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Relações Internacionais (R:I)

versão impressa ISSN 1645-9199

Relações Internacionais  no.53 Lisboa mar. 2017

https://doi.org/10.23906/ri2017.53a07 

Normalizando anormais na sociedade internacional. Operações de paz, Foucault e a Escola Inglesa

Normalizing abnormals in the international society: peace operations, Foucault and the English School

 

Ramon Blanco*

 

RESUMO

Este artigo discute um dos mais importantes elementos da realidade internacional atual – a construção da paz. Mais precisamente, o artigo problematiza o papel que as operações de paz têm na política internacional. Esta problematização é avançada por meio da aproximação de ferramentas analíticas desenvolvidas pelo filósofo francês Michel Foucault e pela Escola Inglesa. O artigo argumenta que as operações de paz devem ser entendidas como um dispositivo normalizador que, ao buscarem normalizar os estados pós-conflito e suas populações, é central para o fomento e manutenção de uma sociedade internacional em particular – uma sociedade internacional (neo) liberal.

Palavras-chave: Operações de paz, sociedade internacional, Michel Foucault, Escola Inglesa.

 

ABSTRACT

This article discusses one of the most important elements of the current international reality – the construction of peace. More precisely, the article problematizes the role that peace operations have in the international politics. This problematization is advanced through the approximation of the analytical tools developed by the French philosopher Michel Foucault and the English School. The article argues that peace operations should be understood as a normalizing dispositif that, by seeking to normalize post‑conflict states and theirs populations, is pivotal to the fostering and the maintenance of an international society in particular – a (neo)liberal international society.

Keywords: Peace operations, international society, Michel Foucault, English School.

 

INTRODUÇÃO

Há poucas dúvidas de que a superação de conflitos violentos pelo globo é, atualmente, um dos mais prementes assuntos internacionais. Consequentemente, a paz internacional torna‑se um pilar fundamental das relações internacionais contemporâneas1. Assim, neste contexto, as operações de paz2 destacadas para cenários pós‑conflito tornaram‑se uma crucial política internacional. Na realidade, estas são atualmente o epicentro de uma narrativa triangular que funde noções, aparentemente distantes, de segurança, desenvolvimento e paz3. A lógica por detrás de tal narrativa é bastante simples. Segundo esta narrativa triangular, sem segurança não há a possibilidade de existir qualquer forma de desenvolvimento; desenvolvimento, por sua vez, não apenas reforça, como, de fato, é uma condição indispensável para o incremento da segurança; ambos, juntos, são os pilares fundamentais para a transformação de conflitos violentos ao redor do globo e para a consolidação de uma paz sustentável em estados pós‑‑conflito. Não por coincidência, as operações de paz são frequentemente retratadas como um mero instrumento técnico destacado para cenários pós‑conflito buscando superar a violência, direta e estrutural4, nestes locais, e reconstruir países devastados pela guerra. Consequentemente, sob esta narrativa, as operações de paz são meramente um instrumento técnico internacional, projetado para restruturar as esferas política, social e econômica destes países, a fim de construir a paz.

Normalmente, as operações de paz são problematizadas tendo o seu registro liberal em primeiro plano. Consequentemente, as mesmas são enquadradas, bastante corretamente, como uma prática que busca fomentar o liberalismo ao redor do globo. Tanto apoiadores quanto críticos desta dinâmica compartilham, de certo modo, este registro. Enquanto os primeiros afirmam uma característica pacificadora do liberalismo, os últimos evidenciam o tom ideológico por detrás de tal prática. Este quadro está longe de ser inadequado. Não obstante, o mesmo retrata uma imagem de certa forma incompleta de todo o processo. Uma problematização deste processo por meio de um ponto de vista diferente oferece a um/a observador/a atento/a um lado diferente de tal prática internacional. Este é o cerne deste artigo.

Ao invés de focar‑se em identificar e discutir incoerências empíricas ou os fracassos dos esforços de reconstrução pós‑bélica, o que é algo certamente benéfico5, este artigo dá um passo atrás e preocupa‑se mais em delinear um enquadramento teórico mais adequado para melhor compreender e apreender o papel que as operações de paz têm na política internacional. Consequentemente, é aqui delineado um enquadramento que deve permitir aos/às analistas problematizar criticamente diferentes processos de reconstrução pós‑conflito. Este enquadramento é delineado percorrendo um caminho de certa forma inexplorado. O mesmo é operacionalizado por meio da aproximação de duas abordagens teóricas que são frequentemente posicionadas em polos epistêmicos diametralmente opostos – as ferramentas analíticas desenvolvidas por Michel Foucault e pela Escola Inglesa. Dentro deste enquadramento teórico proposto, o artigo argumenta que as operações de paz possuem uma função muito precisa no atual cenário internacional – a manutenção da ordem internacional. Mais precisamente, o artigo argumenta que as operações de paz devem ser entendidas como um dispositivo6 internacional – por agora, um conjunto heterogêneo de atores, conceitos, instituições e práticas – que é central e fundamental para o fomento e para a manutenção da ordem dentro de uma sociedade internacional em particular – uma sociedade (neo)liberal‑democrática.

Conforme prossegue o argumento, esta função é tornada operacional por meio da tentativa de normalizar os estados pós‑conflito e suas populações. A busca desta normalização é operada por meio do governo, a «conduta das condutas» no sentido foucaultiano, dos estados pós‑conflito e das vidas de suas populações na sociedade internacional. Segundo este argumento, esta tentativa de normalização ocorre em dois níveis. No nível internacional, este governo opera por meio da disciplina, recompensando e punindo os estados pós‑conflito, buscando moldar seus comportamentos enquanto indivíduos na sociedade internacional. No nível nacional, o governo opera por meio da biopolítica, a qual funciona por meio da administração e controle dos processos de apoio e suporte à vida das grandes massas populacionais nestes estados pós‑conflito. Logo, aproximando as ferramentas analíticas desenvolvidas por Michel Foucault e pela Escola Inglesa, pode‑se perceber que as operações de paz são, na verdade, um dispositivo normalizador que busca a manutenção de uma ordem (neo)liberal na sociedade internacional.

De modo a tornar a análise operacional, o artigo está estruturado em duas seções. Na primeira, o artigo delineia as ferramentas conceituais que permitem a análise em questão. A seção apresenta as ferramentas analíticas desenvolvidas pela Escola Inglesa e pelo filósofo francês Michel Foucault. A seção conceitualiza noções como: sociedade internacional, dispositivo, normalização, governo, disciplina e biopolítica. Na segunda seção, o artigo delineia o enquadramento teórico que, como argumentado, é mais adequado para entender e apreender o papel que as operações de paz possuem na política internacional. A seção discute o fato de que, na sociedade internacional, as operações de paz funcionarem como um dispositivo normalizador. A mesma problematiza o fato de que este processo de normalização que é executado na sociedade internacional pressupõe, subjacente ao mesmo, um entendimento do que deve ser um comportamento «normal» e «anormal» na sociedade internacional. A seção, por um lado, problematiza que o primeiro é construído enquanto tal, apoiando‑se: (1) em um entendimento que posiciona o processo de formação do Estado que ocorreu na Europa Ocidental enquanto o modo de se organizar entidades políticas; e (2) no argumento dos efeitos pacificadores do liberalismo. Finalmente, a seção também discute, por outro lado, o fato de que a construção do que é entendido enquanto um comportamento «anormal» na sociedade internacional é tornada operacional por meio da noção de «Estado falido».

 

A SOCIEDADE INTERNACIONAL E AS TECNOLOGIAS DE PODER

Argumentar que operações de paz possuem uma função precisa no atual cenário internacional, servindo como um dispositivo que é fundamental para o fomento e manutenção da ordem dentro de uma sociedade internacional em particular – (neo) liberal‑democrática – pressupõe a aproximação de duas problematizações que não são frequentemente operacionalizadas em conjunto – as ferramentas teóricas e conceituais desenvolvidas pela Escola Inglesa e por Michel Foucault7. Isto certamente pode parecer um movimento, no mínimo, excêntrico. Afinal, ambas as problematizações possuem inúmeras diferenças. A maior delas é epistêmica e algumas destas diferenças talvez sejam inclusive irreconciliáveis. Não por coincidência, ambas as problematizações são frequentemente colocadas, bastante corretamente, em diferentes polos dos assim chamados «Grandes Debates»8 dentro da disciplina de Relações Internacionais.

Não obstante, buscando observar para além de suas distâncias, que são reais, certamente é possível buscar aproximá‑las um pouco e as operações de paz talvez sejam a prática internacional mais adequada para realizar tal movimento. Ambas as problematizações são aqui entendidas como tendo a capacidade de iluminar diferentes aspectos das operações de paz enquanto uma prática internacional e do processo de construção da paz ao redor do globo. É somente ao trazer as ferramentas conceituais e teóricas desenvolvidas pela Escola Inglesa e por Michel Foucault que pode-se adequadamente apreender, por exemplo, o entendimento, embora às vezes inconsciente, que sustenta tal processo. O pressuposto subjacente ao mesmo, embora implícito, é o de que as relações internacionais são constituídas por uma sociedade internacional, onde seus membros, neste caso estados, compartilham determinados valores e comportamentos, neste caso (neo)liberais, e que os indivíduos desta sociedade que não possuem este tipo de comportamento devem sofrer intervenções de modo a terem suas condutas moldadas nesta direção. Neste sentido, as ferramentas analíticas da Escola Inglesa fornecem o entendimento acerca do cenário e do ambiente nos quais as operações de paz operam, enquanto que as ferramentas conceituais desenvolvidas por Michel Foucault permitem a percepção da função e do papel que estas possuem neste cenário e ambiente. É precisamente à elucidação destes elementos que este artigo agora se dirige.

