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Relações Internacionais (R:I)

versão impressa ISSN 1645-9199

Relações Internacionais  n.21 Lisboa mar. 2009

 

Barack Obama vs as guerras da Ásia Ocidental

Manuela Franco *

 

Ao vencer a mais longa campanha eleitoral na história da nação americana, Barack Obama conquistou o direito a gerir um momento de desafio severo às capacidades de poder e influência dos Estados Unidos. Trinta dias após a sua tomada de posse como 44.º Presidente dos Estados Unidos da América, este artigo propõe um tour d’horizon da política externa dos Estados Unidos perante as sérias ameaças à segurança nacional e internacional a emanar da Ásia do Sudoeste e da Ásia Ocidental.

Palavras-chave: Barack Obama, Ásia do Sudoeste, Ásia Ocidental, Médio Oriente

 

Barack Obama vs the wars of West and Southwest Asia

As the winner of the longest electoral campaign in American history, Barack Obama has also won the right to lead the nation through a period of severe challenges to the US power and world prominence. One month after his inauguration as 44th POTUS, as the new Administration is refocusing US foreign policy, this article goes through the proverbial tour d’horizon of the serious threats to national and international security coming out of West and Southwest Asia.

Keywords: Barack Obama, Southwest Asia, West Asia, Middle East

 

Ao vencer a mais longa campanha eleitoral na história dos Estados Unidos, Obama conquistou o direito a gerir um momento singularmente difícil, um momento de desafio severo às capacidades de poder e influência dos Estados Unidos. Trinta dias após a tomada de posse do 44.º Presidente dos Estados Unidos da América é obviamente impossível qualquer análise crítica da política externa da nova Administração. Mas há já algumas indicações, e este artigo arrisca-se ao proverbial tour d’horizon.

Com os Estados Unidos envolvidos em duas situações de guerra no Afeganistão e no Iraque, as ameaças mais sérias à segurança nacional e internacional emanam da Ásia do Sudoeste e da Ásia Ocidental. A vizinhança reúne um grupo de estados que não querem, não podem ou não conseguem sanar os conflitos armados e a dissensão civil. Al-Qaida, Taleban, Hezbollah e Hamas são os nomes mais conhecidos de organizações militantes armadas, apostadas em instaurar a lei islâmica e dizimar os seus inimigos, isto é atingir os Estados Unidos, os países da Europa, Israel, Rússia, China, Índia, Indonésia. O Paquistão acolhe uma larga variedade de organizações e grupelhos jihadistas direccionados contra a Índia e contra as forças americanas e a NATO no Afeganistão; e a sua condição de potência nuclear sublinha bem o calibre dos riscos envolvidos, tanto mais quanto hoje se tornou evidente a penetração do Exército paquistanês por estas correntes. O Irão perfila-se como (provavelmente) a segunda nação muçulmana a adquirir armamento nuclear. A determinação de Jerusalém de impedir a concretização deste programa nuclear leva o aparelho de segurança americano a prever fortes probabilidades de crise ou confronto em 2009 entre Israel e o Irão. Nas semanas anteriores à sua tomada de posse, a Guerra em Gaza, ao trazer a terreiro o confronto geopolítico invocado pela aliança entre o Hamas e o Irão, que nem os Estados Unidos nem os estados árabes da região podem ignorar, mostrou as severas limitações a qualquer acordo na frente ocidental.

E a agenda política dos próximos meses não abre esperanças de détente: o mandato de M. Abbas como Presidente da Autoridade Palestiniana (AP) acabava a 9 de Janeiro, estando assim mais precária a sua já fraca posição. No início de Março, a Agência Internacional de Energia Atómica (AIEA) tomará posição sobre o dossiê nuclear iraniano. Em Maio, o Líbano deverá ir às urnas, com resultados imprevisíveis, sobretudo do ponto de vista dos equilíbrios regionais, uma vez que o Governo de Siniora que, apesar de tudo, tem conseguido manter um razoável impasse entre as diversas facções libanesas, pode ser substituído por alguém menos empenhado na independência do Líbano, encorajando os radicais e subindo o nível de ameaça na fronteira norte de Israel. Em Junho, eleições presidenciais no Irão. Ainda em 2009 espera-se um referendo no Iraque, sobre o acordo de segurança com os Estados Unidos, e as crises de sucessão no Egipto e na Arábia Saudita espreitam.

 

O TEMA ISLÂMICO

O nível de intensidade com que a ameaça é sentida em Washington é palpável. Assim o denota a repetição do tema, omnipresente desde o dia primeiro. Declarando no discurso inaugural que «A nação americana está em guerra contra uma vasta rede de violência e de ódio», Obama fez sua a guerra contra o terror e elevou os desafios do mundo islâmico à segurança americana e ocidental a categoria principal. Lá em cima, junto à crise económica. Aliada à prioridade do diálogo e da reconciliação com o mundo muçulmano veio a promessa de que os Estados Unidos não se escusarão a assumir posições fortes com os que não quiserem «descerrar o punho».

Nos dias seguintes, Obama procedeu de imediato à nomeação de um enviado especial para o Médio Oriente e de um representante especial para o Afeganistão e Paquistão. A sua primeira grande entrevista foi para a cadeia de televisão Al Arabyia (saudita, note-se, e rival da Al Jazzeera, sediada no Qatar, emirato actualmente alinhado com a «frente pró-iraniana» e que acolhe uma base americana). Várias vozes autorizadas da Administração anunciaram a política de diplomacia directa com o Irão, código para contactos públicos de alto nível, sendo diversas as nuances de condicionalismo (desde descerrar o punho até renunciar ao enriquecimento de urânio e ao fomento do terrorismo). Obama, na sua primeira conferência de imprensa, deu por adquirido que o Irão está a desenvolver armas nucleares, e reiterou o interesse em usar plenamente a via diplomática, declarando porém inaceitáveis o financiamento do terrorismo e o disparar de uma corrida às armas nucleares na região. A política da boa fé foi reiterada na 45.ª Conferência de Munique pelo próprio Vice-Presidente Biden, que propôs à Rússia «recomeçar do zero». A secretária de Estado Clinton fez a sua viagem de estreia pela Ásia, com escala na Indonésia para convidar os muçulmanos não árabes ao diálogo político.

 

A MÃO ESTENDIDA

«As pessoas estão de novo entusiasmadas com os Estados Unidos. Vêem-nos a cumprir a nossa promessa e o nosso potencial e a voltarmos a ser um símbolo de liderança e esperança para o resto do mundo. É certo que as expectativas estão extraordinariamente elevadas mas a boa vontade e o desejo de parceria estão realmente presentes […] O perigo é o mundo esquecer que os Estados Unidos são os Estados Unidos e que, como qualquer outro país, temos os nossos interesses nacionais e não podemos – nem seria sensato tentar – ser ou fazer tudo o que todos esperam de nós. O que o Presidente Obama traz é uma perspectiva e uma compreensão diferentes e que consiste em saber que, muito frequentemente, os interesses americanos serão melhor promovidos trabalhando em conjunto com outros, procurando construir pontes e relações de cooperação. A maior parte das vezes não se trata, nem se deveria tratar de "nós contra eles". Assim, iremos estender a mão e esperar que outros façam o mesmo. […] Não iremos comprar brigas desnecessárias, não procuraremos o confronto pelo confronto. Queremos imprimir um tom muito diferente e dizer ao mundo que a América está de volta e que queremos liderar de forma que mereça confiança e respeito. […] Penso que qualquer análise objectiva indica que os EUA passaram uma fase em que muita gente, por esse mundo fora, perdeu confiança nas nossas intenções e na nossa liderança. A questão é se essa mudança de percepções sobre os EUA vai perdurar ou se conseguimos mudar e ver a nossa liderança ser de novo bem recebida e acatada?»[1]

Estas palavras de Susan Rice, a representante permanente dos Estados Unidos nas Nações Unidas, dão um perfeito instantâneo das ideias orientadoras da nova equipa em Washington. Susan Rice, que agora tem assento no Governo americano, foi uma das mais próximas conselheiras do candidato Obama. Académica e com prática governativa na Administração Clinton, pode ler-se como voz autorizada, alguém muito próximo do pensamento do Presidente.

Barack Obama entrou em cena em ombros, com a enorme popularidade da promessa de «domesticar» a onda de mudança que varre o mundo e que o levou à Casa Branca. A sua eleição como primeiro Presidente negro dos Estados Unidos é, em si mesma, um factor dinâmico, de enorme impacto político, tanto nacional como internacional. Com o país em guerra e a tremenda contestação à Administração Bush e à sua política externa, os debates entre os candidatos à Presidência dos Estados Unidos foram seguidos no mundo inteiro, dando uma ideia de participação «global» e «democrática» na competição eleitoral. Esta novidade trouxe um duplo efeito: consagrou quase «naturalmente» a preponderância da nação americana; e incutiu uma dimensão extra ao cariz estritamente nacional da legitimidade do Presidente eleito. O peso desta dimensão é parte da «mudança» de Obama, e traz uma dificuldade acrescida no gerir dos objectivos contraditórios de manter a primazia dos Estados Unidos no tabuleiro estratégico mundial e de continuar a agradar à plateia global.

