Parte do nosso compromisso no trabalho etnográfico é o de reconhecer nossos interlocutores como sujeitos de desejo. Mesmo que esses desejos, escolhas e vontades não sejam aqueles entendidos por nós, pesquisadores, como “bons”, “melhores” ou “saudáveis”.
É o que aponta Moisés Lino e Silva em sua etnografia com moradores LGBT da favela da Rocinha, cidade do Rio de Janeiro, sobre os diversos sentidos e significados do que seja liberdade para essas pessoas periféricas (Silva 2022).
Liberdade aqui corre por “movimentos minoritários”, no vocabulário conceitual de Deleuze e Guattari (2011). Ou seja, longe de corresponder ao que a tradição do pensamento ocidental cunhou como “liberalismo” e, mais distante ainda, de uma ideia preconcebida sobre a (falta de) agência de pessoas que habitam territórios e contextos de precariedade e vulnerabilidade, a liberdade aqui se faz (e se vive) a partir de uma multiplicidade de pequenos atos, escolhas, vontades e acontecimentos ordinários do cotidiano. Apresenta-se, portanto, de uma forma muito mais complexa e contraditória. Se perfaz, ou melhor, se agencia naquilo que se deseja.
Moisés Lino e Silva, por exemplo, aponta a sua surpresa, e mesmo aborrecimento, com as escolhas de vida de sua principal interlocutora, uma travesti migrante nordestina vivendo com HIV. Nessa afetação pelo estranhamento, ela mostra outras possibilidades de entendimento sobre o que é liberdade, passando justamente pelo reconhecimento do outro enquanto produtor de desejos próprios e legítimos.
Porque nem só se deseja o prazer, a felicidade, a liberdade, a libertação, a transgressão, a revolução ou a resistência. É importante perceber que o desejo também corre pelo poder, pela hierarquia, pela dominação, pelo fracasso, pela humilhação ou pelo desejo que deseja a destruição. Caberia a nós, analistas sociais, perseguir os desejos de nossos interlocutores, entender o que os movimenta, o que constitui seus interesses e o que encadeia seus afetos (Barreto e Díaz-Benítez 2023).
Pontuo essa questão na leitura da obra de Lino e Silva principalmente por dois motivos. Primeiro, pelas circunstâncias do cenário político brasileiro da época do lançamento do livro. É interessante que uma pesquisa sobre os múltiplos sentidos de liberdade saia justamente num momento de disputa no espaço público sobre essa ideia e de intensificação de desejos microfascistas. É impossível discutir um fenômeno como o bolsonarismo - que mais do que uma posição partidária de extrema-direita compõe toda uma visão de mundo própria -, se não conseguirmos entender que tipo de desejo é esse que levou as pessoas a se engajarem no que cientistas políticos vêm chamando de política de caos e destruição (Abranches 2020; Nobre 2022). Esse fenômeno não pode ser explicado só em termos econômicos, partidários, de ideologia ou representação, de crise ou crescimento de um movimento reacionário mundial. Mas precisa ser compreendido em seu nível libidinal, numa aproximação que perceba qual é a produção de subjetividade implicada ali, que desejos compõem essa visão de mundo.
O segundo motivo pelo qual pontuo essa questão passa por uma identificação com esses questionamentos que também encontrei em minhas pesquisas. No âmbito do doutorado e pós-doutorado procurei etnografar e analisar a prática do sexo coletivo em eventos organizados exclusivamente para homens cisgêneros na cidade do Rio de Janeiro (Barreto 2017, 2018, 2019, 2020).
Minhas pesquisas tratam de uma fronteira complexa (e porosa), aquela entre o prazer e o risco. Ou do prazer no risco em certas práticas sexuais. Falar de “risco”, de “cuidado” e “prevenção”, nos termos do Estado, é concordar não só com uma classificação da qual derivam políticas públicas de saúde, que podem e devem ser problematizadas em vários níveis, como também corresponde a uma biopolítica que atende historicamente ao controle de certas populações específicas. Seja em termos de gênero, sexualidade, como também de raça, classe, idade, entre outros. A maneira como busquei entender esses termos se refere ao que meus interlocutores entendem enquanto tais, mesmo que os sentidos dados por eles também correspondam ou sejam atravessados por esses mesmos sentidos estatais.
Lembro da minha surpresa ao ver um interlocutor próximo se engajando em práticas que, na minha visão de mundo, expunha o seu corpo a situações-limite intoleráveis (como a violência na interação, o excesso de fluidos desconhecidos, a ausência de preservativos, etc.). Por ser uma pessoa com a qual estabeleci um contato maior não pude evitar a reprodução de um discurso normalizador e de cuidado com a saúde, ao que fui rebatido com um: “Tenho o meu direito a me foder se eu quiser”, para o qual não tive resposta. Meu choque vinha de uma dificuldade inicial de entender (ou aceitar) que também se pode optar pelo risco, por um caminho perigoso em prol de outra coisa, daquilo que se acredita que seja o melhor. Esse “direito” se relaciona com o que esses homens chamam de “ligar o foda-se”, se jogando perdidamente no intensivo, no excesso, em uma arriscada “linha de abolição” (Deleuze e Guattari 2011).
Percebi, dessa forma, que os meus interlocutores produzem uma certa hierarquia de riscos própria. A ideia de que o risco ou o perigo possa contribuir para uma maior intensidade e singularidade da experiência a princípio pode parecer contraditória, visto que as pessoas arriscariam as suas vidas em algo que não traria recompensas maiores, sob certos pontos de vista. Contudo, não me interessava buscar o porquê de as pessoas fazerem isso. Era mais produtivo me aproximar de como essas experiências se organizam e de que maneira meus interlocutores lidam com essa tensão. O risco aqui é um meio para a negociação de fronteiras. Assim, não se trata de uma perda de controle, se trata de uma sensação de maior controle. De colocar o controle à prova, em risco. De levar o corpo a testar seus limites, de si e do(s) outro(s). E do prazer que isso gera.
Percebi, da mesma forma, que essas práticas também produziam um regime de regulação ético-moral relativo à preocupação de legitimá-las através do acionamento de valores como a “responsabilidade”, o “consentimento” e o “cuidado”. Ser saudável, nesse contexto, dessa forma, é se cuidar e se proteger não dentro de uma lógica ou discurso estatal necessariamente, mas sim a partir de uma hierarquia de riscos própria (sem abrir mão das técnicas de cuidado criadas), em práticas consentidas, e de um entendimento no qual a responsabilidade (de si e de consciência das possíveis consequências) esteja presente.
Também é sobre diferentes sentidos de liberdade os exemplos que trouxe aqui. Da liberdade de desejar aquilo que se entende como melhor para si e para o mundo em que se vive. Da própria possibilidade de se colocar um desejo em prática como exercício de liberdade. O desafio antropológico colocado no encontro etnográfico, portanto, é o de como podemos levar esses desejos a sério. Não como uma defesa deles, mas do esforço de entendimento por quais linhas se constroem esses desejos e que sujeitos, subjetividades, relações e visões de mundo se produzem a partir deles.