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Faces de Eva. Estudos sobre a Mulher

versão impressa ISSN 0874-6885

Faces de Eva. Estudos sobre a Mulher  no.33 Lisboa  2015

 

ESTUDOS

Estrangeiras - Mulheres em Jerónimo e Eulália de Graça Pina de Morais1

Isabel Henriques de Jesus2

Professora do Instituto Superior Politécnico de Setúbal e investigadora do CICS.NOVA (equipa Faces de Eva)

 

RESUMO

A obra de Graça Pina de Morais permanece quase invisível quer do interesse dos críticos quer da academia. O texto que aqui se apresenta aponta algumas razões para tal, ao mesmo tempo que pretende relembrar uma autora e obra imerecidamente esquecidas. Escolhemos Jerónimo e Eulália (1.ª edição 1969) como corpus de análise, incidindo o nosso olhar em duas das suas personagens femininas. A aparente “não pertença” a um espaço/tempo determinado induziu o título deste estudo, denominando-as metaforicamente de “estrangeiras”, e configura o motivo aglutinador da análise que estabelece pontes entre as personagens ficcionadas e a criadora que lhes deu vida.

Palavras-chave: estereótipo de género; relações de género; recusa de normatividade,; linguagem, corpo.

 

ABSTRACT

The work of Graça Morais de Pina remains almost invisible either to critical theorists or scholars. The present essay suggests some possible reasons, while it intends to unveil an author/work undeservedly forgotten. We chose Jerome and Eulalia (1st edition 1969) as corpus of analysis, focusing our attention on two of it's female characters. The apparent “no belonging” to a given space / time induced the title of this study, metaphorically calling them “foreign”, and sets the overarching purpose of analysis that builds bridges between the fictional characters and the creator who gave them life.

Keywords: gender stereotypes; gender relations; refusal of normativity; language, body.

 

Nota introdutória

O título do presente artigo pretende revelar situações em que as mulheres representadas no corpus em análise, mas também a sua autora, se apresentam física e/ou psicologicamente estranhas aos locais que habitam. Esses locais não são tanto os espaços geográficos mas os vivenciais, nomeadamente os que introduzem fortes rupturas na normatividade dominante e nos papéis de género que lhes são atribuídos, conduzindo à subversão dos lugares e à erupção de novos significados nas relações de género.

 

A mulher/a escritora

A obra3 de Graça Pina de Morais4 permanece esquecida pela crítica literária e pelas instituições que permitem manter vivo o nosso património literário5. As razões para tal tratamento são sempre difíceis de identificar, como complexos são os meandros que determinam a longevidade de um livro e/ou de um autor6. No que se refere à escritora aqui mencionada sabemos que tratando- se de uma personalidade tímida, introvertida, e pouco à vontade perante as luzes da ribalta, não estimulou a curiosidade dos críticos e não facilitou a propagação da sua imagem. Após escrever Jerónimo e Eulália, Graça Pina de Morais sofreu uma depressão profunda que a ausentou da cena literária e a afastou ainda mais do cosmopolitismo da crítica. Em entrevista concedida a António Cabrita, um ano antes de morrer, a escritora atribui a esse período de ausência parte da responsabilidade pelo esquecimento a que foi votada (O Expresso, 25 de Maio de 1991, pp. 93R-94R).

Se é verdade que a timidez e a humildade a preservaram da ribalta onde se sentia desconfortável, também o orgulho, a recusa da vulgaridade e a dificuldade em fazer concessões contribuíram para o seu apagamento, situação por vezes conflitual, tanto mais que a escrita era o grande móbil da sua vida.

