tendo expressado sua ira através de um médium, na aldeia natal dela. Muitos afirmam (a meia-voz) que o kunu criado pela mulher, o espírito vingativo do ex-marido, é ao menos parcialmente responsável pelo desequilíbrio mental de dois homens da família dela. Outras causas influenciam na loucura desses homens: atos reprováveis de familiares, maldições que lhes foram rogadas, desrespeito a tabus alimentares, problemas que enfrentaram quando foram morar em Paramaribo… Entretanto, o motivo de fundo, conforme revelado por oráculos e possessão, seria um dos kunu da família.
2) Em meados do séc. XX, um reverendo da Igreja Moraviana do Suriname foi morar com sua mulher em Botopasi, aldeia saamaka do Alto Suriname vinculada a tal denominação. Era considerado um homem importante, que liderava com maestria cultos e tinha boa relação com a aldeia. Até hoje é lembrado como figura importante do cristianismo local. Certo dia, por razões que desconheço, um dos homens de quem era próximo foi atacado por feitiços de um terceiro, alguma inimizade sua. Porém, o homem era protegido espiritualmente (tapa) e provavelmente seu inimigo também, de forma que o feitiço não afetou o alvo, nem refletiu para a origem: acabou redirecionado para o reverendo, que em consequência ficou doente e acabou falecendo. O morto, curiosamente, tornou-se kunu da matrilinhagem de seu colega, que deveria ter protegido o amigo estrangeiro, e não do feiticeiro original.
Os casos demonstram a dilatabilidade das cadeias causais que geram kunu. Bem verdade, os espíritos vingativos mais comuns são derivados de ações mal-intencionadas diretas: assassinatos por golpes, tiros ou feitiço. Mas desrespeito e humilhação podem causar um mal em alguém que eventualmente causará a morte, e kunu surgem daí. Como diz o ditado, “não é no dia que a folha cai na água que ela apodrece”. Tal causalidade dilatada tem efeitos fortes nas concepções de tempo e história saamaka (Price 2002 [1983]; Pires 2014; Strange 2018). Mesmo ações sem intenções ruins, mas descuidadas, podem levar a kunu, como no segundo caso. Nesse universo, ações éticas exigem corresponsabilidade. E apesar de os mais frequentes e temíveis espíritos vingativos advirem de mortos humanos, existem kunu de animais. Quando uma jiboia morre por acidente ao se queimar uma capoeira, esta pode acometer a matrilinhagem do responsável, sendo uma modalidade de espírito vingativo mais passível de domesticação.8
Evitar a criação de novos kunu e aplacar a ira dos já existentes são preocupações constantes para os saamaka, levando-os a calcularem suas ações e a se aproximarem de suas famílias. Em seu discurso, a existência de forças como espíritos vingativos e outras maldições similares é sublinhada como o fator central agregador intralinhagem.9 As pessoas dizem com todas as letras que é por partilharem um mesmo kunu que o bee tem de se manter unido. Quem é afetado pelos mesmos males deve viver em harmonia para não auxiliar esses espíritos em sua missão de destruir a linhagem. Quando parentes matrilaterais próximos brigam, ajudam os kunu a prejudicar a todos, pois criam a situação perfeita para o espírito vingativo agir. Vistos como intercambiáveis para várias instâncias legais nativas e alvos de um mesmo espírito vingativo, os membros de uma matrilinhagem precisam se aproximar, precisam “viver bem” (libi bunu) entre si, devem vigiar as ações uns dos outros, compartilhar as coisas, esforçar-se para que todos seus parentes estejam em boas condições. Afinal, os mesmos males os atingem.
