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Faces de Eva. Estudos sobre a Mulher

versão impressa ISSN 0874-6885

Faces de Eva. Estudos sobre a Mulher  no.48 Lisboa dez. 2022  Epub 20-Fev-2023

https://doi.org/10.34619/n15y-imnj 

Estudos

Cais-do-Sodré Té Salamansa: Existências à margem nos contos de Orlanda Amarilis

Cais-do-Sodré Té Salamansa: Marginal existences in Orlanda Amarilis’ short stories

Susana L. M. Antunesi 
http://orcid.org/0000-0003-2681-2173; lattes: 2867588412318513

Maria C. O. Guimarãesii  iii 
http://orcid.org/0000-0001-9715-7554; lattes: 6159117838746110

iUniversity of Wisconsin-Milwaukee, College of Letters & Science, Spanish and Portuguese Department, 53211 Milwaukee, Wisconsin, United States. Email: antunes@uwm.edu

iiMinistério da Educação, Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES), Brasil. Email: mcoguimarães@gmail.com

iiiUniversidade de Lisboa, Faculdade de Letras, Centro de Literaturas e Culturas Lusófonas e Europeias (CLEPUL), 1600-214 Lisboa, Portugal.


Resumo

O presente trabalho propõe uma revisitação ao livro de contos Cais-do-Sodré Té Salamansa (1974), da escritora cabo-verdiana Orlanda Amarilis (1942-2014), provocada pela atualidade das questões que, passados quarenta e oito anos à data da escrita do presente estudo, continuam a despertar interesse. Neste percurso, enfatiza-se a permanência in continuum de existências à margem, intensificadas pelas imagens da mulher cabo-verdiana situada/sitiada dentro ou fora das dez ilhas. Neste contexto, pretende-se realçar o carisma destes seres de resistência, enformado por vidas em retalhos e pelo desencanto revitalizado pela memória.

Palavras-chave: Orlanda Amarilis; vidas em retalhos; memória; desencanto

Abstract

This paper aims to reread and rethink the short story collection Cais-do-Sodré Té Salamansa (1974) by the Cape Verdean writer Orlanda Amarilis (1942-2014). The revisitation is motivated by the actuality of the issues that, after forty-eight years, remain to arouse interest in issues that are still being discussed. On this journey, emphasis is placed on the permanence of a continuum of marginalized existences, intensified by the images of Cape Verdean women located/besieged inside, or outside the ten islands. In this context, is the present study intends to highlight the charisma of resistance being shaped by patchwork lives and disenchantment revitalized by memory.

Keywords: Orlanda Amarilis; patchwork lives; memory; disenchantment

1. Introdução

O presente trabalho constitui-se como uma revisitação ao livro de contos Cais-do-Sodré Té Salamansa (1974), da escritora cabo-verdiana Orlanda Amarilis (1942-2014). Esta releitura é provocada pela atualidade das questões que, passados quarenta e oito anos após a publicação do livro em estudo, continuam a despertar interesse. Inicialmente, nota-se que, além do fracionamento geográfico consoante à vida em um arquipélago, há um esfacelamento emocional provocado pela migração dos ilhéus em direção a Portugal em busca de uma ascensão socioeconómica. Neste percurso, vale a pena enfatizar a permanência in continuum de existências à margem que, nos contos de Amarilis, são intensificadas através de imagens da mulher cabo-verdiana situada/sitiada dentro ou fora das dez ilhas, realçando-se, simultaneamente, o seu carisma de resistência, enformado por vidas em retalhos e pelo desencanto revitalizado pela memória.