Marcada pela dinâmica eleitoral, a nova Administração arrancou com ambição, numa plataforma assente em ideias como «uma nova atitude», uma estratégia anunciada de «restaurar a estatura moral dos Estados Unidos», concretizando-se muito em função das deficiências atribuídas à Administração Bush: regresso ao multilateralismo, retirada do Iraque, nova atitude perante a Rússia, disponibilidade para diálogos sem condições com adversários tradicionais como o Irão ou Coreia do Norte, novas aberturas quanto à questão palestiniana, ao Paquistão e ao Afeganistão.

 

MARGEM MUITO CURTA

Entretanto, a realidade começa a reclamar os seus direitos. O «palco» onde Obama chega está marcado de forma incontornável pelo comeback da China e do islão às políticas de potência. A deslocação do centro de gravidade da economia mundial para o Pacífico e o nascer de uma segunda idade nuclear na Ásia abalam o sistema internacional. E aqui reside parte da mudança em que precisamos de acreditar: a dupla ameaça à primazia económica da zona euro-atlântica e a três séculos de superioridade militar ocidental.

A crise financeira a ameaçar as economias e a agravar todos os ressentimentos torna as coisas ainda mais cruas. O descalabro do mercado americano interroga directamente a capacidade de liderança, o mérito do modelo, a reputação de probidade e legalidade do sistema da democracia liberal. E, em todo o mundo, as repercussões da crise económica contribuem para a inquietação, a conflitualidade social e fazem cair os governos. Cerca de um quarto dos estados denota já efeitos negativos de instabilidade e mudanças de governo directamente resultantes da contracção da economia internacional. O almirante Blair, o novo «czar» da segurança nacional declarou ao Congresso que a crise económica global e a instabilidade que provoca ultrapassou o terrorismo como a mais urgente ameaça diante dos Estados Unidos.

Neste mundo, não se antevê qual seja a boa vontade capaz de substituir a força como o mais convincente apoio da diplomacia. Para se ser ouvido, tem de se ter peso. Ora, o peso de um Estado vem da sua capacidade de se impor aos demais. Obama terá agora de garantir que tem a capacidade de intervir em prol dos objectivos que defende, começando por diminuir os gastos, reconstituir forças. Daí a ideia de relações de cooperação estratégica: convocar aliados ou parceiros estratégicos, as potências relevantes do sistema internacional ou dos complexos regionais de segurança para um conceito de segurança cooperativa, para trabalhar mais estreitamente, para estabilizar e gerir a segurança global, fomentando a participação estrangeira e a distribuição de tarefas, de esforços… e de despesas. A Administração parece de momento querer acreditar que mediante a autolimitação e a prudência no uso do poder americano induzirá também a Rússia e a China à cooperação estratégica.

O problema com as visões elevadas do exercício político da superpotência é partir do princípio que essa predominância é um facto aceite. Ora esse facto é justamente o principal modificador dos cálculos de interesse nacional dos demais actores principais no sistema. A estes ocorre de imediato o velho arquétipo do lobo debaixo da pele do cordeiro e, logo, a pergunta principal: qual é a troca? E, de seguida: como alcançar a maior margem de manobra possível, como reduzir o poder e capacidade de comando dos Estados Unidos, na vizinhança, na região e no mundo?

É pueril – para não dizer irresponsável – pensar que uma instância de poder e violência como é qualquer Estado constituído se pode apresentar entre os seus pares prescindindo das prerrogativas do seu estatuto. Em instâncias de poder não há meio-termo. A força tem de ser usada para criar ordem. E se não o for, outros usarão imediatamente a oportunidade para avançar: primeiro concretizarão os interesses, depois tratarão de impor a sua própria ordem.

Não foi preciso esperar muito para que os desafios surgissem: a Rússia, o Irão e o Paquistão apresentaram rapidamente novidades que só podem ser vistas como de «marcação». Aos anúncios da bondade da nova Administração, incluindo até a «esperança de negociar um acordo de desarmamento nuclear que reduzisse os stocks em 80 por cento», a Rússia respondeu avançando com o programa de construção de bases militares nos territórios que ocupou na Geórgia, fazendo ruídos de fraco entusiasmo quanto a novas sanções contra o Irão, e, sobretudo, «ajudando» o Quirguistão a fechar a base de Manas, a única de que os Estados Unidos ali dispunham para serviço às suas Forças Armadas no Afeganistão. Depois de assim interferir numa das principais vias de abastecimento às tropas americanas, a Rússia veio, magnânima, permitir aos Estados Unidos a passagem por território russo de provisões não letais, suspensa desde a Guerra da Geórgia do Verão de 2008. Não sendo difícil conceber que a Rússia tenha interesse em contribuir para a derrota dos Taleban, é bastante mais fácil de imaginar o preço que estará disposta a exigir a Obama para tal colaboração: por exemplo, um recuo firme na linha da Europa Oriental? Na presença americana na Ásia Central e nas regiões do Cáspio? Um a zero no Grande Jogo?

E Teerão, terá interesse em contribuir para reprimir a ameaça taleban? Parece ser a esperança do representante especial para o Afeganistão e o Paquistão, Richard Holbrooke que, em Cabul, na primeira visita à região, apelou publicamente à colaboração do Irão nessa tarefa – no exacto momento em que os iranianos anunciavam ter colocado em órbita um primeiro satélite «de fabrico caseiro» de comunicações e observação, notificando assim sobre o avanço certo e seguro em direcção à capacitação nuclear.

Por seu lado, o Supremo Tribunal do Paquistão entendeu levantar a prisão domiciliária a A. Qhan, o pai do arsenal nuclear paquistanês, iraniano e norte-coreano. Para que não ficassem dÚvidas, o Tribunal terá especificado que Qhan pode retomar o seu trabalho «científico», sem dúvida uma contribuição relevante para o mundo da proliferação nuclear.

Há de resto quem aponte o Paquistão como exemplo de que nem Israel nem o Ocidente se devem preocupar se o Irão adquirir armas nucleares, pois até hoje os paquistaneses nunca usaram as suas armas nucleares sendo disso dissuadidos pela Índia e pelo Ocidente? O facto é que desde o primeiro teste efectuado em 1998, já por duas vezes, em 1999 e 2002, o Paquistão provocou a Índia a um despique nuclear. Mais importante será ponderar se – desde que o 11 de Setembro veio revelar quanto a Al-Qaida e os Taleban devem aos serviços secretos paquistaneses – se pode considerar que a capacidade nuclear do Paquistão foi dissuasora de qualquer intervenção dos Estados Unidos nas zonas tribais sob soberania nominal paquistanesa. Apesar de os governos do Paquistão não serem de persuasão revolucionária, é possível argumentar que desde que adquiriu peso nuclear, o Paquistão se vem afastando do Ocidente, ou mesmo que a posse de engenho nuclear veio fortalecer e os jihadistas e mobilizá-los para a tomada do poder.

Por estranho que pareça, persiste a dúvida quanto aos verdadeiros perigos da potência nuclear. Quando a Índia coloca satélites em órbita, o mundo (excepto o Paquistão) saúda o feito científico e o progresso económico; quando a China o faz, também – embora já, admita-se, com ligeiras apreensões; porquê então a leitura negativa quanto ao Irão? A tendência para aceitar como facto inelutável a nuclearização do Irão invoca frequentemente estes exemplos, como também invoca os tempos da Guerra Fria, e os piores momentos de tensão com a URSS. A diferença é que se tratava de potências do status quo. Ou, como diz Kissinger[2], com «analogias de risco mais ou menos comparáveis».

É possível imaginar que, dentro de poucas décadas, qualquer país de riqueza intermédia possa angariar um grupo de cientistas decentes e construir e armazenar mísseis de alcance, poder e fiabilidade consideráveis. É claro que se a proliferação de armas nucleares não for firmemente travada a ideia de um desastre apocalíptico deixará de ser conversa de esotéricos. A vulgarização da tecnologia exige que se desenvolvam maneiras de lidar com os respectivos efeitos desestabilizadores. Não é caso para menos, com armas nucleares a chegar às mãos de países onde o bombista suicida é considerado uma estratégia e onde o juízo de valor sobre a vida humana é aquilatado sobre as gratificações do Além. Acresce que, por via de regra, se trata de sociedades que não dão garantias de segurança na armazenagem desse tipo de armamento. Para Kissinger, aliás, a situação do ponto de vista americano quanto à contenção do Irão, resume-se em três decisões: Quanto tempo há para a via diplomática; Que fazer se o Irão não respeitasse um voto unânime do Conselho de Segurança, com a Alemanha e o Japão, a favor da interrupção do programa nuclear iraniano? Quando decidir que já foram dados todos os passos e que só resta o uso da força?