As características da mulher Graça Pina de Morais contribuíram certamente para a ocultação da escritora, no entanto, talvez por si só não expliquem a pouca visibilidade dada à obra tanto mais que aquando da publicação do seu primeiro romance, A Origem (1958), dois críticos de renome, João Gaspar Simões e Óscar Lopes, o aplaudiram. Mais tarde, em 2002, também Fernando Pinto do Amaral o elegeu como um dos 100 livros portugueses do século XX. Mas foi uma mulher, Teresa Almeida, quem, num texto critico aquando da reedição, pela Antígona, de O Pobre de Santiago, denunciou “o muro de silêncio” que percorre a escrita de muitas mulheres, ao mesmo tempo que se referiu à obra da escritora nos seguintes termos:

 

“A sua obra (...) não ocupa dentro do cânone literário o lugar a que teria direito. E, no entanto, é difícil escapar à força da sua voz. A sua escrita é certeira e lúcida, fria e cruel, mas deixa- se enternecer pela beleza do mundo. Tem a força daqueles que conseguem ver sem nunca desviarem os olhos, que olham de frente para a verdade, sabendo que nem tudo se pode compreender. Poucas vezes a literatura portuguesa conseguiu conciliar de uma forma tão radical a denúncia implacável da hipocrisia do ambiente social e familiar com a compreensão instintiva da grandeza e da miséria da condição humana” (Almeida, 2001, p. 45)

 

O último romance que publicou, Jerónimo e Eulália (1969), foi considerado a melhor obra de ficção desse ano, recebendo o Prémio Ricardo Malheiros da Academia das Ciências e o Prémio Nacional de Novelística. Poppe intitulou-o “um livro apaixonante” na critica que lhe teceu e, realçando o carácter individual e pessoal da escrita da autora no universo literário desse tempo, escreveu: “G. P. de M. traz- nos de volta o calor humano do verdadeiro contador de histórias, que ama as suas histórias e ama contá-las, que interpreta e interroga a realidade, que, ao inventar, propõe caminhos, ilumina o desconhecido, acompanha” (Poppe, 1982, p. 488). Posteriormente, quando a Antígona reeditou Jerónimo e Eulália, também Bessa (2001, p. 4) se referiu à escritora nestes termos: “verdadeira cartógrafa da alma humana, quer na que vive em corpos socialmente desfavorecidos como na que geme dentro dos que possuem dinheiro e poder.” Nessa ocasião, Silva (2000, p. 5) escreveria no Jornal de Letras. “[Jerónimo e Eulália] é um romance também sobre os ensurdecedores silêncios de múltiplos seres. Que se cruzam, correm paralelos, coexistem lado a lado, mas raramente se fundem.” Quando, em 7 de Abril de 1992, Graça Pina De Morais não resistiu a uma doença que desvalorizou – talvez porque o apego à vida não permitisse encarar a gravidade da mesma – ouviram- se novos elogios à escritora e à obra que, mais uma vez, se esfumaram no decurso do tempo.

Haverá, porventura, também uma dimensão ética na mensagem veiculada pela obra desta autora que a torna de difícil aceitação no mundo actual: a recusa da relação utilitária entre as pessoas, contrapondo-lhe um outro código de conduta que valoriza a interioridade dos seres. E isso acontece através de personagens que existem, de ambientes que cativam, de uma história que prende e nos fascina. A sua escrita narra uma história com princípio, meio e fim e as suas personagens têm sentimentos, sonhos, desilusões e recordações. Provavelmente, nem a mensagem nem os elementos constitutivos da obra passaram despercebidos a Herberto Helder, constando que foi ele quem a recomendou ao editor.

Muito estranhamos que a Academia não lhe dê a projecção que nos parece merecer. A verdade é que a sua obra não tem suscitado muitas apreciações o que, se por um lado, abre um espaço inexplorado de análise, por outro, impede o diálogo com outras abordagens críticas. Gostaríamos que este artigo pudesse estimular a emergência de outras leituras que permitissem o interesse pelo mundo ficcional desta autora.

Além da sua actividade de ficcionista, esta mulher multifacetada foi também médica e psicóloga, pós- graduação que adquiriu em Genebra. Terminou o curso de Medicina em 1951 (foi uma aluna brilhante, tendo sido convidada para professora na Faculdade de Medicina do Porto, algo que não seria, à data, muito comum) e até ao fim da sua vida exerceu a profissão de um modo essencialmente humanitário, embora intermitentemente, devido às frequentes estadias no estrangeiro, à escrita e à doença. Nos últimos tempos, associava a psicologia à medicina mas esta foi a sua principal fonte de subsistência.

