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Relações Internacionais (R:I)

versão impressa ISSN 1645-9199

Relações Internacionais  n.30 Lisboa jun. 2011

 

Os Estados Unidos e a Primavera Árabe

 

Teresa Botelho

Professora auxiliar da FCSH – UNL, onde lecciona Estudos Americanos. Doutorou-se na Universidade de Cambridge, Grã-Bretanha, e fez cursos de especialização sobre política externa americana na Universidade de Harvard.

 

RESUMO

O artigo analisa, no quadro da evolução das prioridades da política externa norte-americana para o Médio Oriente e o Magrebe, a posição dos Estados Unidos face às revoltas que se desenvolveram em alguns países do Norte de África com vista à sua democratização, bem como a estratégia apresentada pelo Presidente Obama para apoiar as tendências reformadoras da região. Para tal são debatidas três hipóteses: a existência de um défice cognitivo por parte dos Estados Unidos, de um preconceito analítico resultante de uma visão redutiva da região, ou de um retraimento político global.

Palavras-chave: Estados Unidos, política externa, Norte de África, Médio Oriente

 

The United States and the Arab Spring

ABSTRACT

This article analyses the evolution of the American foreign policy priorities to the Middle East and Maghreb, the US role towards the uprisings in North Africa in order to democratization, as well as, the strategy presented by President Obama to support the reformist trends in that region. For that purpose we debate three hypotheses, the existence of a cognitive deficit in the US, of an analytical prejudice as a consequence of a reductive vision of the region and, finally, a global political retraction.

Keywords: United States, foreign policy, North Africa, Middle East

 

O Departamento de Estado é o local adequado para assinalar um novo capítulo na diplomacia americana… Hoje gostaria de falar desta mudança e… de como podemos responder de forma a que desenvolva os nossos valores e fortaleça a nossa segurança.1

O discurso de 19 de Maio de Barack Obama sobre as prioridades da política externa no Médio Oriente e no Magrebe, descrito pelo Presidente como assinalando um novo capítulo na diplomacia americana, pode ser visto como o epílogo de um acidentado processo de reavaliação das prioridades da agenda americana para o mundo árabe, imposto pela necessidade de resposta adequada à explosão antiautoritária que abalou as ilusões de estabilidade de muitos regimes árabes.

A nova agenda da Casa Branca parte da admissão de que uma estratégia baseada unicamente na persecução de interesses nacionais estreitos – o combate ao terrorismo e à proliferação nuclear, a manutenção da liberdade comercial e da segurança regional, a procura da paz entre Israel e o mundo árabe – se tem vindo a revelar insuficiente face aos desafios do presente. Reconhecendo que «a negligência em considerar as mais amplas aspirações das pessoas comuns só faz aumentar a suspeita, alimentada durante anos, de que os Estados Unidos prosseguem os seus interesses à custa dos delas», o Presidente enunciou uma estratégia de apoio às tendências reformadoras da região implementada em dois eixos, um político e outro económico. Prometendo apoio prático aos processos de transição para a democracia, na Tunísia e no Egipto, Obama anunciou programas de modernização e investimento, ajuda à integração de mercados e à estabilidade financeira, bem como, no caso do Egipto, o perdão da parcela americana da substancial dívida externa contraída pelo regime deposto.

Apresentando o apoio aos esforços de democratização como sendo no interesse nacional dos Estados Unidos, o Presidente afirmou-se «do lado dos que estão a lutar pelos seus direitos, sabendo que o seu sucesso tornará o mundo mais pacífico, mais estável e mais justo»2.

Até este discurso, a narrativa das hesitações americanas parece estruturada por avanços e recuos, afirmações contraditórias em que membros da Administração eram corrigidos por declarações de porta-vozes presidenciais3 e em que a diplomacia americana parecia incapaz de prever o desafio seguinte a que teria de responder, privada de um mapa estratégico e de um script consensual, avançando por saltos qualitativos inesperados, como o surpreendente inflectir de posições face à Zona de Exclusão Aérea sobre a Líbia.