 

AS PRIORIDADES

Por agora, a dor de cabeça global é o islamismo radical. A essência do extremismo islâmico que rejeita a noção de Estado nacional, as instituições ligadas ao poder representativo e a esfera da liberdade individual, é uma filosofia de aplicação universal que visa todas as instituições, seja do mundo muçulmano, seja do ocidental, e uma ameaça a todos os estados com minorias muçulmanas, ou que tenham (ou pareçam ter) a capacidade de afectar o futuro do almejado califado. Uma jihad bem-sucedida ameaçará amanhã vários países europeus ou a Índia tanto quanto hoje ameaça Israel, pois os 20 milhões de europeus ou os 160 milhões de indianos muçulmanos dificilmente passam tranquilos por uma onda que varre o mundo islâmico e que, em termos políticos, é, acima de tudo, de natureza identitária.

O fundamento da tal «Guerra ao Terror» é a necessidade imperiosa de travar o extremismo islâmico e de demonstrar a sua incapacidade de alcançar os objectivos que apregoa. O Presidente Obama assumiu esta prioridade do seu antecessor, e daqui fluem as prioridades do Iraque, do Paquistão, do Afeganistão e do Irão e do Médio Oriente «clássico».

IRAQUE

Obama prometeu uma retirada rápida do Iraque, a partir de um calendário incondicional – ou seja, mais rápido que o previsto no acordo assinado entre a Administração Bush e o Governo iraquiano. E, a acreditar nas sondagens americanas a Guerra do Iraque está ganha; os republicanos gabam-se, os democratas consentem, mudando o assunto para o Afeganistão. Porém, apesar dos progressos visíveis desde 2006, a situação no Iraque permanece frágil e pode muito facilmente descambar. Os Estados Unidos, e especialmente os militares americanos, serão determinantes para a consolidação dos progressos. A retirada americana vai deixar um Iraque estável e funcional, prosseguindo o seu caminho em direcção a um futuro melhor? Ou deitará tudo a perder, dinheiro gasto, vidas perdidas, caindo em guerra civil, com consequências fatais para o golfo Pérsico e para todo o Médio Oriente?

A guerra não está ganha. Estabilizar o Iraque é uma prioridade vital que não pode ser negociada com outras dentro da área, sob pena de os Estados Unidos ficarem em posição ainda mais vulnerável. Se Obama agora «perdesse» a guerra que foi «ganha» por Bush, decerto se veria em maus lençóis na campanha eleitoral de 2012. No mínimo.

O AFPAK

A avaliação negra da situação de segurança no reino dos Taleban põe a nu as dificuldades que se perfilam diante de Obama que, ainda na campanha eleitoral, categorizou o Afeganistão como ponto focal da sua política externa, esperando-se desde então uma importante transferência de tropas, a retirar do Iraque.

Ora se o problema do Afeganistão é grande, o seu valor estratégico é inferior. A opção no Afeganistão parece ser não deixar que a situação se deteriore abaixo de um determinado nível, mais ou menos equivalente a não perder Cabul. Por um lado, a presença de tropas e os exercícios tanto na segurança como na «construção do Estado» demonstraram não ser possível fast forward as mentalidades e os processos culturais que subjazem a qualquer actividade política. Por outro lado, desde o último ano da Administração Bush que se torna cada vez mais claro que o cerne do problema Taleban, Al-Qaida, proliferação de jihadistas, está no Paquistão. Daí a nova região AFPAK, agora confiada aos cuidados intensivos do representante especial Richard Holbrooke. Segundo a intelligence americana não será possível alcançar melhorias significativas no Afeganistão a menos que o Paquistão assuma pleno controlo das fronteiras, o que se revelará difícil dado que o Governo do Paquistão estar a perder autoridade nos territórios, observando-se que mesmo partes mais desenvolvidas do país caem em poder do radicalismo islâmico. As áreas tribais continuam a albergar a central de comando da Al-Qaida, de que são notícia as baixas resultantes de ataques por aviões operados pela CIA via controlo remoto a partir de bases americanas estabelecidas no Paquistão. Esta «facilidade» concedida aos americanos parece estar a ser compensada com pagamentos vultuosos feitos (tudo indica com dinheiros de origem norte-americana) aos Taleban localizados no vale SWAT, a quem foi também concedida a paz necessária para a instauração da sharia islâmica. Pelo pormenor, vale a pena referir que esta «paz» é assinada sobre a destruição de todas as escolas femininas e sobre a proibição de os barbeiros cortarem um pêlo a qualquer barba. Não se vê como averbar este estado de coisas senão como uma derrota séria.

No momento em que este artigo é escrito a Administração ainda não clarificou os objectivos para a campanha do Afeganistão. Detecta-se já uma nova prudência, com o próprio Presidente Obama a autorizar como «opção cautelar» o envio de menos de metade das tropas pedidas pelas Forças Armadas no terreno; e a tornar óbvio o descontentamento americano com o Presidente Karzai, desafio que a não ser inócuo será ainda mais deletério para a mais que precária situação de Cabul. Aparentemente estaria em curso uma adaptação da estratégia seguida no Iraque: habilitar grupos rivais interessados numa solução «nacional» com dinheiro e armas para guerrearem os «internacionalistas». Ao mesmo tempo, Washington estaria na disposição de aumentar significativamente a assistência não militar ao Paquistão, para 1,5 mil milhões de dólares, sem que no entanto se tenha ouvido ou sabido de exigências quanto ao controlo dos seus serviços secretos, numa espécie de repetição da política seguida nos anos de 1980, quanto os ditos ISI se ocuparam das actividades de contrabando nuclear. Será preciso muito engenho e coragem para inventar maneiras de lidar com o cocktail jihadista no Paquistão, onde misturam grupos anti-Estados Unidos, anti-Israel, anti-Índia, anti-Afeganistão, anti-Irão, anti-Rússia, anti-Uzbequistão e anti-China, todos amigos quando toca a avivar o fogo fundamentalista.

A nomeação do representante especial para o Afeganistão e Paquistão sendo expedita e dando um sinal claro de atenção ao conflito, foi também já marcada por tons negativos: ao ter deixado transpirar que o mandato de Holbrooke contemplaria o assunto da Caxemira, permitiu que se admitisse que lograr um acordo de paz com o Paquistão pudesse contemplar a possibilidade de pressionar a Índia. Graças à forte posição imediatamente assumida pelas autoridades indianas a «ligação» à Índia ficou fora do mandato. No ar ficou a ideia de que apesar das convicções de que altas esferas paquistanesas estavam ao corrente (no mínimo) dos atentados perpetrados em Mumbai, se achou plausível sacrificar um aliado dos Estados Unidos mais depressa que exigir comportamentos de boa fé ao Paquistão.

O IRÃO

Os Estados Unidos teriam muitos ganhos estratégicos se chegassem a normalizar as relações com o Irão, quer nos termos do conflito no Iraque, quer com os Taleban, quer ainda nos conflitos entre a Síria, o Líbano, os palestinianos e Israel. Porém, agora que a questão nuclear se tornou o problema incontornável, a Administração tem por herança trinta anos de recusa iraniana às mais diversas ofertas dos Estados Unidos, abertas ou secretas, de presidentes democratas ou republicanos. Aliás, a mão que Obama estendeu a Teerão no dia da sua tomada de posse foi retribuída com o anúncio de colocação em órbita do primeiro satélite iraniano, o que praticamente garante que o Irão dispõe da tecnologia requerida para operar mísseis balísticos intercontinentais, eventualmente equipados com ogivas nucleares ou químicas.

Mas, para um relato desapaixonado destas dificuldades americanas temos as boas memórias do secretário da Defesa Robert Gates que, em Setembro[3], comentava:

«Há trinta anos que ando envolvido na busca de um iraniano moderado; tem-se revelado fugidio. Participei no primeiro encontro entre um membro do Governo americano e líderes do Governo iraniano. Foi em Argel, em finais de Outubro de 1979. O primeiro-ministro iraniano, o ministro da Defesa e o MNE pediram para se encontrar com Brzezinski que estava em Argel para o 25.º aniversário da revolução argelina. Eu estava com ele e acompanhei-o para fazer o apontamento da conversa. Brzezinski entrou na sala e, basicamente, disse: "Vamos aceitar a vossa revolução, reconhecer o vosso país, o vosso governo. Garantimos a venda do armamento já contratado com o Xá. Temos um inimigo comum, a norte, e, no futuro, podemos trabalhar juntos." A resposta dos iranianos foi: "Dêem-nos o Xá". Cada um repetiu as respectivas posições cinco ou seis vezes e, por fim Brzezinski, levantou-se e disse: "Entregar-vos o Xá é incompatível com a nossa honra nacional". E assim ficámos. Três dias depois, tomaram a nossa embaixada e duas semanas depois aqueles três governantes haviam sido removidos dos cargos.

