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Relações Internacionais (R:I)
versão impressa ISSN 1645-9199
Relações Internacionais no.38 Lisboa jun. 2013
A China e a Índia no Atlântico Sul
China and India in the South Atlantic
Miguel Santos Neves
Doutorado pela London School of Economics and Political Science e MPhil pelo Institute of Development Studies da Universidade de Sussex. É professor na Universidade Autónoma de Lisboa nos departamentos de Direito e de Relações Internacionais, investigador no Observare-UAL e director dos Programas Ásia e Migrações do Instituto de Estudos Estratégicos e Internacionais. Membro de diversas redes internacionais de investigação sobre a Ásia e as relações UE-Ásia, tem colaborado com a ASEF em diferentes iniciativas e integra o conselho científico da Asia Europe Journal.
RESUMO
O artigo começa por analisar os objetivos, a estratégia e o impacto da presença da China no Atlântico Sul e a forma como tem respondido aos desafios que se vão colocando. Depois centra-se na análise da presença da Índia, procurando perceber as conexões com o seu espaço estratégico natural e a relevância das relações que mantém com o Brasil e a África do Sul. Por fim procede a uma análise comparativa da ação e impacto da China e da Índia de modo a identificar pontos de convergência e de divergência e refletir sobre a própria relação bilateral no contexto do Atlântico Sul assim como sobre as tensões e contradições no seio dos BRICS
Palavras-chave: China, Índia, Atlântico Sul, BRICS
ABSTRACT
This paper begins by analysing the goals, strategy and impact of Chinas presence in the South Atlantic and the way it has met the challenges it has come across. The analysis then shifts to Indias presence, seeking to understand the connections with its natural strategic space and the relevance of its relationships with Brazil and South Africa. Finally, it carries out a compared analysis of the action and impact of China and India, with a view to identifying points of convergence and divergence and reflecting on the bilateral relation itself in the context of the South Atlantic, as well as on the tensions and contradictions in the BRICS midst.
Keywords: China, India, South Atlantic, BRICS
O Atlântico Sul tem sido alvo de crescente atenção por parte quer das potências tradicionais, quer das novas potências emergentes, de uma competição intensa pelo controlo de recursos atuais, mas também de recursos futuros. Tradicionalmente uma das zonas menos desenvolvidas do ponto de vista estratégico marcada por uma reduzida tradição marítima em ambos os lados, africano e americano, sem capacidade militar naval relevante e ausência de cooperação na área da segurança entre as duas margens, tem conhecido na última década um processo de densificação estratégica.
O crescente interesse e militarização do Atlântico Sul tem causas complexas que em boa medida se relacionam com a ascensão dos poderes emergentes, quer os residentes, o Brasil e a África do Sul, quer os externos que têm vindo a reforçar a sua ação fora da sua região, mas também com a intensificação das suas inter-relações no contexto de uma reforçada cooperação Sul-Sul sustentada por um forte dinamismo económico e pelo desenvolvimento de uma coordenação política e diplomática capaz de introduzir mudanças na agenda internacional e de os colocar no centro do sistema de governança global. O Atlântico Sul emerge assim como um espaço privilegiado do complexo processo em curso de redistribuição do poder mundial, também interessante para compreender as tensões e contradições no seio dos principais poderes emergentes.
A China e a Índia têm vindo a reforçar a sua presença nos dois lados do Atlântico Sul, com intensidades e implicações diferenciadas, contribuindo ativamente para o referido processo de densificação estratégica. A análise das características e impacto da sua presença assume particular relevância não só porque apresentam diferenças de modelo no plano económico e político, não obstante algumas motivações comuns, mas também porque mantêm com as economias emergentes residentes relações distintas para além de as relações China-Índia na região serem marcadas por uma intensa competição.
O artigo está estruturado em três partes. A primeira analisa os objetivos, a estratégia e o impacto da presença da China no Atlântico Sul e a forma como tem respondido aos desafios que se vão colocando. A segunda parte centra-se na análise dos contornos, motivações e estratégia da presença da Índia, procurando perceber as conexões com o seu espaço estratégico natural e a relevância das relações que mantém com os emergentes residentes: o Brasil e a África do Sul. A terceira parte procede a uma análise comparativa da ação e impacto da China e da Índia de modo a identificar pontos de convergência e de divergência e refletir sobre a própria relação bilateral no contexto do Atlântico Sul assim como sobre as tensões e contradições no seio dos BRICS.
CRESCENTE RELEVÂNCIA ESTRATÉGICA DO ATLÂNTICO SUL
O Atlântico Sul tem vindo a assumir uma crescente relevância estratégica surgindo como palco de competição entre as velhas potências e as potências emergentes, quer pelo controlo direto de recursos naturais, presentes e futuros, quer pela influência sobre rotas marítimas e governação dos oceanos. O Atlântico Sul, até aqui uma das regiões menos desenvolvidas do ponto de vista geoestratégico, objeto de uma certa marginalização e reduzido interesse, tem vindo a ganhar densidade estratégica e a registar uma nova dinâmica, marcada pela sua crescente militarização, pela eventual alteração do seu estatuto de região desnuclearizada, alimentada por especulações sobre a alegada colocação de ogivas nucleares nas Falklands/Malvinas pelo Reino Unido, e pela crescente presença de atores externos.
Esta crescente relevância resulta da interação entre quatro fatores fundamentais1.
Em primeiro lugar, a dimensão e significado estratégico dos recursos naturais existentes no Atlântico Sul, tanto atuais como futuros. Os recursos energéticos ocupam lugar de destaque, desde logo o petróleo e o gás natural explorados; quer na costa da América do Sul, em especial no Brasil, quer na costa ocidental africana (Nigéria, Angola, Costa do Marfim, Camarões, Gabão, Congo), essencialmente exploração offshore no mar nos limites da plataforma continental, produzindo no final de 2011 cerca de 4,7 milhões de barris/dia na costa africana (Nigéria, Angola, Gabão, República do Congo) e 2,8 milhões/dia na costa da América do Sul, incluindo Brasil e Argentina, o que corresponde respetivamente a 5,7 por cento e 3,7 por cento do total de produção mundial2.
A relevância não resulta apenas do significado quantitativo mas sobretudo do facto de esta produção dos dois lados do Atlântico Sul ter sido encarada estrategicamente pelas principais potências como o mecanismo essencial para diversificarem as suas fontes de abastecimento e reduzirem a sua dependência do petróleo relativamente ao Médio Oriente. O caso da China em relação a Angola, que se transformou no segundo maior fornecedor mundial das importações chinesas, e dos Estados Unidos no que respeita aos produtores africanos e ao Brasil absorvendo quase metade dos 45 por cento das exportações brasileiras de petróleo são exemplificativos. Para além da produção é hoje fundamental a capacidade de refinação e transformação que existe na região, em especial no Brasil com 13 refinarias e mais cinco em fase de construção, e a capacidade existente na África do Sul, a segunda maior em África a seguir ao Egito, na Nigéria (quatro refinarias) e em Angola (uma refinaria e planos para uma segunda).
Mas para além do petróleo existem outros recursos estratégicos, designadamente alimentares relacionados com os significativos recursos piscícolas existentes no Atlântico Sul onde também se localizam as maiores concentrações e densidades de krill do mundo3, base de toda a cadeia alimentar, em especial na zona entre as Malvinas e a Antártida, essenciais para fazer face a riscos crescentes de insegurança alimentar. O krill (zooplâncton) para além do seu papel fundamental como base de toda a cadeia alimentar é também explorado diretamente como fonte de proteínas e utilizado para alimentar os peixes produzidos em aquicultura. Por outro lado, a capacidade de produção agrícola de alimentos dos dois lados do Atlântico Sul é muito significativa já que aí se situam as maiores reservas a nível global de terra arável, com disponibilidade de água e reduzida pressão populacional, ideais para a produção de alimentos, razão porque têm sido objeto de controlo no âmbito do fenómeno do land grab.
Importa sublinhar que os recursos não são apenas os atuais, mas também os futuros tendo em conta a relevância do Atlântico Sul como base de projeção sobre a Antártida e, não obstante o Tratado da Antártida de 1959, acesso e exploração dos recursos da Antártida relativamente à qual as principais potências se começam a posicionar para uma corrida aos recursos ali existentes, energéticos, minerais e sobretudo a água, já que os glaciares da Antártida contêm 90 por cento da água doce do Globo.