Ao longo dos sete contos que compõem o volume, Amarilis entrelaça um cenário físico e vital cujo itinerário se inicia na praça lisboeta do Cais do Sodré e termina na praça de Salamansa, na ilha de São Vicente, Cabo Verde. As narrativas apresentadas acontecem em espaços diferentes, os quais confluem num lugar-comum central e intimista identificado como um lugar de vidas em retalhos e de desencanto, transformando aquele aparente lugar-comum em não-lugar. Neste contexto, e como afirma Marc Augé, “se um lugar se pode definir como identitário, relacional e histórico, um espaço que não pode definir-se nem como identitário, nem como relacional, nem como histórico, definirá um não-lugar” (Augé, 2005, p. 67). Corroborando as palavras de Augé, se por um lado as personagens dos contos de Amarilis se constituem como fragmentos de vidas repartidas por lugares interiorizados como não-lugares, porque desprovidos das características que se identificam com a construção de identidades, por outro lado, aquela fragmentação também acontece em lugares que se podem definir como identitários, como é o caso das personagens que não saíram das ilhas. Neste conflito envolto pela fragmentação e pelo retalhamento do desencanto circular e permanente que enforma os que saem, os que ficam e os que voltam às ilhas cabo-verdianas, os contos de Amarilis apresentam contextos que ainda hoje incitam à reflexão.

2. Vidas em retalhos

Inicialmente, salienta-se a presença de vidas em retalhos nos sete contos do livro Cais-do-Sodré Té Salamansa, em consequência da turbação de sentimentos provocada pela desolação dos que migram das diversas ilhas que formam o arquipélago de Cabo Verde em direção a Portugal, dos que continuam no arquipélago espontaneamente, bem como daqueles que nunca tiveram uma hipótese de migrar. Nos contos de Amarilis, os ilhéus partem por motivos variados - desde uma questão de saúde, como ocorreu à personagem Tanha, filha de Simão Filili do conto “Cais do Sodré”, passando pelo estudo, como sucede com a personagem inominada do conto “Nina”, que migrou para estudar agronomia, até um simples desejo de ampliação de novos horizontes, como era o projeto de Rolando, ou ainda por razões socioeconómicas. Partindo, porém, as personagens anseiam sempre pelo regresso à pátria; por isso, as suas vidas tornam-se existências divididas entre a adequação cultural ao novo espaço e os valores culturais da terra de origem. Os conflitos são múltiplos, como por exemplo a apropriação de conceitos e costumes locais para se adaptarem àquele meio que possivelmente lhes concederá novas perspetivas do mundo. Neste contexto de apreensão do “outro” e de outros lugares, quando retornam ao seu lugar de origem, já não são exatamente as mesmas pessoas que partiram, uma vez que já se expuseram ao contacto com o diverso.

Simbolicamente, as ilhas são universos em miniatura que compõem um arquipélago, cosmos mais alargado formado por ilhas-retalhos que eclodem e se dispersam sobre a vastidão líquida. Neste panorama, a dispersão dos ilhéus por outros universos em busca de sobrevivência transforma as suas emoções em retalhos de vidas semelhantes ao arquipélago do qual abdicaram. Ao emigrarem ocorre uma rutura emocional com esse espaço de pertença, com as suas afeições, com a sua cultura, e assim a recomposição dos estilhaços emotivos parece ser restabelecida apenas pela conservação ou pela persistência do passado armazenado na memória; é o que se verifica em Andresa, personagem do conto “Cais-do-Sodré”, na personagem anónima do conto “Nina”, nas relembranças post mortem da personagem Rolando do conto “Rolando de nha Concha” e nas reminiscências saudosistas de Baltasar do conto “Salamansa”.

Sobre a questão da reintegração parcial dos estilhaços emocionais dos emigrantes cabo-verdianos sugerida neste artigo, Santo Agostinho (354 d.C.) vem auxiliar a compreensão de tal proposição quando argumenta em Confissões (397-398) que a memória é o recetáculo dos conhecimentos adquiridos, funcionando como um “ventre da alma” (2020, X, p. 14). Nos contos de Orlanda Amarilis esse “ventre-alma” agostiniano agrega todas as lembranças do pretérito afetivo e cultural das ilhas, que é retomado para servir de suporte emocional à comunidade migrante cabo-verdiana, que utiliza essas reminiscências para mitigar a saudade da terra e daqueles que lá ficaram.