Desde então, de uma maneira ou de outra, todas as administrações têm procurado estabelecer contactos com os iranianos e todas têm falhado. […] na verdade, neste longo período de tempo, a liderança iraniana tem sido consistentemente inflexível na resposta a repetidas aberturas por parte dos EUA. […] E parece-me que o esforço em que estamos agora envolvidos com os nossos aliados, com a Rússia e com a China, com vista a tentar exercer pressão sobre os iranianos no sentido de eles modificarem a abordagem ao resto do mundo é provavelmente a melhor maneira de alcançar este objectivo. Tenho estado envolvido em conversações com os iranianos. Esta Administração (Bush 44) em 2004, procurou os iranianos e nessa altura houve conversações porque havia alguma ambiguidade sobre se eles estavam ou não a ajudar no Iraque. […] Mas com a eleição de Ahmadinejad e as coisas que diz e as coisas que o Irão continua a fazer, […] não parece ser uma pré-condição irrazoável sujeitar a oportunidade de estabelecer um diálogo de alto nível à disposição de eles pararem o enriquecimento de urânio de uma forma verificável […].»

«Acções concretas» é o desejo que os iranianos não param de repetir, continuando a retórica agravada de exigência aos Estados Unidos que peçam desculpa por todos os «crimes» que cometeram, que retirem de todas as bases do Médio Oriente e de todas as zonas de conflito onde possam estar envolvidos. Teerão pretende colocar em cima da mesa o mapa da região, e sobre ele construir uma nova relação baseada num acordo de repartição de esferas de influência e de interesses. Os iranianos parecem acreditar que ao lançar uma nova batalha põem mais pressão no novo Presidente americano, talvez querendo testar se se trata de um Presidente que faz concessões ao contrário de G. Bush que fazia guerras.

Neste round, a popularidade de Obama propicia um conjunto de reacções diferente; e a mensagem americana aparece refinada: não se move contra o Irão por princípio; apenas quer convidar Teerão a compreender as apreensões internacionais quanto à nuclearização e pretende facultar-lhe a oportunidade de forjar novas relações com os Estados Unidos e os seus aliados. Senão... Então? Washington teria de tomar acção preventiva, nas palavras do Vice-Presidente Biden em Munique, uma posição de resto apoiada por Nicolas Sarkozy e Angela Merkel, percentagem importante do grupo de negociação europeu que propõe ao Irão incentivos para que abandone o programa nuclear.

O Irão considera os incentivos insuficientes, sobretudo por não contemplarem o reconhecimento e a possibilidade do pleno exercício dos seus interesses regionais, e as novas zonas de influência que tem vindo a estabelecer, com tanta despesa e esforço, desde o Líbano à Palestina através do Iraque e partes do golfo Pérsico e do Afeganistão. Ou seja: a região onde melhor se descortinam as aventuras iranianas e onde os interesses norte-americanos se encontram mais vulneráveis.

Biden foi mais longe dizendo que o Irão tinha agora a oportunidade de renunciar aos seus programas nucleares secretos e ao apoio ao terrorismo, e de obter incentivos adicionais. Está claramente ao alcance do Irão sair do caminho estreito por onde se meteu e, por via diplomática, tornar obsoleta a opção militar. Essa é na verdade uma opção que nunca foi retirada da mesa, nem pelos americanos, nem pelos israelitas.

Que as coisas sejam claras: a mudança de comportamento pedida por Obama inclui o compromisso de o Irão se portar como um Estado normal, que se reconheça obrigado pelas leis e pelo costume. Por agora, as manifestações de disponibilidade de estabelecer diálogo com o Irão não têm em si nada de especial. Aliás, talvez até já tenham tido um papel na apresentação de Khatami numa nova candidatura credível às eleições presidenciais de Junho. Talvez daí as declarações imediatamente subsequentes de Mahmoud Ahmadinejad, no sentido de que o Irão estava preparado para aceitar a oferta desde que o diálogo tivesse lugar numa atmosfera «de equidade e respeito mútuo».

Mas a verdadeira questão está em saber como vão os Estados Unidos relacionar-se de forma produtiva com o Irão quando a república islâmica se mostrou já tão competente em promover os seus interesses nacionais de maneira muito intrincada e parece ter as ideias tão mais claras que os Estados Unidos e os seus aliados quanto aos resultados que pretende obter, a nível estratégico, no terreno imediato? O que podem os Estados Unidos fazer contra um Irão apostado em usar a arma nuclear para alcançar uma hegemonia regional? Um Irão que é capaz de apelar aos xiitas nas sociedades árabes, como no Líbano? Que pode manipular a simpatia árabe pelos palestinianos e ao mesmo tempo influenciar o que se passa no Iraque? E que tem a capacidade de fazer subir a temperatura interna em países tão cruciais como o Egipto, a Arábia Saudita, a Jordânia, ameaçando regimes cuja legitimidade é questionada pelas próprias sociedades, divididas pelas mesmas linhas sectárias?

Não se sabe. Por enquanto, apenas se sabe que a Administração diz que «quer dialogar». De notar: as dificuldades que têm presidido à nomeação de um representante especial para o Irão – ao que tudo indica, o lugar irá para alguém capaz de gerir o nexo Irão/Israel e com acesso e diálogo em Jerusalém. Fala-se no clintoniano Dennis Ross. Por agora, e atendendo aos pronunciamentos contra as políticas cessantes, a proclamada intenção de desenvolver uma política «realista» de fria prossecução do interesse nacional, podemos esperar que o recauchutado Smart Power seja testado sem dó nem piedade. Se o Irão é uma potência revolucionária, é também tão nacionalista quanto qualquer outro Estado e tem uma enorme flexibilidade no manejo das suas armas ideológicas, políticas, financeiras e militares. A Administração Obama terá de lidar com o Smart Power iraniano. Que, no mais, joga em casa. Como vão os Estados Unidos conseguir colocar o Irão na defensiva? Stay tuned...

 

MÉDIO ORIENTE

Os tempos, as modas ideológicas e os regimes passam mas os conflitos do Médio Oriente perduram como perdura o contexto, não menos explosivo do que era nos anos de 1960, quando os insultos voavam entre Amã, o Cairo e Arafat. A corrida aos armamentos convencionais e estratégicos no Médio Oriente é intensa e a região está, literalmente, mais inflamável que nunca. As armas modernas, incluindo as não convencionais, aumentam consideravelmente o potencial destrutivo de qualquer confrontação militar e reduzem na proporção o tempo disponível para exercer persuasão para evitar a confrontação. Um conflito entre Israel e o Irão não duraria seis dias mas provavelmente seis horas.

A região continua severamente dividida, agora já não entre socialistas e tradicionalistas mas sim entre regimes ditos moderados, a quem convêm os atributos de Estado e um governo secular, e a onda islamita em crescendo desde 1979. As falanges terroristas, para além de Israel, ameaçam agora também claramente as sociedades árabes. O peso da influência regional tradicional dos estados árabes acha-se reduzido, em boa parte pelas tremendas dificuldades que estes países encontram na modernidade. Israel tem tratados de paz com o Egipto e a Jordânia, mas continua a ser objecto do ódio da vasta maioria das populações locais, continuadamente atiçadas pelos líderes. Este ódio alastra do mundo muçulmano à Europa onde se encontra solidamente implantado, com repercussões visíveis no anti-semitismo exacerbado que afecta já os processos políticos e os cálculos de interesse nacional e respectiva projecção externa em países fulcrais da União Europeia, onde existe – aí sim – uma autêntica «rua árabe» com expressão e peso nas urnas.

A presença dos Estados Unidos no Iraque, e a transformação política ali ocorrida, alteraram os equilíbrios tradicionais, obrigando a uma clarificação do sistema de alianças na região, cuja agenda é agora marcada por vários actores não árabes, como o Irão, a Turquia ou Israel.

A ser alcançado o objectivo iraniano – aparentemente anódino – de ver satisfeita a «ambição de participar no complexo de segurança regional» a destabilização será imparável. O poder dissuasor do Irão será usado para criar zonas de segurança inexpugnáveis para grupos de terror. Por ora, é certo que a penetração estratégica do Irão atinge proporções inéditas na época moderna: o Crescente xiita estende-se de Teerão às duas falanges no Mediterrâneo Oriental, Hamas em Gaza e Hezbollah no Líbano, passando pelo Iraque e pela Síria, até ao Iémen.

LÍBANO

Nos últimos meses, o Líbano tem conhecido um período de calmaria. A vida retomou os seus direitos em Beirute, onde os negócios prosperam. Mas com as eleições legislativas previstas para o próximo mês de Maio, as sombras adensam-se. É impossível prever os timings das irrupções de violência, mas sabe-se que não poderão ser evitadas. A fronteira entre o Líbano e Israel está calma desde 2006. O Hezbollah demarcou-se claramente da dezena de morteiros disparados desde que Israel efectuou a operação militar em Gaza. Teme-se que seja a espécie de calma que precede a borrasca.