Emocional, intuitiva, atenta, inteligente e introvertida, a fina ironia que lhe atribuem só atesta as características atrás mencionadas. Diz quem a conheceu que a sua vida se pautou por critérios de seriedade e de rigor que a afastavam da vacuidade de uma existência burguesa, preferindo a solidão da literatura onde buscava o seu espaço de interioridade. Graça Pina de Morais foi o nome que adoptou em 1955, depois de ter publicado sob o pseudónimo de Bárbara Gomes. Descendia de escritores e inspirou ares contestatários7, sendo a família forçada a exilar- se politicamente. Acompanhando o pai, viveu parte da infância em França e esse percurso itinerante enformaria toda a sua vida. Na entrevista ao Expresso, já citada, referiu: “Eu não tenho um lugar meu. Gostava de acabar os meus dias, sei lá, na América Latina, onde há países em que a vida é barata e onde posso sofrer menos com o Inverno.” A sua forma quase invisível de existir, vaga e sonhadora, defendendo- se da exposição aos holofotes da fama, tornaram-na uma “estrangeira” na terra que habitava. “Morreu como viveu: sem se dar por isso. Num tempo em que a lei é a do mau gosto teve a elegância de viver fora da lei, entrou na discrição como numa ordem de onde só saiu na manhã de terça- feira, dia 7.” (F. M, 1992, p. A14)

Em entrevista concedida à Revista Flama de 23 de Outubro de 1970, citado em Diário de Notícias de 9 de Abril de 1992, reconheceu: “tal como a minha maneira de ser, a minha literatura é pouco social. Pode mesmo dizer-se que é algo intemporal.”

 

As “estrangeiras” em Jerónimo e Eulália

Como já referimos, este artigo tem como objectivo não apenas revelar uma autora imerecidamente esquecida, como acompanhar duas das suas personagens femininas e a teia de representações de que são alvo. Para isso, escolhemos a sua última obra, Jerónimo e Eulália, e figuras que, por motivos diferentes, configuram construções atípicas das mulheres, tornando-as seres de tal modo únicos que mais parecem pertencer a um universo estranho, “estrangeiro”, em relação às expectativas e atributos de género/função e/ou de classe social em que se situam. Trata- se de Augusta, uma prostituta que, como veremos adiante, inverte os habituais pressupostos representativos, e Eulália, a personagem que, em conjunto com Jerónimo, desencadeia a narrativa. Ambas jogam um papel fundamental na iniciação sexual e afectiva de Jerónimo e contribuem para o seu tornar-se homem, nunca mais esquecidas e insistentemente rememoradas ao longo da sua vida.

Passado num contexto temporal de cerca de 20 anos, entre o fim da Segunda Guerra Mundial e a primeira metade da década de 60, a construção da narrativa de Jerónimo e Eulália apresenta uma estrutura circular. A trama desenvolve- se num tempo que, por vezes, projecta o futuro, antecipando memórias e reflectindo sobre o seu significado; outras vezes recupera o tempo do acontecimento e, outras, recorda o passado, âncora existencial para vivências perturbadas. Este livro poderá bem exemplificar aquilo que Magalhães (1995, p. 68) considerou um elemento de privilégio na estruturação do romance de autoria feminina: “a dimensão diacrónica – ou seja, a recuperação do tempo em volta de um eixo que pode ser recipiente de memórias (…).”