As conceções filosóficas do século IV sobre a memória conectam-se às perceções modernas, nomeadamente na discussão envidada por Henri Bergson (1859-1941) em Matéria e Memória (1996), onde refere uma memória retentiva, como fez Santo Agostinho, ou seja, uma memória de conservação e de persistência de todas as ações e afeições, de todas as suas manifestações e do modo de ser. Para além das analogias desenvolvidas a partir das conceções filosóficas agostinianas, Bergson acrescenta que a memória é propriamente espiritual, existente sob a forma de lembranças independentes. Sob esse aspeto, o filósofo francês realça a importância do passado numa ordem primeira porque a memória advém do passado, como pondera em Matéria e Memória: “a memória não consiste, em absoluto, numa regressão do presente no passado, mas, pelo contrário, num progresso do passado ao presente” (Bergson, 1999, p. 280).

Os contos de Amarilis permitem a perceção de que a viagem pode transformar o quotidiano espacial do migrante. Porém, devido às memórias reintegrativas, as relações afetivas com o seu lugar de origem não sofrem mudanças, mesmo que tenham sido estilhaçadas pela separação. Por isso, os migrantes que transitam pelo Cais do Sodré procuram no outro traços que os façam recordar a Terra-Mãe e tudo o que dela emana, como as alegrias, os afetos, os amores e os dissabores, bem como as lendas, suturando esses sentimentos rotos ou fragmentados com fios da memória, elo que une os retalhos das emoções divididas pela diáspora. O aspeto da junção de sentimentos é trabalhado na trama urdida no primeiro conto, “Cais-do-Sodré”, onde a protagonista, Andresa, rebusca no “ventre da alma” agostiniano traços que a liguem aos seus conterrâneos. Ao observar o comportamento da mulher sentada ao seu lado na gare do Cais, Andresa tem quase a certeza de que a “figura seca de carnes sentada a seu lado” (Amarilis, 1974, p. 9) é gente da sua terra porque retira da sua memória momentos vividos na terra natal para recompor as lendas da família Simão Filili em São Vicente, contadas pela sua antiga criada, Bia Antónia. A narrativa sobre Tanha Filili é reunida pelos micropontos das lembranças guardadas na memória da terra cabo-verdiana com tamanha nitidez que “Andresa relembra esses sucedimentos e afigura-se nunca terem acontecido, tanto mais, mal assistira a eles” (Amarilis, 1974, p. 20). No presente, Andresa redescobre o amor que a liga à sua terra por meio da memória espiritual de que fala Bergson, eclodindo assim os sentimentos que estavam impressos nas franjas da cultura da familiaridade e da afeição intrínseca aos cabo-verdianos migrados.

Nem sempre o afeto, o amor, a ligação, a ternura ou o envolvimento são nítidos na mente de quem teve as suas raízes culturais e afetivas rompidas; por isso, é necessário um esforço para afastar o esgarçamento e a opacidade das muitas lembranças acumuladas na memória. Note-se que as recordações fisionómicas do narrador-personagem de “Nina”, segundo conto do livro Cais-do-Sodré Té Salamansa, são nebulosas e confusas. Na sua ânsia de retomar um passado em permanente latência, subjugado pela distância temporal, a personagem confunde uma jovem que se encontra em trânsito pelo cais com Nina, uma mulher branca com quem ele, o mestiço migrante, tivera um efémero e tumultuado caso de amor. Ao ver a moça parecida com Nina, o narrador-personagem recorda-se dos aspetos vividos naquele tempo com um misto de indignada saudade: “Nina pusera-o knock-out, pensa, revendo a cena da gare. Não lhe permitira a aproximação, sequer, do mundo diferente a que ela pertencia agora. (…) Nunca casaria com ele. Aborrecia-a a ideia de vir a ter filhos de cor” (Amarilis, 1974, p. 29). Apesar de compreender parte da rejeição sofrida no passado, o narrador-personagem restabelece por meio da memória de factos do passado a sua identidade mestiça, que se encontrava em desajuste com o espaço territorial e mental, quando uma colega lhe pergunta: “Nina? Qual Nina? A Nina das pândegas, das gargalhadas intempestivas, a dos cigarros fumados a meias, ou aquela, a tal da gare, senhoril, de riso incolor e distante? Tão distante como tudo a separá-los já um do outro” (Amarilis, 1974, p. 31). Como se de repente acordasse de um entorpecimento onírico, o questionamento da colega fê-lo reviver a juventude de pândega com amigos e uma paixão não correspondida na também já distante mocidade.