Em segundo lugar, o crescimento económico vigoroso nas principais economias do Atlântico Sul gerou uma expansão das exportações das principais economias dos dois lados do oceano e, consequentemente, das rotas marítimas existentes no Atlântico Sul, incluindo o complexo de rotas entre a América do Sul e a Europa, um dos mais importantes em termos globais. Noutros casos está em causa a diversificação de rotas, que poderá resultar de uma renovada relevância da Rota do Cabo em resultado do aumento do tráfego de petroleiros da costa africana para a Ásia, ou do uso alternativo das rotas de ligação entre o Pacífico e o Atlântico Sul, designadamente o cabo Horn, que não obstante a sua secundarização em consequência da intensificação do tráfego pelo canal do Panamá, poderão ser alvo de renovado interesse face aos potenciais custos elevados associados à utilização do canal do Panamá após a expansão prevista para 2014. Uma das questões centrais é a segurança da navegação marítima face ao agravamento da pirataria no golfo da Guiné, onde se tem vindo a registar um número crescente de incidentes. Em 2012 foi sinalizada como a região com o segundo maior número de incidentes a nível global, a seguir ao mar do Sul da China, sugerindo uma deslocalização parcial do problema da pirataria do golfo de Adém para o golfo da Guiné e o canal de Moçambique4.
Em terceiro lugar, o Atlântico Sul surge como um palco privilegiado da competição por influência estratégica e redistribuição do poder entre os Estados Unidos e os seus aliados e os novos poderes emergentes, em particular a China, com a interação entre diferentes dinâmicas: o projeto de expansão da zona de influência da NATO para o Atlântico Sul e a estratégia da «NATO Global» que tem no Chile o seu principal aliado na região; a emergência do Brasil como poder regional, focado no objetivo de garantir a segurança da «Amazónia Azul» e consequente reforço da sua capacidade naval; o reforço da cooperação militar entre os dois lados do Atlântico, em especial entre o Brasil e a África do Sul, designadamente no domínio naval e dos submarinos, que em conjunto se opõem à expansão da NATO para sul; a projeção de poder da China como ator global e a sua crescente presença no Atlântico Sul com o objetivo de conter expansão da influência dos Estados Unidos e da NATO. Em resultado temos vindo a assistir a uma militarização crescente e securitização do Atlântico Sul decorrentes da modernização da marinha brasileira e significativo aumento das despesas militares do Brasil, da agudização da tensão entre a Argentina e o Reino Unido à volta das Falklands/Malvinas, em cujas águas territoriais foram descobertas importantes reservas de petróleo já em exploração ou da reativação da 4.ª Esquadra norte-americana.
Este quadro de competição é ainda exacerbado por dois fatores específicos que caracterizam o Atlântico Sul. Por um lado, é um mar aberto, com poucas ilhas, comparado com outros oceanos, o que implica a inexistência de base territorial para a consolidação e exercício de direitos soberanos exclusivos. Muitos recursos, em especial numa perspetiva de exploração futura, estão localizados no mar alto, no leito e subsolo oceânicos a grandes profundidades, e constituem global commons pelo que as movimentações de controlo de facto se revelam decisivas.
Por outro lado, a circunstância de ter sido encarada como uma zona marginal, quase uma extensão do Atlântico Norte, estrategicamente pouco densa, que resulta também da ausência de uma tradição marítima dos dois lados do Atlântico Sul, em especial no lado africano, inexistência de capacidade militar naval e ausência de cooperação em matéria de segurança entre os estados costeiros. Em resultado da interação entre estes dois fatores, o Atlântico Sul é uma região onde não existem posições consolidadas, antes uma certa fluidez e flexibilidade com uma margem significativa para afirmação de interesses e construção de alianças.
Em quarto lugar, no plano político o Atlântico Sul constitui um espaço importante de democratização, onde alguns dos processos mais significativos de sucesso de transição democrática tiveram lugar, casos do Brasil, da Argentina e da África do Sul, reforçando as condições de estabilidade e onde outros estão ainda em consolidação. A democratização contribuiu para relações menos tensas e de maior proximidade entre os países, mas a questão que se coloca é a de saber até que ponto a crescente influência da China e do seu «Beijing consensos» poderá ter um impacto menos positivo sobre as transições políticas ainda não consolidadas, como no caso de Angola.
A CHINA NO ATLÂNTICO SUL: OBJETIVOS E ESTRATÉGIA
A China tem vindo a implementar desde finais dos anos 1990 a estratégia «Going Out», tendo como objetivos fundamentais o controlo de recursos naturais, em especial energéticos de que a economia chinesa é grande consumidora e importadora, a aquisição de experiência internacional pelas grandes empresas chinesas e reforço da sua competitividade e capacidade de gestão, a obtenção de tecnologias estrangeiras e a aquisição de empresas estrangeiras de prestígio para controlo de marcas, redes de distribuição e tecnologias. A implementação da estratégia foi assente no exercício do soft power, mas articulado com a consolidação do hard power e investimento significativo na modernização e reforço da capacidade militar.
Esta estratégia de afirmação como ator global levou a China a expandir a sua influência para fora da Ásia, em especial em África e na América Latina e mais recentemente na UE, tirando partido do enfraquecimento das relações dos Estados Unidos com estas regiões, procurando articular três objetivos fundamentais: (i) assegurar o controlo sobre recursos estratégicos, em especial energéticos, fundamentais para garantir a segurança energética e a continuidade do crescimento económico extensivo chinês e reduzir a vulnerabilidade diversificando o risco; (ii) promover a erosão do soft power americano e europeu em espaços de influência tradicional, limitando a sua margem de manobra; (iii) diversificar mercados com o duplo propósito de reduzir a pressão política relacionada com os excedentes comerciais e responder antecipadamente a problemas futuros de diminuição de competitividade das exportações chinesas.
As relações económicas têm-se reforçado com as duas regiões, mas são fortemente concentradas nos países da orla do Atlântico Sul, uma vez que os principais parceiros económicos em África são países da costa atlântica, em especial a Nigéria, Angola e África do Sul, enquanto na costa da América do Sul as relações se concentram no Brasil e Argentina, podendo também aqui ser incluídas as relações com a Venezuela, politicamente parte do Atlântico Sul embora geograficamente próxima das Caraíbas. A presença económica tem assumido três formas distintas: comércio, investimento direto e financiamento.
No plano comercial, o comércio total com os principais parceiros dos dois lados do Atlântico Sul representava em 2011 um total de 139 mil milhões de euros, ou seja, 5,8 por cento do comércio total da China (quadro 1). Em termos agregados a China regista um défice comercial, já que importa mais do que exporta, com a exceção da Nigéria e Argentina, sendo os défices comerciais mais significativos com Angola e o Brasil. Enquanto as importações são fundamentalmente constituídas por petróleo, outras matérias-primas e alimentos, as exportações chinesas são no essencial compostas por produtos industriais manufaturados.
Os recursos energéticos, em particular o petróleo, são a principal importação da China, constituindo o único produto importado de Angola que ao nível global é o segundo maior fornecedor da China com 623 mil barris/dia, ou seja, 12 por cento do total das importações chinesas em 2012, a seguir à Arábia Saudita com 20 por cento. A Venezuela é o oitavo maior fornecedor (230 mil barris/dia), responsável por 4,5 por cento, seguida do Brasil (134 mil barris/dia) que fornece 2,7 por cento e do Congo (113 mil barris/dia) com 2,3 por cento das importações chinesas5. A China importava em 2011 cerca de cinco milhões barris/dia o que corresponde a uma taxa de dependência das exportações de 54 por cento para satisfação da procura, destinadas ao consumo e à constituição das «reservas estratégicas de petróleo» que no final da terceira fase deverão atingir 500 milhões de barris. O grau de dependência do Médio Oriente é ainda muito elevado, representando cerca de 50 por cento das importações num contexto em que os Estados Unidos têm vindo a reduzir de forma significativa a sua dependência relativamente a esta região. Em conjunto estes quatro produtores que extraem petróleo em explorações offshore no Atlântico Sul garantem atualmente o fornecimento de 21,5 por cento das importações de petróleo da China, representando a principal aposta para reduzir a dependência do Médio Oriente, controlar riscos e aumentar a sua segurança energética.
A outra forma de presença relaciona-se com o investimento direto chinês, que tem crescido de forma significativa dos dois lados do Atlântico Sul com objetivos muito diversificados. Em primeiro lugar, o controlo direto de recursos energéticos, petróleo e gás natural, com a participação das empresas petrolíferas chinesas na exploração direta de petróleo, por exemplo em blocos em Angola (blocos 18, 31 e 32), no Brasil, compra pela Sinopec de participações de empresas estrangeiras em projetos (caso da Repsol Brasil e da Galp Brasil). O investimento nas indústrias extrativas é igualmente significativo, sobretudo no controlo de abastecimento de minérios como o ferro, o cobre, o níquel e o alumínio de que a economia chinesa necessita, traduzindo-se em investimentos principalmente na África do Sul (compra da Metorex pelo Jinchuan Group em 2011 e da South Africa Wesizume Platinum em 2013) e no Brasil (compra pela East China Mineral de minas de ferro à Itaminas em 2010 e aquisição de 21,5 por cento da MMX pela Wuhan Iron & Steel) onde o setor dos minérios concentrou cerca de 53 por cento do investimento chinês até 2011.