O contexto espacial da narrativa é urbano mas, também, rural, e as mulheres constituem uma panóplia de diversidade representativa quer em termos etários, quer de modos de pensar e de viver, quer no posicionamento social e moral com que se apresentam, assim permitindo um jogo de opostos que o comprometimento ético da voz narrativa parece não querer camuflar. As diferentes personagens femininas são escalpelizadas pelas outras figuras que sistematicamente se pronunciam umas sobre as outras, mas também pela narradora, em tempos e moldes diferentes, convergindo, segundo ângulos diversos, para a sua construção, o que conduz a representações não lineares e quase sempre multifacetadas. Há, no entanto, uma espécie de denominador comum que agrupa muitas destas mulheres em torno de um núcleo potenciador de dor e de sacrifício, parecendo encaminhar-se para uma denúncia da condição feminina, por vezes reforçada pelas condições sociais de existência. Esta dupla denúncia está bem patente na frase: “o choro é propício às mulheres, por isso choravam; encontravam ocasião para expandir a sua indefinida mas imensa amargura feminina (…) choravam porque eram mulheres e mulheres muito pobres” (Morais, 2000, p. 116). Contrapondo- se a estas mulheres mais ou menos sofridas, mais ou menos invisíveis socialmente mas, ainda assim, descritas como seres cuja interioridade se expressa através da emoção ou da comoção própria ou alheia, encontram- se as que se regem por uma vazia exterioridade estratégica, pouco escrupulosa e usada para benefício próprio. Temos, assim, genericamente representados, dois grupos de mulheres e, se as primeiras apontam para uma essência feminina8 que desagua num destino de dor e de sacrifício ou de espanto e de inadequação perante as exigências do mundo racional, corporizado por uma clara dominância do patriarcado, as segundas servem- se de artifícios para sobreviverem em contextos que as apartam e as excluem da sua construção. São duas faces de uma mesma moeda que evidencia questões de género, bem explícitas em certos momentos da narrativa, embora não se esgote nelas.

 

Augusta

Augusta é uma personagem com forte textura na diegese. É uma prostituta que prepara Jerónimo para o amor sexualizado que ele sente por Eulália, sem que isso diminua ou secundarize a sua posição na narrativa. Ela mantém- se detentora de um espaço próprio, não transferível para Eulália, porque a intensidade da sua sensualidade, primitiva e voraz lhe confere essa autonomia. Vista como louca no meio onde habitava, é descrita como manhosa, exploradora e indolente: “o receio do trabalho, as canseiras da maternidade, juntas a uma preguiça desmesurada, mantinham-na na situação de doença largos meses deitada (...)” (p. 129). Embora muitas das mulheres representadas neste romance configurem seres pouco integrados socialmente, a loucura aparece claramente associada à sexualidade desmedida, punida com uma culpa que de tanto pesar as torna seres etéreos ou socialmente perturbadores. Assim, Jerónimo encontrou Augusta quando, passados muitos anos sobre a morte de Eulália, voltou ao local onde conheceu ambas e a visitou, porque a memória dela se impunha não já pela vontade sexual mas porque ela lhe tinha proporcionado uma experiência de sensualidade primária e desmedida que nunca mais repetiria. Afastado o único elo de comunicação entre ambos – a linguagem feroz dos corpos – ela teimou em não entender a mensagem de gratidão que ele pretendia oferecer-lhe.

Sexualmente explosiva, os homens mais não eram do que instrumentos que momentaneamente aplacavam a intensidade do seu desejo, ao contrário do que é habitualmente atribuído ao trabalho frio ou mecânico das prostitutas. Neste caso, o estereótipo inverte- se9 : “(...) a única importância que atribuía a Jerónimo era a de instrumento capaz de satisfazer o seu instinto.”(p. 161) Num dos encontros que tiveram, Jerónimo tentou estabelecer uma comunicação prévia ao acto sexual mas ela, mostrando impaciência, não lhe permitiu exprimir a ternura que sentia. Tudo isto altera a ideia corrente que associa as mulheres à docilidade e à afectividade versus a centralização fálica dos homens enunciada por Badinter (2004, p. 133) a propósito da dominação masculina no acto sexual: “<preliminares>, <duración>, <sentimientos>, ese es el tríptico tradicional que define la sexualidad feminina. <Penetración>, <consumación>, <dominación>, es el de la sexualidad masculina.” Augusta, pelo contrário, entregava-se sem culpa nem complicação e a agressividade que emanava transmutava-se no acto sexual, tornando- a bela pela expressão do seu prazer: “apenas o brilho negro da íris se cobria, nos instantes culminantes do desejo, duma invisível película que lhe embaciava os grandes olhos soturnos, até os tornar turvos e maravilhosos” (Morais, 2000, p. 134). Esta personagem, representada por Augusta, ultrapassa em muito a sua contingência psíquica e contextual. Inverte irremediavelmente o estereótipo da mulher utilizada e não aceita a condição de passividade. Neste caso, tratando-se de uma prostituta, nem sequer permite a ideia de ausência, de frigidez ou de acto mecânico. Ela configura o oposto de tudo isso; é única na sua natureza primitiva e diabólica e a construção textual da sua personagem reveste-se de um simbolismo cujo significado prefigura uma acentuada diferença nos papéis de género.