No conto “Rolando de nha Concha”, o protagonista, Rolando, é um ilhéu jovem que foi vitimado por um acidente. Morto, retoma a sua vida caótica em flashback, tendo a possibilidade de rever lugares e paisagens da sua infância. Essa insólita personagem assemelha-se a Brás Cubas, autor defunto machadiano que deixa como legado toda uma obra literária escrita post mortem. No caso de Rolando de nha Concha, ao invés de deixar uma obra como espólio de uma vida, deixa como legado um testamento da sua morte em que relembra o passado, descrevendo com riqueza de detalhes a sua participação no seu próprio velório e sepultamento:

Levaram-no. Adivinhava bem por onde iam passando. Via tudo claro, nítido, tal qual se fosse em passeio despreocupado, como lhe acontecia, vezes sem conta, pela fresca da manhã. (…) Quantas coisas esquecidas até então, surgiam à tona nem ele sabia porquê. (…) Sentiu-se levado de novo. A cantilena recomeçou, baixinha e cadenciada. (…) Esse ruído monótono começou a incomodá-lo. (Amarilis, 1974, pp. 45-46)

Preso à memória de uma identidade cultural, Rolando resiste a deixar a vida, veementemente. Somente dá conta do seu passamento quando a tampa do esquife é fechada sobre o seu corpo. Nesse processo de autoconsciencialização, Rolando adere ao desespero da sua mãe nha Concha e ambos gritam: “Não, não, não!” (Amarilis, 1974, p. 53).

Os problemas inerentes à emigração eclodem na personagem inominada que lança mão de subterfúgios para negociar uma relação de pertença ao espaço onde está inserida, como pretende a protagonista do conto “Desencanto”. Mestiça invisível, apenas “uma escriturária de segunda classe” (Amarilis, 1974, p. 58), que, em contrapartida, possui “boa apresentação e umas arranhadelas de francês e de inglês” (Amarilis, 1974, p. 59). Com um propósito de aculturação, tenta estabelecer um pacto identitário com os novos conhecidos na gare porque entende ser esse um dos processos de ascensão social. A adesão ao cumprimento, quiçá lisboeta, “Bom dia. Passou bem?” manifesta a unilateralidade do pretenso acordo firmado unicamente pela inominada personagem. Esse detalhe repetido sempre que encontra um novo conhecido na gare, talvez seja a única e possível adequação à nova sociedade à qual gostaria de pertencer. Contrário ao que é do conhecimento geral, o contrato social que deveria ser “assinado” por ambas as partes é logo desconstruído pela compreensão da própria personagem sobre a sua intrínseca condição de migrante: “Encruzilhada pela qual tem que escolher. Sempre a fugir de andar com os patrícios de cor para não a confundirem e afinal é um branco que lhe vem lembrar a sua condição de mestiça” (Amarilis, 1974, p. 64).

Para além do estabelecimento da memória cultural do seu povo, os contos de Orlanda Amarilis constituem-se como uma produção simbólica que se concretiza em laços de solidariedade por meio da interlocução de múltiplas vozes, variando em amplitude e intensidade emocional. O espaço onde transita a comunidade daqueles que decidiram não emigrar é a praça Salamansa, a “praça-sabe-mundo” na ilha de São Vicente, e é a partir desse universo que os contos “Rolando de nha Concha”, “Esmola de Merca”, “Pôr-de-Sol” e “Salamansa” tomam forma, discutindo os problemas daqueles que insistiram em ficar na sua amada Mãe-Terra ou não tiveram oportunidade de migrar.