Os dezasseis ramos de agências norte-americanas de informação e segurança consideram que o Hezbollah representa uma ameaça formidável aos interesses dos Estados Unidos, especialmente se avaliar que Washington ameaça directamente o Irão ou planeia actuar contra o grupo, a sua infra-estrutura ou liderança. Concordam ainda que o Hezbollah apoiado pelo Irão, via Síria, e sem incomodar a UNIFIL, recuperou e aumentou significativamente o arsenal destruído por Israel na guerra de 2006, e prepara novo round de luta contra o Estado judaico. Passado um ano sobre o assassinato do seu comandante militar Imad Mugniyeh, em Damasco, por bomba telecomandada, e nunca claramente creditado a Israel, continua pendente a retaliação. O secretário-geral do Hezbollah jurou vingança, coisa que normalmente merece credibilidade. Nos últimos tempos foram notícia ataques terroristas frustrados contra alvos israelitas na Europa, nos Estados Unidos e no Azerbaijão. Muitos analistas estimam que Nasrallah se encontra ainda dissuadido de respostas mais frontais por via do ataque de Israel ao Líbano em 2006. Seja como for, o Hezbollah até agora optou por manter um low profile.

Na região é ponto assente que os iranianos já integraram o Hezbollah, o Hamas e outras facções da resistência palestiniana que subscrevem a estratégia de destruir Israel, e que os seus peritos empenhados no Líbano e em Gaza desenvolvem, há anos, as infra-estruturas necessárias para «tirar Israel do mapa», tomar conta da região e dominar o mundo árabe.

Entre essas infra-estruturas contam-se o arsenal visível, nomeadamente os 40 mil mísseis que o Hezbollah se gaba de possuir, mas também o invisível, como sejam os túneis que servem toda a sorte de tráficos. Se os túneis ligando Gaza ao Sinai provaram a sua eficácia no contornar do bloqueio imposto por Israel, os túneis ligando a Faixa ao Sul de Israel servem para infiltrar as linhas inimigas. Convém não esquecer que a operação que logrou o rapto do soldado Gilad Shalit foi feita graças a um desses túneis.

Constatações como esta credibilizam rumores não confirmados sobre parte do dispositivo do Hezbollah: nos últimos trinta meses, com o apoio dos Guardas da Revolução iranianos, teriam sido escavados quatro túneis ligando o Sul do Líbano ao Norte de Israel. O primeiro levaria à Galileia, o segundo a Naqoura (uma das localizações da UNIFIL e lugar onde no início deste mês de Fevereiro foi desarmado um conjunto de Katyushas). Os outros dois teriam saída em pleno território israelita. Seriam túneis de uma profundidade de vinte metros, escavados graças a cargas explosivas, o que explicaria os tremores que neste últimos anos vêm sendo sentidos no Sul do Líbano (nomeadamente em Srifa) e apresentados como sismos. Haverá também outros túneis de ligação à Síria, providenciando maior liberdade no reabastecimento do Hezbollah e no contornar das resoluções da ONU que proíbem o rearmamento das milícias libanesas. Estes túneis, alegadamente em três pontos da fronteira sírio-libanesa – a norte, centro e sul do Vale de Bekaa – seriam inclusive alcatroados, podendo ser utilizados por viaturas pesadas. O Hezbollah contará ainda com uma «força marítima» de 1300 homens, dotada de cinco mini-submarinos de fabrico iraniano, capazes de lançar torpedos, estando já construído um canal submarino ao sul de Beirute. Graças a estes dispositivos Nasrallah pode manter o peso da sua ameaça sobre Israel e sobre a vida política libanesa: pois é evidente que o desarmamento em prol das Forças Armadas nacionais não será uma opção viável. E se a maioria nas próximas eleições legislativas não vier à mão do partido xiita, este, enquanto grupo minoritário no Parlamento, teria forçosamente que reintegrar o Estado, tornando-se inevitável o seu desarmamento. Assim, muitos temem uma acção do Hezbollah contra as eleições legislativas.

A SÍRIA

«Os Estados Unidos pressionam a Síria para que ajude a desarmar o Hezbollah», declarou John Kerry, senador do Massachusetts, ex-candidato democrata à Presidência e actual presidente do Comité de Relações Exteriores do Senado, no decurso de uma visita de visibilidade ao Médio Oriente. Vindo de Gaza, a caminho de Damasco, confirmou em Beirute que a Administração Obama pretende «desenvolver uma nova abordagem diplomática na região». O senador encontrou-se com o Presidente Sleiman e com o primeiro-ministro Siniora, a quem garantiu que uma aproximação entre os Estados Unidos e a Síria não será feita à custa do Líbano, acrescentando: «Queremos que a Síria respeite a independência política do Líbano, queremos que a ajuda da Síria no processo de resolver diferendos com o Hezbollah e com os palestinianos».

O encontro Kerry-Assad é visto como a abertura de uma ofensiva diplomática que poderá resultar no envio de um embaixador americano para Damasco, donde os Estados Unidos retiraram desde o assassinato do primeiro-ministro libanês Rafic Hariri. Embora fosse sublinhado que Kerry se deslocava «na capacidade pessoal» e sem representar a Administração, a visita à Síria é uma promessa de degelo nas relações entre os dois países, sobretudo sendo efectuada na semana em que a Agência Internacional de Energia Atómica revelou que as análises das amostras retiradas do local bombardeado em 2008 por Israel continham traços de urânio. Foi também recentemente anunciado que os Estados Unidos iriam enviar peças para a reparação de aviões de passageiros Boeing que estão no chão.

É no entanto duvidoso que esta visita venha resolver algum do enorme contencioso entre os dois governos. Assad procura um relacionamento favorável com a Administração Obama, sem compromisso de cortes com Teerão nem quebra de apoio a terroristas. Pelo contrário: Assad provavelmente convencerá Kerry que tais ligações lhe conferem o perfil ideal para servir de intermediário entre Washington e Teerão; e o Hezbollah no Líbano; e Hamas e a Jihad Islâmica na Palestina. Até poderá sustentar que o próprio primeiro-ministro turco e bem assim Mubarak se reconciliaram já com a realidade: não é possível concluir negócios no Médio Oriente sem incluir Damasco e Teerão.

Por agora, a Administração Obama aparece precavida. Numa nota de prudência que tem sido uma constante nas declarações dos membros do governo americano quanto ao Médio Oriente – provavelmente a concretização da prometida humildade e professado pragmatismo – Kerry declarou

«pretendemos renovar a diplomacia mas sem ilusões, sem inocência, sem expectativas ilusórias de que apenas por falarmos as coisas acontecem automaticamente. As coisas vão acontecer quando ambas as partes corresponderem; e é preciso falar com as pessoas para compreender quais são as expectativas e conseguir estabelecer acordos».

Veio a público que, em Washington, o Presidente Bashar Assad é visto como «tendo tido a prudência de solidificar o controlo no país pelos meios tradicionais, seguindo o exemplo do pai e nomeando pessoas da sua confiança para postos-chave no aparelho de Estado». Espera-se que volte a receber material nuclear da Coreia do Norte, sendo actualmente já dado por certo que retomou a construção de um complexo de armas químicas[4]. E Washington preparou a missão de Kerry a Damasco dando passos para apressar a convocação do Tribunal Internacional Especial designado pelo Conselho de Segurança da ONU para levar a julgamento os assassinos do primeiro-ministro libanês Hariri. O seu sucessor Siniora, confirmou de resto que, no início de Fevereiro, seis grandes caixas de aço cheias de documentos recolhidos pelos magistrados ao serviço das Nações Unidas foram levados em segredo do Líbano para a Haia num avião militar francês[5].

CISMA ÁRABE

A história do Médio Oriente está recheada de episódios de guerras, intrigas e inimizades entre os líderes e povos árabes e muçulmanos. Desde os primeiros tempos do islão, em que logo apareceu a divisão xiita e sunita, que os crentes se digladiam. A unidade foi-se com o império. Períodos houve em que foi possível disfarçar, sobretudo com destaque para os últimos sessenta anos em que a criação do Estado de Israel facultou uma magnífica causa de união retórica e prática política. A unidade árabe existia na posição comum contra a hipótese de um Estado judaico independente no Médio Oriente.

O apoio à causa palestiniana foi o cerne da diplomacia árabe durante décadas, mas agora – com a incursão militar de Israel em Gaza – vieram a público as grandes divisões entre os que apoiam a Autoridade Palestiniana e os que apoiam o Hamas. Um frenesim de cimeiras entre o início da operação militar e até depois do cessar-fogo unilateral de Israel, a 18 de Janeiro, assinalou um terramoto nas diplomacias árabes quanto aos palestinianos e quanto à unidade árabe.

