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Relações Internacionais (R:I)

versão impressa ISSN 1645-9199

Relações Internacionais  n.26 Lisboa jun. 2010

 

Da democracia na Ásia Central

 

Licínia Simão

Doutorada em Relações Internacionais, Universidade de Coimbra. Foi professora e investigadora na Academia da OSCE, Bisqueque, Quirguistão

 

Falar sobre democracia nos países da Ásia Central é uma desafio que parece, à partida, perdido. As repúblicas emergentes do colapso da União Soviética são conhecidas pelos seus regimes autoritários, repressivos e centralizados em torno de presidentes, cujos mandatos são de facto vitalícios. A região raramente é notícia e as dinâmicas internas destes países parecem demasiado complexas e distantes para serem uma prioridade na agenda internacional. Afinal, durante a maior parte dos séculos XIX e XX, a região manteve-se sob controlo russo/soviético; uma realidade que só gradualmente tem sido contestada quer por novos actores externos, quer pelos líderes e populações locais. As repúblicas da Ásia Central foram as únicas na União Soviética que votaram em referendo a favor da continuação da União das Repúblicas Socialistas Soviéticas. Como alguns autores defendem, a Ásia Central tornou-se independente contra a sua própria vontade.

Num contexto onde a penetração de ideais liberais democráticos tem sido, no mínimo, muito limitada e sem uma experiência anterior de independência que consolidasse projectos nacionais, as instituições políticas são frágeis e desprovidas de mecanismos de controlo democrático. A súbita condição de independência e integração no sistema internacional, que se seguiu ao fim da Guerra Fria, implicou, entre outras coisas, a adesão destes países à Conferência para a Segurança e Cooperação na Europa/Organização para a Segurança e Cooperação na Europa (OSCE) e uma partilha (formal) dos seus valores e princípios. Mas que impacto teve este processo nas sociedades da Ásia Central? Como encarar o desafio da promoção da democracia neste espaço geográfico e cultural? Que futuro aguarda esta região? A resposta a estas questões tornou-se mais difícil hoje do que quando cheguei a Bisqueque, em Janeiro deste ano. A oportunidade de trabalhar durante um semestre no projecto educacional promovido pela OSCE na Ásia Central foi um desafio irrecusável, especialmente para quem, desde há alguns anos, tem procurado aprofundar o conhecimento pessoal sobre a região.

A Academia da OSCE oferece todos os anos a oportunidade a 25 estudantes das cinco repúblicas da Ásia Central (e este ano também do Afeganistão) de completarem um programa intensivo de mestrado em Ciência Política. Ao mesmo tempo oferece também a oportunidade a jovens investigadores de trabalharem na academia, durante um semestre.

A escolha do Quirguistão para albergar o mestrado não foi acidental, já que esta é a única das cinco repúblicas da Ásia Central que combina um regime político moderado e condições de segurança mínimas. (A região é composta pelo Cazaquistão, a norte, na fronteira com a Rússia e a maior e mais rica república da região; o Usbequistão, no coração da Ásia Central; o Turcomenistão, no mar Cáspio, rico em reservas energéticas e uma das mais autocráticas formas de governo no mundo; o Tajiquistão, na fronteira com o Afeganistão, é um país montanhoso e uma das mais pobres repúblicas da Ásia Central; e o Quirguistão, igualmente pobre, sem recursos energéticos próprios, excepto água das montanhas Pamir e considerado, até há pouco tempo, o único país da região cujo regime político não era uma autocracia.) Contudo, o contexto político no Quirguistão mudou profundamente durante o último ano e, na primeira semana de Abril de 2010, ganhou contornos de uma violência desconhecida na história do país.