Outro dos objetivos estratégicos do investimento chinês é responder aos riscos elevados de insegurança alimentar futura na China, resultado da redução drástica de terra arável e da indisponibilidade de água, agravada pelos contornos da crise dos alimentos de 2007-2009 com aumentos significativos dos preços mundiais, através da aquisição de terra agrícola em países com abundância de terra arável e disponibilidade de água para produção de alimentos dirigidos ao mercado chinês no contexto de um fenómeno que tem sido designado como land grab6. Este processo é evidente no Brasil, tendo o ritmo de crescimento das aquisições de terras após 2007 e a dimensão potencial do fenómeno levado o Governo brasileiro a regular a questão no sentido de estabelecer um limite à área de terra agrícola que pode ser detida por estrangeiros7, na Nigéria e existem indícios também em Angola.
A questão da insegurança alimentar tem ainda uma dimensão complementar já que o Atlântico Sul e os países costeiros com direitos de pesca se revelam estratégicos para a China em função dos vastos recursos piscícolas aí existentes, num contexto em que o controlo de recursos piscícolas e direitos de pesca tem sido um dos fatores centrais nas disputas territoriais em que a China tem estado envolvida quer no mar da China Meridional, quer no mar da China Oriental. Neste momento, a China juntamente com a Coreia do Sul e a Noruega, é um dos principais atores na pesca do krill no Atlântico Sul8.
A presença do investimento chinês, que em África tem como primeiro destino a Nigéria e na América do Sul o Brasil, tem também expressão significativa no setor das infraestruturas em África, em particular caminho-de-ferro e portos, numa lógica de garantir o escoamento das matérias-primas para a China e operação dos portos, e telecomunicações. Neste último setor as duas principais empresas chinesas, Huawei e ZTE, controlam o setor das telecomunicações em diversos estados africanos como a Nigéria (Huawei), Angola (ZTE) e África do Sul (Huawei e ZTE), o Quénia, tendo criado também seis centros de formação e investigação Huawei (Nigéria, Angola, Quénia, África do Sul, Egito e Tunísia) e quatro centros ZTE de formação (Egito, Etiópia, Argélia e Gana)9. O setor das telecomunicações tem atraído crescente investimento chinês centrado nos telefones móveis motivado pelo facto de os mercados africanos de telemóveis serem os que registam crescimento mais rápido a nível mundial e de as empresas chinesas, mercê de custos de produção baixos, conseguirem disponibilizar tecnologias avançadas a preços acessíveis e terem investido no desenvolvimento das infraestruturas de telecomunicações garantindo uma ampla cobertura de rede. Contudo, este investimento tem associado «empréstimos ligados» para a rede de telecomunicações no sentido de os governos adquirirem exclusivamente equipamento chinês. Em contraste, este não é um setor com grande expressão no Brasil ou na Argentina.
O investimento chinês tem ainda sido dirigido para o setor industrial, a indústria transformadora, com base na transposição do modelo das zonas económicas especiais chinesas para África através da criação de diversas zonas industriais designadas como trade and economic cooperation zones com estatuto especial e criadas no âmbito de parcerias entre os estados africanos e províncias chinesas ou grandes empresas públicas, orientadas para a atração de investidores chineses embora abertas a outros. Até este momento estão já a funcionar ou em fase de conclusão sete zonas em cinco países10: duas na Zâmbia, zonas de Chambishi (cobre e transformação cobre) e Lusaka (vestuário, eletrónica, aparelhos elétricos); duas na Nigéria, zonas de Lekki (equipamento de transporte, têxtil, aparelhos elétricos e de telecomunicações) e Ogun (mobiliário, materiais de construção, computadores, transformação de madeira); uma nas Maurícias, Jinfei (têxtil, vestuário, máquinas, serviços em especial turismo e serviços financeiros); uma na Etiópia, Oriental (siderurgia, metalurgia, máquinas elétricas); uma no Egito, no Suez (agricultura, indústria e serviços).
Este investimento tem três objetivos principais. Em primeiro lugar, abastecer os mercados locais e reforçar a posição da China no mercado, num contexto em que muitas economias africanas têm perspetivas de um significativo aumento do rendimento per capita e de aumento da procura. Em segundo lugar, reciclar uma parte das exportações chinesas através de um sistema de comércio indireto de reexportação, nos termos do qual em vez de os produtos industriais saírem da China seriam exportados produtos semiacabados a partir da RPC para as zonas especiais em África onde seriam acabados, embalados e exportados para os mercados americano e europeu. Tal permitiria reduzir a tensão política relacionada com os superavits comerciais chineses com os Estados Unidos e a UE, ao fazer baixar os valores dos défices, já que formalmente estas exportações deixariam de ser da RPC para serem exportações oriundas dos países africanos envolvidos, embora controladas por empresários chineses e integradas com o sistema produtivo chinês.
Em terceiro lugar, reforçar a competitividade das exportações chinesas, quer através da redução de custos salariais face ao aumento dos mesmos na China, quer através do aproveitamento dos sistemas preferenciais de acesso aos mercados da OCDE e correspondentes reduções tarifárias, designadamente o sistema generalizado de preferências de que esses países africanos beneficiam, mas que não utilizam por não terem produção industrial com expressão.
No contexto da América do Sul, o investimento chinês tem vindo a crescer especialmente no Brasil, mas muito concentrado no setor das indústrias extrativas de metais (estimativa de 59 por cento do ide da China na América do Sul na indústria extrativa de metais). O Brasil é o maior polo de concentração do investimento direto chinês na região e o quarto maior destino mundial do ide da China no exterior entre 2005-2012, com um stock de cerca de 25 mil milhões de dólares, o que representa 4,2 por cento do stock de ide no Brasil, a seguir à Austrália, Estados Unidos e Canadá11.
Enquanto o investimento direto tem sido o principal instrumento nos países da América do Sul, embora o instrumento financiamento tenha também sido utilizado no caso da Venezuela12, no lado africano o instrumento de influência económica mais significativo tem sido o financiamento através das grandes instituições financeiras públicas chinesas, o Export and Import Bank of China (Exim), o Industrial and Commercial Bank of China (ICBC), o China Development Bank (CDB), e de um braço formalmente privado, o China International Fund (CIF), mas na realidade com fortes ligações às áreas de segurança do Estado chinês.
Contrariamente à perceção generalizada, o investimento direto chinês em África tem tido menos expressão do que o financiamento, como o demonstra o caso de Angola, o que revela uma preocupação em limitar a exposição ao risco. Este financiamento tem características específicas. Para além de ter um caráter concecional com taxas de juro em princípio mais baixas do que as de mercado, tem sido associado à construção de infraestruturas de prestígio e com garantias de petróleo. Apesar da referência à inexistência de condicionalidade política, o que não é totalmente correto tendo em conta o fator Taiwan, o facto é que este apoio financeiro é «ligado» e tem uma forte condicionalidade comercial na medida em que a maioria dos contratos de empreitada têm de ser atribuídos a empresas chinesas que usam predominantemente mão-de-obra chinesa.
Esta constitui, aliás, uma outra dimensão da presença chinesa que é o elemento humano, que se tem traduzido num crescimento exponencial dos fluxos migratórios e dos imigrantes chineses para os países dos dois lados do Atlântico Sul, em especial para o lado africano não sendo ainda visível um fenómeno com escala semelhante na América do Sul. É impossível estimar com rigor os números envolvidos, mas terão ultrapassado já os dois milhões em África se incluirmos também os fluxos ilegais, com as maiores comunidades situadas na África do Sul, Nigéria, Angola, Sudão, e Gabão. Incluem quatro tipologias distintas de imigrantes: trabalhadores temporários para os grandes projetos de obras públicas; pequenos comerciantes e empresários; imigrantes em trânsito; agricultores para as novas explorações controladas pela China, todos recentemente chegados e com grandes dificuldades de integração em culturas muito distintas13.
Este crescimento rápido associado à distância cultural, à não criação de emprego local, à redução dos salários e dos standards laborais têm gerado crescentes tensões com a população local e movimentos de contestação. Na perspetiva de Pequim este processo tem várias vantagens potenciais, não só contribuindo para aliviar o problema doméstico do desemprego como também para consolidar a influência chinesa e o controlo de setores-chave como o comércio a retalho. Contudo, esta dimensão tem-se revelado como uma fonte de problemas e de tensões que afeta negativamente a imagem da China e agrava os problemas de segurança dos cidadãos chineses gerando uma pressão para a proteção dos mesmos e um novo desafio securitário para o poder chinês na sua capacidade para lidar com riscos políticos.