 

Eulália

A construção ficcional desta personagem acompanha todo o desenrolar da trama narrativa ainda que a sua morte física se dê a pouco mais de meio do livro. Obsessivamente relembrada por todos os que a amaram, a sua imagem surge esfumada através das memórias dos outros, mas nem por isso está menos presente. O efeito de irrealidade na construção da personagem beneficia dessa dilação temporal. Tudo são lembranças; as de ela relativas a um passado que não voltará e as de outros que a recordam insistentemente devido à marca indelével que neles deixou. Não pelos feitos ou actos heróicos que tivesse praticado mas pela etérea paz em que habitava, fruto da genuinidade e da raridade do seu ser. Excêntrica e desadequada, simultaneamente bela e inacessível, livre e dependente, desorganizada e acolhedora, frontal e enigmática, lúcida e perturbada, Eulália era um ser estranho no que isso comporta de incompreensão para os outros que, embora a comentem ou mesmo a amem, nunca acedem à inteira dimensão do seu ser. Sobre ela se comentava: “é boa criatura, muito alegre não sabe o que esta vida é!” (p. 62) porque Eulália tinha, aos olhos dos outros, uma vida fácil e despreocupada, aparentemente oposta às dificuldades quotidianas de algumas das outras mulheres da diegese. Mas nela todos os traços têm o seu reverso, porque a resposta possível às diferentes solicitações e expectativas face ao ser feminino que nela habitava era o refúgio nesse “mundo perturbado” (Almeida, 2001, p. 45) que a cercava porque ela o gerava, incapaz como era de aceitar a normalidade de uma vida que nunca a preencheu. A negociação tornara- se impossível e, talvez por isso, ela surgisse aos olhos dos outros num estado de semi-embriaguez, incompatível com o seu estatuto social “anda vestida como uma tonta, dizem que se embebeda e não acredita em Deus” (p. 155), comentavam alguns dos habitantes da aldeia.

Era mulher de um médico com quem casara porque ele lhe trazia a realidade que ela não poderia nunca alcançar. E quando ele, apesar de a amar, não aguentou a irrealidade do seu ser e deixou de procurar esse corpo que, apesar de se lhe entregar nunca havia sido por si possuído, ela foi-se despojando do único elemento que verdadeiramente lhe pertencia e no qual encontrava a paz procurada. Fora uma espécie de profissional do amor, tendo-se apaixonado várias vezes. Mais do que pelos homens, porventura por uma necessidade que nunca se esgotava. Necessidade ilimitada, exigindo sempre mais e mais. Num dos seus encontros com Jerónimo (jovem muito mais novo que, ao refugiar-se na aldeia onde ela vivia, se apaixonara por ela), caracterizados por uma imensa cumplicidade afectiva, confidenciou-lhe: “sempre a mesma alegria de alvorada, o mesmo terrível e estéril sofrimento, a luta, a luta contra quê? Contra nada. Passos e passos inúteis, sofrimentos, alegrias absurdas, sempre o riso claro da morte… quando julgava atingir o amor daquele que amava e nunca o consegui. Nunca, compreendes?” (p. 90).