 

O CONTEXTO SOCIOPOLÍTICO DA REGIÃO

No período pós-independência, os desafios que se colocaram aos jovens estados da Ásia Central incluíram a criação de economias de mercado e a consolidação de instituições políticas legítimas. À semelhança do Cáucaso e dos Balcãs, as repúblicas da Ásia Central são multiétnicas e multinacionais, mas, ao contrário destas regiões, aqui, a construção do Estado-Nação é um fenómeno mais recente e, de alguma forma, mais artificial. Isto significou que, paralelamente às instituições nacionais formais, se desenvolveram instituições políticas não formais, ligadas a filiações regionais e familiares que, apesar de menos visíveis hoje, são contudo fundamentais para entender a rede complexa de filiações políticas que atravessa a região. O resultado foi a institucionalização de uma democracia formal, cuja liderança transitou das estruturas centralizadas soviéticas directamente para as novas estruturas nacionais. O colapso económico que se seguiu foi particularmente duro para estas repúblicas, «presas» no coração da grande massa eurasiática, extremamente dependentes de remessas financeiras externas, ao mesmo tempo que a criação de novas fronteiras acabou por impor restrições comerciais e criar tensões étnicas que subsistem até hoje.

Não é, por isso, surpreendente que a região tenha atingido níveis elevados de pobreza e desemprego, que se acentuaram desde a independência. No entanto, a região é extremamente heterogénea em termos geográficos, populacionais e da distribuição de recursos naturais. Os países com reservas de gás e petróleo – Cazaquistão, Turcomenistão e Usbequistão – recuperaram um estatuto económico e estratégico mais proeminente, com claras ambições de liderança regional (não partilhadas pelo Turcomenistão que optou por uma política de isolamento). Países como o Tajiquistão e o Quirguistão mantiveram níveis de pobreza elevados que, no caso tajique, foram agravados pela guerra civil que devastou o país entre 1992 e 1997. Surpreendentemente, não se registaram outros conflitos na região, embora a sobreposição de tensões inter-étnicas, graves problemas económicos e uma gestão deficiente de recursos como a terra e a água torne a Ásia Central extremamente instável, com um elevado potencial de conflito intra-estatal.

Um outro factor que contribui para esta instabilidade é a fragilidade das instituições políticas da região. O carácter repressivo e autoritário dos regimes da Ásia Central é mais ilustrativo do subdesenvolvimento político da região e da fragilidade das instituições, do que de uma consolidação do poder no topo da pirâmide hierárquica. Diversos factores explicam o actual contexto político regional. Em primeiro lugar, a herança soviética promoveu a continuação de um sistema político altamente centralizado, em torno do presidente. A adopção de regimes superpresidencialistas é uma característica comum em todo o espaço da Comunidade de Estados Independentes. Por outro lado, a natureza da economia política herdada da União Soviética definiu a priori quem teria acesso a benefícios económicos e que grupos seriam excluídos. Esta herança traduziu-se também numa sobreposição complexa de identidades políticas reforçada pela criação de fronteiras artificiais, desenhadas para manter o controlo de Moscovo sobre a capacidade de autonomização das diferentes repúblicas dentro da União Soviética. Hoje existem diversos enclaves de minorias étnicas em cada um destes estados.

Em segundo lugar, a definição de prioridades de segurança traduziu-se numa política externa de equilíbrio entre os diferentes actores na região. Traduziu-se também em difíceis relações regionais, marcadas principalmente por receios de que a instabilidade no Tajiquistão e no Afeganistão se espalhasse por toda a Ásia Central. Isto significou que os movimentos religiosos islâmicos passaram a ser vistos como uma ameaça aos poderes políticos instituídos e, especialmente no Usbequistão, fossem violentamente reprimidos. Por sua vez, tal manifestou-se num contexto de decrescentes liberdades políticas, civis e religiosas, justificadas por receios muitas vezes infundados, face aos movimentos islâmicos. Simultaneamente, as revoltas populares na Geórgia, na Ucrânia e no Quirguistão mostraram que a estabilidade dos regimes políticos estava também dependente de actores internos, o que reforçou a tendência autoritária e repressiva do poder político.

Somou-se a este contexto uma viragem radical nas prioridades da comunidade internacional, depois dos ataques de 11 de Setembro que, apesar de ter redireccionado a atenção internacional para a Ásia Central, não a tornou necessariamente mais democrática nem mais estável.

