Brenda Cossman é professora de direito na Universidade de Toronto. Tem investigado e publicado na área do direito da família, da teoria feminista do direito e da regulação jurídica do sexo e da sexualidade. Paralelamente, tem estado activamente envolvida em reformas e propostas legislativas, redigindo relatórios e colaborando com comissões estatais canadianas, sobre a revisão e regulamentação jurídica da família - como o alargamento da previsão legal do casamento a pessoas do mesmo sexo ou a regulação de relacionamentos entre pessoas adultas -, bem como sobre a discriminação de pessoas trans. É ainda comentarista frequente nos meios de comunicação social canadianos.
Autora, entre outros livros, de Bad Attitude/s on Trial: Pornography, Feminism and the Butler Decision (com Shannon Bell, Lise Gotell e Becki L. Ross, 1997) e de Sexual Citizens: The Legal and Cultural Regulation of Sex and Belonging (2007), Cossman publicou em 2021The New Sex Wars: Sexual Harm in the #MeToo Era (New York: New York University Press). Na produtiva simbiose entre trajectória académica, vocação tecnocrata e aspiração política, Cossman tem o mérito de denunciar os próprios termos que invoca, que operacionaliza e que capitaliza (desde logo, no título da obra), e de fazer anunciar o seu contributo para romper com a recursividade desses mesmos enunciados. Mas, comecemos pelo princípio.
No rescaldo da viralidade do tweet da actriz norte-americana Alyssa Milano, a 15 de Outubro de 2017 - “Se foste assediada ou agredida sexualmente, escreve ‘eu também’ como resposta a este tweet”2 - e dos escândalos em catadupa que se seguiram, com vários famosos e poderosos a “serem derrubados” (Cossman 2021, 17), tanto o #MeToo como a reacção (no original, backlash) a este movimento rapidamente se tornaram um assunto nacional e internacional: de um lado, procurava-se denunciar e demonstrar a omnipresença da violência sexual na vida das mulheres; do outro lado, procurava-se denunciar e demonstrar o potencial inquisitorial (caça às bruxas) do fenómeno que essa constatação desencadeou a partir da palavra-chave ‘eu-também’, e o efeito deturpador do movimento ao equiparar situações de agressão sexual com formas triviais de “más condutas sexuais” (desconsiderando as pessoas, o móbil, o meio e o modo).
Quer a adesão ao movimento de denúncia quer a reacção contra o #MeToo representaram uma escalada que foi patrocinada pelos órgãos de comunicação social e pelas redes sociais. Nestes fóruns, o confronto (norte-americano) entre feministas depressa foi enquadrado como geracional - as reportagens dos media amplificavam frequentemente os conflitos entre as ‘millennials’ e as ‘feministas da segunda-vaga’. No entanto, segundo Brenda Cossman (nascida em 1960 - é fazer as contas), a gramática e a ênfase no choque geracional são um dispositivo retórico no mínimo insuficiente, na medida em que a idade ou a geração, em si, não explicam as discórdias fundamentais sobre sexualidade, capacidade de acção (no original, agency), consentimento, ou sobre o direito, que orbitam em torno do #MeToo. Em vez disso, a autora considera que estes debates são mais bem entendidos pelas lentes das “guerras do sexo 2.0” (expressão que faz questão de sublinhar, em diferentes passagens do livro, ter sido a própria a cunhar) - a continuação das guerras feministas do sexo das décadas de 1970 e 1980.
É a partir desse ponto de vista - e para o demonstrar - que Brenda Cossman recupera as guerras feministas do sexo e os eixos a partir dos quais alinharam e fracturaram: perigo/prazer, vitimação/escolha, opressão/emancipação. Enquanto as ‘feministas radicais’ insistiam na ideia do sexo como lugar de perigo e de vitimação para as mulheres, as ‘feministas radicais-do-sexo’ (no original, sex-radical feminists) ou ‘feministas da positividade-do-sexo’ (no original, sex-positive feminists) enfatizavam o sexo como lugar de prazer e de autonomia feminina. O argumento da autora é que as ‘feministas #MeToo’ são as herdeiras das ‘feministas radicais’ e das ‘feministas da dominação’, das décadas de 1970 e 1980: representam a sexualidade como opressiva e perigosa para as mulheres, e procuram expor os modos como o perigo sexual permanece real e presente nas suas vidas. As ‘detractoras’ do #MeToo, pelo contrário, são as herdeiras das ‘feministas pró-sexo’ e das ‘feministas radicais-do-sexo’: preferem enfatizar a potencialidade e a importância da sexualidade como lugar de prazer e de poder.