O primeiro vínculo simbólico da memória entre os cabo-verdianos no conto “Esmola de Merca” é sem dúvida o mapa mental que recria quadros de abundância na ilha de pertença. O outro laço é o das múltiplas vozes de solidariedade expressas na dolorosa observação da personagem Titina sobre os deserdados da economia, principalmente as mulheres que se enchem de orgulho pela esmola recebida. Dentro desse mundo de dependência económica, sobressai a dependência emocional por meio da conduta da colega Julinha, que aceita a subserviência sexual do colonizador casado com mulher oficial em Lisboa. Envergonhada, Titina não enfrenta Julinha, apenas estabelece um pacto solidário, lamentando tão-somente que ela “Estivera metida com aquele nhambabo lá em cima. Aos beijos, com certeza. Pois, claro. Ela não trazia nem sombra de pó-de-arroz nem de baton” (Amarilis, 1974, p. 86).

O conto “Pôr-de-Sol” trata da corrupção operada pela alta cúpula de negociantes no Mindelo e, dentro desse contexto, um sentimento de migração reversa é destacado. Em virtude dos seus negócios escusos, Candinho e o judeu Muntel foram presos, levando a que outros praticantes das mesmas contravenções, como Sequeira, ficassem em estado de alerta. A prisão desses dois comerciantes sem acusação formal causou comoção na cidade; no entanto, tudo fica sob suspeita até ao momento da libertação. Tão logo souberam do desembaraço prisional de Candinho e do Senhor Muntel, os cidadãos mindelenses, que sentiam o mesmo pecado a corroer o juízo, correram para lhes prestarem solidariedade. Durante o oferecimento dos acepipes regados a vinho em casa de Candinho, fica claro que a honestidade dos negociantes era frágil e inconsistente. Devido à debilidade moral que cercava esse grupo, outros convivas apontavam-se mutuamente o dedo implacável da culpa. Assim, mesmo em face da escancarada contravenção praticada pelo empresário Candinho com a conivência dos demais, é o estereótipo do povo judeu há muito arraigado no inconsciente coletivo que é posto em evidência. No diálogo que Damata e Lelona entabulam quando vão prestar solidariedade aos recém-libertos, Lelona acha que os dois têm culpa, facto que para Damata é uma certeza diante da nacionalidade judia de Muntel: “Bem, o senhor Muntel é judeu e basta. Não têm vergonha na cara. Têm-na forrada de lata” (Amarilis, 1974, p. 96). “Os judeus são espertos como o diabo” (Amarilis, 1974, p. 107). Já o mau caráter de Candinho por ter escondido o milho dos ilhéus em tempo de escassez para aumentar o preço é relativizado primeiro pela enganosa honestidade de Candinho, depois pela sua autobenevolência em prol do povo, enaltecida por ele próprio:

Olha, Damata, parece-te que eu seria capaz de esconder a comida para deixar de encher a barriga do nosso povo? Parece-te? Tu sabes bem, Damata, e não o podes negar. Eu pago melhor do que os outros quando há descargas e eu, e eu, sim, eu - a voz tornou-se-lhe firme - todos os sábados dou esmola à minha porta a mais de trinta pessoas. (Amarilis, 1974, p. 101)

Desse modo, fica claro que, em determinadas coletividades, a honradez se processa apenas pelo desejo impresso na memória daqueles que vilipendiam o povo menos afortunado, afastando deles o que realmente seria importante para o conjunto da sociedade menos favorecida.