Revisitar as críticas à política de Obama face à Primavera Árabe permite identificar um conjunto de possíveis explicações para a aparente incapacidade de resposta coerente por parte da sua Administração, que se podem resumir a três hipóteses.

Os Estados Unidos teriam sido apanhados de surpresa por movimentações populares dentro de regimes autoritários em que algumas das suas mais importantes alianças regionais assentavam, um erro de omissão que sugeriria ou uma insensibilidade particularmente aguda por parte do aparelho diplomático e de outros serviços cuja função primordial é a de ler as dinâmicas das sociedades observadas, ou, ainda mais grave, um grau de autismo analítico por parte dos processadores dessas informações e dos decisores políticos que nelas se baseiam.

A este défice cognitivo, alguns analistas acrescentam um preconceito analítico que resulta de uma aderência a uma visão redutiva da região, mediada unicamente pelas dinâmicas do conflito israelo-árabe e do combate ao islamismo extremista, que necessariamente hipervalorizaria a estabilidade dos regimes aliados (Egipto, Barém, Iémen) independentemente do preço pago internamente pelas populações respectivas. O imperativo de sustentar essas alianças parecia traduzir-se na contradição entre o apelo geral à iniciativa civil e ao respeito pelos direitos humanos constante na Declaração do Cairo de 2009 e o pragmático modus vivendi com regimes autoritários, que responderiam a cada tímida crítica americana com o espectro da ameaça jihadista.

Uma terceira hipótese aponta para um retraimento político global; os Estados Unidos de Obama teriam deixado de aspirar a um tipo de liderança internacional mais característico de um sistema unipolar do que do sistema misto pré-multipolar que se desenha, preferindo não tomar a iniciativa a menos que os seus interesses nacionais estivessem em causa, substituindo o modelo intervencionista da «nação indispensável» enunciado nos anos 1980 por Madeleine Albright, por paradigmas multilaterais e alianças formais e informais que reduzissem os riscos inerentes a uma liderança solitária.

Há inegavelmente um razoável valor explicativo nestas hipóteses, mas elas são manifestamente inadequadas para explicar o percurso que conduziu ao discurso de 19 de Maio. Sem o enquadramento do debate interno no seio do Partido Democrata e da Administração Obama, não parece possível compreender o significado das palavras de Obama, nem prever as respostas americanas aos cenários que o futuro próximo certamente gerará.

 

EMPENHO CONSTRUTIVO: RECUO DO IDEALISMO NA ADMINISTRAÇÃO OBAMA

Quando, em 2008, Madeleine Albright lamentava, no seu memorando ao Presidente eleito, o facto de uma das vítimas da política da Administração Bush ser a agenda da promoção da democracia, já que «quando falamos de democracia muitos pensam no Iraque, que não é o modelo desejado por ninguém»4, os seus comentários reflectiam uma preocupação comum tanto a intervencionistas liberais como neoconservadores, de que uma nova administração se afastasse dos parâmetros idealistas que, embora de formas diferentes, tinham pautado as administrações Clinton e Bush. Outros liberais como Anne Marie Slaughter já se tinham feito eco das mesmas preocupações. Slaughter alertara para a necessidade de desmontar a aparente associação entre intervencionistas liberais e neoconservadores através de uma clarificação meteorológica entre «democratização ou mesmo promoção da democracia», que define como um processo imposto ou impulsionado por forças externas a uma sociedade, e «apoio aos democratas» dessa mesma sociedade, sem necessariamente «apelar a mudanças de regime»5. A incapacidade de reabilitar o intervencionismo liberal do estigma associado à agenda da promoção da democracia poderia conduzir, avisa Slaughter, a uma conjuntura em que «os realistas poderão dominar de novo a agenda, valorizando a ordem e a estabilidade acima das ideologias e dos valores»6.