A perspetiva da China relativamente ao Atlântico Sul envolve também uma dimensão de hard power numa perspetiva de longo prazo, relacionada com a consolidação da capacidade naval chinesa. O processo de forte militarização da China tem tido como um dos eixos principais o reforço da sua capacidade naval e a criação a longo prazo de uma blue water navy capaz de projetar o poder chinês e reduzir a vulnerabilidade decorrente da enorme dependência da China da liberdade de navegação nos oceanos uma vez que 90 por cento do seu comércio externo utiliza o transporte marítimo, quer para receber importações estratégicas vitais (produtos energéticos e alimentos), quer para escoar as suas exportações. Assim, a sua prosperidade, tal como para a generalidade dos BRICS, está fortemente ligada ao mar e à segurança marítima sendo necessário responder às principais ameaças, em particular os problemas da pirataria marítima e do crime organizado transnacional, por um lado, e o constrangimento gerado pela posição de preponderância da marinha americana, por outro. Com o aumento do significado dos recursos energéticos e minerais que a China obtém dos dois lados do Atlântico Sul e o potencial acesso futuro a recursos dos global commons nessa região, Pequim está confrontada com a necessidade, agravada pela inexistência de capacidade naval em muitos dos estados africanos, de garantir a segurança, quer da captação, quer do transporte desses recursos no Atlântico Sul.
A criação de uma blue water navy, que alguns consideram ainda frágil e benigna14, é essencial para esse fim e implica bases navais no estrangeiro em pontos estratégicos, tendo a questão sido objeto de análise relativamente à criação de uma rede de bases navais no oceano Índico, envolvendo potenciais bases em Gwadar (Paquistão), Lanu (Quénia), Hambantota (Sri Lanka) e mais recentemente Seychelles, que analistas norte-americanos designaram como a estratégia de string of pearls15. Pequim tem procurado introduzir e consolidar esta questão e a participação de navios chineses na operação internacional antipirataria na costa da Somália, operação «Atalanta» liderada pela UE, tem sido encarada como um momento de afirmação da nova missão da Peoples Liberation Army Navy (PLAN) ao mesmo tempo que protegia os interesses estratégicos chineses e a segurança da navegação dos barcos chineses no golfo de Adém, por onde continuam a transitar cerca de 50 por cento das importações chinesas de petróleo.
Recentemente, no âmbito de uma publicação chinesa de natureza oficiosa, surgiu um plano de criação de uma rede de 18 bases navais, designadas como overseas strategic support bases, caracterizadas não como bases militares mas como bases de reabastecimento com três formatos distintos: 15 no Índico (Paquistão, Sri Lanka, Seychelles, Maurícias, Moçambique, Quénia, por exemplo) e três no Atlântico Sul a serem localizadas na Nigéria, em Angola e na Namíbia16. O aspeto inovador, para além do aumento do número de bases no Índico, é o de pela primeira vez ser colocada a hipótese de bases navais no Atlântico Sul o que implica uma ampliação do string of pearls. Sendo incerto o momento da sua concretização, a China encara a sua presença militar naval no Atlântico Sul como um fator natural da salvaguarda dos seus interesses estratégicos e uma afirmação da sua condição de potência global.
Sobre o significado desta iniciativa existem duas visões opostas. A primeira, a tese da string of pearls, considera existir uma ameaça da China dominada pelo objetivo de projeção de força. A segunda é uma tese mais benigna sobre o plano chinês, a tese de places not bases17, que considera que apenas está em causa a identificação de locais para reabastecimento de combustível e não bases militares, para navios que pretenderiam sobretudo combater a pirataria e garantir a segurança dos corredores marítimos vitais para a China.
Este cenário gera não só uma tensão potencial com os Estados Unidos que vêm procurando consolidar a sua posição na região com a reativação da 4.ª Esquadra americana em abril de 2008 (após quarenta anos desativada) e a criação do AFRICOM (United States Africa Command) em outubro de 2008, mas também com o Brasil que está igualmente apostado num plano de militarização desde 2008 na sequência do Plano de Defesa Nacional do mesmo ano, e como reação ao reposicionamento estratégico dos Estados Unidos, envolvendo a criação da sua capacidade naval e a sua afirmação como potência regional que se opõe à expansão estratégica da NATO e a qualquer projeto de presença militar da China.
A principal prioridade do Brasil é o controlo da «Amazónia Azul» (uma área de cerca de 4,5 milhões de quilómetros quadrados correspondentes ao somatório da zona económica exclusiva e plataforma continental) e o patrulhamento e segurança no Atlântico Sul, para proteção dos recursos naturais junto à costa e explorações petrolíferas offshore. Tal gerou uma alteração do pensamento estratégico brasileiro relativamente às relações com África e uma aposta na cooperação entre os dois lados do Atlântico Sul traduzida em iniciativas como o reforço da cooperação militar com a África do Sul, ilustrado pelo início do funcionamento do Joint Defence Committee em março de 2013, o apoio ao desenvolvimento da Marinha da Namíbia ou o apoio técnico aos estados costeiros africanos para o estudo das suas plataformas continentais. A construção dos novos submarinos nucleares brasileiros, desenvolvidos em parceria com a França, irá permitir reforçar esta capacidade de patrulhamento do Atlântico Sul e a dinamização da parceria IBSA na área da defesa, e reforçar a margem de manobra face ao poder e pressão de Pequim.
Independentemente da questão das futuras bases navais, a verdade é que a China já iniciou uma estratégia de presença «diplomática» de navios militares e não militares no Atlântico Sul que se tem feito sentir através de dois mecanismos: a política de visitas «diplomáticas» de navios militares a diferentes países no Atlântico, como a visita à África do Sul de dois navios em abril de 2011 ou a recente visita em abril da 13th Escort Task Force a operar na missão do golfo de Adém ao porto de Casablanca em Marrocos; a visita discreta de navios civis, geralmente de investigação científica, caso da visita em 2012 do navio de investigação científica Dayang Yihao à Nigéria onde desenvolveu uma missão de investigação em águas profundas, certamente com objetivos de prospeção de recursos18.
O apoio ao reforço da capacidade naval de estados do Atlântico Sul, como nos casos da Namíbia e da Nigéria19 por parte da PLAN, é um exemplo claro dos diferentes canais utilizados pela China para reforço de influência. No caso da Namíbia, a China tem vindo a fornecer os navios mais recentes e mais sofisticados para a sua marinha, caso do NS Elephant fornecido em junho de 2012, sendo também responsável pelo treino da respetiva tripulação, com vista a capacitar a Namíbia para controlar a sua Zona Económica Exclusiva, questão em que a China tem interesse direto.
No caso da Nigéria, o apoio militar, para além do apoio ao desenvolvimento da indústria de armamento, da venda de armas (por exemplo, aviões F-7), está fundamentalmente centrado no reforço da capacidade naval nigeriana para intervir no golfo da Guiné e controlar a crescente ameaça da pirataria marítima20. Face à ameaça que a pirataria representa para a segurança dos navios chineses, a China, confrontada com as limitações políticas de uma ação direta, age indiretamente através de um Estado com poder para combater ações ilegais na sua área de jurisdição, simultaneamente reforçando a sua influência e imagem de defensor do interesse comum ao mesmo tempo que evita uma ação internacional e a presença de outras potências.
A ÍNDIA NO ATLÂNTICO SUL
O espaço estratégico natural da Índia é o Índico, porém, em resultado das necessidades do seu próprio processo de desenvolvimento e da rivalidade com a China, designadamente na competição por recursos, a Índia tem vindo a reforçar a sua presença no Atlântico Sul embora com uma escala menor e condicionantes distintas da China.
A presença económica assenta principalmente no comércio e no investimento direto não existindo uma componente de financiamento como no caso da China. A natureza das trocas comerciais é semelhante, mas a escala é significativamente diferente. O comércio total com os principais atores dos dois lados do Atlântico Sul em 2011 era de cerca de 40 mil milhões de euros, cerca de 3,5 vezes menor do que o valor das trocas da China com as mesmas economias, o que corresponde a 7,1 por cento do comércio total da Índia. O principal parceiro comercial é a Nigéria com 30 por cento do total, seguida da África do Sul e do Brasil. Tal como a China a Índia tem um enorme défice de recursos energéticos e recursos naturais em geral, pelo que os principais produtos de importação são o petróleo cujo primeiro fornecedor é a Nigéria, seguida da Venezuela, o carvão fornecido pela África do Sul e os minérios com especial destaque para o Brasil. As exportações indianas, tal como as chinesas, são constituídas por produtos manufaturados e também por serviços. A balança comercial é claramente desfavorável à Índia registando-se um défice com todas as economias à exceção do Brasil, único parceiro com quem mantém um superavit.