O conto que põe termo às estórias de Cais-do-Sodré Té Salamansa é “Salamansa”. Narrado sob a perspetiva daqueles que ascendem socialmente através de uma migração interna, o conto apresenta Baltasar, seu protagonista, como uma pessoa que, ao casar-se com uma moça respeitável, teve acesso às benesses do mundo globalizado, o que o fez esquecer-se da prostituta Linda, o seu primeiro amor da juventude em São Vicente. Porém, as reminiscências do passado são acionadas pelo aroma dos jasmineiros do seu jardim, o que permite a Baltasar recordar-se do seu relacionamento com Linda. Assim como a madeleine foi o gatilho que transportou a personagem proustiana de No Caminho de Swann até à sua infância, o aroma do jasmim foi o gatilho que acionou a memória involuntária de Baltasar de volta à juventude. Com o espírito a passear entre as ilhas de São Vicente e São Tomé, Baltasar recompõe as badernas em Salamansa e principalmente “Recorda-se destes factos e afigura-se-lhe desejar o corpo de Linda como há vinte anos” (Amarilis, 1974, p. 119). Baltasar deixou-se levar pelo aroma do jasmim e o seu espírito (inconsciência) ultrapassou barreiras temporais levando-o a reviver coisas que aconteceram há vinte anos, visto que, como assegura Bergson, “a memória não está ao serviço da consciência; ela é a própria consciência, como acúmulo do passado” (Bergson, 1999, p. 280). O acúmulo de passado trouxe à tona todas aquelas estórias, e de repente Baltasar, movido pelas reminiscências da juventude, concluiu que “Era capaz de fazer alguma tolice se encontrasse a Linda de novo” (Amarilis, 1974, p. 122).

3. Do desencanto

Resultante da fragmentação geográfica, socioeconómica e humana expressa na ideia de vidas em retalhos ancoradas em territórios dispersos, refletir sobre a noção de desencanto remete-nos, inevitavelmente, para o conceito que lhe subjaz - a ilusão. Desta forma, o desencanto e a ilusão funcionam como uma dupla que interage sob o efeito direto de causa-consequência, uma vez que, para que o desencanto exista, é necessário que a ilusão se tenha antecipado aos acontecimentos que, eventualmente, possam determinar e conduzir ao desencanto. Nesta circularidade, integram-se também os sete contos de Orlanda Amarilis que, curiosamente, são intersetados pelo conto número quatro intitulado “Desencanto”, cuja ação se passa em Lisboa. De assinalar igualmente que o espaço físico onde decorre a ação dos contos se divide entre Lisboa (três contos: “Cais do Sodré”, “Nina” e “Desencanto”) e Cabo Verde (onde se situa a ação dos quatro contos restantes: (“Rolando de nha Concha”, “Esmola de Merca”, “Pôr-de-sol” e “Salamansa”). A estrutura que o livro apresenta já por si conduz o leitor à ideia de desencanto em ambos os sentidos, isto é, em Cabo Verde e em Lisboa, implementando uma viagem circular onde impera o desencanto depois de alguma ilusão, prévia ao momento decisivo da partida para outros lugares que, no caso concreto do livro de Amarilis, é a cidade de Lisboa. Consequentemente, regista-se uma insatisfação permanente no espaço físico e social onde as personagens dos contos se movimentam, resultando no desencanto que as assiste como consequência de vidas em retalhos, de vidas que não se conseguem congregar emocionalmente nos espaços físicos e sociais que percorrem. Saindo de Cabo Verde com todas as ilusões de quem opta por procurar o que não tem, cedo se consciencializam de que também não foi a saída que lhes proporcionou a tão almejada melhoria de vida. Na verdade, a fragmentação parece dispersar-se ainda mais quando acentuada pelas memórias que estilhaçam a existência de quem não pertence a lado algum. No entanto, a respeito das personagens femininas de Amarilis, Santilli afirma:

As mulheres de Ilhéu dos Pássaros parecem seguir, pois, certas pegadas de suas antecessoras de Cais-do-Sodré Té Salamansa, na medida em que mantêm vivas as raízes cabo-verdianas, quer houvessem sido fadadas ao insulamento definitivo, quer se deixassem levar nas correntes do mundo por um vapor qualquer. (Santilli, 1985, p. 110)

Santilli esclarece ainda que é o que acontece com “Andresa, a emigrada de ‘Cais-do-Sodré’, que enquanto quer desvencilhar-se da viajante conterrânea em Lisboa, se sente atraída pela força das raízes comuns com ela” (1985, p. 110), palavras que atestam a condição de vidas em retalhos que conduz ao desencanto vivido ao longo dos contos que compõem Cais-do-Sodré Té Salamansa. Este desencanto está espelhado sobretudo no quotidiano da mulher cabo-verdiana nas ilhas e no quotidiano da mulher que emigra, implementando, desta forma, a circularidade da resistência da mulher cabo-verdiana perante as adversidades a que está sujeita dentro e/ou fora das dez ilhas.