Eulália sabia que é possível amar muito e amar mal, sabia que é possível amar muito e não ter paz, sabia que é possível amar muito e não ser amada. Sabia que é possível ser amada e não ser entendida, sabia muito sobre o amor e por isso recusava exercê-lo fisicamente com aquela quase criança que tão atentamente a ouvia porque a admirava e a desejava.

Jerónimo amou-a, mas a diferença de idades e o ser magoado e absoluto de Eulália não podia já consumar-se num amor físico. Foi uma profunda espiritualidade que os uniu, talvez, afinal, segundo a narradora, a única força verdadeiramente indestrutível na ligação entre os seres: “irrealizáveis eram por certo todos os amores humanos, pelo menos para os seres da sua raça [de Eulália]. E talvez fosse justamente esse mesmo carácter de irrealização que transmitia ao amor toda a violência da sua grandeza” (p. 148). Eulália morreu porque não aguentou a ameaça ao fragilíssimo equilíbrio em que vivia. Amada por dois homens, o marido e Jerónimo, cada um consistia numa fina rede de suporte à sua existência. Há muito que se distanciara do ardor do desejo “a tragédia não comove, deixa- nos áridos, vazios” (p. 78), confidenciara ela a Jerónimo. O marido amava-a mas não a entendia e afastou-se por medo de com ela e, por ela, se perder, e Jerónimo amava-a, desejava-a, mas a inacessibilidade dela tornava impossível a realização física desse sentimento. Curiosamente, a recusa de Eulália em concretizar o amor devido à diferença de idades é o único elemento de realidade na transcendência do seu mundo, dando-lhe um toque de quase vulgaridade. O seu corpo, outrora jovem, apetecido e apetecível, é agora percepcionado através de Jerónimo que a vê, a vigia, e Eulália recusa esse olhar porque, sendo mulher, se habituou a interiorizar o olhar dos homens sobre ela e através disso se representou a si mesma.

A imagem que tinha do seu corpo estava irremediavelmente condicionada pelo olhar dos outros “elle sera le bel objet à regarder” (Irigaray, 1977, p. 25) e não suportava as marcas da idade que os olhos e o corpo de um homem jovem poderiam identificar e, porventura, molestar. Talvez mais do que tudo, Eulália se preservasse. A sua história de vida era por demais magoada para suportar a união de um corpo envelhecido com o corpo pujante de um jovem sem correr um risco de que ela já não conseguiria defender-se. Optou, por isso, por entabular com Jerónimo um diálogo (na verdade, praticamente monólogo) jorrante de emoções e de memórias que só terminou com a sua morte.

O discurso de Eulália era fluido, circular, poético, metafórico, incompreendido pelo marido e por Jerónimo que, apesar disso, a admirava e a amava, tal como o marido a amava mas nenhum podia compreender o incompreensível, porque se regiam pelo poder simbólico da linguagem que limita e normatiza. “Paroles contradictoires, un peu foles pour la logique de la raison, inaudibles pour qui les écoute avec des grilles tous faites, un code déjà tout preparé” (Irigaray,1977, p. 28). Eulália, pelo contrário, não tinha acesso a esse poder, porventura nem o desejava, mergulhada como estava numa interioridade sensitiva que lhe dominava a existência. No entanto, ela precisava da realidade que esses dois homens lhe traziam; de algum modo, enquanto as suas forças permitiram, usurpou-os para benefício próprio, para manter viva uma existência que se extinguia, já muito perto da imaterialidade.