É significativo que Barack Obama, geralmente associado pela opinião pública internacional a uma retórica idealista, tenha utilizado, tanto nos seus ataques à intervenção no Iraque antes da sua candidatura como durante as primárias, nos debates com Hillary Clinton, uma retórica primordialmente realista, defendendo a necessidade de «uma estratégia não definida pela ideologia e pela política mas pela leitura realista dos factos no terreno e dos nossos interesses», explicando a sua oposição à Guerra do Iraque em termos «desse tipo de realismo»7.

A distribuição de cargos na Administração Obama parecia indiciar a anunciada retracção da agenda idealista. Enquanto algumas figuras de proa do intervencionismo liberal (nomeadamente Samantha Power) foram nomeados para cargos secundários, para os cargos dirigentes do Conselho Nacional de Segurança (CNS) foram indigitados realistas tradicionais como Thomas Donilon. As prioridades da política externa definidas pela Administração reflectiam o sóbrio realismo do Conselho Nacional de Segurança – restabelecer a reputação dos Estados Unidos, sair o melhor possível do Médio Oriente e do Afeganistão e virar a sua atenção para o que era verdadeiramente importante do ponto de vista do interesse nacional – a Ásia e a crescente influência internacional da China.

Por seu lado, no Departamento de Estado, Clinton combinava iniciativas de soft power, nomeadamente nas áreas do apoio ao desenvolvimento, com um alinhamento com a doutrina realista do CNS e sobretudo de Robert Gates8, o último secretário da Defesa da Administração Bush que transitara para o Governo Obama, promovendo uma doutrina de empenho construtivo em relação tanto a poderes tradicionalmente hostis aos Estados Unidos como a países aliados não democráticos.

O caso do Egipto é paradigmático das dificuldades tanto da admoestação e pressão públicas como do empenho construtivo. Em 2005, quer George W. Bush quer Condoleezza Rice tinham criticado abertamente o regime de Mubarak, pressionando o Cairo no sentido da reforma política. Depois do referendo que mudava o processo de eleição presidencial (da ratificação do candidato único nomeado pelo Parlamento para uma eleição a que se podiam apresentar vários candidatos), os Estados Unidos instaram publicamente o regime, nas palavras de Rice, a «liderar e definir o futuro democrático do Médio Oriente» garantindo que o processo fosse livre e justo, que a oposição tivesse «acesso aos media e que houvesse um verdadeiro sentido de competitividade» durante a campanha9.

A corrupção desse processo eleitoral, com a exclusão à partida de alguns candidatos, a não participação de algumas forças políticas que não confiavam na sua integridade, a alegada manipulação dos resultados e a repressão que se seguiu contra opositores, nomeadamente do candidato Ayman Nour, preso depois das eleições apesar do desagrado manifesto dos Estados Unidos10, parecer ter evidenciado os limites da influência da agenda da promoção da democracia da Administração Bush quando aplicada a um regime aliado.

Mas o empenho construtivo, com a sua lógica de não ingerência nos problemas internos dos estados, e inevitável silenciamento de críticas, que tanto sucesso teve na melhoria das relações dos Estados Unidos com a Rússia e a China, esbarrou no Egipto com as realidades de um tipo de poder que não pode tolerar qualquer significativa mudança democrática, porque fazê-lo implicaria o seu fim inevitável. Assim, os apelos de Obama em 2008 para o levantamento do Estado de sítio em vigor desde 1967 foram ignorados, como o tinham sido os mais robustos protestos de 2005. No discurso proferido no Cairo em 2009, a retórica da aproximação com o mundo islâmico aborda a questão da democracia com a máxima das prudências. Dizer aos dirigentes da região que se está consciente de «existir uma controvérsia sobre a promoção da democracia... e que muita dessa controvérsia está relacionada com a guerra no Iraque» para rematar com a promessa de que «nenhum sistema de governo pode ou deve ser imposto a uma nação por outra», sendo verdade por si mesmo, não deixa de acarretar uma mensagem implícita de não ingerência, que só podia tranquilizar os regimes autoritários da região. A paciência estratégica, resultado de um desejo de recomeçar as relações com países hostis e aliados não democráticos, estendendo a mão aos primeiros e estimulando os segundos à auto-reforma, delineada como uma nova postura, sóbria, construtiva e «não moralista», viria no entanto a encontrar o seu primeiro desafio significativo pouco tempo depois, na sequência das fraudulentas eleições iranianas e da explosão antiautoritária da Revolução Verde.