Ainda que as matérias (ou algumas matérias) se tenham alterado ou actualizado, as divergências e as disputas em torno das concepções e das teorias sobre a sexualidade (i.e., sobre o lugar da sexualidade na condição de desigualdade das mulheres), sobre a capacidade de acção e consentimento (i.e., sobre a capacidade e o grau com que as mulheres exercem ‘acção sexual’), e sobre o recurso ao direito (e aqui, desde logo, sobre o que constitui dano sexual [no original, sexual harm], e sobre o que e como deve ser regulado), que definiram as guerras do sexo das décadas de 1970 e 1980, continuam a orientar e a infectar os debates sobre a regulação e a tutela do dano e do crime sexual nos dias de hoje - e o direito continua a ser o campo de luta sobre o significado, o perímetro e o governo da sexualidade (e da autonomia sexual) e da violência. Portanto, a disputa não era, nem é, sobre a censura ou desaprovação da violência sexual; era e é sobre o modo de a definir, de a formular, e de a regular. De um lado, perante o diagnóstico da natureza generalizada e persistente da violência sexual contra as mulheres, reclama-se uma aplicação mais rigorosa das leis existentes ou a redacção de novas leis, com punições mais duras no âmbito civil e penal. Do outro lado, resiste-se ao expansionismo criminal e civil (e ao modelo carcerário) e reclama-se cautela perante definições excessivamente amplas - do assédio sexual ou da agressão sexual -, pelo potencial que têm de arrastar consigo comportamentos (sexuais) consentidos. Antes e agora, o consentimento - a sua fabricação (da sombra mackinnoniana sobre a radical impossibilidade do consentimento quando a sexualidade é constituída na e através da opressão/dominação das mulheres; às versões mais moderadas sobre a internalização da necessidade e sobretudo da responsabilidade de agradar aos homens e de alinhar3), a sua concessão (a quem e o quê é permitido consentir), ou a sua celebração (entusiasmo feminista pelo consentimento afirmativo) - constitui um expediente central nestas disputas.
De qualquer modo, e contrariamente às primeiras grandes guerras, o #MeToo não emerge como um movimento sobre o direito; seria, segundo Cossman, quando muito um protesto contra a incompetência do direito. Aliás, uma das características distintivas do #MeToo, nos seus primórdios, era o modo como decorria em fóruns não-jurídicos, nos media digitais, nas salas de reunião, ignorando tribunais e acções legais. Tal, no entanto, dizia muito do direito e da lei: a simples exposição da tsunâmica incidência da violência sexual na vida das mulheres constituía uma performance do fracasso espectacular do direito. À medida que os ‘homens poderosos’ iam caindo - no seguimento de reportagens jornalísticas e de despedimentos corporativos, à margem dos tribunais e da litigação judicial -, o movimento já não apenas expunha o fracasso do direito, como desafiava a sua centralidade como árbitro da violência sexual. De acordo com a autora, se o direito funciona como a métrica da verdade da denúncia, uma vez que os tribunais falharam em acolher e validar as histórias de violência sexual, as mulheres levaram as suas histórias de violência para outro lado. Paradoxalmente, ainda que o ‘feminismo #MeToo’ desafie o poder exclusivo do direito como árbitro da violência sexual - ou o monopólio discursivo do direito (não poderá haver crime ou dano sexual a menos que o direito diga que houve) -, tal como as ‘feministas radicais’ ou ‘da dominação’ o haviam feito, o ‘feminismo #MeToo’ reivindica mais leis - o que apenas reforça o poder (e o monopólio) do direito.