A existência dos kunu gera também dívidas interlinhagem. A parentela do agressor tem de fazer sacrifícios, libações e visitas periódicas não apenas para a vítima morta, mas também para o bee dela. Tanto maiores quanto mais grave for o crime. Como dentro de cada tribo, clã ou aldeia, os kunu são numerosos, quase todas as linhagens têm espíritos que se vingam de quase todas as outras. A imagem que resulta é de uma espécie de troca reparadora generalizada, em que as dívidas são multilaterais, desiguais e em desequilíbrio, já que mortos (como cônjuges), nunca são equivalentes entre si. Dádivas jamais cancelam a vingança, mas a arrefecem, fazendo da relação entre os grupos uma relação de dívida, e não de inimizade. Os pagamentos, em conjunto com o temor dos kunu, impedem que a vingança se desenvolva em vendeta, troca de mortes. As relações portanto não tomam o formato de espiral ou pêndulo, como entre os tupinambá (Carneiro da Cunha e Viveiros de Castro 1985). Formam, antes, um novelo de interdependência.10
A esmagadora maioria dos saamaka que conheci afirmava que membro de um bee é ser afetado por um mesmo conjunto de espíritos vingativos. Que este não é o único, mas o principal fator que explica os bee. As exceções eram alguns entre os convertidos ao pentecostalismo.11 Posto que ser membro de uma linhagem é fator crucial na definição da pertença à tribo, a fortiori ser saamaka é ser afetado por kunu. Essa não é uma conclusão à qual cheguei, mas a reprodução de uma frase que ouvi, quando certa vez um homem pentecostal afirmou que “não tinha kunu”. A resposta de seu interlocutor foi que, se ele não tinha kunu, não tinha mama bee (matrilinhagem) e, portanto, não era saamaka.
Afirmações nativas deste tipo acerca das consequências agregadoras dos espíritos vingativos fizeram com que surgisse na literatura sobre os businenge uma tendência a analisar os kunu dotando-os de uma função estruturante na vida dessas populações. Tais agências espirituais foram descritas na literatura como “defensores da ordem moral” (Köbben 1967: 18, para os ndyuka), símbolo central e carta social para a solidariedade da matrilinhagem (Price 1973: 96, para os saamaka), aquilo que estabelece a identidade corporada e a responsabilidade das linhagens, bem como a relação ritual entre elas (Lenoir 1973: 108, para os pamaka), um idioma para expressar a responsabilidade coletiva e “mecanismos de controle social” que são base da estabilidade da sociedade (Green 1977: 139; 1978: 271, para os matawai), “corporificação ideológica da natureza corporada do clã localizado” (Bilby 1990: 147, para os aluku) - para ficar com um exemplo de cada grupo.12 Os kunu serviram para explicar o funcionamento do sistema de linhagens (Green 1977; Price 1973) e a forma de adaptação ao cristianismo (Green 1978).
Como nota Olívia Cunha (2019), seres não humanos sempre se fizeram presentes na tradição etnográfica que trata dos povos businenge das Guianas. Entretanto, pouca atenção se deu às implicações teóricas e metodológicas dessa presença. Sigo a proposta de Cunha: levar tal presença a sério, partindo de conceitos, categorias e cosmopolíticas propostas pelos próprios businenge. Como veremos, a descrição etnográfica e a teorização resultante sofrem efeitos transformadores quando se segue certas afirmações nativas literalmente e não se apaga a ação de mortos (e outros não humanos) em nome de indivíduos e sua versão suprapessoal (as corporações).
Na visão nativa, o kunu é uma agência maléfica que termina tendo uma consequência positiva: gera união interna e externa nas linhagens. União, “viver bem juntos” é um importante ideal para os saamaka que conheci. Mas espíritos vingativos são maléficos e sua agência só gera união intralinhagem indiretamente. Na cadeia longa de causalidade em que os kunu operam, ações mal-intencionadas ou descuidadas provocam morte, dor, e, consequentemente, espíritos vingativos; a ação violenta desses últimos afeta a matrilinhagem como um todo, por sua vez suscitando uma reação de vigilância e cuidado dentro da linhagem. A união é fruto direto de ações recíprocas, bem-intencionadas, entre as pessoas (vivas e mortas) que visam apaziguar efeitos nocivos de ações destrutivas. A boa vida, porém, depende do auxílio invertido de potências sobrenaturais perigosas. Uma contraefetuação, que busca restaurar as unidades do mundo, sempre em perigo de serem destruídas por ações humanas e não humanas violentas.