 

LIMITES DO EMPENHO CONSTRUTIVO E DA NÃO INGERÊNCIA

A história da resposta americana aos protestos no Irão parece cristalizada numa imagem convincente – a de um governo que mantém uma sóbria distância pública dos acontecimentos, consciente de que um apoio declarado aos jovens opositores de Ahmadinejad poderia destruir o apoio popular ao seu movimento, tirando-lhe legitimidade, enquanto não publicamente tudo faz para facilitar a sua campanha de desobediência. A narrativa é ilustrada pelo famoso exemplo da intervenção junto da Twitter, pedindo que a companhia suspendesse a planeada operação de upgrade que fecharia temporariamente o serviço que tão indispensável estava a ser aos jovens iranianos. O único problema com esta narrativa é que ela não conta toda a verdade. De facto, o jovem funcionário do Departamento de Estado que tomou a iniciativa de contactar a Twitter violou, com esta diligência, o que era ainda então a política oficial do Governo de «não interferência» na política iraniana. Uma fonte da Casa Branca confidenciou recentemente à revista New Yorker11 que o funcionário em causa quase perdeu o seu posto devido a essa actuação, que contrariava o distanciamento que a Administração desejava manter, quer para proteger o movimento da acusação de influência estrangeira, quer para manter operativa a hipótese de um diálogo com o Irão.

No entanto, o debate interno que dividiu a Administração Obama durante a crise iraniana deixou marcas profundas não só na burocracia governamental como no próprio Presidente, em quem a prudência realista centrada na importância das relações entre estados parece coexistir com alguma sensibilidade à realidade das sociedades e dos povos. A insuficiência dos resultados da doutrina do empenhamento construtivo e a aparente passividade perante a repressão da revolta dos opositores iranianos forçou Obama a despoletar o processo de revisão dos parâmetros da estratégia americana para o Médio Oriente que culminou no discurso de 19 de Maio passado.

Num memorando interno de Agosto de 2010 intitulado «Reforma Política no Médio Oriente e Norte de África», enviado a um conjunto de membros da sua burocracia de política externa, o Presidente diagnostica a insatisfação que prevê vir a traduzir-se em actos de revolta popular no Médio Oriente: «Há evidência», diz o memorando, «de um crescente descontentamento dos cidadãos contra os regimes da região» e é provável «que se as presentes tendências continuarem» os regimes aliados «recorram à repressão em vez de à reforma para gerirem a sua dissidência doméstica». O texto acrescenta que existe um perigo real para a credibilidade regional e internacional dos Estados Unidos se «formos vistos ou interpretados como apoiando regimes repressivos e ignorando os direitos e aspirações dos cidadãos»12.

No mesmo memorando, Obama dá instruções ao CNS para iniciar um processo de reavaliação da leitura americana da região, traçando uma estratégia sobre reforma política detalhada, país a país, recalibrando a sustentabilidade do tradicional apoio a regimes aliados na região com um impulso no sentido da reforma dos mesmos.

Na sequência deste memorando, um grupo de estudo de que faziam parte tanto defensores da agenda intervencionista, como Samantha Power, como peritos experimentados no Médio Oriente com uma distinta folha de serviço a várias administrações, como Dennis Ross, prepara um relatório detalhado que é concluído em Dezembro de 2010, pouco tempo antes do início das manifestações na Tunísia.