É neste encadeamento que a autora introduz o expediente jurídico do due process4: o ‘processo legal justo’ é uma protecção contra a acção governamental arbitrária; nem as reportagens jornalísticas nem os despedimentos corporativos implicam (segundo a autora) esta cláusula do ‘processo justo’ ou a presunção de inocência - as reportagens jornalísticas são orientadas por padrões jornalísticos de verificação e de deontologia (pelo potencial de difamação); os despedimentos são regulados por padrões de emprego, direito contratual e potenciais reivindicações de despedimento ilícito. Embora não conste entre os seus padrões ou princípios, acrescenta timidamente a autora, “ainda assim, o processo justo parece relevante” (Cossman 2021, 107). Procurando aplacar a ferocidade que a invocação do ‘processo legal justo’ suscita junto das ‘feministas #MeToo’ - remetida para uma forma conservadora de reforçar o poder normativo e instituído do direito -, a autora hasteia a bandeira do racismo de estado: enquanto houver direito criminal e o modelo punitivo-carcerário, a presunção de inocência e o ‘processo legal justo’ são essenciais; “de outra forma homens inocentes e marginalizados correm um risco desproporcional de serem encarcerados”5 (por “má conduta sexual”) (Cossman 2021, 109). Chamo esta citação para o ensaio por duas razões. Primeiro, porque nem precisavam de ser inocentes; também os homens culpados e marginalizados correm um risco desproporcional de serem encarcerados (não precisam de ser Daniel Blake para demonstrar como o sistema pode ser uma ceifeira-debulhadora trituradora6). Segundo, porque em larga medida a determinação - e, sobretudo na economia deste livro, a relevância - da (e adesão à) sua inocência ou culpa decorre precisamente do facto de serem (ou de não serem) homens, e marginalizados.
Alternando os planos temporais, num vaivém analéptico, e os arquivos das matérias em disputa - da pornografia ao sadomasoquismo, da prostituição ao assédio sexual -, Brenda Cossman sinaliza os termos e os repertórios dos debates teóricos, políticos e regulatórios, dando a conhecer as nuances e tensões que existiam e que ressurgem em ambos os lados das barricadas. Nesse exercício procura demonstrar a unidade e a continuidade dos problemas e o seu carácter irresolvido, apesar das metamorfoses que as reivindicações sofreram ao longo do tempo. Para tal, e partindo das polémicas mais mediáticas saídas dos campus universitários ou dos bastidores do mundo do espectáculo ou da política7, a autora presta especial atenção à transposição e aplicação do Title IX nos campus universitários norte-americanos - uma provisão normativa federal, no âmbito dos direitos civis, que prevê a proibição da discriminação com base no sexo e do assédio sexual - e ao caso de Avital Ronell.
O caso de Avital Ronell serve aqui, a meu ver, três propósitos. O primeiro é documentar as ‘guerras do sexo 2.0’ (e, dessa forma, criar um repositório que dê consistência e relevância ao projecto editorial e académico da autora). Ao mapear e identificar - pelas redes sociais, blogosfera e jornais de referência - as barricadas, os argumentos, as proclamações (‘não em nome do feminismo’), insinuações (do puritanismo à paranóia) e acusações (de anti-feminista a feminista liberal), Cossman consegue compor a coerência e a persistência, na forma e no conteúdo, das guerras feministas do sexo. Deste modo, se o caso de Avital Ronell convoca a narrativa da guerra geracional do #MeToo,8 Cossman soube escolher as linhas com que se coseu para demonstrar a sua tese: as guerras do sexo continuam a explicar melhor o que está em jogo.
O segundo propósito é actualizar os enunciados e as matrizes nas barricadas - não alterando (nem pondo em causa) as suas fundações. De acordo com a autora, se, nas décadas de 1970 e 1980, a divisão era entre ‘feministas radicais’ ou ‘feministas da dominação’ e ‘feministas radicais do sexo’ ou ‘feministas pró-sexo’, na era #MeToo, e especificamente no caso de Avital Ronell, trata-se da divisão queer/feminista. Queer, não como sinónimo de LGBT, como sucede frequentemente, mas no legado da teoria queer da primeira geração, como desconstrutivo, anti-identitário, não-feminista (que não anti-feminista, como a própria sublinha), não-normativo, anti-regulatório. No entanto, e apesar da esperança sebastiânica que proclama no queer e de se propor interpretar e resgatar as guerras do sexo pelas lentes das teorias queer, a autora não renuncia nem reconhece a sua vertigem identitária (imperturbavelmente, o seu mundo compõe-se de homens e de mulheres, que são homossexuais ou heterossexuais), não questiona o que é isso do sexual (nos comportamentos, nas matérias, nos sujeitos), e recorre à flexão queer - as hierarquias de sexo e da sexualidade não podem ser reduzidas ao género como o eixo do poder (Cossman 2021, 129) - para contar a história em torno do caso de Avital Ronell (que é pelos vistos assumidamente lésbica, e o aluno que apresenta a queixa pelos vistos assumidamente gay).