É irônico notar que o atributo principal das corporações conforme definidas por Maine, imortalidade, tem papel central na teoria saamaka da definição de seus “grupos corporados matrilaterais”, porém de maneira tortuosa. Maine insiste que, por tratarem seus membros como intercambiáveis moral e juridicamente, “as corporações nunca morrem” (1908 [1861]: 111-113; 164-166), e portanto garantem a sucessão da autoridade das famílias após o falecimento de seus membros individuais, fazendo com que os grupos não se desfaçam após a morte de seu líder. A perpetuidade da ficção corporativa é o que garantiria a permanência temporal da sociedade e de seus arranjos internos. Já os saamaka afirmam que é o perigo de que as matrilinhagens acabem destruídas pela ação malévola e perpétua dos kunu que faz com que elas não se desfaçam, que seus membros ajam visando o bem uns dos outros. Ou seja: o desejo de que as linhagens (e, logo, a sociedade) perpetuem-se temporalmente, é parte do que as faz continuar existindo. Mas o desejo só é concretizado através de uma ameaça espiritual a seus membros, que emerge de uma morte anterior. Isso quer dizer que violência gera violência, destruição gera destruição, perigo gera perigo - mas eliciam, por contraefetuação, união, permanência, segurança. O princípio é a desordem, a ordem é segunda. Estaríamos diante de uma espécie de hobbesianismo afro-amazônico?
Patrilateralidade, padrinhos espirituais e a estrutura da pessoa saamaka
Um olhar sobre o lado do pai, qual concebido em saamaka, complica o quadro. Quando falo das matrilinhagens genericamente, estou falando dos mama bee (matrilinhagens da mãe), através das quais, vimos, herda-se terra, cargos políticos, vulnerabilidade aos kunu e, pode-se dizer, pertencimento a um grupo corporado exogâmico. Porém, também é fundamental o outro lado, do tata bee, matrilinhagem do pai.
Em um antigo trabalho, Richard Price (1975: 51-54) marcou a importância da paternidade, afirmando que em saamaka a descendência é matrilateral, mas a filiação seria bilateral. Köbben (1967: 39-43) enxerga entre os ndyuka “leves elementos patrilineares” que apontariam para a dupla descendência - apenas elementos, sem cognatismo de fato. No que pude perceber, as obrigações para com o tata bee não são nem de perto tão intensas quanto aquelas para com o mama bee. Nas questões de transmissão de cargos políticos e de posse da terra, quem fala é o tio (MB, irmão da mãe) e os anciões da matrilinhagem materna. Espera-se que um adulto se posicione ativamente, em questões públicas, muito mais a favor de seu mama bee do que de seu tata bee. As pessoas fazem parte, antes de tudo, das linhagens de suas mães.
Já a importância da patrilateralidade aparece, para começar, no papel esperado do genitor na criação dos filhos. Nem sempre isto se realiza, mas há na relação entre pais e filhos um ideal de cuidado e carinho mais voluntários do que aqueles relacionados ao irmão da mãe, autoridade central em tantos aspectos da vida. O suporte dado por um pai é considerado importante na vida e no desenvolvimento de uma pessoa. A faz mais sábia, mais forte. O pai é fundamental nos ritos de passagem à idade adulta: é ele quem deve dar a primeira tanga (kamisa) e a primeira espingarda para o menino; o primeiro avental (kojo) e a primeira saia (koosu) para a menina. Um bom pai continua auxiliando seus filhos depois de morrer, vindo em sonhos e na vigília para dar conselhos e ajudas. As vinculações involuntárias que fazem a pessoa e suas pertenças são sobretudo matrilaterais, mas complementa-a uma inclinação pessoal derivada das fortes relações emocionais voluntárias patrilaterais. Como nos casos clássicos descritos na literatura africanista (Radcliffe-Brown 1952), o irmão da mãe é fonte de autoridade, o pai é volitivamente próximo.
Além da relação esperada com o pai e sua família, há heranças transmitidas involuntariamente pela via paterna. Para homens, isso é particularmente marcado no que diz respeito às habilidades masculinas - aptidões para caça, arte, retórica são muitas vezes herdadas do tata bee. Também certas doenças, como alcoolismo e loucura, são entendidas como hereditárias sobretudo pelo lado do pai. Como diz o ditado, “macaco-aranha não dá luz a bugio” (“kwata an ta pali babunu”), filhos sempre se assemelham aos pais. Mais fundamental para meu argumento, “tata mii hoi tjina”, dizem os saamaka: “o filho do pai herda seus tabus alimentares”.