Não é portanto possível sustentar a teoria da surpresa. Os Estados Unidos não só previram o que poderia vir a acontecer no Médio Oriente e no Magrebe, como se procuraram preparar politicamente para uma resposta mais calibrada, que partisse de uma visão mais alargada do interesse nacional, que incluísse intangíveis como o prestígio e os valores. Mas entre as leituras detalhadas de cada situação nacional e o traçar de uma política prática consensual dentro de um governo e aparelho decisório dividido por tendências, filosofias e grupos de interesse diferentes, há um vasto espaço em que hesitações, recuos e avanços e equívocos parecem quase inevitáveis.

 

UM NOVO OLHAR SOBRE AS SOCIEDADES ÁRABES

Sinais da mudança em preparação cedo emergiram. Tendo passado quase despercebido então, o discurso que Hillary Clinton profere em Doha a 13 de Janeiro de 2011 ganha retrospectivamente um enorme significado.

Depois de um périplo pelo Iémen, Emirados Árabes e Omã, Clinton dirige-se ao Fórum para o Futuro (um espaço de diálogo anual entre os Estados Unidos e o mundo árabe estabelecido pela anterior administração), reunido em Doha, em linguagem muito mais reminiscente da retórica da promoção da democracia do que do realismo do empenho construtivo.

Depois de se ter encontrado com activistas regionais de organizações que lutam pelos direitos humanos, Clinton critica a relutância de muitos regimes árabes em proceder a reformas significativas, avisa-os de que «enquanto alguns países deram grandes passos no sentido do bom governo, em muitos outros as pessoas estão cansadas de instituições corruptas e de uma ordem política estagnada», exigindo «reformas que tornem os seus governos mais efectivos, mais atentos e mais abertos». Num apelo directo à reforma, Clinton desafia os dirigentes presentes a «ajudar a construir um futuro em que os vossos jovens acreditem, que os faça ficar e que queiram defender», e insta-os a «verem a sociedade civil não como uma ameaça mas como um parceiro»13.

As promessas de uma estratégia Obama para a promoção da democracia vão ser testadas semanas mais tarde na Tunísia mas sobretudo no Egipto, onde as incertezas da possível consequência de uma mudança temperaram a reacção americana. No discurso do Estado da União, depois do afastamento de Ben Ali, e no início dos protestos no Cairo, o Presidente americano parece distinguir entre os manifestantes da Tunísia, que elogia como exemplo do poder das aspirações democráticas de todos os povos, e os da Praça Tahrir, a quem não faz ainda qualquer referência, sugerindo que o debate interno estava longe de ter chegado a conclusões definitivas. Se o processo de decisão de qualquer presidente é inevitavelmente marcado pelo espectro da analogia histórica, esta administração parecia, durante a crise egípcia, sentir o peso de dois desaires históricos que tinham manchado a presidência Carter – a retirada tardia e atabalhoada de apoio a autocratas no Irão e na Nicarágua, em que as hesitações americanas tinham gerado o pior de dois mundos – o derrube de ditadores pró-americanos e a sua substituição, não por democratas pró-ocidentais, mas por governos igualmente autoritários, desta vez hostis aos Estados Unidos. Por outro lado, neste como noutros processos de tomada de decisão semelhantes, os Estados Unidos tinham de ter em conta não só a imagem que projectavam do valor que atribuíam aos seus aliados, como o desfecho provável da insurreição, já que movimentações populares são altamente imprevisíveis podendo perdurar ou deflacionar depois de um aparente crescendo.

Nestas condições e tendo em conta o padrão de decisões anteriores, a Administração Obama (contra influentes sectores da opinião política doméstica14) acabaria por abandonar Mubarak suficientemente cedo para parecer ter sido instrumental na sua queda, preservando assim um razoável capital de boas vontades que lhe poderão dar uma capacidade de influência nos futuros desenvolvimentos no Egipto. Mas não deixa de ser significativo que, numa reunião recente que Clinton teve com movimentos que organizaram a revolta da Praça Tahrir, alguns grupos manifestamente pouco fluentes das complexidades do Governo americano se tenham recusado encontrar-se com a secretária de Estado, acusando-a pessoalmente de ter apoiado Mubarak, ao mesmo tempo que afirmavam que Obama sempre os tinha apoiado, e que não teriam qualquer reserva em conversar com o Presidente.