 

SISTEMA INTERNA CIONAL E SOCIED ADE INTERNACIONAL

Talvez o primeiro delineamento importante a ser feito ao se trazer as ferramentas analíticas da Escola Inglesa seja a distinção que esta faz entre sistema internacional e sociedade internacional. Ambos os termos são parte de uma tríade básica de conceitos, que também inclui a noção de sociedade mundial, de onde o pensamento da Escola Inglesa é desenvolvido9. Enquanto o último desempenha um papel mais marginal nas problematizações da Escola Inglesa, a distinção entre os dois primeiros, ao contrário, possui um lugar fundamental dentro de tais problematizações10. Cada uma das três noções representa um entendimento particular acerca do ambiente internacional e o tipo de relacionamentos que predominará entre os atores dentro do mesmo. Estes conceitos derivam‑se de três distintas tradições de pensamento11, respectivamente: (1) a tradição hobbesiana ou realista; (2) a tradição grociana ou internacionalista; e (3) a tradição kantiana ou universalista12. Para Hedley Bull, «[c]ada um destes padrões tradicionais de pensamento incorpora uma descrição da natureza da política internacional e um conjunto de prescrições acerca da conduta internacional»13.

Consequentemente, a distinção entre sistema internacional e sociedade internacional14 está precisamente em concepções de mundo essencialmente diferentes, e em distintos graus de relacionamentos entre os membros do mesmo, que ambos os conceitos preconizam.

Por um lado, na visão de Hedley Bull, o sistema internacional, ou um sistema de estados, parte de uma tradição hobbesiana e emerge não como a mera existência de dois ou mais estados. Para Bull, «[d]ois ou mais Estados podem com certeza existir sem formar um internacional»15. A principal questão referente à noção tem a ver mais com o contato entre as unidades, os estados, do que com a mera existência dos mesmos. Para Bull, o sistema internacional emerge quando «dois ou mais Estados possuem suficiente contato entre si, e possuem suficiente impacto sobre as decisões um do outro, para levá‑los a comportarem‑se – pelo menos em certa medida – como partes de um todo»16. A emergência de um sistema internacional ocorre «onde os Estados estão em contato regular uns com os outros, e onde, além disso, existe uma interação entre eles o suficiente para fazer o comportamento de cada um deles um elemento necessário nos cálculos do outro»17.

No que toca às relações e contatos regulares estabelecidos entre os estados dentro do cenário internacional, quando este é entendido enquanto um sistema internacional, eles podem variar e também ocorrer em diferentes esferas. Bull entende que a relação entre os estados em um sistema internacional «pode tomar a forma de cooperação, mas também de conflito, ou mesmo de neutralidade ou indiferença em relação aos objetivos do outro»18. Além disso, para ele, «[a]s interações podem apresentar‑se sobre um grande espectro de atividades – políticas, estratégicas, econômicas, sociais – como o são hoje, ou apenas em uma ou duas»19.

A sociedade internacional, por outro lado, parte de uma tradição grociana e pressupõe um grau mais denso de relacionamento entre os atores da cena internacional, que continuam sendo essencialmente estados. Na verdade, a existência de uma sociedade internacional pressupõe a existência de um sistema internacional. No entanto, o oposto não é verdadeiro. Um sistema internacional pode certamente existir sem a emergência de uma sociedade internacional20. A noção de sociedade internacional está no cerne do entendimento da Escola Inglesa acerca das relações internacionais. Uma sociedade internacional, na visão de Hedley Bull, está presente no cenário internacional «quando um grupo de estados, conscientes de certos valores e interesses comuns, formam uma sociedade, no sentido de que se concebem a si mesmos ligados por um conjunto comum de regras nos relacionamentos uns com os outros, e compartilham o funcionamento de instituições comuns»21. Portanto, a noção de sociedade internacional refere‑se à percepção, entre os estados, do compartilhamento de certas normas e tipos de comportamentos e, consequentemente, também refere‑se à manutenção destas normas e condutas dentro desta sociedade internacional.

Um paralelo normalmente feito para entender a noção de sociedade internacional, uma sociedade de estados nas palavras de Hedley Bull22, é observar o que ocorre dentro dos estados. Barry Buzan, por exemplo, faz esta conexão quando menciona que «a ideia básica de sociedade internacional é bastante simples: assim como os seres humanos enquanto indivíduos vivem em sociedades nas quais eles tanto as moldam quanto por elas são moldados, também os Estados vivem em uma sociedade internacional na qual a moldam e por ela são moldados»23. Neste sentido, enquanto uma sociedade onde seus membros são os seres humanos individuais é entendida como uma sociedade de primeira ordem, uma sociedade onde seus membros são coletivos de seres humanos individuais, como por exemplo os estados, é entendida como uma sociedade de segunda ordem24.

No entanto, ao fazer este tipo de associação, é necessário muito cuidado para não cometer o erro de esbarrar no que Bull nomeou como a «analogia doméstica»25, e que poderia muito bem ser referida como a falácia doméstica. Hedley Bull entendia o raciocínio subjacente ao que nomeou de analogia doméstica como o cerne do contra‑argumento contrário à noção de sociedade internacional. De acordo com esta analogia, da qual a Escola Inglesa certamente discorda26, o próprio fato de que as relações internacionais são anárquicas, no sentido da ausência de uma entidade política acima dos estados, impossibilita aos estados de formarem conjuntamente uma sociedade. Seguindo este raciocínio, os estados somente formariam uma sociedade se estes abdicassem de suas soberanias e se subordinassem à uma autoridade política comum27. Contudo, para a Escola Inglesa, ao contrário, os estados «formam uma sociedade, embora anárquica, na qual não têm que submeter‑se à vontade de um poder superior»28. Para a Escola Inglesa, há um grande nível de ordem, «um padrão ou disposição de atividade internacional que sustenta os objetivos da sociedade de Estados que são elementares, primários ou universais»29, apesar do cenário internacional ser anárquico30. Por esta razão, Bull argumenta acerca de uma «sociedade anárquica» na esfera internacional31.

É precisamente o paralelo com a sociedade doméstica, certamente sem esbarrar nesta falácia doméstica acima mencionada, que permite a aproximação da reflexão desenvolvida pela Escola Inglesa com as problematizações desenvolvidas pelo filósofo francês Michel Foucault. As ferramentas analíticas desenvolvidas por Foucault são instrumentos que possibilitam a reflexão acerca de certos mecanismos presentes no cenário internacional, que são fundamentais para a manutenção da ordem na sociedade internacional. Como mencionado anteriormente, é neste artigo argumentado que as operações de paz são um destes instrumentos. Para perceber isto, o artigo agora se direciona ao delineamento de algumas ferramentas analíticas desenvolvidas por Michel Foucault.

 

ABRINDO A CAIXA DE FERRAMENTAS DE FOUCAULT

O filósofo francês Michel Foucault é um importante pensador do século XX. Devido à sua maestria ao analisar e desvendar ocultas relações de poder, um elemento‑chave do pensamento de Foucault é a força que a sua pesquisa possui em prover ferramentas analíticas e teóricas muito úteis para se investigar e escrutinar uma grande variedade de questões e assuntos em campos muito distintos. De fato, o uso das ferramentas analíticas foucaultianas possuí um forte impacto e é transversal à uma vasta gama de disciplinas das ciências sociais em geral. De certo modo, isto pode ser entendido como uma consequência da percepção que o próprio Foucault tinha acerca de seu trabalho, enquanto provedor de diferentes ferramentas analíticas. Isto é muito claro em suas próprias palavras quando Foucault diz: «eu gostaria que meus livros fossem um tipo de caixa de ferramentas que outros possam buscar para encontrar uma ferramenta que possam utilizar do modo que quiserem em sua própria área […] eu escrevo para usuários, não leitores»32.

Dentro da «caixa de ferramentas» de Foucault, dispositivo e normalização estão certamente entre estas úteis ferramentas. Dispositivo é um termo decisivo no pensamento de Michel Foucault. Contudo, curiosamente, Foucault nunca dedicou um grande trabalho ou mesmo forneceu uma definição concreta acerca do termo33. Foram outros pensadores, como Gilles Deleuze34, por exemplo, que tentaram delinear um entendimento mais claro do termo. Embora não oferecendo uma definição completa, Foucault aproxima‑se disto quando delineou o que era um dispositivo durante uma entrevista35. Ele disse:

«O que estou tentando destacar com este termo é, primeiramente, um conjunto completamente heterogêneo consistindo de discursos, instituições, formas arquitetônicas, decisões regulatórias, leis, medidas administrativas, declarações científicas, proposições filosóficas, morais e filantrópicas – em suma, tanto o dito quanto o não dito. Tais são os elementos do dispositivo. O dispositivo em si mesmo é o sistema de relações que podem ser estabelecidas entre estes elementos. […] Eu entendo pelo termo “dispositivo” um tipo de – digamos assim – formação que possui como sua principal função em determinado momento histórico a de responder à uma necessidade urgente36

Alargando ainda mais o já pouco preciso entendimento foucaultiano de dispositivo, Giorgio Agamben compreende um dispositivo como «qualquer coisa que possui de algum modo a capacidade de capturar, orientar, determinar, interceptar, modelar, controlar, ou assegurar os gestos, comportamentos, opiniões, ou discursos de seres vivos»37. Portanto, um dispositivo é essencialmente um conjunto heterogêneo composto por diferentes, e muito frequentemente conflitivas e competitivas, práticas, instituições, medidas administrativas, legislações, atores, conceitos, teorias, tipos de conhecimento e assim por diante, que emerge com a finalidade de lidar com uma determinada questão. Para ser mais preciso, um dispositivo emerge em um determinado momento para lidar com algo que, naquele momento em particular, começa a ser percebido enquanto uma necessidade urgente, buscando moldar, conduzir e orientar esta questão de um modo específico e particular.