As pessoas sempre contam o pertencimento ao grupo do pai em paralelo ao da mãe: um filho de uma mulher da aldeia Botopasi com um homem de Tutubuka diz-se ao mesmo tempo “gente de Botopasi” e “gente de Tutu”. Se seu pai vem de um clã famigerado por ter muitos feiticeiros, a pessoa terá de lidar com pilhérias de que teria tendências a sê-lo. Se o pai é de uma aldeia onde há bons músicos ou jogadores de futebol, sente que pode herdar tais talentos. A lógica é segmentar: quando o pai é de outra matrilinhagem da mesma aldeia, é a linhagem que conta como elemento diacrítico; quando as aldeias do pai e da mãe diferem, o pertencimento à aldeia é que conta; quando a diferença é o clã, o marcador está aí; igualmente quando o pai é de outra tribo ou etnia.
Meus interlocutores saamaka insistiam que a importância deste pertencimento complementar reside na função protetora do tata bee. Quando uma pessoa escorrega e desequilibra-se, topa pedra com o pé, toma um susto, chama o nome da matrilinhagem de seu pai para se proteger - ato chamado de “djula”. Se um homem cujo pai é da linhagem bodji pisa numa pedra escorregadia no rio, grita “bodji!” para que seu tata bee ajude a segurá-lo, mais ou menos no mesmo tipo de situação em que um brasileiro poderia exclamar “Nossa Senhora!”, “Meu Deus!”. Também de modo segmentar: as pessoas cujo pai é de outro clã, em vez de djula com o nome do tata bee, o fazem com o nome do clã do pai, extensão da matrilinhagem paterna. Similarmente, são os filhos dos homens de um bee (os paipai mii), que ajudarão em caso de kunu. Pois são pessoas relacionadas com a linhagem, mas não vulneráveis aos mesmos espíritos vingativos. Da mesma forma, num ciclo funerário, as pessoas da matrilinhagem do pai do morto possuem papel destacado.
A questão do incesto é vista de forma bastante pragmática pelos saamaka. Por serem comuns brigas envolvendo marido, mulher, sogros e cunhados, casar-se com alguém da própria linhagem significa aumentar os riscos de conflitos que podem engendrar kunu. O grande problema de casar dentro do principal grupo exogâmico (o mama bee), explicaram-me, é justamente que quando os filhos de uma relação incestuosa tiverem algum problema, não terão um tata bee à quem djula, como tampouco poderão recorrer, nos casos de kunu, à ajuda dos filhos de homens da linhagem (paipai mii) que não são do bee (e portanto imunes a seus kunu), mas que têm uma relação de intimidade e cuidado com a matrilinhagem do pai. Em suma, além de ficar sem vários benefícios econômicos e emocionais que a filiação complementar oferece, alguém sem tata bee não tem a quem recorrer em casos de infortúnio.13
É também pela matrilinhagem paterna que costuma chegar, em saamaka, um dos mais importantes componentes da pessoa: seu neseki, que traduzo como “padrinho espiritual”.14 Quando uma criança está nos seus estágios iniciais de desenvolvimento, o padrinho espiritual escolhe a criança e a faz “brotar” (nasi) e “crescer” (goo) - numa analogia com o desenvolvimento vegetal. O neseki é sempre alguém que já morreu, quase sempre da família da criança, muito frequentemente alguém de seu tata bee.15 Trata-se de um falecido que tem um carinho especial por aquela criança e a escolherá para nela reencarnar. A alma (akaa) do morto, seu princípio de singularidade, fará parte da pessoa da criança, emprestando a ela características físicas, espirituais e emocionais.16 Uma pessoa cujo neseki era sovina será sovina, uma pessoa cujo neseki era bem-humorado será bem-humorada, e assim por diante. Características físicas, trejeitos e fisionomia assemelham cada pessoa a seu neseki. Principalmente, padrinhos espirituais transmitem para aqueles que “brotam” suas tjina, tabus alimentares pessoais. A relação, nota-se, é similar à relação com o pai.
O neseki coloca os vivos em uma relação corporal e espiritual direta com um ou mais ancestrais. O “padrinho” ajudará o “afilhado”, cuidando para que a vida do novo corpo onde habitará seja boa, dando força espiritual, ensinamentos, sabedoria. Como no caso dos kunu, a dimensão volitiva do morto está em jogo: ele escolhe quem irá “brotar”. A diferença óbvia é que são os bons sentimentos dos mortos que estão em jogo.