 

POLÍTICA EXTERNA NA ÁSIA CENTRAL: AJUSTAR E ADAPTAR

O impulso das instituições ocidentais para criar democracias liberais no espaço de influência da União Soviética, visível principalmente nos países bálticos e na Europa de Leste, foi mais moderado nos países da Ásia Central e do Cáucaso do Sul. Estes últimos viram-se a braços com uma série de conflitos devastadores, que a Europa e os Estados Unidos preferiram deixar a cargo de Moscovo. Na Ásia Central apenas a segurança nuclear captou a atenção do Ocidente. O conflito tajique, embora devastador, era demasiado distante para ser uma prioridade na agenda internacional, quando comparado com os problemas graves nos Balcãs. Por isso, o processo de desnuclearização do Cazaquistão, a posição estratégica deste «gigante» da Ásia Central, e as suas reservas energéticas no mar Cáspio, facilitaram o processo de aproximação à Europa e ao Ocidente em geral. A inclusão destas repúblicas na OSCE facilitou esse processo, mas, em geral, os laços económicos, políticos e de segurança da Europa e dos Estados Unidos com a região foram insignificantes até ao virar do milénio.

Por outro lado, a Turquia, o Irão e a China procuraram reaproximar-se desta região e, hoje, a sua presença comercial é significativa. A entrada de novos actores no contexto regional abriu novas possibilidades para os líderes regionais, em busca de legitimação interna e externa. Frequentemente, a abertura de novos vectores de política externa é vista como uma ferramenta crucial na manutenção de uma imagem interna estável, ao mesmo tempo que facilita o controlo da influência de Moscovo, fomentando um processo de competição estratégica. O interesse norte-americano na região, depois do 11 de Setembro de 2001, encaixa nestas dinâmicas. Numa fase inicial, todos os estados da região apoiaram os esforços norte-americanos na guerra global contra o terrorismo.

Mesmo estados como o Turcomenistão e o Usbequistão, que tradicionalmente se mantiveram mais isolados, permitiram voos norte-americanos sobre os seus territórios. Os Estados Unidos estabeleceram em Manas, no Quirguistão, uma base militar e reforçaram a presença na região, com base na cooperação na luta contra o terrorismo. Este apoio serviu em grande medida os interesses norte-americanos de manter uma presença militar na Ásia Central, crucial nos esforços de guerra no Afeganistão e na manutenção de um equilíbrio estratégico com a Federação Russa na região. Para os estados da Ásia Central, o resultado desta cooperação tem outros contornos. Do ponto de vista das elites no poder, a presença norte-americana significou legitimidade, dinheiro e a aparência de uma agenda partilhada na guerra contra o terrorismo. Para as sociedades da região, significou um poder mais repressivo, mais corrupção e nepotismo e um desencanto profundo com o «Ocidente» e a «América». Para os elementos da sociedade civil, jornalistas, activistas e políticos os interesses norte-americanos na região não significaram maior apoio às suas actividades ou maior pressão sobre os seus governos para tornar as suas sociedades mais democráticas. Desde as revoluções «coloridas» que os governos autoritários aprenderam as suas lições. Isto traduziu-se numa contínua degradação do contexto político e social em que estes actores da sociedade trabalham. Por fim, a crise financeira global apenas reforçou uma tendência de empobrecimento da Ásia Central que, juntamente com a corrupção endémica, tornou a vida na região ainda mais difícil.

 

O QUIRGUISTÃO ENTRE REVOLUÇÕES E REVOLTAS POPULARES

Quando cheguei a Bisqueque, em Janeiro deste ano, este contexto social, político e económico era-me familiar. Pelo menos em teoria. Depressa percebi, contudo, que a imagem romantizada do Quirguistão, no Ocidente, estava longe de corresponder à realidade. Efectivamente, entre a comunidade de estrangeiros que vive em Bisqueque a percepção generalizada era a de que, a cada dia que passava, o regime do Presidente Bakiev reforçava as suas tendências autoritárias. As promessas da Revolução das Tulipas de 2005 eram abandonadas, num contexto de crescente descontentamento. Afinal, o Presidente tinha sido reeleito em 2009, e a oposição parecia demasiado frágil, descoordenada e desmotivada para reclamar um sistema mais participativo. A população resignava-se a um sistema que, à semelhança dos estados vizinhos, procurava assegurar poder e riqueza pessoal em vez de cuidar dos interesses nacionais.