A diversificação das fontes de fornecimento de petróleo na busca da redução da insegurança energética é um dos objetivos essenciais da Índia no desenvolvimento de relações com o Atlântico Sul dado que o seu nível de dependência do petróleo do Médio Oriente é muito elevado, 64 por cento, ainda superior ao da China. O petróleo que adquire aos países da costa africana, principalmente à Nigéria que vende 12 por cento do total das suas exportações à Índia, representa 17 por cento do total de importações indianas que se destinam não apenas ao consumo interno, mas também a alimentar a indústria de refinação. A Índia, apesar de um importador líquido de petróleo bruto, é um exportador líquido de produtos petrolíferos graças à elevada capacidade de refinação que possui. Angola é também um fornecedor relevante sendo a Índia o seu terceiro maior cliente ao absorver 11 por cento do total das exportações angolanas.
No plano dos investimentos, a presença indiana tem vindo a crescer dos dois lados do Atlântico Sul com um padrão de elevada diversificação. O setor da energia, especialmente do petróleo, é um dos mais importantes, com investimentos recentes significativos em seis blocos de exploração na Nigéria e um investimento na Venezuela pela empresa estatal indiana ONGC Videsh. Outra área dos recursos naturais são os minérios, com especial destaque para o ferro, essencial para a indústria siderúrgica indiana, a qual no final de 2012 celebrou um acordo com o Brasil para garantir o acesso das empresas MOIL e RINL aos vastos recursos do estado de Amapá.
No âmbito dos recursos também têm sido referenciados investimentos no setor agrícola em diversos países africanos, especialmente na Etiópia, mas também em Moçambique, Senegal, Serra Leoa e Quénia, que denotam o envolvimento da Índia, ainda que numa escala menor à da China, no fenómeno do land grab. Uma das principais empresas indianas intervenientes é a Karuturi Global, originária de Bangalore, e envolvida na polémica expulsão forçada de famílias de agricultores da zona da Gambella na Etiópia denunciada pela Human Rights Watch21.
No domínio industrial os setores são muito diversificados envolvendo quer a indústria pesada a siderurgia (Nigéria), refinação de petróleo (África do Sul) , quer a indústria ligeira e setores mais conhecimento-intensivos como a indústria farmacêutica (Nigéria, Brasil e África do Sul) orientada para a satisfação da procura local e regional como os casos dos medicamentos antirretrovirais e antimalária, a indústria automóvel, designadamente a Tata Motors (Brasil), e as tecnologias de informação e software, através de empresas como a Infosys e Aptech (Brasil, Nigéria e África do Sul).
No plano das infraestruturas o investimento tem-se concentrado em África, sendo as telecomunicações o setor prioritário, com a presença da Índia a reforçar-se de forma significativa nos últimos anos, alicerçada na ação de duas grandes empresas: a Bharti Airtel, a maior empresa indiana de telemóveis, e a Essor, em especial na sequência da compra pela Bharti Airtel da empresa Zain Africa em 2010, que envolveu um investimento de dez mil milhões de dólares, transformando-a no segundo maior operador em África com presença em 17 países22.
O investimento indiano tem-se dirigido também para o setor dos serviços no lado africano, em particular na área financeira, banca e serviços financeiros, com especial destaque para a Nigéria e a África do Sul assente na ação do State Bank of India, o maior banco indiano controlado pelo Estado, que tem operações na África do Sul e na Nigéria relacionadas quer com o apoio aos novos investimentos das empresas indianas, quer com as operações e gestão das remessas das significativas comunidades da diáspora indiana na África do Sul, a maior em África com mais de 1,2 milhões de membros23.
Em suma, os investimentos da Índia são fundamentalmente da responsabilidade de grandes empresas privadas, embora as empresas estatais tenham relevância em setores específicos como o financeiro (State Bank of China) e o energético, o petróleo (caso da ONGC Videsh), e são diversificados abrangendo diversas áreas.
A presença da Índia tem igualmente uma dimensão humana relacionada com as comunidades da diáspora indiana que existem apenas no lado africano não se verificando o mesmo fenómeno do lado da América do Sul onde existem comunidades indianas sem significado (2000 no Brasil e 1400 na Argentina). A diáspora indiana em África é muito significativa incluindo mais de 2,5 milhões de pessoas, com uma presença longa, fortemente integradas na economia e sociedade locais e com influência relevante em alguns países. A maior comunidade situa-se precisamente na África do Sul com mais de 1,2 milhões de pessoas, sendo as outras comunidades com maior dimensão as das Maurícias (882 220), Tanzânia (54 700) e Nigéria (30 000)24. A Índia, que durante muito tempo manteve poucas ligações com a diáspora, em muitos casos limitada à captura de remessas, alterou substancialmente a sua política em 2003 procurando mobilizar estrategicamente a diáspora como fator competitivo no mercado global, cuja implementação levou à criação do Ministry of Overseas Indian Affairs. Neste contexto, a diáspora é encarada como um agente facilitador das relações económicas e políticas não sendo de estranhar que os dois países prioritários do relacionamento da Índia no contexto africano tenham comunidades indianas significativas e influentes.
Esta constitui uma diferença, e alguns consideram uma potencial vantagem25, relativamente à China que, embora tenha a maior diáspora em termos globais, não se verifica uma presença relevante de comunidades chinesas com expressão e influência em África. Assim, enquanto a presença humana chinesa é recente, muitas vezes envolvendo imigrantes temporários com grande distanciamento cultural e com claras dificuldades de integração, a presença humana indiana é permanente, com elevado nível de integração constituindo, assim, um fator positivo de aproximação cultural e de facilitação dos negócios sendo igualmente detentora de know-how relevante e inteligência económica local de grande interesse para as empresas indianas.
A Índia dispõe ainda de um importante instrumento de soft power, a dimensão cultural associada à influência de Bollywood e da indústria do audiovisual dos dois lados do Atlântico Sul.
Embora o interesse indiano seja predominantemente económico, não deixa de existir um interesse político relacionado com a pretensão da Índia em reforçar a sua influência internacional, designadamente no âmbito do G77, sobretudo na perspetiva de obtenção do apoio e dos votos, em especial dos estados africanos, para o acesso ao estatuto de membro permanente do Conselho de Segurança das Nações Unidas.
No plano da segurança, a Índia não tem uma estratégia autónoma no Atlântico Sul, não adota uma postura de ator global sendo a sua afirmação estratégica essencialmente centrada no Índico e na projeção da sua capacidade naval num espaço em que a competição estratégica com a China é intensa. Como é evidente, as preocupações com a segurança da navegação no Atlântico Sul são crescentes, à medida que as importações de petróleo provenientes da região aumentam e necessita de garantir a segurança dos seus navios face a fenómenos de pirataria marítima. No entanto, a Índia enfrenta claramente limitações objetivas na sua capacidade de projeção e não tem atualmente uma agenda de presença militar no Atlântico Sul, estando dependente não de uma estratégia autónoma, mas da densificação das relações de cooperação militar com o Brasil e a África do Sul e do desenvolvimento do braço estratégico da IBSA, como estratégia para contrabalançar o poder e influência da China.
A CHINA E A ÍNDIA: PONTOS DE CONVERGÊNCIA E DIVERGÊNCIA
A análise integrada da experiência e da presença destes dois poderes emergentes revela alguns pontos de convergência, uma vez que partilham problemas comuns, mas também diversos pontos de divergência e contrastes significativos.
No plano da convergência verificam-se vários pontos comuns. Em primeiro lugar, ambos procuram garantir acesso a recursos naturais estratégicos, por forma a manter os elevados níveis de crescimento das respetivas economias, limitando os elevados défices e reduzindo os riscos de insegurança energética, que resulta de elevadas taxas de crescimento do consumo, mas também de insegurança alimentar que se acentua face aos problemas de carência de água e contaminação dos solos e redução da área arável que partilham. A respetiva presença nos países dos dois lados do Atlântico Sul visa, por um lado, obter acesso através do processo de investimento a recursos sobre os quais existem direitos soberanos dos estados e, por outro, garantir de modo mais informal o acesso futuro aos global commons.
Os recursos atuais nas zonas costeiras dos dois lados do Atlântico, assim como os recursos futuros, quer do fundo do oceano, quer o acesso à Antártida, motivam esta renovada atenção também na perspetiva da diversificação das fontes de abastecimento, designadamente reduzindo a dependência do petróleo produzido no Médio Oriente que, quer no caso da China, quer da Índia, é muito elevada.