As diversas relações da linhagem principal, materna, são atualizadas na composição corporal de cada um de seus membros. O corpo de cada pessoa é em grande parte uma iteração da substância matrilinear, mas o neseki e o tata bee expandem a composição corporal para além de uma repetição do grupo corporado. Tjina e outras características herdadas pelo lado do pai e do neseki estão dentre os elementos que cada pessoa tem de mais pessoal, princípios que fazem cada um ser uma pessoa destacada dentro de sua composição genealógica. Fazem de cada pessoa única e, ao mesmo tempo, compósita. Uma espécie de androginia linear voluntária configura os corpos. O neseki implica o estabelecimento de uma relação pessoal singular entre vivos e mortos que elicia a individuação de um vivente ao conectar seu desenvolvimento corporal e espiritual a um falecido. A pessoa só se torna completa (e nunca fechada), na medida em que seu corpo é parcialmente constituído - brotado, desenvolvido - por um morto amigável.
Diferente do que Vernon (1992: 27) afirma para os ndyuka, sempre ouvi de meus interlocutores saamaka que cada pessoa tem um só neseki. Por outro lado, em campo presenciei uma controvérsia acerca de se uma pessoa pode “brotar” mais de uma criança. O argumento que melhor convenceu os presentes elaborava a analogia vegetal: um ancião disse que, da mesma forma que de uma só espiga de milho vários pés podem brotar, uma alma pode “brotar” diversas crianças. Se cada pessoa tem um só neseki, ele, porém, não age isolado. Price demonstra que esses “padrinhos espirituais” criam para seus “afilhados” uma espécie de “linhagem espiritual”, ainda que pouco rígida. Por exemplo: Belfón Abóikóni, o gaama (líder supremo saamaka falecido em 2014), possuía como neseki Bôò, mãe de outro gaama, Agbagó; Bôò por sua vez tinha como neseki Lukéinsi, que fora médium de uma divindade da floresta muito antiga e muito poderosa. Belfón era diretamente ligado a Bôò, mas também reclamava para si uma ligação indireta com Lukéinsi, o que lhe garantia uma reputação mística grandiosa (Price 2011: 127).
Há mais. Duas pessoas que têm o mesmo neseki possuem uma relação particular. A morte de alguém com quem se compartilha um “padrinho espiritual” coloca o vivo em risco de ser levado por seu morto para o além (Price 1990: 309n10). Algo similar ao risco que correm, nas cerimônias fúnebres, cônjuges e consanguíneos próximos. Ainda Köbben (1967) e Price (1975) informam que quem compartilha o mesmo tabu alimentar possui a capacidade de quebrar armadilhas mágicas (kanduu) uns dos outros sem sofrer consequências.
Apesar disso, conjuntos de pessoas que possuem a mesma tjina e pessoas que compartilham um neseki não são conceitualizados como grupos ou categorias particulares (como acontece em casos conhecidos na literatura antropológica, de tabus alimentares ligados a totens). Em saamaka, as pessoas nem costumam saber as tjina umas das outras, algo íntimo que pode ser usado contra alguém. A “linhagem espiritual” na qual os neseki inserem a pessoa não é uma linhagem no estilo grupo corporado, é uma ascendência particular para cada pessoa, traçada desde sua perspectiva. Quase como os quase-grupos que vimos - mas sem indivíduos autointeressados. A unidade criada não é coletiva, e sim pessoal. Vulnerabilidade e proteção são traços corporais da composição espiritual e genealógica da pessoa. São marcadores profundos de diferença pessoal mas, como derivam sobretudo da matrilinhagem do pai ou do padrinho espiritual, trata-se antes de “dividualidade”, isto é, da pessoa enquanto unidade aberta, composta por múltiplas associações heterogêneas, coletivas e pessoais. Como diz Marilyn Strathern (2006 [1988]: 204-205), características corporais são registros de interações que formam o íntimo das pessoas. As pessoas são um microcosmos de relações, nexos em movimento, e podem ser nutridos ou descartados, posto que cada pessoa é vulnerável à disposição corporal e aos desejos alheios.