Como já anteriormente referido, o conto “Desencanto” acontece em Lisboa; ao longo da narrativa, a personagem principal, a que não é atribuído um nome, partilha reflexões sobre a sua condição de mulher cabo-verdiana a viver em Lisboa. Paralelamente, pensamentos sobre a possibilidade de um regresso a Cabo Verde desinquietam o seu espírito para logo a seguir a fazerem sentir que o regresso à ilha seria tempo perdido:

Sempre as mesmas caras todas as manhãs. Sempre as mesmas. Mas nada têm de comum com tudo para trás com tudo na vida de nómada levada desde que abandonou os estudos. Desde aquele dia soalheiro mas de uma incerteza tão grande tão dorida de como poderia continuar a ver o mundo com os olhos dos outros. Pensara em voltar. A madrinha bem a aconselhara. Não. Não podia ser. Ter de se adaptar de novo começar tudo de princípio. Como se fosse possível uma coisa assim. (Amarilis, 1974, p. 58)

De facto, o regresso a Cabo Verde não faz parte do mundo encantatório desta personagem sem nome, cujas particularidades presentificam e universalizam sentimentos comuns a quem se reparte por entre as margens de múltiplas existências. Neste contexto narrativo-monológico, a personagem como que pré-anuncia o desencanto sentido também pela possibilidade remota de um regresso a Cabo Verde, questionando-se: “Voltar para quê? Para vegetar atrás das persianas da cidade parada e espreitar as mulheres trazendo água do Madeiral em latas à cabeça ou os homens puxando as zorras com os sacos para a casa Morais?” (Amarilis 1974, p. 58).

Ao som do barco que “geme nas ilhargas e avança seguro no nevoeiro” (Amarilis 1974, p. 62), a personagem do conto “Desencanto” viaja também embrenhada na memória que “remexe teimosamente as lembranças de esquecer” (Amarilis 1974, p. 62), como aquela memória do bufo que persiste:

O Bufo era casado. Vejam lá. Ligada a um homem casado e ainda por cima Bufo. Até dá vontade de rir. Se pudesse limpar da cara a sensação das carícias que ele lhe fazia. Costumava passar-lhe a mão pela face e perscrutar-lhe bem fundo nos olhos à espera de não sei quê. Malandro. (Amarilis, 1974, p. 63)

Vivendo numa encruzilhada de vidas, caminhos, pessoas e refúgios, sempre a fugir dos seus patrícios é, como já referido, o sussurro de um branco que lhe aviva de novo a memória, transportando-a incondicionalmente para a realidade da sua condição de mulher mestiça apensa ao estatuto de nómada, “cigana errante” (Amarilis, 1974, p. 64) e solitária:

O homem do chapéu preto está junto dela. Pressente-o pelo faro que já tem dessas aproximações. Um sussurro fá-la estar atenta. “Estás bom, pá?” “Malandro, estás a fazer-te para a mulata.” Riem baixo e esse riso é uma afronta. (Amarilis, 1974, p. 64)

O conto “Desencanto” apresenta-se como o trampolim para os três contos seguintes, a saber, “Esmola de Merca”, “Pôr-de-sol” e “Salamansa” onde a deceção se constitui como uma presença indelével. Neste sentido, a representação de estranhezas que não se entranham, de existências flutuantes e nacadas como a geografia das ilhas traduz-se na expressão da crioulidade mediante a fusão do natural com o sobrenatural (veja-se a título de exemplo o conto acima referido “Rolando de nha Concha”) em conjugação com a crítica social e racial, circunscrita, sobretudo, pelo olhar feminino - na verdade, só no conto “Nina” a ação se concentra em torno de uma personagem masculina. Se anoção de vidas retalhadas é apanágio dos contos de Amarilis, a ideia de desencanto dentro e fora das ilhas caboverdianas complementa a frustração sentida pelas personagens amarilianas.