Em segundo lugar, em ambos os casos a abordagem assenta essencialmente numa estratégia de soft power, assente no instrumento económico, não existindo ainda uma dimensão de hard power concretizada. Contudo, a China já equacionou a vertente da presença militar da sua marinha no Atlântico Sul num futuro mais ou menos próximo enquanto a Índia está ainda longe de encarar tal possibilidade. Nesta perspetiva, ambos partilham uma preocupação com a segurança marítima na região, designadamente o controlo da pirataria no golfo da Guiné, na medida em que pode afetar a circulação dos seus navios e o fluxo regular e disponibilidade das matérias-primas e energia com origem na região.
Em terceiro lugar, os parceiros prioritários, os atores-chave na região são fundamentalmente os mesmos para a China e para a Índia: no lado africano, a África do Sul e a Nigéria, com uma diferença em relação a Angola que tem uma relevância maior como parceiro para a China mas com uma posição de menor relevância para a Índia; no lado da América do Sul, o Brasil surge claramente como o parceiro prioritário para ambos. Contudo, é interessante notar a diferença de focagem. A relação da Índia está muito mais centrada no lado africano, que concentra 70 por cento do comércio total com o Atlântico Sul, e é menos densa com o lado da América do Sul, não obstante o recente incremento das relações com o Brasil. A limitação da expansão do espaço de influência da Índia à vizinhança do seu espaço estratégico tradicional é evidente, consistindo a evolução essencial na última década na deslocalização do foco do relacionamento da África Oriental, tradicionalmente mais forte, para a África Ocidental atlântica. Em contraste, a China tem uma relação mais equilibrada entre os dois lados, mas com clara preponderância do lado da América do Sul, que concentra 70 por cento do comércio com o Atlântico Sul, em virtude da sua forte relação com o Brasil, que assume para Pequim natureza prioritária.
Na perspetiva da divergência e diferenças entre a presença e a abordagem chinesa e indiana é possível identificar alguns aspetos fundamentais.
Em primeiro lugar, a escala da presença e da influência económica é bastante diferente: a escala da Índia é muito menor do que a da China que se traduz quer na diferença de volumes das trocas comerciais, quer nos níveis de investimento, ou ainda na disponibilidade de meios de financiamento.
Em segundo lugar, os instrumentos da influência económica dominantes também são diferentes no contexto africano já que a China atribui grande destaque ao financiamento e à concessão de crédito em condições concessionais de forma «ligada», no modelo infrastructures for resources loans utilizando os seus vastos recursos financeiros, enquanto este instrumento é marginal para a Índia cuja ação está assente no comércio e no investimento direto. Já no lado da América do Sul esta diferença esbate-se dado que o financiamento é um instrumento menos utilizado pela China, porém, com expressão no caso da Venezuela.
Em terceiro lugar, a forma de agir e os atores são também distintos a vários níveis:
a China funda a sua ação em empresas estatais implementando uma estratégia coordenada pelo Estado chinês e com um forte músculo financeiro de suporte; em contraste, a ação da Índia tem como principal motor o setor privado e as grandes multinacionais indianas embora em setores específicos o papel de empresas estatais também seja relevante (petróleo e setor financeiro). A abordagem chinesa e a perceção da presença do Estado e da «carga política» do investimento têm vindo a gerar algumas desconfianças e resistências ao reforço da posição destas empresas em alguns países, questão que não se coloca relativamente ao investimento indiano;
reduzida criação de emprego local por parte das empresas chinesas, predominando a utilização de mão de obra chinesa, o que gera críticas e algum mal-estar na sociedade em contraste as empresas indianas privilegiam a contratação de mão de obra local gerando emprego e evitando tensão com as populações locais;
«financiamento ligado» utilizado pela China e o efeito de atribuição da maioria dos contratos de empreitadas das obras de infraestruturas a empresas chinesas, tende a reduzir o nível de concorrência na economia e a fomentar rendas de monopólio no futuro; em contraste o investimento da Índia não tem este impacto disfuncional sobre o mercado, tendendo a reforçar o nível de concorrência nas economias.
Em quarto lugar, o fenómeno migratório e o elemento humano da presença da China e da Índia, em especial no lado africano do Atlântico Sul já que não tem significado do lado americano, tem características diversas com implicações distintas. A presença indiana está associada a uma diáspora histórica, integrada nas sociedades africanas e com influência, tanto no caso da África do Sul, como no da Nigéria, enquanto a China tem vindo a promover fluxos migratórios recentes, de forma descontrolada, caracterizados por um grande distanciamento cultural e desintegração das sociedades locais. Em resultado desta chegada em massa e do elevado distanciamento cultural as relações são complicadas e, por vezes, tensas com as comunidades locais. Por outro lado, os limitados laços locais, o elevado número e dispersão geográfica dos imigrantes chineses gera problemas de insegurança para estas comunidades chinesas e, consequentemente, problemas acrescidos para o Estado chinês em termos de garantir a sua proteção. Um dos aspetos relevantes é o de que o desenvolvimento da Marinha chinesa tem como uma das justificações relevantes a necessidade de proteger e promover a evacuação de cidadãos chineses em risco no estrangeiro.
Em quinto lugar, a China aborda o Atlântico Sul como um ator global com uma visão holística ao passo que a Índia tem uma visão mais restrita no prolongamento da sua zona de intervenção natural que é o Índico. A China adota uma lógica abrangente tendo em conta as interligações com outras regiões, procurando consolidar uma posição num quadro estratégico regional em mutação, pouco consolidado e fluido, de onde tradicionalmente estava ausente. A lógica de competição estratégica com os Estados Unidos é dominante, numa zona de influência natural de Washington que, desde 2008, renovou a sua estratégia e reforçou a atenção atribuída ao Atlântico Sul. A China procura enfraquecer o soft power americano em zonas de influência tradicional. Em contraste, a Índia é um poder regional cujo espaço estratégico é a Ásia e o oceano Índico, pelo que encara o Atlântico Sul na sua ligação ao Índico e à África Ocidental como uma extensão da África Oriental. A lógica de competição com os Estados Unidos não se coloca para a Índia que tem, desde 2008, uma relação de proximidade e parceria com Washington, pelo que para Nova Deli o verdadeiro competidor no Atlântico Sul é a China.
Nesta tentativa de resistir à pressão da China, a Índia aposta na parceria com o Brasil e a África do Sul, o grupo democrático dos BRICS, que se organiza autonomamente no âmbito da IBSA (na sigla em inglês: India, Brazil and South Africa), a estrutura tripartida de cooperação política e concertação diplomática criada em 2003 e formalizada pela declaração de Brasília. Apesar das tentativas de Pequim para desmantelar a IBSA como forma de consolidar o seu predomínio e liderança no seio dos BRICS, a Índia, o Brasil e a África do Sul têm resistido e concertado forças para promover questões de interesse comum e contrabalançar a assimetria do poder da China.
Apesar da importância das relações económicas que o Brasil e a África do Sul mantêm com a China, existe um receio do risco de excessiva dependência do poder económico chinês e de predomínio político, para além de haver valores e interesses divergentes designadamente entre a China, membro permanente do Conselho de Segurança, e os candidatos a esse estatuto26. Existe uma clara ambivalência na abordagem do Brasil e da África do Sul no sentido de que, por um lado, a presença da China é vista como potencialmente positiva já que contribui para conter o avanço dos Estados Unidos e da NATO e realiza investimentos que têm um impacto fundamental no dinamismo e crescimento das suas economias; por outro, é encarada como um potencial problema se ultrapassar determinados níveis e se tornar «sufocante», colocando riscos de manutenção da autonomia de interesses e reduzindo a sua margem de manobra e de afirmação enquanto potências regionais.
O Atlântico Sul surge como um espaço fundamental de afirmação do Brasil como poder regional, e em menor grau da África do Sul, os quais têm vindo a reforçar a cooperação militar bilateral a diferentes níveis, designadamente formação, desenvolvimento conjunto de armas (programa mísseis A-Darter), preparação para operações de manutenção de paz, com uma forte componente naval, designadamente no âmbito dos submarinos. Esta cooperação ganhou ainda maior coerência e densidade com a entrada em funcionamento em março de 2013 do Comité Conjunto de Defesa Brasil-África do Sul27.
Em alguns aspetos, a Índia tem sido associada a esta nova dinâmica. O desenvolvimento de exercícios navais conjuntos bianuais entre o Brasil, a África do Sul e a Índia, IBSAMAR I, II e III, iniciados em 2008 e repetidos em 2010 e 2012, focados nas questões da segurança da navegação, da segurança humana e missões humanitárias, são uma clara demonstração da vontade da IBSA de reforçar a influência no Atlântico Sul e na Rota do Cabo e de demonstrar a sua oposição à expansão da NATO para sul mas também, implicitamente, à presença militar significativa da China no Atlântico Sul. Para a Índia, esta participação nos exercícios navais da IBSAMAR teve, igualmente, um objetivo muito importante o de tentar contrariar algumas críticas e apreensão relativamente a uma excessiva aproximação e cooperação com os Estados Unidos28.