Filiação complementar, desestrutura, espíritos e corpo
Em 1975, Price afirmou: “A identificação de um homem com o lo [e bee] de seu pai revela uma função importante do conceito saamaka de paternidade: diferenciar entre parentes matrilineares com os quais a maioria da interação social se dá” (Price 1975: 53). Estamos muito próximos do que Fortes chamou de “filiação complementar”:
“Já que a família bilateral é o elemento central na teia do parentesco, a filiação complementar fornece a ligação essencial entre um grupo de irmãos e os parentes do genitor que não determina a descendência. Assim, um grupo de irmãos não é apenas diferenciado dentro de uma linhagem, é adicionalmente distinguido por referência a seu laços de parentesco fora da unidade corporada. Este dispositivo estrutural permite níveis de individuação dependendo da medida em que a filiação do lado não corporado é elaborada.” (Fortes 1953: 33)
Tratando de tabus alimentares, nos aproximamos ainda mais de Fortes. Para ele, comer é uma atividade autônoma e individual, mas suscetível à regulação voluntária por incorporar elementos do ambiente externo à pessoa. Tabus cumpririam assim a função de “veículos materiais de transações e de relações de força vinculativa moral e ritual. […] Em suma, comer presta-se singularmente à imposição de regras” (1987 [1966]: 140). Eis um exemplo inconfundível do “grupismo”, que trata o mundo social como essencialmente jurídico: fenômenos sociais teriam antes de tudo a função de regular vidas humanas; as pessoas seriam aglomerados de papéis e status.
Alhures, notei a importância da ideia de regras (weti) na filosofia política saamaka (Pires 2019), mas não faz sentido resumir a vida de ninguém a anuência ou desacordo a normas. Vemos que as instituições que apontam para a filiação complementar - como neseki - podem, sim, prestar-se à diferenciação da pessoa frente à sua linhagem. Mas isso tem muito pouco que ver com a criação de figuras jurídicas mais específicas. O que a análise funcionalista faz é inverter as afirmações nativas. Em saamaka, a relação complementar com o tata bee não gera “indivíduos”, no sentido de “pessoas físicas”. Antes, ela constitui as pessoas e seus corpos. Diferencia-a de seus parentes, mas através de relações com outrem, produzindo pessoas compósitas singulares, abertas. Similarmente, tabus alimentares pouco dizem sobre a imposição de imperativos morais, afinal não há nada imoral em comer pimenta - quem não a tem como tjina come-a livremente. Tais tabus tendem a ser tratados quase como se tratam alergias. Sem conotação moral, o que esse tipo de restrição ilumina é de que maneira ancestrais e/ou parentes patrilaterais comem e deixam de comer as mesmas coisas. Através de peculiaridades dietéticas, pessoas vivas e mortas específicas aproximam-se corporalmente, por compartilharem vulnerabilidades.
A inversão funcionalista derivava da necessidade de sustentar uma argumentação coerente com a ideia de que a sociedade contém as próprias forças que a estruturam, mesmo quando essas forças parecem ir contra a coesão que a gera. Fenômenos antissociais tinham de ser tratados como estruturantes, levando a argumentação a paradoxos crescentemente visíveis. Neste sentido, como notou Roy Wagner, conceitos como filiação complementar em Fortes, ou rituais de rebelião em Gluckman (2011 [1963]), acabaram implodindo o funcionalismo, ao levar crescentemente em conta que a realidade dos agrupamentos sociais era menos cristalina e evidente do que a proposta sociologista exigia. Tais conceitos acabaram tendo um efeito desestruturante no rígido edifício teórico estrutural-funcionalista. Por outro lado, entendo que tais conceitos ainda retinham algo do que chamei de aderência etnográfica: foram elaborados a partir de atos e ideias expressadas pelas pessoas com as quais estes antropólogos trabalharam. “Podemos concluir que a antropologia social foi instigada a se converter no seu oposto pelas exigências de lidar com seu objeto de estudo” (Wagner 2010 [1974]: 241).