Assim construída, a figura de Eulália passou ao lado da expectativa tradicional e do estereótipo atribuído a uma mulher da sua origem e classe social. Não pactuou com um mundo que lhe era hostil porque a sua idealização de pureza e dádiva não encontrava eco na normalidade que a rodeava. Sentia-se violentada pelos limites concretos da existência, já que para ela o interessante era a passagem sem destino: “o espaço entre as cidades, [o] percurso entre os locais (…), [a] sensação de viagem …” (p. 189). Criou um mundo próprio, fechado, incompreendido, mas suficientemente elucidativo da divergência em relação a uma norma que não era a dela. Vestia- se inadequadamente, preservando as roupas de um passado nostálgico que realçava ainda mais a ambiguidade da sua existência entre o já vivido e impossível de repetir e um presente/futuro onde não se reconhecia. A nenhum deles pertencia porque ambos lhe eram inacessíveis. Incapaz de exprimir a sensatez e o porte próprios à mulher de um médico reconhecido na aldeia, não conseguia estabilidade emocional nem com a própria filha, passando mensagens contraditórias e desorganizando tudo à sua volta.

A desarrumação da sua casa, desse espaço simbólico de que as mulheres cuidam e cuida delas, protegendo-as ao mesmo tempo que tantas vezes as impede de crescer, como denunciou Virgínia Woolf (1996), espaço habilmente induzido pelos homens como o do exercício do reinado feminino, é também um forte indício de uma ficção que abala estruturas rígidas e abre janelas de reflexão.

 

Distantes da norma – “Estrangeiras”

Este romance inverte em absoluto o paradigma tradicional da mulher encorajadora da palavra masculina, da mulher ouvinte e cuidadora. Jerónimo transformou-se no ouvinte de Eulália, no admirador incondicional que se submete à palavra do ser amado. Embora numa linguagem que escapa à racionalidade do discurso, é a mulher/Eulália quem fala. Os homens sentem-se perturbados e ainda que não a possam compreender, ouvem-na e amam-na.

Augusta usa o homem como seu objecto de prazer. Não quer afecto, não quer carícias, não quer conversas, quer ir direita ao acto para o qual ali estão ambos, face a face. Ela representa, em toda a sua textura representativa, a apropriação corporal de um querer de mulher, capaz de tomar a iniciativa e, portanto, não mais dependente ou circunscrito a um domínio que atribuía limites ou condicionava a sua expressão. Nenhuma destas duas mulheres (assim como a maioria das outras representadas nesta história) parecia capaz de “aninhar” os homens, quer porque a sua desmedida sensibilidade os confundisse (Eulália) quer pela perturbação e apatia em relação à vida e aos afectos (Augusta). Ambas se encontram nas margens da ordem simbólica patriarcal e, dessa forma, subvertem os mundos arrumados que as constrangem e limitam, assim constituindo um potencial libertador e subversivo. A força disruptiva de algumas mulheres deste romance perturba e por vezes inverte o lugar marginal que lhes estava destinado, perturbando normatividades de género e códigos de conduta.

No entanto, há a assinalar a atenção dispensada aos homens neste romance e a sua representação como seres, também eles meio perdidos num universo que não conseguem controlar, esbatendo, de algum modo, a fronteira que separa espaços dicotómicos na construção dos géneros, num paradigma patriarcal. Os mundos de ambos (mulheres e homens) são suficientemente distintos e há combate sofrido e alienado entre eles, mas os homens estão presentes e a atenção dada ao seu desnorte e fragilidade remete para o evidenciar de características que apresentam o avesso de uma segurança dominadora e poderosa. Nesse sentido, este romance, publicado em 1969, parece configurar já uma alteração na representação dos géneros que a realidade começava a instituir.

Não querendo associar abusivamente a autora empírica deste romance às representações de mulheres que ele veicula e de que aqui pretendemos dar conta, a verdade é que reconhecemos em Graça Pina de Morais alguns traços existenciais de recusa e de estranheza de um mundo contaminado pela materialidade, do mesmo modo como Eulália se refugiou numa certa intemporalidade como forma de defender e de abrigar o seu “eu”. Também Augusta, incapaz de viver uma certa normalidade feminina, encontra no exercício da sexualidade a fuga possível que transcende as condições objectivas de existência. Nesse sentido, quer a autora quer as personagens se configuram como “estrangeiras” num mundo em que se não reconhecem.