Parece assim evidente que as hipóteses do défice cognitivo e do preconceito analítico não parecem ter o mesmo poder explicativo que uma leitura superficial ou parcial do processo de decisão presidencial sugere. No entanto, a terceira hipótese, a da retracção de um estilo de liderança global que caracterizou a relação dos Estados Unidos com o resto do mundo desde o fim da II Guerra Mundial, merece ser considerada com atenção.

 

ENCRUZILHADAS DE UMA LIDERANÇA AMBÍGUA

Se é errado olhar para as revoltas árabes triunfantes como uma só onda de insatisfação, ignorando as dinâmicas das tensões sociais étnicas e tribais, a distribuição de poder, o papel das forças armadas, a demografia dos opositores em cada uma das sociedades, também não é possível, como a história recente está a provar, traçar uma narrativa optimista em que a vitória antiautoritária é inevitável e o progresso segue em linha recta. Vistas a meses de distância, as insurreições da Tunísia e do Egipto assumem uma aura de romantismo revolucionário se comparadas com a violência da Líbia, da Síria, para já não falar do Barém e do Iémen, onde interesses americanos estão directamente em jogo e a ambiguidade é mais evidente15.

O caso da Líbia ilustra claramente as tensões entre as alas realista e idealista no seio da burocracia governamental americana, bem como uma acentuada relutância em assumir uma postura tradicional de liderança.

É evidente que os interesses dos Estados Unidos na Líbia eram quase insignificantes, aquando do início da campanha de contestação a Khadafi. A Líbia apresentava também um cenário interno muito mais complexo do que a Tunísia ou o Egipto, com um enfraquecimento efectivo de instituições do Estado, substituídas por redes baseadas nas estruturas tribais e uma liderança rebelde incoerente e difusa. Em comparação com o Egipto, onde o sucesso ou fracasso do impulso democrático árabe se joga, a Líbia só podia ser lida inicialmente como um cenário secundário. Como comentaria um diplomata do Médio Oriente, «O que acontece na Líbia fica na Líbia, o que acontece no Egipto afecta toda a região»16.

A brutalidade de Khadafi asseguraria que o que acontece na Líbia viria a ter impacto global quando o «imperativo de proteger» populações civis empurra os Estados Unidos para uma decisão que pareciam não querer ter de tomar – a de intervir de facto numa guerra civil, favorecendo um dos lados sobre o qual pouco sabiam, numa intervenção militar de desfecho incerto. As pressões sobre a Administração para que actuasse, apoiando a criação de uma zona de exclusão aérea que implicava um acto de agressão militar, vinham não só dos intervencionistas liberais como também dos sectores neoconservadores, que descreviam como humilhante o embaraço de uma Administração incapaz de tomar uma decisão a menos que, como apontaria Bill Kristol na Fox News, «um bando de ditadores árabes nos peça que intervenhamos contra um ditador terrível».

Contra a intervenção alinhavam-se o aparelho militar, em especial o secretário da Defesa Robert Gates, e quase todo o establishment crítico associado ao estudo da política externa, nomeadamente o prestigiado Council on Foreign Relations que chamava a atenção para os riscos do empenhamento americano na zona de exclusão aérea, e para a indefinição da missão, em que o objectivo de proteger a população de Benghazi de um massacre anunciado se confundia com o desígnio não expresso de mudança de regime.