Diferente das etnologias melanesianista e ameríndia, nos estudos businenge, a abordagem funcionalista foi silenciosamente abandonada. Nem Richard Price - que alterou radicalmente sua abordagem, rumo ao modelo histórico-culturalista da crioulização e a experimentos etnográficos muito mais interessantes a partir dos anos 1980 - preocupou-se em criticar as propostas teóricas que defendera no início de sua carreira. Ninguém gastou tinta com isso. Funcionalismo e estrutural-funcionalismo foram perdendo a relevância teórica, sobretudo a partir das descolonizações, que impuseram viradas teóricas na abordagem africanista (fim do foco exclusivo em aspectos ditos “primitivos” ou “tradicionais”, maior atenção à história, etc.) e de novos paradigmas emergindo da exploração de outras áreas etnográficas. Todavia, ao abordar certos aspectos da vida businenge, é possível notar alguma aderência etnográfica de conceitos que soam datados. Só que, para utilizá-los, é preciso subvertê-los, abandonando o que chamei de inversão funcionalista.
Seria fácil tratar os kunu como totens, no sentido radcliffe-browniano, durkheimiano: instituições sociais cuja função seria de representar (simbolizar) a coesão de unidades sociológicas, reforçando sua solidariedade interna e seus laços externos, postulando o universo como ordem moral e social e, finalmente, possibilitando que sejam preenchidas as condições necessárias para a continuidade da sociedade (cf.Radcliffe-Brown 1952; Durkheim 2002 [1912]). Fácil porque as agências dos kunu, dos neseki, das tjina e outras potências têm consequências aparentemente sociocêntricas: direta ou indiretamente provocam união, aproximam pessoas.
Apesar disso, se tratarmos como real aquilo que os saamaka entendem que existe, a imagem do pensamento que emerge é outra. A função agregativa dos espíritos vingativos e dos padrinhos espirituais aponta para algo que poderíamos ironicamente chamar de espiritual-funcionalismo. Afinal, não expressam qualquer ideia que se assemelhe à de estrutura social; para eles, espíritos de mortos não são ideologia, mistificação, representação. Unidades sociais de vários níveis (clãs, linhagens, e laços mais informais, como aqueles entre pessoas que compartilham neseki) agregam-se em função de ameaças sobrenaturais realmente existentes. Buscando ser fiel às formulações nativas, é melhor dizer que agências sobrenaturais forçam membros de um bee a viverem bem entre si, ao conectar atos passados de consequência extensa e codependência corporal e familiar. Na visão fatalista dos saamaka, a solidariedade é uma necessidade provocada em grande parte por forças externas que punem a ação humana antissocial. Os kunu e outras potências devastadoras ameaçam destruir o mundo (booko gonliba), o que quer dizer que em saamaka “corporações” podem morrer. Por isso mesmo tentam funcionar como unidades, proteger-se da destruição. Na Amazônia, diferente da Inglaterra, espíritos são mais importantes do que aparatos jurídicos para a composição da socialidade. Assim, se há grupos corporados no Alto Suriname (e parecem existir mais lá do que nas Terras Altas da Nova Guiné), seu “corpo” é menos como a ficção jurídica da corporação, e mais como arranjos protetivos provocados por ameaças contra coletivos e divíduos. Corpos coletivos constituem-se por vulnerabilidades compartilhadas, enfim.
Ao falar de espiritual-funcionalismo, chamo a atenção para certa continuidade entre a empreitada da antropologia clássica e contemporânea, e simultaneamente para uma mudança na direção descritiva, em direção ao literalismo e à simetria. Mudanças descritivas, decerto, têm efeitos epistemológico-políticos consideráveis (Viveiros de Castro e Goldman 2008-2009). Colocando “espírito” no lugar de “estrutura”, vemos os businenge imersos numa rede de socialidade muito mais extensa, que impõe uma profunda responsabilidade para com vivos e mortos, humanos ou não. Uma cosmopolítica na qual vulnerabilidade, dor, luto e violência são motores da história e da socialidade, na medida em que colocam em marcha uma vinculação ética entre seres e corpos diversos (Cunha 2019; Strange 2018, 2019, 2021).17
Comparando o lado da mãe (kunu) e o do pai (neseki e tjina) temos modalidades distintas de vulnerabilidades compartilhadas. No primeiro caso, elas provêm da violência e de atitudes imorais, e seu efeito é gerar a pertença a um grupo de limites bem definidos. No segundo, temos vulnerabilidades pessoais, sem peso moral, índices de relações íntimas entre pessoas. Cada kunu é uma nova relação predatória que reforça uma rede de relações solidárias preexistentes entre os membros de bee e entre esses coletivos. Cada neseki gera uma relação solidária nova, diádica, que reforça laços desenhados anteriormente. A matrilinhagem do pai expõe vulnerabilidades compartilhadas (tabus) que são índices no corpo da prole da relação de afinidade entre dois “grupos corporados”; e, ademais, expõe vulnerabilidades não compartilhadas, para as quais a proteção patrilateral é muito útil (djula, ajuda com kunu, etc.). Nenhuma dessas instituições é mais importante do que as outras.