O terceiro propósito é introduzir a leitura reparadora (no original, reparative reading) com a qual se comprometera no início do livro. Esta noção, que Cossman recupera de Eve Sedgwick (1997), consiste numa estratégia de leitura que não decorra ou redunde em paranóia ou na hermenêutica da suspeição de Paul Ricoeur - que, no seu entendimento, domina a teoria crítica -, permitindo trazer um conjunto positivo de afectos para a leitura e assim ver novas e melhores possibilidades. Deste modo, combinando postulados do ‘feminismo da positividade-do-sexo’, da teoria queer e do ‘feminismo anti-carcerário’ ou ‘feminismo abolicionista’, e encarando a sexualidade e a capacidade de acção como zonas de ambivalência, a sua proposta é fazer uma leitura reparadora sobre as barricadas das guerras do sexo: uma leitura que permita levar a sério cada um dos lados e examinar tanto o fracasso do direito para enquadrar e tutelar a violência sexual, quanto a crítica à fetichização do direito penal e à sobre-regulação ou hiper-criminalização da sexualidade.
E é assim que responde à pergunta que introduz esta obra - a mesma pergunta que, segundo a autora, tem orientado e crispado o debate entre feministas (das guerras do sexo ao #MeToo): como devemos regular o dano/violência sexual? A resposta vai e vem no livro: devemos regular reparadoramente.
O último capítulo do livro é dedicado à articulação (e sobretudo ao elogio) dessa leitura reparadora, procurando combinar a validação de ambas as leituras (ou denúncias), a de sub-criminalização e a de hiper-criminalização, com a crítica ao estado carcerário - ‘complexo industrial prisional’, como designado por Angela Davis (2003), ou ‘nação prisão’, como designado por Beth Richie (2012), de acordo com a qual não só os EUA encarceram demasiadas pessoas, como demasiadas dessas pessoas são negras. Parte para tal das seguintes constatações: por um lado, criminalizar a violência sexual tem contribuído pouco para reduzir a violência e o dano sexual ou para promover a responsabilização (no original, accountability); por outro lado, à boleia do feminismo carcerário (uma forma de descrever o compromisso anti-violência de muitas feministas), tem-se cedido a uma “agenda de lei e ordem”, a qual, ao funcionar como aparato de reforço dos objectivos feministas, converge e cumpre a deriva do estado providência para o estado carcerário (com a especial vigilância disciplinar e punitiva sobre as populações marginalizadas). Tendo isto em conta, a sua proposta de justiça reparadora passaria, primeiramente, por romper com a “branquitude política” do feminismo da violência sexual dominante (Cossman 2021, 204) e por interromper a equação do reconhecimento do dano com o encarceramento (validação para as queixosas, punição para os autores). Ou seja, e esta é uma interpretação minha, passaria por extinguir a expectativa sobre o direito e o Estado funcionarem como damas de companhia - formulação da olimpicamente ignorada neste livro Camille Paglia (1997). Após essa contenção ou ruptura com o sistema de justiça criminal (mas não com o sistema de justiça ou com o Estado tout court - Brenda Cossman é acima de tudo uma tecnocrata), regular reparadoramente passaria por explorar diferentes modos de promover a responsabilização - modos que passariam por ouvir, educar, pedir desculpas - e a reparação - através de processos de resolução alternativa de conflitos, construídos a partir de estratégias e de objectivos restaurativos e transformadores.
Em suma, a leitura reparadora permitiria validar o dano e ao mesmo tempo assegurar que o mesmo não coloniza nem constitui tudo o resto - ou seja, as queixosas não teriam de se tornar o seu dano para o ver validado (como acontece no sistema actual); e a justiça reparadora teria o potencial de resistir ao essencialismo da diferença sexual, inerente ao actual sistema jurídico-judicial, ao admitir que as duas partes (alvo e autor do dano) sejam outra coisa que não caricaturas predeterminadas de vítima e de agressor, categorias que assentam em papéis polarizados de masculinidade e de feminilidade - suspendendo dessa forma o guião da vítima, e as presunções e exigências em torno da divisão e equilíbrio vítima/agente (aqui, no sentido de pessoa com capacidade de acção).
Como é que tal se faz? Não o saberemos ao ler este livro. E, pelo menos na minha leitura - possivelmente pouco reparadora e generosa9 -, não basta à autora repetir ad nauseam a necessidade dessa leitura reparadora, e anunciar que a faz.