Quando a decisão de apoiar a zona de exclusão aérea foi finalmente tomada, a capacidade negocial do Departamento de Estado, em particular da embaixadora Susan Rice, garantiu os «dentes» que o enunciado inicial não tinha, transformando uma resolução tímida numa autorização de uso musculado de força militar no que, num sentido lato do termo, podia ser entendido como uma acção preemptiva. Enquanto isso, Clinton persuadia a Rússia, que tinha avisado que nunca apoiaria uma zona de exclusão aérea, a optar pela abstenção, calculando que, sem o apoio russo, a China optasse por não exercer o direito de veto.

Mas se os episódios no Conselho de Segurança só foram possíveis pela qualidade da diplomacia americana e pelo acumular de boas vontades que o engajamento construtivo com a Rússia e a China gerara, os Estados Unidos pareciam de novo empurrados para a liderança de uma intervenção militar em que tinham tentado não se envolver. O espectro da analogia histórica com os massacres do Ruanda e de Srebrenica ditou a urgência da acção (Obama quereria certamente evitar que o seu mandato fosse manchado, como o de Bill Clinton foi, pela acusação de negligência perante dois desastres humanitários) e só os Estados Unidos estavam em condições de exercer poder militar de imediato.

O facto de terem passado o comando militar à NATO o mais depressa que foi política e militarmente possível, não diminui o dilema que os Estados Unidos parecem não poder evitar – o de serem a «nação indispensável» sem a qual a comunidade internacional não parece ser capaz de enfrentar crises de grande dimensão.

Dizer que no caso da Líbia os Estados Unidos lideraram «indirectamente», levando o resto da comunidade internacional a prosseguir os seus objectivos sem os terem de anunciar como seus é manifestamente insuficiente. Essa é certamente a mais hábil de todas as lideranças, desde que se tenha um modelo claro do que se quer que aconteça e um plano que outros possam adoptar. No caso da Líbia, as circunstâncias não parecem favorecer a existência de um plano coerente, e as duas alternativas que se parecem alinhar no horizonte – uma participação mais directa na guerra civil com o armamento dos rebeldes e envio de conselheiros militares (o que obrigaria a uma interpretação do mandato do Conselho de Segurança para além do que parece possível), ou a aceitação de uma divisão efectiva do país, usando o modelo do Curdistão iraquiano – são igualmente intragáveis para os Estados Unidos e para a comunidade internacional.

Até que ponto um insucesso na Líbia dará um novo impulso às correntes realistas na Administração Obama, contrariando os propósitos enunciados no discurso de 19 de Maio, é ainda uma incógnita. Nesse discurso, o Presidente pareceu distanciar-se do objectivo de depor Khadafi, preferindo referir o facto de este ter perdido o controlo do país e de a oposição ter organizado uma estrutura legítima e credível. Ao contrário de vários países europeus, o Presidente não declarou o Conselho Interino como o único representante do povo líbio, nem ofereceu um cenário de endgame, protegendo-se claramente da perspectiva de um fracasso ou do prolongamento do status quo.

Será pois no Egipto que o destino da doutrina Obama para promoção da democracia no mundo árabe será posta à prova. Os obstáculos são muitos – o timing do processo eleitoral para o novo Parlamento planeado para Setembro é considerado precipitado pelas forças políticas seculares e modernizantes que, ao contrário da Irmandade Muçulmana e do Partido Democrático Nacional de Mubarak, têm de adquirir aceleradamente a capacidade organizativa necessária a uma boa prestação eleitoral. As reformas económicas sugeridas por Obama irão chocar com os interesses das Forças Armadas que construíram ao longo de décadas um império de influência, baseado no Ministério para a Produção Militar, que só encontrava rival no império paralelo de Gamal Mubarak, agora dissolvido pelo Conselho Supremo das Forças Armadas, e por si absorvido.

Mais importante do que o sucesso da incipiente doutrina Obama será certamente o sucesso dos democratas no Egipto, na Tunísia, na Líbia, na Síria e em todos os outros cenários onde velhos e novos ditadores se viram obrigados a lutar pela sobrevivência contra os seus próprios povos. Mas ao aceitar o desafio de ajudar a democratizar o Médio Oriente, Obama tem agora a oportunidade de provar que pode ter sucesso onde George W. Bush falhou, prosseguindo os mesmos fins por outros meios.