Enquanto, por um lado, o dispositivo pode ser entendido como a lente analítica que aglutina uma vasta gama de elementos que, embora díspares, conflitantes, e frequentemente não relacionados, são parte de um mesmo todo abrangente, que emerge a fim de lidar com uma necessidade urgente, a normalização, por outro lado, pode ser compreendida enquanto o processo de lidar com esta necessidade urgente. A normalização pode ser entendida enquanto a abordagem pela qual esta necessidade urgente é moldada e conduzida de um modo específico. Neste sentido, é preciso notar que, desde o princípio, a noção de normalização tem inerente e subjacente a si, embora frequentemente silenciada, uma distinção entre o que entende por condições «normais» e «anormais». No processo de normalização, a condição «normal» é o elemento primário e a «norma» é deduzida a partir desta. Logo, aqueles entendidos enquanto «anormais» devem sofrer intervenções, à luz desta «norma» deduzida a partir do que é entendido enquanto uma condição normal, a fim de tornarem‑se mais parecidos com aqueles que são «normais»38.

Consequentemente, o processo de normalização busca fazer com que os elementos «anormais» assemelhem‑se mais com os elementos «normais». Portanto, os «anormais» sofrem intervenções, por intermédio de uma variedade de instituições, técnicas e práticas, a fim de os fazerem comportar‑se como os «normais». Nos estudos de Michel Foucault, os «anormais» eram os doentes, os pervertidos, os delinquentes, os loucos, e assim por diante. De variados modos – como, por exemplo, por meio da hospitalização, da psicanálise, da escolarização, do encarceramento, de espancamentos, dentre outros – aqueles que eram entendidos como sendo «anormais» dentro de uma sociedade em particular, tinham os seus comportamentos e ações sofrendo constantes intervenções, objetivando moldá‑los e condicioná‑los de tal modo que seus comportamentos começassem a assemelhar‑se mais com o que era percebido enquanto um comportamento «normal» dentro daquela sociedade.

Este processo de normalização é tornado operacional por uma série de tecnologias de poder39. As tecnologias de poder, para Foucault, relacionam‑se à conduta de indivíduos e a sua submissão a certos fins40. Elas são tecnologias que estão «imbuídas com aspirações para o modelamento da conduta na esperança de produzir certos efeitos desejados e de evitar certos efeitos indesejados»41. Quando Foucault fala sobre «poder», esta é uma mera abreviação para o que ele realmente tem como o objeto de sua análise – os «relacionamentos de poder»42. Estes, compreendidos por Foucault «como os meios pelos quais indivíduos tentam conduzir, determinar o comportamento de outros», estão presentes em qualquer sociedade43. Logo, Foucault problematiza o poder como um relacionamento onde um tenta produzir, direcionar ou determinar os comportamentos de outros44. Foucault enxerga que, ao longo do tempo, embora a natureza e a essência do poder não tenham mudado, o seu funcionamento tecnológico sim modi‑ficou‑se45. Portanto, Foucault percebe que o que realmente muda ao longo do tempo, relativamente ao exercício do poder, é seu funcionamento, o modo pelo qual e através de quais instrumentos este é exercido (seus dispositivos «tecnológicos»), e não a sua própria essência – a busca por moldar comportamentos. É aqui que Foucault diferencia as tecnologias de poder tais como governo, disciplina e biopoder46.

Ao posicionar a noção de governo como uma «diretriz»47 para as suas investigações, Foucault introduziu uma nova dimensão para investigar as relações de poder, que agora podem ser problematizadas a partir de um ângulo diferente, isto é, a perspectiva da «conduta das condutas»48. Sucintamente definindo governo enquanto a «conduta da conduta», Foucault notoriamente brinca com o duplo significado da palavra «conduta» e conscientemente a vê como «um dos melhores auxílios para chegar a um acordo com a especificidade das relações de poder»49. Enquanto verbo, «conduzir» significa liderar, guiar ou dirigir; como substantivo, «conduta» refere‑se às ações e comportamentos humanos50. Ao associar estes dois significados, governo enquanto a «conduta da conduta» «implica qualquer tentativa de moldar com certo grau de deliberação aspectos de nosso comportamento de acordo com um conjunto particular de normas e para uma variedade de fins»51.

Compreender governo como a «conduta das condutas» liberta do senso comum a reflexão acerca do exercício de poder. Governo, no sentido foucaultiano, é muito mais do que a imagem burocrática que pode emergir ao se ler a palavra. Para Foucault, o governo é «disposicional» – relaciona‑se à «disposição das coisas, é dizer, empregar táticas ao invés de leis, ou, tanto quanto possível empregar leis como táticas; organizar as coisas para que este ou aquele fim possa ser alcançado através de um certo número de meios»52. Para Foucault, «governar, então, significa governar coisas»53. Consequentemente, governar torna‑se mais do que o mero gerenciamento de estruturas de Estado. Na verdade, governar, dentro deste enquadramento, significa essencialmente «estruturar o possível campo de ação de outros»54. Portanto, governo não simplesmente se refere «às estruturas políticas ou ao gerenciamento de Estados; mas designa o modo pelo qual a conduta de indivíduos ou de grupos pode ser direcionada – o governo de crianças, de almas, de comunidades, de famílias, dos doentes»55. Assim, o governo torna‑se uma atividade que não opera exclusivamente no nível de Estado e de instituições, mas, sim, acaba por estar presente nos aspectos diários de uma vida comum como, por exemplo, nas escolas, fábricas, hospitais, empresas, organizações religiosas, famílias e assim por diante.

O processo de normalização é tornado operacional por meio do governo, a conduta da conduta. Isto pode ser operacionalizado em duas dimensões – tanto focando em indivíduos quanto em populações. É aqui onde um delineamento acerca das noções da disciplina e do biopoder ajuda. Relativamente à disciplina e ao biopoder, Foucault observou que estas duas tecnologias de poder emergiram durante o período moderno e são, respectivamente, micro e macropolíticas. Embora estas tecnologias «possuam as mesmas características gerais de todo poder, [elas] são mais produtivas, no sentido em que possibilitam a produção de comportamentos em tanto em indivíduos quanto em populações inteiras para além do que era anteriormente possível»56. Em adição à magnitude das possibilidades de suas ações, estas tecnologias de poder também são diferentes no que toca ao modo pelo qual são exercidas. A disciplina e o biopoder são exercidas por meio da correçãodos indivíduos e do aprimoramento da vida, respectivamente. Um elemento chave destas tecnologias de poder visualizadas por Foucault, é que elas operam em diferentes níveis, escalas e por meio de diferentes instrumentos. É precisamente este fato que possibilita a uma tecnologia existir sem a extinção da outra; possibilitando, inclusive, que estas tecnologias funcionem simultânea e complementarmente.

Em essência, a disciplina busca corrigir os comportamentos individuais que são considerados inapropriados. Devido à sua essência de correçãoe, portanto, de mudança de comportamentos, a disciplina é um tipo de poder que está muito atrelado à noção, anteriormente delineada, de normalização. O objetivo final da disciplina é normalizar. Isto faz a dissociação dos processos de normalização e de disciplina algo impossível. De fato, para Foucault é «incontestável, ou dificilmente contestável, que a disciplina normaliza»57. Um mecanismo disciplinador é, em essência, um mecanismo de normalização. Este é um resultado do fato de que a disciplina é, ao mesmo tempo, um processo de individualização e também relacional. Isto pode soar paradoxal, mas, na verdade, estas características são muito complementares. Sendo a essência da disciplina a correção dos comportamentos de indivíduos desviantes, a palavra operativa aqui é certamente o adjetivo desviante. Neste sentido, o mecanismo disciplinar visualiza o que deveria ser o comportamento correto e modela aqueles comportamentos entendidos como incorretos e desviantes em direção a este modelo correto de comportamento. Consequentemente, a disciplina é uma tecnologia de poder que busca moldar o comportamento individual tanto recompensando o que entende enquanto um comportamento «correto», quanto punindo o que percebe enquanto um comportamento «desviante». Isto não é senão um processo de normalização. Portanto, a disciplina pode ser perfeitamente entendida como um dos mecanismos pelos quais o processo de normalização pode ser tornado operacional, no nível individual. É precisamente por meio de técnicas de punição e de recompensa que comportamentos «anormais» são moldados e corrigidos, e os comportamentos «normais», investidos e estimulados.