Os questionamentos que surgem do encontro do “eu” com o “outro”, a representação do feminino no exílio, a memória também assente na oralidade presente nos encontros e desencontros e o falso esquecimento são alguns dos aspetos que Orlanda Amarilis apresenta na sua escrita, a escrita de uma cabo-verdiana atenta e entendedora da diáspora da mulher cabo-verdiana.

Incidindo a sua atenção na condição humana e nos problemas reais que afetam a vida das mulheres cabo-verdianas, Orlanda Amarilis esteve vinculada à revista Certeza (1944-45), editada em Cabo Verde, inspirada no neorrealismo português e brasileiro. Optando pelo conto como género narrativo, neste livro Orlanda Amarilis constrói existências à margem, em vidas de retalhos e desencantos sustentados por um delicado fio circular que une todas as personagens dos contos como se fossem missangas - todas diferentes, mas suspensas pelo liame que une existências à margem.

4. Considerações finais

Distanciados da ideia de final feliz e retratando vidas em retalhos, os contos de Amarilis propõem paradigmas de frustração e desencanto povoado por personagens deslocadas do seu contexto sociocultural, por outras que não tiveram possibilidade de sair das ilhas e ainda por aquelas que saíram e regressaram já “outras”. Em todos os casos, a existência de carências e deceções advindas da excisão espiritual e cultural de quem não pertence a lado nenhum é categórica para quem ficou, mas queria partir; para quem partiu, mas quer regressar; ou ainda para quem regressou, mas já não se sente pertença daquele lugar. A excisão que acompanha as personagens de Cais-do-Sodré Té Salamansa é representativa do desencanto de vidas em retalhos assentes em existências fragmentadas como as próprias ilhas, traduzindo-se na expressão da crioulidade em conjugação com a crítica social e racial projetada, essencialmente, através do olhar feminino das personagens principais. Por outro lado, o rastreamento da memória que os contos de Orlanda Amarilis apresentam permite compreender os conflitos dos ilhéus dispersos pelo continente e também daqueles que não migraram. Esse processo aclara a compreensão das inquietações existenciais das personagens que estão conectadas apenas por laços emocionais que foram atados ao passado e conservados pela memória cultural, familiar ou fraternal que os auxiliam emocionalmente nos espaços para onde foram deslocados.

A ideia de circularidade instituída pelo título encerra em si viagens circunscritas entre dois espaços físicos, dois mundos diferentes, dois não-lugares que convocam resgates através da memória coletiva e individual. Na sequência da ideia de círculo, tal como as ilhas que fisicamente se encerram em si, as personagens dos contos constituem-se como forças centrípetas que, tal como o espaço ilha, confluem para a interioridade da existência de vidas fragmentadas refletidas na duplicidade do desencanto que assiste os que partem, os que regressam e os que ficam, cujas personagens, exiladas em si mesmas, flutuam na liquidez espacial como ilhas.

Referências bibliográficas

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Santilli, M. A. (1985). Africanidade (Africanity). Editora Ática. [ Links ]

Santo Agostinho. (2020). Confissões (Confessions). Editora Petra. [ Links ]

Recebido: 05 de Dezembro de 2022; Aceito: 30 de Dezembro de 2022

Susana L. M. Antunes. CIÊNCIA ID: https://www.cienciavitae.pt/portal/BE11-8456-949A

Maria C. O. Guimarães. Investigadora Colaboradora, Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES), Ministério da Educação, Brasil. Investigadora Colaboradora, Universidade de Lisboa, Faculdade de Letras, Centro de Literaturas e Culturas Lusófonas e Europeias (CLEPUL), Portugal.

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