Ao longo do mês de Março e no início de Abril, uma série de eventos abriu oficialmente a nova época política, depois de um longo e rigoroso Inverno. Com a Primavera, os comícios e acções de rua multiplicaram-se, quer liderados pelo Presidente, quer pela oposição. Embora se tivesse tornado claro que o apoio que o Presidente esperava receber das estruturas políticas tradicionais, conhecidas no Quirguistão por kurultais(conselhos regionais), tinha ficado aquém das suas expectativas, o apoio que a oposição recebeu foi também marginal. Não era por isso claro de que forma a contestação às políticas do Presidente poderia ser mantida e aprofundada. A visita do secretário-geral das Nações Unidas a Bisqueque, dias antes da revolta popular de 7 de Abril, foi talvez o momento mais significativo nos últimos anos, em que um alto dirigente mundial falou abertamente sobre a necessidade de pôr fim aos abusos de direitos humanos e de investir nas estruturas democráticas da região, com vista à criação de uma segurança duradoira.

Embora seja ainda hoje difícil explicar os motivos que levaram, inicialmente, algumas centenas de manifestantes a tomar o Parlamento e depois o Palácio Presidencial, em Bisqueque, no dia 7 de Abril, a resposta está provavelmente na combinação de todos os factores que foram referidos anteriormente. Ao contrário de 2005, quando um grupo de manifestantes coordenado pela oposição exigiu que o então Presidente Askar Akaev se demitisse, reconhecendo que as eleições tinham sido fraudulentas e o fracasso das suas políticas corruptas, em Abril, a própria oposição pareceu ser apanhada de surpresa. Procurando ocupar um vazio de poder deixado pela saída do Presidente, os líderes do agora governo interino parecem ter reagido, mais do que planeado, à tomada do poder. Aquilo que em 2005 ficou conhecido como uma revolução, deveria mais correctamente ser considerado um golpe de Estado, ao passo que o que aconteceu em 2010 foi uma revolta popular.

Sobre os motivos desta revolta, muito se tem escrito ao longo das últimas semanas e muito mais se escreverá sobre as lições a aprender com estes acontecimentos. Para muitos, foi imprescindível ver a mão de Moscovo por detrás destes acontecimentos e um fracasso norte-americano, na competição por influência na Ásia Central. Afinal, o «grande jogo» parecia estar de regresso! Contudo, nada na Ásia Central é permanente, e aquilo que hoje é uma certeza absoluta no dia seguinte é uma verdade contestada. Os Estados Unidos continuarão no Quirguistão e Moscovo continuará a tentar manter a sua influência como tem feito até aqui. Outros analistas procuraram defender que a principal lição a retirar destes acontecimentos é o fracasso das políticas norte-americanas de promoção de direitos humanos e democracia, comprometidas pelos seus interesses estratégicos no Afeganistão. Esta poderá ser uma lição importante, não só para a região, como para as relações do Ocidente com países como o Azerbaijão, mas será difícil imaginar que as prioridades estratégicas serão subjugadas à promoção de democracia. A própria União Europeia, com todas as suas ambições normativas, tem mantido um equilíbrio ténue entre os seus valores e os seus interesses na Ásia Central, por vezes falhando em ambas as dimensões.

Por isso, depois de oitenta e cinco vítimas mortais e centenas de feridos, depois de um período que será de grande instabilidade institucional, financeira e social, depois do estabelecimento de um novo governo legítimo e um novo contrato social, espera-se que o país regresse à normalidade.

Da minha parte, regresso a Portugal dentro de pouco tempo, com algum alívio, mas também tristeza. O futuro do Quirguistão e da Ásia Central não deverá ser muito diferente do seu passado recente. Afinal, é preciso que tudo mude, para que tudo permaneça igual.

 

29 DE ABRIL DE 2010