A partir da segunda metade do século XVIII, Foucault visualiza o aparecimento de uma nova tecnologia de poder que opera no polo oposto da disciplina – o biopoder58. O biopoder, em essência, é um poder macropolítico. Enquanto a disciplina é exercida sobre o indivíduo, o biopoder é exercido sobre a coletividade, tendo a população como o seu alvo59. Consequentemente, esta é uma tecnologia de poder que não tem relação com o/a homem/mulher enquanto indivíduo, mas com homens/mulheres enquanto seres vivos60. Em contraste com a disciplina, o biopoder é aplicado «não ao homem‑enquanto‑corpo mas ao homem que vive, ao homem‑enquanto‑ser‑vivo»61. Como resultado, enquanto a disciplina é aplicada à uma multiplicidade de pessoas justamente porque esta multiplicidade pode ser dividida em indivíduos – que podem ser colocados sob vigilância, serializações, hierarquização, e, se necessário, serem punidos – o biopoder atua exatamente no caminho inverso. Este é direcionado à uma multiplicidade de pessoas na medida em que «formam uma massa global afetada por características gerais de processos de nascimento, morte, produção, doença, e assim por diante»62. Portanto, o biopoder é uma tecnologia que é exercida não sobre o corpo individual, como na disciplina, mas sim sobre a vida das populações. Consequentemente, ao invés de uma «anátomo‑política do corpo humano», o que é percebido é a emergência de uma «biopolítica da raça humana»63.

A biopolítica preocupa‑se com «a gestão dos fenômenos que caracterizam grupos de seres humanos vivos»64. Logo, esta é «uma forma de política que implica a administração do processo da vida no nível agregado de população»65. Assim, a biopolítica começa a problematizar um largo conjunto de fenômenos que vincula a população como um todo e que a faz um mesmo todo coerente. A biopolítica problematiza todos «os mecanismos da vida e que servem como a base dos processos biológicos»66. Em essência, a biopolítica objetiva a «gestão e a regulação da população, o corpo espécie e suas características demográficas»67. Consequentemente, este novo poder regulatório preocupa‑se essencialmente com «o problema de governar grupos de humanos representados na forma de população»68. Como resultado disto, a biopolítica problematiza e racionaliza um largo conjunto de processos ao redor da vida das populações, intervindo em fenômenos como o nascimento, a morte, a produção, as condições trabalhistas, a nutrição, as doenças, a fertilidade, a saúde, o emprego, a expectativa de vida, a habitação, a educação, padrões de vida, e assim por diante, e todas as condições que estão em seu entorno e que podem ter uma influência nestes processos69.

É necessário lembrar que estas tecnologias de poder não operam somente individualmente. Na realidade, elas operam simultaneamente e de modo complementar umas às outras. Para Foucault, o que liga todos estes diferentes domínios é o fato de que compartilham um foco comum: «o governo de todos e de cada um, e as preocupações de ao mesmo tempo totalizar e individualizar»70. O elemento comum que permeia estes domínios díspares é a preocupação de como governar indivíduos e coletividades. Estas tecnologias, em conjunto, formam uma estrutura de poder que busca conduzir as condutas do outro, individualmente ou em massa, assegurando a correção e otimização de cada um e de todos, ao mesmo tempo71. Elas formam uma estrutura de poder que busca o governo, a conduta das condutas, sendo operado em indivíduos, por meio do exercício da disciplina, e em massas populacionais, por meio da biopolítica. No cerne desta estrutura de poder, há uma «norma». A «norma possui um papel chave, pois ela circula entre a disciplina e a biopolítica»72. É à luz desta «norma» que a normalização, tornada operacional através da conduta das condutas, operando por meio da disciplina e da biopolítica dependendo do nível, funciona. Como menciona Foucault, «[a] norma é algo que pode ser aplicado a um corpo que se deseja disciplinar e à uma população que se deseja regularizar»73. Tendo estes elementos em mente, é possível ter uma visualização mais clara do papel normalizador que as operações de paz têm dentro da sociedade internacional. É precisamente o delineamento deste ponto o cerne da seção que segue.

 

AS OPERAÇÕES DE PAZ ENQUANTO UM DISPOSITIVO NORMALIZADOR

As operações de paz passaram por muitas modificações ao longo do tempo, no que toca à sua extensão, profundidade e variedade de atividades realizadas no terreno74. Durante a Guerra Fria, as operações de paz eram uma força levemente armada, composta essencialmente por militares, e entendidas enquanto um instrumento destacado ao terreno a fim de atuar como uma espécie de tampão entre dois estados beligerantes75. Do fim da Guerra Fria em diante, as operações de paz começaram a ampliar as suas atividades realizadas no terreno. Adicionalmente à incorporação de civis em suas atividades, elas começaram a realizar práticas como, por exemplo: a supervisão de eleições, a elaboração de constituições, a reconstrução de setores de segurança, o mainstreaming de questões de gênero, o fomento dos direitos humanos, a atuação em setores sociais, políticos e econômicos de sociedades pós‑conflito, para nomear apenas algumas. Mais importante, as operações de paz tornaram‑se intimamente vinculadas às práticas de (re)construção de estados (state-building)76. Na verdade, o processo de (re)construção de estados – o processo de não apenas construir e fortalecer as instituições estatais mas também as práticas que buscam definir, direcionar e conduzir as relações entre estados pós‑conflito e suas próprias populações – tornou‑se a própria essência das operações de paz77.

Com isto em mente, as ferramentas analíticas acima mencionadas possibilitam a (re) problematização da construção da paz nas relações internacionais. Estas ferramentas possibilitam a problematização do papel que as operações de paz têm na política internacional, operando na sociedade internacional enquanto um dispositivo normalizador, direcionado a estados e populações pós‑conflito. Neste sentido, as operações de paz podem ser entendidas enquanto um dispositivo que emerge como uma resposta ao que é percebido enquanto uma necessidade urgente na sociedade internacional. Portanto, as operações de paz podem ser entendidas como um dispositivo normalizador que busca governar estados e populações pós‑conflito, de modo a conduzir suas condutas, tanto por meio da tentativa de disciplinar o Estado pós‑conflito enquanto uma entidade política individual na sociedade internacional, quanto por meio do exercício do poder biopolítico sobre os processos de apoio e suporte às vidas de suas populações. Consequentemente, as operações de paz podem ser problematizadas enquanto um dispositivo normalizador desenhado para atuar em ambas as sociedades problematizadas pela Escola Inglesa – as de primeira e de segunda ordem.

Os elementos deste dispositivo normalizador são o conjunto de atores, teorias, discursos, conceitos, práticas, instrumentos, instituições, e assim por diante, que são aglutinados por uma operação de paz e destacados ao terreno, buscando moldar e conduzir os comportamentos dos estados pós‑conflito e de suas populações. A noção de dispositivo aplicada à compreensão das operações de paz enviadas para cenários pós‑conflito facilita bastante o entendimento das vastas e distintas séries de ações, especialistas, práticas, procedimentos, conceitos, que fazem parte de um processo de reconstrução pós‑bélica. Estes elementos, na verdade, podem não ser inter‑relacionais e, muito frequentemente, são conflitantes e contraditórios entre si. Não obstante, eles podem perfeitamente ser compreendidos como parte de um mesmo conjunto coerente. É precisamente este sentido que a noção de dispositivo busca capturar.

Como mencionado anteriormente, um dispositivo emerge a fim de responder à uma necessidade urgente. A emergência de uma necessidade urgente na sociedade internacional, e a legitimação da operacionalização do dispositivo normalizador que as operações de paz materializam, são geralmente sustentadas por duas noções operativas: a fragilidade do Estado e a transformação do entendimento de soberania em capacidade do Estado. Estas noções são intimamente relacionadas, pelo pensamento mais ortodoxo na disciplina, à violência, insegurança e pobreza. Sob esta lógica, é a inquietação internacional de um local tornar‑se um Estado frágil ou um Estado com limitada capacidade – e potencialmente tornar‑se um porto seguro para a violência, insegurança e pobreza – e, por sua vez, tornar‑se uma ameaça à estabilidade78 da sociedade internacional, que provoca a emergência do dispositivo que as operações de paz materializam.

Conectando ambas as noções, por um lado, este dispositivo normalizador – enquanto projetado para lidar a fragilidade do Estado pós‑conflito uma vez que tem na (re)construção dos estados o seu cerne principal – é representado internacionalmente como o instrumento mais adequado para lidar com o que é percebido enquanto uma necessidade urgente, buscando em última análise aumentar a segurança e o bem‑estar na sociedade internacional. Por outro lado, uma vez que são retratadas como reduzindo a lacuna de soberania existente nos estados pós‑conflito79– uma vez que são retratadas como atuando somente na soberania doméstica, ou de facto, dos estados pós‑conflito, enquanto estes mantêm a sua soberania internacional legal, ou de jure intacta –, as operações de paz não são percebidas enquanto uma problemática intervenção externa nestes estados. Na verdade, ao contrário, por meio de ambas as noções, as operações de paz são retratadas como aumentando a capacidade estatal e independência dos estados pós‑conflito. Mais grave, por meio de ambas as noções, os processos desenvolvidos pelas operações de paz no terreno são frequentemente retratados enquanto uma relação benéfica entre os atores externos e os estados pós‑conflito que sofrem a intervenção.