Por outro lado, este processo espelha a crescente relevância que os três parceiros atribuem à segurança marítima e ao reforço da sua capacidade naval, essencial para a sua prosperidade económica, e à vontade de desempenharem um papel ativo na governança dos mares e na garantia da segurança coletiva. Como é evidente, a credibilidade depende em larga medida da demonstração na prática de capacidade para responder e controlar efetivamente algumas das ameaças, designadamente a pirataria e, em particular, no golfo da Guiné. Este é certamente um primeiro teste a que alguns membros da IBSA têm procurado dar resposta através do reforço da cooperação militar do Brasil com a Nigéria em 2010, o apoio à Marinha nigeriana, mas na realidade é a China que tem revelado maior proatividade nesse processo e parece estar a ganhar ascendente.
Em suma, o Atlântico Sul surge como um palco fundamental de competição não só entre as potências tradicionais e as novas potências emergentes, mas também entre estas últimas, tornando visíveis as tensões e contradições no seio dos BRICS que estão longe de constituir um grupo homogéneo e coerente.
CONCLUSÕES
O Atlântico Sul era tradicionalmente uma zona secundária com reduzida densidade estratégica em que os estados costeiros dos dois lados viveram durante muitos anos de costas voltadas para o oceano e com os atores externos pouco presentes, o que determinou a existência de um espaço pouco estruturado, flexível e sem posições de domínio consolidadas. Na última década este quadro tem estado em rápida mutação em consequência de uma multiplicidade de fatores, nomeadamente a confirmação de existência de recursos naturais abundantes, energéticos, minerais (cuja exploração se faz essencialmente offshore) e alimentares, quer piscícolas, quer agrícolas, já que dos dois lados do Atlântico se situam as maiores reservas a nível global de terra arável, com disponibilidade de água e reduzida pressão populacional, ideais para a produção de alimentos. Num mundo que enfrenta crescentes riscos de insegurança energética, alimentar e hídrica, o Atlântico Sul passou a ser visto com crescente interesse, tanto mais que as suas características específicas, designadamente um oceano aberto com muito poucas ilhas o que faz dele no essencial um espaço de global commons, criam uma considerável margem de manobra para uma competição pelo controlo de facto dos recursos. Este interesse não se refere apenas a recursos atuais, mas também futuros, já que o Atlântico Sul é uma região privilegiada para acesso e projeção sobre a Antártida onde se situam recursos futuros de elevado valor estratégico.
Os dois estados mais populosos do mundo, China e Índia, que se debatem com riscos de insegurança energética e alimentar a longo prazo, são duas potências emergentes que estão crescentemente envolvidas no Atlântico Sul e que configuram dois casos de relevante interesse para compreender os contornos desta nova dinâmica na região.
Da análise comparativa das respetivas estratégias de atuação e presença é possível concluir que existem diversos aspetos comuns que caracterizam a presença e estratégias, quer da Índia, quer da China, no Atlântico Sul. Desde logo o seu caráter multidimensional, envolvendo motivações económicas, políticas e de segurança, com predomínio da motivação económica e recurso a instrumentos de soft power, com prioridade para o acesso e controlo sobre recursos energéticos e minerais, em que ambos são crescentemente deficitários, com o objetivo não só de abastecer as respetivas economias e manter os elevados níveis de crescimento económico que vêm registando, mas também de reduzir e controlar os riscos de insegurança energética e alimentar que os afetam. Verifica-se igualmente uma clara preocupação com a diversificação não só de fontes de abastecimento energético, no sentido de reduzir a dependência do petróleo do Médio Oriente por forma a diminuir o risco, mas também de mercados de exportação de modo a reduzir a exposição às quebras da procura na UE e nos Estados Unidos e a permitir que os segmentos menos competitivos dos respetivos tecidos produtivos se internacionalizassem.
Por outro lado, os parceiros prioritários são no essencial os mesmos, no lado africano, a Nigéria e a África do Sul, e no lado da América do Sul, o Brasil, embora as ligações da Índia sejam mais concentradas no lado africano, enquanto a China tem um maior foco no lado americano na relação com o Brasil que constitui claramente a prioridade da China no Atlântico Sul. Tal implica um nível elevado de competição entre a China e a Índia na medida em que «procuram as mesmas coisas nos mesmos sítios», o que se traduz numa estrutura de trocas comerciais muito semelhante e numa concentração de uma parte dos investimentos em setores idênticos. Esta competição no terreno e as tensões que marcam a sua relação bilateral na Ásia também explicam que a relação China-Índia no Atlântico Sul seja dominada pela competição sem margem para cooperação, não obstante existirem interesses comuns, designadamente o reforço da segurança da navegação, que poderiam beneficiar de um comportamento mais cooperativo.
Esta análise comparativa revela também a existência de muitas diferenças no que respeita aos instrumentos e filosofia de atuação, mais visíveis no lado africano do que no lado sul-americano. Em primeiro lugar, a escala da presença e interesses económicos é muito diferente sendo muito superior no caso da China que atua fundamentalmente através de empresas multinacionais estatais, controladas pelo Estado, com forte carga política; fortemente apoiadas pelo financiamento «ligado», o que contraria a ideia de que a ação da China não tem condicionalidade; e que recorrem maioritariamente à mão de obra chinesa, o que alimenta os fluxos de imigração, criando pouco emprego local. Em contraste, a Índia alicerça a sua ação no setor privado e sobretudo nas grandes multinacionais privadas indianas, com contratação de mão-de-obra local, sem recurso ao instrumento de financiamento. Um aspeto relevante na sua ação na Nigéria e África do Sul é a mobilização da diáspora indiana local, integrada social e culturalmente, que funciona como catalisadora desta relação bilateral mais intensa, constituindo uma mais-valia de que, no contexto africano, a China não dispõe, pelo que tem procurado intensificar os fluxos de novos emigrantes para África, desintegrados social e culturalmente, como fator de reforço da sua influência e estratégia de atenuação das pressões domésticas sobre o mercado de emprego.
O argumento central é que, não obstante estas diferenças, o aspeto decisivo relaciona-se com o facto de a China e a Índia apresentarem duas visões de fundo distintas na respetiva abordagem do Atlântico Sul. A China aborda o Atlântico Sul como um ator global com uma visão holística, em que a dimensão da competição estratégica com os Estados Unidos e a erosão do soft power americano é essencial, ao passo que a Índia tem uma visão mais regional no prolongamento da sua zona de intervenção natural que é o Índico, centrada na competição e tensão com a China e articulando posições com os outros membros da IBSA, Brasil e África do Sul, procurando desta forma compensar a sua maior fragilidade e desvantagens comparativas relativamente à China.
A ação da Índia e da China tem-se centrado na relação com os estados costeiros dos dois lados do Atlântico, detentores de direitos soberanos sobre os recursos que se localizam nos limites das respetivas plataformas continentais, de modo a obter posições privilegiadas. É a estratégia do «controlo indireto», alicerçada no desenvolvimento de interesses complementares, numa maior influência junto das elites políticas e na capacitação institucional e reforço dos meios tecnológicos de que muitos estados, em particular os africanos, não dispõem, quer para explorar, quer para proteger/defender militarmente esses vastos recursos.
No entanto, a sua presença no Atlântico Sul tem um outro objetivo estrutural distinto, a consolidação de posições para participar na segunda fase da exploração do Atlântico Sul cujo início ainda é incerto: a exploração dos global commons situados fora das áreas de jurisdição das soberanias em águas internacionais, que constituem «património comum da humanidade» e uma «apólice de seguro» das gerações futuras. Esta será a estratégia do «controlo direto» sobre zonas do Atlântico Sul com base em direitos de exploração, que deverão ser definidos pelas instituições internacionais, mas também em tentativas de exploração ilegal com recurso ao uso da força, o que aponta para um cenário de forte intensificação das tensões e aumento da insegurança.
Data de receção: 18 de março de 2013 | Data de aprovação: 21 de maio de 2013
NOTAS
1 Sobre a relevância e mutação estratégica do Atlântico Sul, cf. LESSER, Ian «South Atlanticism: geopolitics and strategy for the other half of the Atlantic Rim». Brussels Forum Paper Series, German Marshall Fund of the United States, 2010.