O governo do Egipto alinhou com a operação militar israelita, acusando o Hamas de provocar o conflito com os seus ataques de morteiro. O Cairo bloqueou a fronteira com Gaza através da qual o Hamas poderia ter reabastecido os seus stocks, inclusive de munições. Outros países também falaram cautelosamente sobre o conflito, condenando Israel mas abstendo-se de validar o Hamas. A partir do Líbano, Hassan Nasrallah apelava aos egípcios que se revoltassem contra o Governo. O Irão e a Síria mantiveram-se ao lado do Hamas, juntando-se a eles o Qatar. O emirato, que tem relações próximas com os Estados Unidos, assumiu uma posição muito clara a favor do Hamas, convocando uma Cimeira da Liga Árabe mal começou a operação. A ideia contava com o apoio da Síria e pretendia apresentar uma frente árabe unida contra Israel. A Arábia Saudita bloqueou a ideia. O Qatar insistiu em reunir os chefes de Estado árabes e avançou com a convocação da cimeira. Quando chegou a hora do encontro, o Egipto, a Arábia Saudita, a Jordânia e a Autoridade Palestiniana não apareceram. A Jordânia viu-se aflita: com uma maioria palestiniana, e uma Irmandade Muçulmana ressurgente, tem procurado mover-se de forma a sublinhar a sua solidariedade com os palestinianos sem alinhar nem com o Hamas nem com os patrocinadores iranianos. No final acabou por boicotar a reunião de Doha. Ali estiveram presentes 13 estados, e com eles Ahmadinejad e Assad. Em lugar de presidentes e reis, o líder exilado do Hamas sentou-se à mesa, fazendo zangar a Autoridade Palestiniana, o governo oficial dos palestinianos. A reunião não teve quórum, logo não teve categoria de «cimeira». Mas levou o desafio ao ponto de aprovar resoluções apelando à retirada do Plano de Paz Saudita e ao fim da normalização com Israel[6].

São dois campos principais: o eixo iraniano, com a Síria, o Hezbollah, o Hamas, a Jihad Islâmica da Palestina e, em certa medida, o Qatar; e o grupo adverso, liderado pelo Egipto e a Arábia Saudita, com a Jordânia e os Estados do Golfo e a Fatah. Esta cisão tem um impacto considerável a nível local, regional e internacional, alterando fundamentalmente as opções para a acção diplomática, tanto no que toca a questão interpalestiniana, como a israelo-árabe, como no que respeita ao problema do Irão.

CONTER O IRÃO?

Para além de infligir uma pesada derrota ao Hamas e de ter causado a morte e terror da população, a operação militar de Israel em Gaza mostrou quão abalada está a arquitectura regional de segurança.

Desde 2006 que a preocupação árabe com as aspirações iranianas ao domínio regional se tornaram objecto de maior e mais ampla discussão no mundo árabe. A imprensa saudita e egípcia tem manifestado uma oposição constante, não hesitando em recorrer aos piores e mais violentos adjectivos. Numa «expansão como um polvo», o Irão

«controla a região mantendo organizações armadas em países árabes, violando a lealdade à pátria e substituindo-a pela lealdade ao Irão. E isto tanto mais quanto o Irão é um país que não dissemina nem tolerância nem uma cultura de moderação mas sim uma cultura de hegemonia unilateral, parte de um esforço racista de impor uma espécie de ocupação».

O ministro dos Negócios Estrangeiros egípcio Al-Gheit declarou que os «iranianos tentavam espalhar a sua influência e impor uma ideologia idiossincrática na região», acusando o Irão de «usar cartas árabes para concretizar interesses e objectivos que não são árabes» e disse ser necessário «garantir que o Irão não se torna uma potência nuclear»[7].

Já em Julho de 2006, quando Israel retaliou contra o Hezbollah, acontecera uma coisa muito pouco usual: governos árabes culparam publicamente o Hezbollah por ter provocado o conflito e deixaram passar um bom momento até se queixarem do comportamento israelita. Na mais recente operação militar em Gaza a reacção voltou a repetir-se. Só que desta vez, o alinhamento de facto entre os interesses de Israel e dos estados árabes foi muito mais óbvio. A maior parte dos governos árabes parece estar muito mais preocupada com a possibilidade da hegemonia regional do Irão do que com o que venha de Telavive ou Jerusalém. Sabem que o Estado de Israel não vai subverter ou conspirar para os derrubar, o que exactamente esperam do Irão. Nem o Egipto nem a Arábia Saudita decerto apreciavam o programa nuclear de Israel. Mas nunca retaliaram com um programa próprio, logo: não o temiam. Agora ameaçam o Irão com uma corrida ao nuclear.

Esta estranha aliança israelita-sunita não é mais que uma aliança táctica. As capitais árabes não vêem qual é o interesse de se atravessarem no caminho de Israel quando este trata de enfraquecer inimigos comuns como o Hamas e o Hezbollah. O problema está em que esta acção defensiva não desfruta de qualquer compreensão junto dos respectivos cidadãos que nela encontram mais uma razão para desprezar os regimes que os governam. A opinião pública tende a apoiar o Hamas, o que aumenta os créditos de destabilização ao Irão e aos seus aliados.

Recentemente, uma declaração do Irão reiterando a sua pretensão ao reino do Bahrein como província iraniana voltou a pôr as coisas ao rubro.

«Como se a sua ocupação de três ilhas dos Emiratos Árabes Unidos não fosse suficiente […] O Irão já causou tanto dano à região, dividindo os palestinianos em dois estados, nuns territórios já de si fragmentados e ocupados; não lhe chega a divisão que criou em Beirute, entre sunitas e xiitas; agora apoia a secessão dos Al-Huthistas no Iémen; já havia procurado fazer o mesmo no Iraque, onde felizmente foi derrotado nas últimas eleições onde os xiitas do Sul do Iraque votaram contra os candidatos do Irão«[8]. [...] Também nós gostaríamos de acreditar que os iranianos não têm desígnios na nossa região, que não escondem más intenções e que não procuram sabotar a região árabe. […] Porém, as declarações públicas de Teerão não ajudam quem quer acreditar na bondade das suas intenções. A captura da mais recente célula terrorista na capital do Bahrein diz tudo o que é preciso sobre as acções e intenções do Irão.»

Neste incidente foi surpreendente a rapidez da reacção árabe, rechaçando imediatamente as pretensões iranianas, nomeadamente declarações firmes e musculadas da Arábia Saudita e as visitas de Hosni Mubarak e do rei da Jordânia a Manama, capital do Bahrein e que levaram ao pronto desmentido iraniano.

«As posições tomadas pelos líderes árabes contra os comentários iranianos constituíram uma mensagem clara e rapidamente bem entendida por Teerão, que rapidamente percebeu o perigo da situação. Esta postura é novidade entre os árabes mas é o que deve ser feito para confrontar as acções malévolas do Irão na região»[9]

Será que o Egipto e a Arábia Saudita estão a recuperar da letargia dos últimos anos?

O PROCESSO DE PAZ

Recém-empossado, Barack Obama afirmou que a sua Administração se empenharia de imediato na globalidade do Processo de Paz no Médio Oriente, declarando-se «determinado a quebrar o impasse que há décadas se arrasta» e acreditar que «se se atentar no trabalho da Administração Bush bem como aos desenvolvimentos na época de Clinton, é possível descortinar um enquadramento, uma abordagem possível»[10]. A pronta nomeação do veterano George Mitchell para enviado presidencial para o Conflito do Médio Oriente, indica que Obama considera importante sinalizar que leva a sério a causa palestiniana e o conflito entre árabes e israelitas, que considera plausível uma resolução pacífica, e que uma solução regional removeria uma das principais bandeiras dos extremistas islâmicos.

Se a Administração também acredita em tal ideia só o futuro o dirá. Em abono da lucidez, diga-se que o almirante Blair, director das Informações de Segurança Nacional, declarou ao Congresso «ser pouco provável» a eventualidade de acordos de paz entre Israel e os palestinianos, sobretudo enquanto o Hamas governar Gaza e o Hezbollah dominar o Sul do Líbano; e as possibilidades de progressos políticos entre as facções palestinianas são "remotas"»[11].

O QUE DEVE OU PODE SER FEITO QUANTO AO CONFLITO ISRAELO-ÁRABE ?

Se o Médio Oriente é um problema, o conflito israelo-árabe é uma indústria. Inspirado pelos processadores de paz, pelos países árabes e pelos líderes europeus, Obama terá agora a tentação de acreditar que, com a dose certa de voluntarismo e esforço, pode resolver o problema. Espera-se que tire um momento para reflectir sobre factos tão singelos como a incapacidade de alcançar dois estados já contar pelo menos quinze anos, com as mais diversas configurações e constelações políticas: já transitaram o Plano de Paz de Reagan, a Conferência de Madrid de Bush (42.º), os Parâmetros Clinton e, nos últimos oito anos, a Visão Bush (44.º), o Relatório Mitchell, o Plano Tenet, o Plano Zinni, o Road Map. Sem esquecer o Plano Saudita de 2002. Resultados?