Além disto, percebendo que as operações de paz funcionam como um dispositivo normalizador dentro da sociedade internacional, é possível observar que, sustentando o funcionamento deste dispositivo, há uma compreensão subjacente ao mesmo do que se entende enquanto um comportamento «normal» e «anormal» desta sociedade internacional. Nas reflexões de Foucault, aqueles que deveriam ser normalizados – os «anormais» – eram os doentes, os pervertidos, os delinquentes, os loucos, e assim por diante. Estes eram os que precisavam sofrer uma intervenção a fim de serem normalizados e tornarem‑se elementos mais «normais» dentro da sociedade em geral. Na sociedade internacional, é mais do que evidente quais são os elementos construídos enquanto «normais» e «anormais». Os elementos «normais» são os estados liberais‑democráticos ocidentais, enquanto os «anormais» são aqueles que não possuem este tipo de comportamento na sociedade internacional. É deste pressuposto subjacente à sociedade internacional que é deduzida a «norma» tornada operacional por meio da disciplina de estados pós‑conflito, enquanto indivíduos da sociedade internacional, e do exercício do poder biopolítico sobre as populações pós‑conflito. A «norma» é que os estados devem assemelhar‑se às democracias (neo)liberais. Esta é a norma à luz da qual os estados entendidos enquanto «anormais» na sociedade internacional sofrem uma intervenção a fim de os fazerem assemelharem‑se mais com aqueles entendidos enquanto «normais».

Entretanto, é preciso ter em mente que o «normal» e o «anormal» não são condições inerentes e naturais à sociedade internacional. Estas condições precisam ser construídas enquanto tais, para que se tornem cristalizadas e constituídas enquanto fatos da sociedade internacional. É o escritor moçambicano Mia Couto quem talvez melhor capturou a essência desta construção quando escreve em um de seus romances que «os factos [sic] só são verdadeiros depois de serem inventados»80. No que toca ao comportamento entendido enquanto «normal» dentro da sociedade internacional, a construção desta condição é sustentada por uma narrativa dual: (1) que a formação do Estado na Europa Ocidental é o caminho para se organizar uma entidade política e tornar‑se um Estado; e (2) a associação de valores liberais à paz e à prosperidade. Isto é o que é construído enquanto os valores e comportamentos fundamentais compartilhados e, mais importante, aceitáveis, que toda a sociedade internacional deve seguir. Neste enquadramento, aqueles que não compartilham, ou são percebidos como não compartilhando, estes valores e comportamentos, sofrem intervenções em seus comportamentos a fim de passarem a ter o que é entendido enquanto um comportamento apropriado dentro da sociedade internacional. Essa narrativa dual materializa‑se na sociedade internacional por meio da noção da «boa governança». No caso da condição «anormal», esta «anormalidade» é construída por meio da ideia de fragilidade do Estado e da noção de «Estado falido» e a associação deste com a violência e pobreza na sociedade internacional.

Considerando a primeira narrativa que sustenta a construção do entendimento do que seria um comportamento «normal» na sociedade internacional, ao invés de entender o processo de formação do Estado na Europa Ocidental como um processo que é localizado tanto no tempo quanto no espaço, e de modo algum replicável, este processo é entendido, mesmo que às vezes inconscientemente, como o caminho histórico «normal» da criação e formação de estados. Portanto, o processo de normalização de estados pós‑conflito busca posicionar estes estados neste caminho histórico «normal». Francis Fukuyama é quem talvez melhor resume esta compreensão do que é este caminho «normal» para a criação de um Estado. Para ele, um Estado «bem‑sucedido» combinaria um equilíbrio estável entre três importantes instituições políticas – o próprio Estado, o Estado de direito, e um governo responsável – com o resultado de uma interação dupla – entre os próprios estados e entre os grupos sociais dentro da sociedade deste Estado. Portanto, aos olhos de Fukuyama, um processo de formação do Estado «bem-sucedido» produz um Estado que, por um lado, concentra o poder, faz seus cidadãos respeitarem as leis, e defende a si mesmo e a sua população de ameaças externas; e, por outro lado, possui um Estado de direito e um governo responsável limitando o poder do Estado, fazendo‑o operar dentro de certas regras, e assegurando que o Estado estaria subordinado à vontade da população81.

Não por acaso, ao observar as práticas desenvolvidas no terreno em um processo de reconstrução pós‑bélica, são precisamente tais elementos que são operacionalizados. Mais do que isso, fica bastante claro que o processo de normalização é muito mais do que a tentativa de «corrigir» as instituições destes estados pós‑conflito, seus comportamentos e suas práticas; é quase como se os que atuam em tais processos buscassem «corrigir» a própria história destes estados. Apesar daqueles que atuam em processos de reconstrução pós‑bélica retoricamente argumentarem que cada local possui sua especificidade e características, e como consequência tem seu próprio caminho rumo à construção da paz, isto não poderia estar mais longe da realidade no terreno. Na verdade, a tentativa de implementação dos elementos resultantes de um longo processo que ocorreu na Europa Ocidental em estados pós‑conflito, possui um elemento silenciado. De fato, por meio da busca da inserção destes elementos em estados pós‑conflito, aqueles que atuam em processos de reconstrução pós‑bélica demonstram um entendimento de que o processo que ocorreu na Europa Ocidental é o caminho histórico «normal» e «correto» da formação de estados. Portanto, apesar de muitas vezes isso ser não conscientemente percebido, o que é buscado é mais do que uma mera (re)construção de instituições. É a própria «correção» da história destes estados pós‑conflito que é perseguida. Neste sentido, as operações de paz tornam‑se um instrumento através do qual busca‑se posicionar os estados pós‑conflito dentro do que é entendido enquanto o caminho histórico «normal» e «correto» de formação de estados, «acelerando» assim suas passagens por esta trajetória histórica.

Relativamente à segunda narrativa que sustenta o que é construído enquanto um comportamento «normal» na sociedade internacional, esta tem a ver com a associação de valores liberais à paz e à prosperidade. Logo, a consequente «norma», tomada a partir desta compreensão, assenta‑se fundamentalmente nas noções desenvolvidas por pensadores tais como Immanuel Kant82, Joseph Schumpeter83, Montesquieu84 e outros, que culminam no argumento de que o liberalismo – em termos políticos, econômicos e sociais – possui um efeito pacificador sobre os estados, interna e externamente85. Consequentemente, de acordo com este argumento, aqueles «Estados liberalmente constituídos são internamente mais pacíficos, prósperos e humanos e até mesmo melhores gestores ambientais do que as não‑democracias»86. Portanto, a adesão ao liberalismo é entendida enquanto o caminho em direção à paz e à prosperidade. Esta narrativa é materializada na sociedade internacional por meio do argumento da «paz liberal»87, que constrói o liberalismo como um valor fundamental compartilhado, e consequentemente um comportamento adequado, dentro da sociedade internacional liberal, em relação ao qual seus membros devem aquiescer e seguir.

A narrativa dual que sustenta a construção do que é entendido enquanto um comportamento «normal» na sociedade internacional é materializada e epitomada pela noção de «boa governança». Desde os anos de 1990, diversas organizações internacionais, especialmente aquelas trabalhando em «assistência» ao desenvolvimento e no fornecimento de «apoio» financeiro, começaram a incluir um novo lema – a «boa governança»88. De fato, foi o Banco Mundial que desempenhou um papel fundamental no que toca à disseminação da noção de «boa governança» entre as organizações internacionais89. Na verdade, a ideia de «governança» é importante, já que a mesma enquadra a área de intervenção. Para o Banco Mundial, a governança significa «o modo pelo qual o poder é exercido no gerenciamento dos recursos econômicos e sociais de um país para o desenvolvimento»90. Apesar da importância do termo «governança», a palavra‑chave e operativa desta noção é, obviamente, o adjetivo «boa». Neste ponto, é perceptível que, enquanto as instituições financeiras enfatizam as reformas macroeconômicas enquanto condicionantes para os seus financiamentos, as instituições políticas colocam maior atenção nos princípios democráticos, direitos humanos e Estado de direito91. Logo, a função da noção de «boa governança» é dupla. Primeiramente, por meio da ideia de «governança», estrutura‑se a área que deve sofrer a intervenção e, portanto, delineia‑se onde – nomeadamente as estruturas estatais, seu modus operandi, e suas relações com suas próprias populações – os internacionais devem focar suas ações e influências. Em segundo lugar, por meio da noção de «boa», delineia‑se o como aquelas áreas sob intervenção devem, de fato, comportar‑se. Assim, enquadra‑se o tipo de resultado esperado pela intervenção realizada. Relativamente à construção da paz em cenários «pós‑conflito», esta noção de «boa» refere‑se diretamente à uma entidade política (neo)liberal‑democrática, respeitando‑se os direitos humanos e sustentada pelo Estado de direito. Mais do que isso, há uma ideia implícita e subjacente à noção de «boa governança» – a existência de uma «» governança. Enquanto há uma «boa» e «correta» governança, que deve ser estimulada e fomentada, o outro lado da moeda é que há uma «má» e «inapropriada» governança, que deve ser corrigida. Esta correção da «má» governança em direção à «boa» governança é operacionalizada por meio de reformas econômicas, políticas e sociais, como por exemplo a redução de barreiras comerciais e tarifas alfandegárias, a privatização de propriedades pertencentes ao Estado, a desregulamentação e liberalização da economia, a mercadorização dos serviços públicos, disciplina orçamental, respeito pelos direitos humanos, o engajamento de ONG, o Estado de direito, e assim por diante92. De modo mais aprofundado, esta correção pode dar‑se por meio do delinear e moldar do próprio modus operandidas instituições (re)construídas em estados pós‑conflito. É Laura Zanotti, por exemplo, quem elucida que a «boa governança» «tornou‑se o conceito organizador das intervenções das Nações Unidas em diversos campos, a chave para alcançar não apenas a democracia, mas também o desenvolvimento e a paz»93. Este é um elemento importante do processo de «normalização» sob o qual passam os estados e populações pós‑conflito por meio do dispositivo normalizador que as operações de paz materializam.