 

NOTAS

1 OBAMA, Barack – «Speech at the State Department». [Consultado em: 19 de Maio de 2011]. Disponível em: http://www.whitehouse.gov/the-press-office/2011/05/19/remarks-president-middle-east-and-north-africa

2 Ibidem.

3 O mais evidente destes equívocos envolveu o enviado especial ao Egipto Frank G. Wisner, que, fazendo-se eco da política oficial da Administração no início de Fevereiro, enunciou os argumentos para a necessidade constitucional de uma transição liderada por Mubarak, viria a ser desautorizado pelo porta-voz da Casa Branca então acompanhando a secretária Clinton numa conferência em Munique, que afirmaria que as declarações do enviado presidencial eram as de um cidadão privado. Clinton tinha dito precisamente o mesmo 10 dias antes, acrescentada ser convicção dos Estados Unidos que o governo do Cairo era estável e se esforçava por corresponder às necessidades e interesses legítimos do povo egípcio.

4 ALBRIGHT, Madeleine – Memo to the President Elect: How We Can Restore America’s Reputation and Leadership. Nova York: HarperCollins, 2088, p. 9.

5 SLAUGHTER, Anne Marie – «Podhoretz’s compliant». In Democracy Journal, Inverno de 2008, p. 78.        [ Links ]

6 Ibidem, p. 74.

7 Comunicação do senador Barack Obama – «A Way Forward in Iraq», Chicago Council on Global Affairs. [Consultado em: 20 de Novembro de 2006]. Disponível em: http://www.swamppolitics.com/news/politics/blog/2006/11/obamas_iraq_exit_strategy.html

8 Este entendimento entre Clinton e Robert Gates seria confirmado durante o processo de revisão da política em relação ao Afeganistão, em que apoiou o pedido de reforço significativo da capacidade militar no terreno defendido por Gates e as Forças Armadas, em oposição às reservas publicamente expressas por Richard Holbrooke, o enviado especial para o Afeganistão, e pelo embaixador americano em Cabul.

9 RICE, Condoleeza – American University of Cairo Speech. [Consultado em: 21 de Junho de 2005]. Disponível em: http://articles.cnn.com/2005-06-20/world/mideast.rice_1_sharm-presidential-election-rice-speech?_s=PM:WORLD

10 Rice suspenderia uma visita ao Cairo em protesto, e a Casa Branca viria a emitir um protesto oficial após a sua condenação.

11 LIZZA, Ryan – «The consequentialist: how the Arab Spring remade Obama’s foreign policy». In The New Yorker, 2 de Maio de 2011, p. 50.        [ Links ]

12 Ibidem, p. 51.

13 Discurso de Hillary Clinton no Forum for the Future in Doha. [Consultado em: 13 de Janeiro de 2011. Disponível em: http://still4hill.wordpress.com/ 2011/01/28/worth-a-second-look-secretary-clintons-speech-of-jan-13-at-forum-for-the-future-in-doha/

14 Um número significativo de ex-diplomatas e especialistas de várias áreas políticas, entre eles Henry Kissinger e Zbigniew Brzezinski, instaram o Presidente a não retirar o apoio a Mubarak, e importantes aliados como Israel e a Arábia Saudita mostraram grande desconforto, embora por razões muito diferentes, com a forma como a Administração abandonou o seu antigo aliado.

15 No Barém, os Estados Unidos têm de ter em consideração que o território serve de base à sua 6.ª Frota do Mediterrâneo. No Iémen, o Presidente Saleh tem sido, nos últimos anos, um precioso aliado americano na luta contra a Al-Qaida.

16 Cit. KLEIN, Joe – «Washington’s policy sandstorm». In Time. Vol. 177, N.º 12, 28 de Março de 2011, p. 14.        [ Links ]