Espíritos vingativos não operam nem como superestrutura ideológica nem como infraestrutura sociológica. Os kunu não definem as linhagens sozinhos. História, genealogia, cargos políticos e território são outros elementos que fazem de cada bee um bee. Strathern faz uma crítica à ideia de “instituição central” que redunda em crítica ao funcionalismo: “identificar uma espinha dorsal institucional fundamental é em si mesmo um resíduo de análises antropológicas mais antigas sobre a ‘estrutura social’ como a articulação ossificada da ‘vida’ e de outros processos” (2006 [1988]: 117). Ao apresentar lado a lado diferentes modi operandi de mortos, e diferentes agenciamentos de matri- e patrilateralidades, busquei sublinhar o fato de que nenhum deles deve ser considerado mais fundamental do que os demais. Acompanhando Strathern, creio que não há domínios “mais sociais” ou “menos sociais” (2006 [1988]: 126). Os neseki, no nível infrapessoal, são tão relevantes quanto espíritos vingativos o são no nível coletivo. Não há um todo social que deva funcionar como unidade autônoma e dependa de certas instituições para tal. Há modalidades de agência de mortos e de vivos que aproximam e compõem as pessoas e os grupos, unidades abertas.
Logo, não estamos diante de hobbesianismo afro-amazônico. Apenas certas perguntas fundantes da teorização social eurocentrada - aquelas acerca dos fundamentos da ordem social - são feitas também pelos businenge que, como os europeus, preocupam-se com potenciais efeitos nefastos da ação humana. E sua resposta é outra, nos lança para longe do pêndulo indivíduo/sociedade (ou contrato/status, ou volição/coerção), em direção a uma rede extensa de composição de mundos. Uma parcela influente da antropologia clássica, herdeira do contratualismo (mesmo quando o nega em nome do sociocentrismo), decidiu que as únicas pessoas não humanas que podem legitimamente existir são os grupos corporados, superpessoas com o mesmo tipo de interesses e deveres que o indivíduo no mercado. Nesse movimento, transcendentalizou a ideia de grupo, tornando imortal o corpo social (parafraseando Anjos 2003: 590). Por isso, a chamei de “grupista”. A unidade tribal dos saamaka e a de outros grupos businenge existe como contraefetuação da violência (até porque são quilombolas!), mas pouco assemelham-se ao Leviatã. Pouco assemelham-se a um Estado composto por indivíduos autônomos (Pires 2019). Não há indivíduo pré-social, independente de animais, mortos, terra, linhagens… Logo, não há transcendentalização do indivíduo na forma de sociedade ou estrutura social.
Uma última palavra sobre corpo e pessoa. Afirmei no início do texto que parte das críticas às teorias dos grupos corporados na antropologia passou por conceitos ancorados na corporalidade. Na mesma verve, subvertendo o modelo da corporação, a corporificação das linhagens e clãs saamaka - sua capacidade de serem tratados como unidades - reside largamente nas corporalidades pessoais. Se os padrinhos espirituais são uma questão de corpo, pelo seu papel fundamental no desenvolvimento físico da criança, os espíritos vingativos também o são, posto que definem as principais ameaças físicas que pairam sobre uma pessoa viva. Em suma, da mesma maneira que o “corpo” dos “grupos corporados” saamaka é aberto, pois definido contra a agência de uma entidade sobrenatural, também os corpos das pessoas o são. Os limites de um corpo tendem a ser tratados como universais graças à barreira física e visível da pele, mas são sempre abertos. Porosos. A corporificação não delimita pessoas jurídicas, indivíduos, ou superpessoas grupais, mas composições coletivas e pessoais simultaneamente materiais e imateriais.