Além disto, é preciso não esquecer que o que se entende enquanto um comportamento «anormal» na sociedade internacional também precisa ser construído enquanto tal. É na construção da «anormalidade» e no processo de normalização que a noção de «Estado falido» é operacionalizada. Este é um conceito ao contrário. Ele incorpora uma dicotomia subliminar, tácita, do que é um Estado «bem‑sucedido» ou «normal»94, que, como já mencionado, é o (neo)liberal‑democrático. Este conceito está no coração da própria existência e necessidade de um dispositivo normalizador na sociedade internacional. A noção é um conceito operativo fundamental neste processo. Como já discutido, as operações de paz emergem na sociedade internacional a fim de lidar com a questão da «fragilidade» estatal, e esta questão torna‑se operacional por meio da noção de «Estado falido». Este conceito emerge quando a lógica ortodoxa, observando a sociedade internacional, problematiza a «fragilidade» e a «falta de capacidade» de certas estruturas estatais, ou suas «más governanças»95. Estes estados são entendidos enquanto «falidos» porque não realizam, ou não querem realizar96, ou mesmo não são capazes de realizar97 as funções que são entendidas enquanto funções centrais aos estados, como por exemplo a provisão de serviços básicos, segurança, o monopólio do uso legítimo da violência, controlar suas fronteiras e fazer valer a lei e a ordem98. Nesta linha de raciocínio, os «estados falidos» são aqueles estados que «falharam» em se comportar como estados «normais» na sociedade internacional. Mais do que isso, tais estados são construídos enquanto patologias da sociedade internacional que precisam ser curadas. Eles são retratados enquanto estados «anormais» na sociedade internacional por meio de analogias tais como «doença degenerativa»99, «grave doença mental ou física»100, ou mesmo «folhas mortas que se acumulam em uma floresta»101. Portanto, a noção de «Estado falido» possui uma função quádrupla, embora não sejam, na maioria das vezes, claramente visíveis. Estas são: (1) relacional, no sentido em que constrói‑se a problematização destes estados em relação aos outros estados; (2) «construtiva», no sentido em que constrói‑se estes estados enquanto «anormais»; (3) hierárquica, na medida em que, enquanto se problematiza estes estados em relação a outros estados e os constroem enquanto «anormais», claramente se hierarquiza os estados na sociedade internacional; e (4) prescritiva, no sentido em que, enquanto se delineia a realidade a qual se quer descrever, também, inerentemente, se enquadra o que deve sofrer uma intervenção e onde as intervenções devem focar‑se102.

Portanto, a noção de «Estado falido» não apenas funciona como o gatilho que faz com que o dispositivo normalizador emerja enquanto um instrumento adequado da sociedade internacional para lidar com tal questão, mas também como uma espécie de parâmetro negativo, essencial no processo de classificação dos estados e indispensável para qualquer processo de normalização. É precisamente ao caracterizar certos estados como «falidos» ou «frágeis» que se está, subliminarmente e essencialmente, classificando estes estados em comparação a outros estados – aqueles considerados enquanto «normais». Mais do que isto, este processo de classificação é feito ao mesmo tempo em que conecta‑se intimamente o «fracasso» ou a «fragilidade» destes estados às inseguranças internacionais e ao subdesenvolvimento em escala global. É este mecanismo que cria uma necessidade urgente de se reformar estes estados e corrigir seus comportamentos para que não mais sejam «falidos». Caso contrário, a sociedade internacional, sob a linha de pensamento ortodoxo, torna‑se demasiadamente insegura e seu desenvolvimento é prejudicado. Além disso, estas correções e intervenções são retratadas como uma relação benéfica, devido às possibilidades abertas pelas reinterpretações ocorridas na noção de soberania passando esta a ser entendida enquanto capacidades. É esta modificação que permite que esse processo de profunda e estrutural reengenharia social seja realizado por meio de noções negadoras de poder como por exemplo «construção de capacidade» (capacit-building), «assessoria» ou «tutoria», tão presentes em cenários de reconstrução pós‑bélica, e seja retratado como aumentando o espectro de ações dos estados pós‑conflito, ao invés de o limitando.

Consequentemente, as operações de paz desenvolvem várias reformas econômicas, políticas e sociais, à luz da noção de «boa governança», e sustentadas pelo argumento da paz liberal, precisamente objetivando fazer com que estes estados parem de ser, mesmo que potencialmente, uma ameaça à sociedade internacional, e parem de ter um comportamento «desviante» na sociedade internacional. É dentro deste enquadramento que, por exemplo, todas as instituições que são construídas em cenários pós‑conflito devem ser percebidas. Portanto, ao invés de um mero exercício de (re)construção de instituições, tais processos de reconstrução pós‑bélica são a própria operacionalização do exercício de um poder disposicional sobre os estados pós‑conflito e suas populações, no sentido de «corrigir» seus modus operandi, de «corrigir» o modo no qual estas esferas devem «adequadamente» comportar‑se. Estas práticas, como já deve ser bastante claro neste momento, são essenciais para o processo de normalização a que os estados pós‑conflito e suas populações são sujeitos. Na esfera econômica, é dentro deste enquadramento que, por exemplo, os ajustes estruturais, impostos pelo Fundo Monetário Internacional e Banco Mundial, estimulando certos tipos de condutas econômicas, e bloqueando outras, como, por exemplo, a concessão (ou recusa) de financiamento e de créditos aos estados pós-conflito, devem ser entendidos. Em essência, objetiva‑se que a economia, em geral, comporte‑se de uma determinada maneira específica. Na esfera política, pode‑se pensar, dentro deste enquadramento, acerca das vastas e profundas reformas desenvolvidas tais como, por exemplo, a criação de todo o sistema jurídico, legislativo e executivo (ou, de fato, exercendo tais poderes)103, a escrita de constituições, a definição de sistemas eleitorais, ou mesmo a elaboração de leis. Na esfera social, é perceptível, por exemplo, a gestão de uma variedade de áreas‑chave relativamente às vidas das populações em cenários pós‑conflito, incluindo a movimentação das mesmas no território, educação, saúde, programas alimentícios, demografia, habitação, empregos, para nomear apenas algumas dimensões. Sob este enquadramento, todas estas ações são essencialmente conduções das condutas que possuem o objetivo de estimular, ou desencorajar, determinados tipos de comportamentos, para que o Estado pós‑conflito e as suas populações, em geral, comportem‑se «de acordo». Intervindo nos níveis do Estado e da população, o dispositivo normalizador que as operações de paz materializam posiciona ambos os níveis em uma complexa rede de poder, cujo o objetivo é conduzir suas condutas, para que possam assemelhar-se mais a um Estado e uma população com comportamentos liberais‑democráticos.

Portanto, normalizar estes estados construídos enquanto «anormais» e «falidos» na sociedade internacional significa encontrar os instrumentos adequados para tornar operacional um tipo «bom» de governança, que é sustentado pelo enquadramento normativo da «paz liberal», o que, em essência, significa implementar uma «normalidade» nestes países. Na verdade, isto pode ser buscado por meio de diversos instrumentos, variando desde sanções até mesmo à guerra. Contudo, em cenários pós‑conflito, e dentro da narrativa da construção da paz, é o dispositivo materializado pelas operações de paz que emerge enquanto o instrumento mais adequado para se intervir em estados pós‑conflito e suas populações, a fim de corrigir seus comportamentos, de modo a fazê‑los assemelharem‑se mais com democracias (neo)liberais, e, em essência, para normalizá‑los. Logo, em um processo de normalização acontecendo na sociedade internacional por meio das operações de paz, não somente os estados pós‑conflito sofrem uma intervenção visando a sua normalização, buscando fazê-los comportarem-se de acordo com uma «norma» internacional estabelecida, e supostamente compartilhada, a «paz liberal»; mas também a relação dos mesmos com suas próprias populações e o modo no qual estas populações devem comportar‑se também são alvos deste processo normalizador. Nesse sentido, as operações de paz funcionam como um dispositivo que busca normalizar as condutas dos estados pós‑conflito e de suas populações, para que comecem a comportar‑se «de acordo» com as «normas» internacionais; de acordo com o que é construído enquanto um comportamento «normal» e esperado dos estados e populações dentro da sociedade internacional atual – ser um Estado e população liberal‑democrático, orientado ao mercado.