Os falhanços da Administração Bush trouxeram a nostalgia da época de Clinton. Mas a verdade é que o activismo de Clinton redundou num falhanço, e tal não pode evidentemente ser dissociado das políticas da sua Administração. As experiências de Clinton e G. W. Bush mostram como dois presidentes americanos – um democrata e outro republicano – se empenharam num esforço prolongado para criar um Estado palestiniano: ambos saíram do cargo com mais uma guerra no Médio Oriente nas mãos. Com tanta coisa nova e com tanta coisa a correr mal durante tantos anos, seria elementar responder primeiro a questões básicas como, por exemplo, até onde vai a capacidade de os Estados Unidos influenciarem os comportamentos dos actores menores? Ou reflectir sobre a incapacidade de compreender as forças no terreno?

Num artigo recente, Hussein Agha e Robert Malley, que acompanharam de perto o Presidente Clinton e os encontros de Camp David, desacreditam por completo o mito urbano de que a Administração Bush esteve demasiado «alheada» dos problemas do Processo de Paz:

«não pode estar mais longe da verdade histórica […] quase desde o início […] interveio na política palestiniana, ajudando a reescrever a lei fundamental, declarando Arafat como pária, ungindo os seus líderes preferidos, insistindo numa reforma interna como pré-requisito para a paz, tomando posições sobre um acordo final numa carta de 2004 de Bush para o primeiro-ministro Sharon […] encorajando o confronto entre a Fatah e os islamitas do Hamas, impondo sanções à Síria e desencorajando o retomar de conversações entre Israel e a Síria […]».

Em 2002, Bush tornou-se o primeiro Presidente dos Estados Unidos a endossar formalmente um Estado palestiniano, produziu o Road Map e fê-lo adoptar pelas Nações Unidas, União Europeia, Rússia, Autoridade Palestiniana e Israel; em 2004 entrou num acordo para que Israel saísse de Gaza em 2005, reconhecendo os requisitos mínimos de segurança do Governo israelita: não regresso às fronteiras de 1967 mas sim a fronteiras defensáveis como fora prometido pela Administração Clinton; e não reconhecimento de um «direito de retorno» a Israel. E no entanto o processo falhou. Terá sido mais uma incompetência de Bush?

As falhas americanas são bipartisan e não resultam nem de esforço insuficiente nem de «esperar de mais». O problema é mais fundamental. Por isso se recomenda a Obama que se demore a

«rever as razões para as falhanços recorrentes, a ponderar a eficácia da mediação americana, a sabedoria e realismo de buscar uma solução global, completa do conflito entre israelitas e palestinianos e, mesmo, pensar sobre qual é a centralidade desse conflito para os interesses dos Estados Unidos»[12].

Na ausência de perspectiva de conversações de paz sérias, os esforços principais tenderão a concentrar-se na estabilização e gestão dos conflitos.

A QUESTÃO PALESTINIANA

A cisão palestiniana é uma nova frente na dissensão regional, de que o mais recente episódio são as cimeiras rivais de reconstrução de Gaza, com o Egipto a realizar a primeira a 2 de Março e o Irão a convocar uma cimeira rival dias depois.

Será muito difícil contemplar negociações de paz sérias e credíveis sobre o estatuto final enquanto não houver um negociador que fale em nome de todos os territórios palestinianos e que seja capaz de executar qualquer acordo.

À hora de fecho deste artigo havia notícias de que os Estados Unidos estariam por trás da mais recente tentativa de o Egipto conciliar as facções palestinianas em ordem à formação de um governo de unidade. Esta seria assim outra mudança, já de fundo, da nova Administração: a disponibilidade de aceitar um governo onde estivesse incluído o Hamas. Note-se que John Kerry, na sua breve visita ao Médio Oriente, aproveitou para constituir a primeira delegação americana de alto nível a entrar em Gaza desde que o Hamas expulsou a Fatah e assumiu o controlo em 2007. Fiel ao estilo que caracterizou o resto do seu périplo, de efectuar declarações para o efeito do que estava a acontecer não ser aquilo que estávamos a ver, mesmo antes de entrar em Gaza, Kerry clarificou «que a sua visita não queria dizer que a Administração Obama estivesse a preparar uma mudança de rumo». Na Conferência do Cairo, a oferta da vultuosa contribuição financeira americana será sublinhada pela presença da secretária de Estado Hillary Clinton, na sua primeira visita à região, e do enviado especial para o Médio Oriente. Ambos reafirmaram que os Estados Unidos não teriam contactos com o Hamas enquanto este movimento não acatasse as condições do Quarteto, isto é, aceitar os acordos previamente subscritos pela OLP e a AP e desistir de destruir Israel.

Passada a operação militar em Gaza, e todas as divisões que revelou, inclusive quanto à posição do território na frente de combate islâmico pela hegemonia regional, o Hamas está de novo à carga, desta vez com a proposta de criação de uma nova organização palestiniana para substituir a OLP que «não serve». O objectivo seria obter o controlo da OLP através de uma estratégia de não permitir a reconciliação entre as facções, exigindo por exemplo à Fatah que acabe a coordenação de segurança com Israel, corte as negociações e aceite um programa político de «resistência»; procura também dividir a Fatah apelando aos membros que são contra as negociações com Israel; e fazendo operações de charme junto da diáspora e dos intelectuais árabes a partir da plataforma política, como, por exemplo, a exigência do direito de retorno para os refugiados palestinianos[13]. Enquanto isto, segundo sondagens palestinianas de 9 de Fevereiro, 56 por cento dos residentes na Faixa de Gaza e 48,3 por cento da Cisjordânia julgam que o Hamas leva os seus destinos por maus caminhos, recolhendo o apoio de 27,8 por cento contra 51,5 por cento em Novembro de 2008, enquanto a Fatah subiu de 31,4 por cento para 42,5 por cento[14].

Do lado dos factos, embora seja voz corrente que Mahmoud Abbas é um líder de fracas possibilidades políticas, a situação da autonomia palestiniana na Cisjordânia tem evoluído favoravelmente. A ordem pública tem progredido, as milícias diminuído. Os principais exemplos são Nablus e Jenin, onde houve grande concentração de esforços por parte da Autoridade Palestiniana e onde se regista um grau de satisfação razoável das populações com esses esforços. Por iniciativa da Administração Bush, começou o treino de forças de segurança palestinianas num centro de treino na Jordânia. Sob a tutela americana, foram já formados cerca de 600 polícias da Margem Ocidental, e espera-se que este número duplique. O programa, da responsabilidade do militar americano Keith Dayton, não teve um arranque fácil mas as forças de polícia deram provas na manutenção da ordem pública aquando da operação militar em Gaza. Os indicadores económicos de base têm evoluído positivamente, com um crescimento da ordem dos 4-5 por cento e queda no desemprego, com aumento de salários, dos indicadores das trocas e retoma também do turismo na zona de Belém[15]. O primeiro-ministro Salam Fayyad, com fama de integridade e de capaz administração, tem sido um argumento a favor dos apoios dados à Autoridade Palestiniana. Fayyad tem conseguido assegurar uma boa performance económica na Margem Ocidental bem como contactos profissionais com o Governo israelita; e, aparentemente, também uma capacidade de trabalhar para a criação de instituições que possam garantir o funcionamento de um Estado.

ISRAEL CONTIDO?

Nestes primeiros trinta dias a Administração Obama manteve as relações com Israel num limbo. O fim da operação militar em Gaza, a preocupação com reduzir a animosidade muçulmana, as eleições em Israel, e – admita-se – digerir os dossiês classificados que de súbito se tornaram sua responsabilidade, poderão explicar a ausência de sinais claros de direcção. É possível que esse seja o sinal. Mas é mais provável que as políticas se anunciem cautelosamente e em silenciosa coordenação com a gestão da frente iraniana.

Israel está numa posição complicada: no olho do furacão, sem recuo estratégico, severamente condicionado pelas frentes iranianas a norte e a sul, a Síria a leste e uma incerteza estratégica quanto ao triângulo com os Estados Unidos e o Irão.

Só com a recente incursão em Gaza se percebeu claramente a sofisticação e o âmbito dos esquemas de contrabando ali montados e o papel ali desempenhado por elementos dos Guardas Revolucionários iranianos. Aparentemente, desde a intercepção por comandos israelitas do barco Karin A – que em Janeiro de 2002 levava um carregamento de armas para Gaza – os iranianos mudaram o modo de funcionamento: passaram a contrabandear pequenas quantidades através de uma rede complexa de mediadores. Essas «pequenas» remessas incluem Katyushas e os israelitas temem que se sigam mísseis Fajr com alcance de 70 quilómetros a partir de Gaza. Diz-se que actualmente há mais mísseis balísticos apontados a Israel em números absolutos do que a qualquer outro país no mundo. Para além dos creditados ao Irão, Hamas e Hezbollah (mísseis balísticos com alcance de 300 quilómetros), a Síria também está indicada como detentora de um vasto arsenal de mísseis em silos, capazes de atacar qualquer ponto do território israelita.