Na conclusão do livro, a autora retoma a necessidade de se abandonar a linguagem da guerra e de ‘nos’ deslocarmos do binário das guerras do sexo - terminologia que ainda assim dá título e corpo ao livro. Não por acaso, este gancho editorial é usado num outro livro que saiu na mesma altura: Why We Lost the Sex Wars. Sexual Freedom in the #MeToo Era. Esse livro, de Lorna N. Bracewell (2021), além de trazer as mesmas palavras-chave para o título - “sex wars”, “#MeToo” - e a mesma proposta para a contracapa - repensar as guerras do sexo para lá das guerras e para lá do sexo -, recupera a mesma revisão histórica da política sexual feminista e das guerras do sexo para entender as actuais gramática e economia política feministas; percorre os mesmos marcos, os mesmos movimentos e contra-movimentos, os mesmos episódios;10 recorre ao mesmo barómetro social (o Twitter), às mesmas designações e distinções (como ‘feministas’, ‘auto-denominadas feministas’, ‘não-feministas’; ou ‘feministas de cor’ - por oposição às que não têm cor, suponho); ou ainda à mesma denúncia (contrição?) da branquitude política do feminismo anti-violência/carcerário - o tal feminismo liberal que dá má fama ao feminismo, como formulado por Cinzia Arruzza, Tithi Bhattacharya e Nancy Fraser, no manifesto de 2019Feminism for the 99%. Diferem na relevância, mas não no diagnóstico sobre o papel central do liberalismo nas perspectivas, nos conflitos e nas alianças improváveis: das raízes liberais do feminismo carcerário, às convergências entre o feminismo ‘anti-pornografia’ (e o feminismo anti-violência) e o liberalismo (conservador), às coligações das ‘feministas radicais do sexo’ com as liberais anti-censura. O anti-liberal é novo popular.
O americocentrismo é o de sempre. Mais do que uma denúncia (do americocentrismo ou do imperialismo da língua inglesa), trata-se aqui - e ainda a propósito de The New Sex Wars, de Brenda Cossman - de manifestar um certo enfado. Escrito (originalmente e naturalmente) em inglês, não é forçosamente um livro (com intenção ou pretensão) internacional, mesmo que o seja, de facto: afinal, cá estou eu, do outro lado do Atlântico, a escrever-lhe uma recensão ensaística;11 embora suspeite que essa noção de escala ou enquadramento (nacional versus internacional) não se coloque às publicações anglo-saxónicas, pelo menos com o mesmo impacto e significado que aqui tem, em português ou em Portugal. Ao longo dos cinco capítulos do livro (aos quais se somam a introdução e a conclusão), não ocorre à autora a necessidade de contextualização: do país, das referências históricas, do sistema de justiça, dos quadros normativos e figuras legais, do lugar constitucional da liberdade de expressão e da centralidade histórica que essa premissa assume nos movimentos políticos e correntes teóricas, das litigações e precedências jurisprudenciais, dos seus ilustres (governantes, ‘formadores de opinião’, celebridades). Não se trata de o livro ocupar-se dos EUA, da sua vida interna e institucional. Nem se trata tão-pouco de reclamar que olhe para este ou para aquele país ou contexto, ou que faça uma análise comparada - como frequentemente se exige aos estudos portugueses. O meu ponto é a auto-referencialidade e o seu duplo efeito na circulação e recepção de ideias: tanto em relação ao alcance das operações de sentido e das conclusões argumentativas a que se chega, quanto em relação à susceptibilidade de essas operações e conclusões poderem ser objecto de escrutínio por parte de quem está fora das suas presunções, fora da sua referencialidade. Uma das manifestações dessa auto-referencialidade como prerrogativa está na atenção que lhe é dada (mea culpa) e nos é vendida, que resulta, em larga medida, da sua auto e hetero-imaginação como parte daquilo a que se chama 'cânone': não por acaso, eu estava a par de grande parte dos episódios e dos casos abordados no livro.
Enfim: como fonte para as pequenas histórias norte-americanas (sobretudo as da década de 1980), das velhas e novas alianças, das quezílias, insinuações e impropérios, ou do mapa editorial onde as disputas se inscreviam e as posições se extremavam, é um livro útil. Ou, pelo menos - e para quem gosta do género - lúdico. Bastante lúdico.