 

CONCLUSÃO

Este artigo problematizou um elemento fundamental do cenário internacional contemporâneo – a construção da paz. Mais precisamente, o artigo refletiu acerca do papel que as operações de paz possuem na política internacional. Partindo das ferramentas analíticas desenvolvidas pela Escola Inglesa e por Michel Foucault, o artigo argumentou que as operações de paz funcionam como um dispositivo normalizador na sociedade internacional. A fim de executar esta função, o artigo argumentou que a tentativa normalizadora torna‑se operacional em dois níveis. No nível internacional, esta ocorre por meio da tentativa de disciplinar o Estado pós‑conflito como um indivíduo na sociedade internacional. No nível nacional, a tentativa de normalização ocorre por meio do exercício de um poder biopolítico sobre as populações destes países. O artigo argumentou ainda que este processo de normalização que operações de paz realizam possui, subjacente ao seu funcionamento, uma compreensão acerca do que deveria ser um comportamento «normal» e um comportamento «anormal» na sociedade internacional. Ambas as condições são construídas enquanto tais dentro da sociedade internacional. Desta forma, foi evidenciado que, em relação ao primeiro, a construção do que é entendido enquanto um comportamento «normal», que os estados devem ser democracias (neo)liberais, na sociedade internacional, se baseia em dois pilares: (1) no entendimento de que o processo de formação de estados que ocorreu na Europa Ocidental é a mais apropriada rota para se organizar uma entidade política; e (2) no argumento da paz liberal, que associa a adoção dos valores liberais, em distintas esferas, à paz e à prosperidade. Como mencionado anteriormente, ambos os pilares fundem‑se e são tornados operacionais por meio da noção de «boa governança». Em relação ao comportamento «anormal» na sociedade internacional, o artigo sustentou que esta condição é construída como sendo os comportamentos que não assemelham‑se ao comportamento de um Estado (neo)liberal, e esta construção se torna operacional por meio da noção de «estados falidos». A problematização desenvolvida pelo artigo permite uma análise crítica acerca do papel que as operações de paz têm na política internacional. A mesma permite a percepção de que, ao invés de um instrumento técnico de resolução de conflitos violentos implementado em cenários pós‑conflito, como frequentemente são retratadas, as operações de paz, ao tentar moldar e conduzir os comportamentos destes estados e de suas populações, possuem um papel fundamental nas relações internacionais – a manutenção da ordem (neo)liberal na sociedade internacional.

 

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Data de recepção: 24 de agosto de 2016 | Data de aprovação: 11 de novembro de 2016

 

NOTAS

* O autor agradece todos os comentários e sugestões recebidos durante a apresentação deste artigo no Seminário de Pesquisa, na Universidade Federal de Uberlândia (Brasil), e no I Encontro Brasileiro de Estudos para a Paz (EBEP). O autor também agradece aos revisores anônimos por suas contribuições relevantes e ao Rafael Nascimento pela tradução deste texto a partir do inglês. No entanto, quaisquer erros ou incoerências são da exclusiva responsabilidade do autor.

1Seguindo uma convenção não escrita da literatura aqui em questão, as letras maiúsculas são empregadas aqui em referência à disciplina acadêmica (Relações Internacionais, RI). Embora o autor reconheça a erosão da divisão «interno/ externo» (cf. WALKER, R. B. J. – Inside/outside: International Relations as Political Theory. Cambridge: Cambridge University Press, 1993) ao se problematizar as dinâmicas dentro das RI na atualidade, as letras minúsculas serão usadas em referência às dinâmicas que acontecem majoritariamente no cenário «internacional» e que envolvem majoritariamente atores externos a um determinado Estado.

2Seguindo a terminologia das Nações Unidas (ONU), este trabalho utiliza o termo «operações de paz» no sentido de «operações de campo destacadas para prevenir, gerenciar, e/ou resolver conflitos violentos ou reduzir o risco de suas recorrências» (cf. UN, UNITED NATIONS PEACEKEEPING DEPARTMENT – United Nations Peacekeeping Operations Principles and Guidelines. 4 de maio de 2009. Disponível em: http://pbpu.unlb.org/PBPS/Library/Capstone_Doctrine_ENG.pdf., p. 98). Logo, o termo engloba, de acordo com o entendimento da própria ONU acerca do termo, os instrumentos-chave utilizados pela mesma para lidar com conflitos violentos ao redor do globo, indo desde a prevenção de conflitos até esforços de construção da paz e (re)construção de estados.

3Esta distância foi de algum modo diminuída pelas elucidações, por exemplo, de Mark Duffield (cf. Development, Security and Unending War – Governing the World of Peoples. Cambridge: Polity Press, 2007; «The Liberal way of development and the development-security impasse: exploring the global life-chance divide». In Security Dialogue. Vol. 41, N.º 1, 2010, pp. 53-76).

4Para mais acerca da violência direta e estrutural ver GALTUNG, Johan – «Violence, peace, and peach research». In Journal of Peace Research. Vol. 6, N.º 3, 1969, pp. 167-191.

5Para uma análise deste tipo relativamente a um dos casos mais paradigmáticos, Timor-Leste, ver BLANCO, Ramon – «The un peacebuilding process: an analysis of its shortcomings in Timor-Leste». In Revista Brasileira de Política Internacional. Vol. 58, N.º 1, 2015, pp. 42-62.

6A palavra utilizada por Foucault originalmente é dispositif. Normalmente a mesma é traduzida para o português como «dispositivo» e para o inglês como apparatus. Não obstante, as traduções não ocorrem sem discussão. Ver, por exemplo, KELLY, Mark G. E. – The Political Philosophy of Michel Foucault. Nova York: Routledge, 2009, p. 174, nota de rodapé 12. De todo modo, o artigo utilizará a palavra «dispositivo».

7O delineamento da completa extensão de ambas as problematizações está fora do escopo deste artigo. Para isto, ver, por exemplo: para a Escola Inglesa, BULL, Hedley – The Anarchical Society: A Study of Order in World Politics. Basingstoke: Palgrave, 1977; WATSON, Adam – The Evolution of International Society: A Comparative Historical Analysis. Londres: Routledge, 1992; DUNNE, Tim – Inventing International Society: A History of the English School. Basingstoke: Macmillan, 1998; BURCHILL, Scott, et al. Theories of International Relations. Nova York: Palgrave, 2005, cap. 4; LINKLATER, Andrew, e SUGANAMI, Hidemi – The English School of International Relations: A Contemporary Reassessment. Cambridge: Cambridge University Press, 2006; BUZAN, Barry – An Introduction to the English School of International Relations: The Societal Approach. Cambridge: Polity, 2014; e para Foucault, RABINOW, Paul (ed.) – The Foucault Reader. Londres: Penguim Books, 1984; BURCHELL, Graham, GORDON, Colin, MILLER. Peter (eds.) – The Foucault Effect: Studies in Governmentality. Chicago: University of Chicago Press, 1991; SMART, Barry – Key Sociologists – Michel Foucault. Nova York: Routledge, 2002; RABINOW, Paul, e ROSE, Nikolas – «Introduction – Foucault today». In RABINOW, Paul, e ROSE, Nikolas (eds.) – The Essential Foucault: Selection from the Essential Works of Foucault, 1954-1984. Nova York: New Press, 2003, pp. VII-XXXV; KELLY, Mark G. E. – The Political Philosophy of Michel Foucault; BRÖCKLING, Ulrich, KRASMANN, Susanne, e LEMKE, Thomas – «From Foucault’s lectures at the Collège de France to studies of governmentality: an introduction». In BRÖCKLING, Ulrich, KRASMANN, Susanne, e LEMKE, Thomas (eds.) – Governmentality: Current Issues and Future Challenges, 2011, pp. 1-33.

8Para mais acerca dos «Grandes Debates» da disciplina ver, por exemplo, FERNANDES, José Pedro Teixeira – Teorias das Relações Internacionais: Da Abordagem Clássica ao Debate Pós-Positivista. Coimbra: Editora Almedina, 2011. Para uma visão crítica acerca deste modo de organizar a disciplina, ver, por exemplo, WILSON, Peter – «The myth of the “the First Great Debate”». In Review of International Studies. Vol. 24, N.º 5, 1998, pp. 1-15; ASHWORTH, Lucian – «Did the Realist-Idealist great debate really happen? A revisionist history of international relations». In International Relations. Vol. 16, N.º 1, 2002, pp. 33-51.

9BUZAN, Barry – An Introduction to the English School of International Relations, p. 12.

10Ibidem, p. 15.

11Esta tríade de tradições advém do trabalho de Martin Wight. Para mais acerca desta tríade e das características de cada tradição ver, por exemplo, BULL, Hedley – The Anarchical Society, pp. 23-26; WIGHT, Martin – System of States. Leicester: Leicester University Press, 1977; BULL, Hedley – «Martin Wight and the theory of international relations». In WIGHT, Gabriele, PORTER, Brian (eds.) – Internatinal Theory. The Three Traditions. Nova York: Holmes & Meier, 1992, pp. XI--XXXIII; WIGHT, Gabriele, e PORTER, Brian (eds.) – International Theory: The Three Traditions – Martin Wight. Nova York: Holmes & Meier, 1992.

12BULL, Hedley – The Anarchical Society, p. 23.

13Ibidem.

14Para o propósito deste artigo, o mesmo focar-se-á nestas duas noções. Para mais sobre a noção de sociedade mundial, ver, por exemplo, BULL, Hedley – The Anarchical Society, pp. 269-282; BUZAN, Barry – An Introduction to the English School of International Relations, p. 13.

15BULL, Hedley – The Anarchical Society, p. 9.

16Ibidem.