A recente operação militar em Gaza constitui mais um aviso sério no que toca a retiradas da Cisjordânia: entregar terra não traz paz e diminui as capacidades de defesa do Estado. Enquanto não houver condições de segurança na Margem Ocidental, será difícil encontrar israelitas que apoiem uma retirada das Forças Armadas e de defesa. Uma sondagem de 26 de Fevereiro de 2009 indica 51 por cento dos israelitas contra um Estado palestiniano, com 32 por cento a favor; 52 por cento estão certos que um Estado governado pela AP causará ataques de morteiro nas cidades do Centro do Israel; 31 por cento de votantes Kadima declararam que se soubessem que o seu partido apoiava tal Estado, votariam noutro partido[16]. A percepção nacional parece ser de que há muito pouco que se possa fazer em Gaza e na Margem Ocidental a não ser lutar ocasionalmente contra o Hamas e ajudar os palestinianos a construir instituições, como no caso da Missão Dayton de treinar e equipar forças de segurança palestinianas. Acresce que o público israelita está consideravelmente desencantado com o chamado processo de paz e parece estar maioritariamente inclinado para a conclusão de que o conflito não é acerca das fronteiras de 1967 mas antes das de 1948... ou seja: o conflito não é sobre territórios mas sobre a própria existência do Estado de Israel. Finalmente, o backlash anti-semita e anti-sionista que grassa no mundo, em crescendo contra a legitimidade do Estado de Israel, sobretudo nos países europeus, constitui um elemento profundamente desestabilizador da comunidade política israelita.

Este estado de espírito marcou as recentes eleições legislativas e vem em apoio de uma liderança com margem de manobra muito, mesmo muito, reduzida.

Israel provavelmente deseja evitar choques com os Estados Unidos, para tentar facilitar a cooperação no dossiê iraniano, que parece ser uma questão complicada no relacionamento bilateral. Já o foi na segunda Administração Bush e agora que a Administração Obama parece estar disposta a uma aproximação ao Irão, Israel acha-se muito céptico, num cepticismo consensual em todo o espectro político israelita.

A inclinação de Israel para a direita não significa de modo algum o fim da solução de dois estados como modelo dominante para a resolução do conflito com os palestinianos. Israel nunca conheceu uma transferência de poder violenta. Nos primeiros trinta anos do Estado liderou o Partido Trabalhista, e nos trinta anos seguintes, salvo raras excepções, foi governado por coligações de direita ou de centro-direita. A plataforma do Likud limita-se a condenar quaisquer outras retiradas unilaterais, no modelo do Líbano ou de Gaza. E pode muito bem trabalhar para a viabilidade da Cisjordânia sob a autoridade da AP e preparar o dia em que o Hamas não tenha já o poder de exercer um veto sobre uma paz entre Israel e a AP.

As realidades no terreno tornam realmente inverosímil qualquer acordo de paz.

 

CONTINUIDADE, PRUDÊNCIA, AMBIGUIDADE

É ainda demasiado cedo para prever as apostas da Administração Obama ou quais serão os seus sucessos ou os seus falhanços. Muito depende de terceiros, da sorte e do azar. Para já ressaltam as abordagens de continuidade, prudência, ambiguidade. Tanto ao nível interno, na questão das escutas, na questão da redução de suspeitos de terrorismo, na questão de práticas de interrogatório, como na frente externa a manutenção do conceito operacional de «Grande Médio Oriente» parecem poder sustentar a afirmação de continuidade. A natureza da ameaça irá decerto levar a que prevaleça uma abordagem militarizada e orientada por questões de segurança.

Por agora, as movimentações e nomeações em Washington evocam as recomendações «realistas» para uma política externa abrangente para toda a região, reunidas no famoso Iraq Study Group, sob patrocínio de James Baker (republicano) e Lee Hamilton (democrata).

A ansiedade de Obama em ganhar margem de manobra no mundo muçulmano pode induzir políticas que levem os Estados Unidos a pressionar os seus aliados – como a Índia ou Israel – a fazerem compromissos estratégicos que ameacem a segurança nacional, ou a suster-lhes a mão em qualquer retaliação aos seus opositores. Tais pressões terão de ser sopesadas pelos Estados Unidos para evitar riscos de desestabilizar situações já de si altamente voláteis.

As políticas nacionais são determinadas e moldadas por considerações de segurança nacional. Admitindo que Obama venha a protagonizar cortes com o passado e a introduzir uma série de nuances dificilmente poderá mudar os constrangimentos e as premissas que produzem as políticas americanas. As realidades estratégicas actuais irão forçar Obama a tomar decisões bem difíceis nesta matéria.

 

 

[1] U.N. Ambassador Rice Says America Is 'Back' : NPR, 20.02.09 http://www.npr.org/templates/story/story.php?storyId=100918595

[2] 2008 Scholar-Statesman Award Dinner, Featuring Henry Kissinger, October 10, 2008

http://www.washingtoninstitute.org/templateC07.php?CID=430

[3] Session with Secretary Gates following remarks at National Defense University’s Distinguished Lecture Program at Ft. Leslie J. McNair, Washington, D.C., Sept. 29, 2008 http://www.defenselink.mil/transcripts/transcript.aspx?transcriptid=4295

[4] Dennis Blair, Obama's new director of national intelligence, tells Congress

By Greg Miller, February 13, 2009 http://www.latimes.com/news/nationworld/nation/la-na-security-threat132009feb13,0,3894353,print.story

[5] Evidence in Hariri murder moved to Hague, http://www.dailystar.com.lb/article.asp?edition_id=1&categ_id=2&article_id=99281

[6] Resolutions of the Arab Summit in Doha Regarding the Zionist Israeli Terrorist War on Gaza

http://www.amazonepress.com/News/2009/January/16 n/Resolutions of the Arab Summit in Doha Regarding the Zionist Israeli Terrorist War on Gaza.htm

[7] An Escalating Regional Cold War – Part I: The 2009 Gaza War http://www.memri.org/bin/articles.cgi?Page=archives&Area=ia&ID=IA49209

[8] From Dividing the Palestinians to Threatening Bahrain Asharq Alawsat Newspaper (English) 15/02/2009, Abdul Rahman Al-Rashed http://aawsat.com/english/news.asp?section=2&id=15733

[9] Iran and the Bahraini Lesson Asharq Alawsat Newspaper (English), 22/02/2009 By Tariq Alhomayed

http://aawsat.com/english/news.asp?section=2&id=15825

[10] President Obama Delivers Remarks to State Department Employees, January 22, 2009 http://www.washingtonpost.com/wp-dyn/content/article/2009/01/22/AR2009012202550_pf.html

[11] - vd nota 4

[12] How Not to Make Peace in the Middle East, By Hussein Agha, Robert Malley http://www.nybooks.com/articles/22230        [ Links ]

[13] Recorde-se que a OLP, constituída em 1964, foi reconhecida como o «único legitimo representante do povo palestiniano» na cimeira da Liga Árabe em Rabat em 1974 (na altura com fortíssimas objecções da Jordânia). Desde então a OLP é o representante dos palestinianos para todos os efeitos práticos, inclusive negociar e assinar e estabelecer os Acordos de Oslo com Israel, criar a Autoridade Palestiniana sob os seus auspícios. A OLP é a autoridade que negoceia com Israel e comanda o aparelho diplomático. A organização dominante dentro da OLP é a Fatah. O Hamas e a Irmandade Muçulmana nunca aceitaram a legitimidade da OLP. Depois de uma tentativa falhada de se juntar à OLP em 1991, o Hamas lançou uma guerra contra a organização, que ainda hoje perdura, visando acabar as negociações com Israel, tendo como principal meio de combate os ataques suicidas que liquidaram o processo de paz. Foi em Março de 2005, apôs a morte de Arafat e a eleição de Abbas como presidente da AP que as duas facções chegaram a um acordo que previa uma trégua de um ano com Israel, a realização de eleições legislativas, a reforma da OLP e a inclusão do Hamas. A verdade é que a OLP não chegou a acolher o Hamas, e desde que perdeu as eleições de 2006 a Fatah tem sido quanto a isso intransigente, decerto por medo de perder a posição de representante oficial do povo palestiniano.

[14] Palestinian poll: Hamas support drops, Feb. 9, 2009 http://www.jpost.com /servlet/Satellite?cid=1233304721441&pagename=JPArticle%2FShowFull

[15] Palestinians Work to Jolt West Bank Back to Life, 24/12/08 www.nytimes.com/2008/12/24/world/middleeast/24bethlehem.html

[16] Poll: Most Israelis Opposed to PA State, 26/02/09

http://www.israelnationalnews.com/News/Flash.aspx/160498

 

* Diplomata. Investigadora do IPRI – UNL. Foi secretária de Estado dos Negócios Estrangeiros e da Cooperação do XV Governo Constitucional.