2 BP, «Statistical review of world energy», junho de 2012. [Consultado em: 30de abril de 2013]. Disponível em: http://www.bp.com/assets/bp_internet/globalbp/globalbp_uk_english/reports_and_publications/statistical_energy_review_2011/STAGING/local_assets/pdf/statistical_review_of_world_energy_full_report_2012.pdf
3 NICOL, Stephen «Krill, currents and the sea ice: Euphausia superba and its changing environment». In Bioscience. Vol. 56, N.º 2, fevereiro de 2006. [ Links ]
4 «Reports on acts of piracy and armed robbery against ships». MSC.4/ Circ. 193, International Maritime Organization, 2 de abril de 2013. [Consultado em: 30 de abril de 2013] Disponível em: http://www.imo.org/ourwork/security/piracyarmedrobbery/pages/default.aspx. Contabiliza um total de 64 incidentes de pirataria entre consumados e tentados na África Ocidental, contra 61 na África Oriental, tendo a região com maior número de incidentes sido o mar da China Meridional com 90 incidentes.
5 «Oil & Gas Security, Peoples Republic of China». EIA US Energy Information Administration, Country Profile Facts Global Energy, 2012, pp. 5-11.
6 Designação do fenómeno de aquisição de grandes áreas de terra agrícola por parte de empresas estatais de estados com riscos futuros de insegurança alimentar em resultado da indisponibilidade de terra arável e de água, casos da China, Japão, Coreia do Sul, Arábia Saudita, Emirados Árabes Unidos, Bahrain, com o objetivo de abastecer exclusivamente a população do país de origem. Tais processos tendem a gerar elevada conflitualidade, já que são comuns os fenómenos de expulsão forçada de agricultores e familiares das suas terras assim como riscos de insegurança alimentar no país de destino dos investimentos. Cf. BRAUN, Joachim von, e MEINZEN-DICK, Ruth «Land grabbing by foreign investors in developing countries: risks and opportunities». In IFPRI Policy Brief, N.º 13, abril de 2009. [Consultado em: 30 de abril de 2013]. Disponível em: http://www.ifpri.org/sites/default/files/publications/bp013all.pdf; [ Links ] ZAGEMA, Bertram «Land and power: the growing scandal surrounding the new wave of investments in land». In Oxfam Briefing Paper 151, 22 de setembro de 2011. [Consultado em: 30 de abril de 2013]. Disponível em: http://www.oxfam.org/en/grow/policy/land-and-power. [ Links ]
7 Em 2010 foi elaborado o parecer LA-01 de 2010 sobre a interpretação da lei 5.709 de 1971 e em 2012 foi apresentado e está em discussão o projeto de lei PL 4059/12 que estabelece um novo regime para esta questão, incluindo restrições para a aquisição e o arrendamento de imóveis rurais por estrangeiros.
8 Vários navios chineses de grandes dimensões têm sido referenciados por observadores internacionais a operar nesta zona, caso dos navios Kai-xin, da Shanghai Kaichung Deep Sea Fisheries Co. Ld., Fu Rong Hai e Lian Xing Hai vd. Sheperd International. [Consultado em: 30 de abril de 2013]. Disponível em: www.seasheperd.org/commentary-and-editorial/2013/04/16/krill-fisheries-the-next-collapse605.
9 CISSE, Daouda «Going global in growth markets Chinese investments in telecommunications in Africa». In Policy Briefing, abril de 2012, Centre for Chinese Studies, Stellenbosch University, South Africa. [Consultado em: 30 de abril de 2013]. Disponível em: http://scholar.sun.ac.za/bitstream/handle/10019.1/21145/cisse_global_2012.pdf?sequence=3 [ Links ]
10 «Chinas investment in African special economic zones: prospects, challenges and opportunities». In Economic Premise, World Bank, março de 2010, tabela 1; EL-GOHARI, Ahmad, e SUTHERLAND, Dylan «Chinas special economicz in Africa: the Egyptian case». Paper apresentado na Conference Global Economic Recovery: the role of China, junho de 2010, University of Oxford. [ Links ]
11 «ODI-lay hee-do». In The Economist, 19 de janeiro de 2013.
12 Business Monitor International, 19 de abril de 2010. O China Development Bank concedeu um empréstimo de 20 mil milhões de dólares no modelo infrastructure for oil loan.
13 Cf. PARK, Yoon Jung Chinese Migration in Africa. Occasional Paper n.º 24, SAIIA, China in Africa Project, January 2009.
14 ERICKSON, Andrew, e COLLINS, Gabe «Chinas real blue water navy». In The Diplomat. [Consultado em: 12 de maio de 2013]. Disponível em: http://thediplomat.com/2012/08/30/chinas-not-so-scary-navy/. Para uma avaliação da marinha chinesa cf. OROURKE, Ronald China Naval Modernization: Implications for U.S. Navy CapabilitiesBackground and Issues for Congress. Congressional Research Service, 2013. Sobre as dinâmica da modernização naval cf. HARTNETT, Daniel M., e VELLUCCI, Frederic «Toward a maritime security strategy: an analysis of Chinese views since the early 1990s». In SAUNDERS, Phillip C., YUNG, Christopher D., SWAINE, Michael, e YANG, Andrew Nien-Dzu «The Chinese navy: expanding capabilities, evolving roles». Washington: National Defense University Press, 2011. [Consultado em: 30 de abril de 2013]. Disponível em: http://www.ndu.edu/press/lib/pdf/books/chinese-navy.pdf
15 «Report energy futures in Asia». US Department of Defense, 2005.
16 International Herald Leader, 4 de janeiro de 2013.
17 KOSTECKA, Daniel J. «Places and bases: the Chinese navys emerging support network in the Indian Ocean». In Naval War College Review. Vol. 64, N.º 1, 2011, pp. 59-78. [ Links ]
18 China Daily, 30 de agosto de 2012. [Consultado em: 8 de maio de 2013]. Disponível em: http://www.chinadaily.com.cn/china/2012-08/30/content_15718283.htm.
19 Sobre os objetivos do apoio da plan ao desenvolvimento da capacidade naval nigeriana, ver «Chinas African influence expanding: Nigeria in focus». In Beegeagles Blog. [Consultado em: 10 de maio de 2013]. Disponível em http://beegeagle.wordpress.com/2012/08/27/chinas-african-influence-expanding-nigeria-in-focus/.
20 Nova prioridade da Marinha nigeriana de controlo da pirataria no golfo da Guiné traduziu-se, por exemplo, na realização em novembro de 2012 do exercício «farauta». [Consultado em: 15 de maio de 2013]. Disponível em: http://www.navy.mil.ng/General-News/16.news#.UZejlFL_IuE
21 «Waiting here for death displacement and villagization in Ethiopias Gambella region». Relatório Human Rights Watch, 2012, pp. 55, 59.
22 Sobre as relações entre a Índia e a África cf. RAMACHANDRAN, Sudha «Indias Africa Safari». In The Diplomat, 4 de dezembro de 2012.
23 Dados oficiais sobre a diáspora indiana, cf. «Ministry of Overseas Indian Affairs». [Consultado em: 5 de maio de 2013]. Disponível em: http://moia.gov.in/writereaddata/pdf/NRISPIOS-Data(15-06-12)new.pdf.
24 Ministry of Overseas Indian Affairs. [Consultado em: 5 de maio de 2013]. Disponível em: http://moia.gov.in/writereaddata/pdf/NRISPIOS-Data(15-06-12)new.pdf.
25 Cf. KHANNA, Tarun, e NANDA, Ramana «Diasporas and domestic entrepreneurs evidence from the India software industry». Working Paper N.º 08-003, Harvard Business School, 2007. [Consultado em: 5 de maio de 2013]. Disponível em: http://hbswk.hbs.edu/item/5737.html.
26 A reforma do Conselho de Segurança da ONU e o alargamento da lista de membros permanentes foi precisamente uma das questões que esteve na base da criação da IBSA. Sobre o processo de criação da IBSA cf. ALDEN, Chris, e VIEIRA, Marco Antonio «The new diplomacy of the South: South Africa, Brazil, India and trilateralism». In Third World Quarterly. Vol. 26, N.º 7, 2005, pp. 1077-1095. [ Links ]
27 Ministério da Defesa do Brasil, 5 de março de 2013. [Consultado em: 6 de maio de 2013]. Disponível em: https://www.defesa.gov.br/index.php/ultimas-noticias/8606-05-03-2013-defesa-brasil-e-africa-do-sul-iniciam-dialogo-conjunto-de-defesa.
28 KHURANA, Gurpreet S. «India-Brazil-South Africa Tango at Sea». IDSA Comment, Institute of Defense and Strategic Studies, 16 de maio de 2008. [Consultado em: 18 de maio de 2013]. Disponível em: http://www.idsa.in/idsastrategiccomments/IndiaBrazilSouthAfricaTangoatSea_GSKhurana_160508.