 

Referências bibliográficas

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Notas

1O artigo que seguidamente se apresenta tem como ponto de partida um capítulo da tese de doutoramento da autora, intitulada A Imagem da mulher na literatura portuguesa no final dos anos sessenta (2006) (não publicada), Universidade Nova de Lisboa, e num verbete da mesma autora sobre Graça Pina de Morais incluído em Feminae Dicionário Contemporâneo. Lisboa: CIG, 2013. Prescinde-se de identificar, como citação de autora, as passagens que se encontram nesta mesma situação.

2Maria Isabel de Chagas Henriques de Jesus é professora no Instituto Superior Politécnico de Setúbal e investigadora no CICSNOVA (equipa Faces de Eva). Doutorada em Línguas e Literaturas Românicas, especialidade de Língua Portuguesa Moderna tem desenvolvido trabalho no âmbito dos estudos feministas e da representação de mulheres na literatura portuguesa. É co-directora da Revista Faces de Eva. Estudos sobre a Mulher.

3Além do romance que constitui o corpus do presente artigo, Jerónimo e Eulália (1969), há a assinalar outras publicações literárias. Romance A Origem (1958). Contos: “Sala de Aula” e “Semi-Deuses” (1953) sob o pseudónimo de Bárbara Gomes inseridos na colectânea Mosaico; O Pobre de Santiago e Outras Novelas (1955) com o seu nome reduzido para Graça Pina de Morais; Na Luz do Fim (1961); As três virtudes teologais: Fé, Esperança e Caridade (1964) em col. Urbano Tavares Rodrigues e Manuel Mendes; Natal (n.d.) em col. Armindo Rodrigues e Taborda de Vasconcelos; A Mulher do chapéu de palha (2000), inédito publicado postumamente. Teatro: O Medo e Raquel (1964). Sabe-se também da existência de um original inacabado que a autora pretendia intitular Requiem por um romance que morreu. Além da literatura, Graça Pina de Morais escreveu e publicou artigos de medicina.

4Maria da Graça Monteiro Pina de Moraes nasceu no Porto no dia 17 de Setembro de 1925. Todas as referências que encontrámos situam o seu nascimento em 1927 ou 1929, pelo que tivemos necessidade de confirmar, junto do organismo competente (2.ª Conservatória do Registo Civil do Porto), a data certa.

5Pesquisámos o tratamento dado à autora em algumas das obras literárias de referência e encontrámos: Dicionário da Literatura Portuguesa, organização de Álvaro Manuel Machado, dedica-lhe cerca de um quarto de página; História da Literatura Portuguesa de A. J. Saraiva e Óscar Lopes, dedica-lhe 4 linhas; Isabel Allegro de Magalhães em “Anos 60-Ficção” História da Literatura Portuguesa. As correntes Contemporâneas de Óscar Lopes e Maria de Fátima Marinho dedica-lhe 12 linhas.

6A propósito deste assunto, ver “Cânone” in Ana Gabriela Macedo e Ana Luísa Amaral (orgs.). Dicionário da Crítica Feminista

7O pai, João Pina de Moraes, foi escritor e republicano convicto. Participou no golpe de 3 de Fevereiro de 1927 e, na sequência disso, teve que se exilar. Domingos Monteiro era seu tio, pelo lado materno.

8Trata-se de um dos termos mais controversos para o feminismo. A assunção de categorias estáveis, coerentes e imutáveis, identificando homens e mulheres biológica, psicológica e socialmente determinados foi refutada pelas correntes construtivistas do género. Em termos pragmáticos, estas últimas argumentam que defender uma essência feminina não resolveria o problema da subalternidade das mulheres já que, ao considerar que a sua diferença reside na “natureza” não lhes deixaria fuga possível a um destino previamente inscrito.

9Mesmo que a narradora se tenha socorrido do discurso científico como forma de justificação do comportamento da rapariga “portadora de uma profunda depressão nervosa” (Morais, 2000, p. 355), isso não apaga o impacto da representação.