17Ibidem, p. 10. Para um delineamento de diferentes tipos de sistemas internacionais ver, por exemplo, WIGHT, Martin – System of States; WATSON, Adam – «Systems of states». In Review of International Studies. Vol. 16, N.º 2, 1990, pp. 99-109; BUZAN, Barry, e LITTLE, Richard – International Systems in World History: Remaking the Study of International Relations. Oxford: Oxford University Press, 2000.

18BULL, Hedley – The Anarchical Society, p. 10.

19Ibidem.

20Ibidem, p. 13.

21Ibidem.

22Ibidem.

23BUZAN, Barry – An Introduction to the English School of International Relations, p. 13.

24Ibidem, p. 15.

25BULL, Hedley – The Anarchical Society, p. 44.

26Para a crítica acerca da mesma desenvolvida por Hedley Bull, ver Ibidem, pp. 44-49.

27Ibidem, p. 44.

28LINKLATER, Andrew – «English School». In Burchill, Scott, et al. (eds.) – Theories of International Relations. Nova York: Palgrave, 2005, p. 84.

29BULL, Hedley – The Anarchical Society, p. 16.

30Ibidem.

31Ibidem.

32FOUCAULT, Michel – «Prisons et asiles dans le mécanisme du pouvoir». In Dits et Ecrits. Paris: Gallimard, [1974] 1994, t. II, pp. 523-524.

33AGAMBEN, Giorgio – What is an Apparatus? – And Other Essays. Stanford: Stanford University Press, 2009, p. 2.

34DELEUZE, Gilles – «What is a dispositif». In Lapoujade, David (ed.) – Two Regimes of Madness Gilles Deleuze Texts and Interviews 1975-1995. Nova York: Semiotext(e), 2007, pp. 339-348.

35AGAMBEN, Giorgio – What is an Apparatus?, p. 2.

36FOUCAULT, Michel – In Gordon, Colin (ed.) – Power/Knowledge: Selected Interviews and Other Writings, 1972-1977. Nova York: Pantheon Books, 1980, pp. 194-196; ênfase no original.

37AGAMBEN, Giorgio – What is an Apparatus?, p. 14.

38FOUCAULT, Michel – Security, Territory, Population. Basingstoke: Palgrave Macmillan, [1978] 2007, p. 63.

39Para uma descrição detalhada da consideração foucaultiana do termo «tecnologia», ver ROSE, Nikolas – Powers of Freedom Reframing Political Thought. Cambridge: Cambridge University Press, 1999; KELLY, Mark G. E. – The Political Philosophy of Michel Foucault.

40KELLY, Mark G. E. – The Political Philosophy of Michel Foucault, p. 44.

41ROSE, Nikolas – Powers of Freedom, p. 52.

42FOUCAULT, Michel – «The ethics of the self as a practice of freedom». In Bernauer, James, e Rasmussen, David (eds.) – The Final Foucault. Cambridge: mit Press, 1994, p. 11.

43Ibidem, p. 18.

44Ibidem, p. 11.

45KELLY, Mark G. E. – The Political Philosophy of Michel Foucault, p. 42.

46Um delineamento mais denso destas ferramentas conceituais está além do escopo deste artigo. Para uma descrição completa das mesmas ver FOUCAULT, Michel – Society Must Be Defended. Nova York: Picador, [1976] 2003; FOUCAULT, Michel – Security, Territor y, Population; FOUCAULT, Michel – The Birth of Biopolitics – Lectures at the Collège de France, 19781979. Basingstoke: Palgrave Macmillan, [1979] 2008.

47FOUCAULT, Michel – The Birth of Bio-politics, p. 363.

48BRÖCKLING, Ulrich, KRASMANN, Susanne, e LEMKE, Thomas (eds.) – Governmentality: Current Issues and Future Challenges, p. 2.

49FOUCAULT, Michel – «The subject and power». In FAUBION, James D. (ed.) – The Essential Works of Foucault 1954-1984, Vol. 3, Power. Nova York: New York Press, [1982] 2000, p. 341.

50DEAN, Mitchell – Governmentality: Power and Rule in Modern Society. Londres: SAGE Publications, 2010, p. 17.

51Ibidem, p. 18.

52FOUCAULT, Michel – Security, Territory, Population, p. 99.

53FOUCAULT, Michel – «Governmentality». In BURCHELL, Graham, GORDON, Colin, e MILLER, Peter (eds.) – The Foucault Effect: Studies in Governmentality. Chicago: University of Chicago Press, 1991, p. 94.

54FOUCAULT, Michel – «The subject and power», p. 342.

55Ibidem, p. 342.

56KELLY, Mark G. E. – The Political Philosophy of Michel Foucault, p. 43.

57FOUCAULT, Michel – Security, Territory, Population, p. 56.

58Este conceito foi desenvolvido de modo diferente por filósofos contemporâneos, como por exemplo Giorgio Agamben (cf. AGAMBEN, Giorgio – What is an Apparatus?), Antonio Negri e Michel Hardt (cf. NEGRI, Antonio, e HARDT, Michael – Empire. Cambridge: Harvard University Press, 2000). Para um contraste entre os usos destes do termo e o uso de Foucault, ver RABINOW, Paul, e ROSE, Nikolas – «Biopower today». In BioSocieties. Vol. 1, N.º 2, 2006, pp. 195-217; PROZOROV, Sergei, e RENTEA, Simona (eds.) – The Routledge Handbook of Biopolitics. Londres: Routledge, 2017.

59KELLY, Mark G. E. – The Political Philosophy of Michel Foucault, p. 43.

60FOUCAULT, Michel – Society Must Be Defended, p. 242.

61Ibidem.

62Ibidem, pp. 242-243.

63Ibidem, p. 243.

64RABINOW, Paul, e ROSE, Nikolas (eds.) – The Essential Foucault, p. 6.

65DUFFIELD, Mark – Development, Security and Unending War, p. 5.

66FOUCAULT, Michel – The Histor y of Sexuality, Vol. I, An Introduction. Nova York: Pantheon Books, [1976] 1978, p. 139.

67SMART, Barr y – Key Sociologists – Michel Foucault, p. 99.

68DUFFIELD, Mark – Development, Security and Unending War, p. 6.

69Ibidem; FOUCAULT, Michel – The History of Sexuality – Volume I, p. 139.

70GORDON, Colin – «Governmental rationality: an introduction». In BURCHELL, Graham, GORDON, Colin, e MILLER, Peter (eds.) – The Foucault Effect: Studies in Governmentality. Chicago: University of Chicago Press, 1991, p. 3.

71ROSE, Nikolas – Powers of Freedom, p. 23.

72FOUCAULT, Michel – Society Must Be Defended, p. 253.

73Ibidem.

74Um vasto e extenso delineamento destas transformações está além do escopo deste artigo. Para mais acerca disto, ver, por exemplo, KEMER, Thaíse, PEREIRA, Alexsandro Eugenio, e BLANCO, Ramon – «A construção da paz em um mundo em transformação: o debate e a crítica sobre o conceito de peacebuilding». In Revista de Sociologia e Política. Vol. 56, N.º 2, 2016, pp. 122-143; NEWMAN, Edward, PARIS, Roland, e RICHMOND, Oliver P. – «Introduction». In NEWMAN, Edward, PARIS, Roland, e RICHMOND, Oliver P. (eds.) – New Perspectives on Liberal Peacebuilding. Tóquio-Nova York-Paris: United Nations University Press, 2009, pp. 3-25; PARIS, Roland, e SISK, Timothy – «Introduction: understanding the contradictions of postwar statebuilding». In PARIS, Roland, e SISK, Timothy (eds.) – The Dilemmas of Statebuilding: Confronting the Contradictions of Postwar Peace Operations. Nova York: Routledge, 2009, pp. 1-20; KENKEL, Kai Michael – «Five generations of peace operations: from the “Thin Blue Line” to “Painting a Country Blue”». In Revista Brasileira de Política Internacional. Vol. 56, N.º 2, 2013, pp. 122-143; BLANCO, Ramon – «Del mantenimiento de la paz al proceso de formación del Estado: un esbozo de los esfuerzos de la ONU para la paz internacional». In Foro Internacional. Vol. 216, N.º 2, 2014, pp. 266-318.

75NEWMAN, Edward, PARIS, Roland, e RICHMOND, Oliver P. – «Introduction», p. 5; PARIS, Roland, e SISK, Timothy (eds.) – The Dilemmas of Statebuilding, p. 4.

76NEWMAN, Edward, PARIS, Roland, e RICHMOND, Oliver P. – «Introduction», pp. 8-9.

77BLANCO, Ramon – «Del mantenimiento de la paz al proceso de formación del Estado», pp. 298-308.

78Para uma compreensão abrangente desta lógica, ver, por exemplo, RICE, Susan E. – «The new national security strategy: focus on failed states». In Brookings Policy Brief. N.º 116, fevereiro de 2003, pp. 1-8; ROTBERG, Robert – «Failed states, collapsed states, weak states: causes and indicators». In ROTBERG, Robert (ed.) – State Failure and State Weakness in a Time of Terror. Washington DC: Brookings Institution Press, 2003, pp. 1-28; GHANI, Ashraf, LOCKHART, Clare, e CARNAHAN, Michael – Closing the Sovereignty Gap: an Approach to State-Building. Overseas Development Institute Working Paper N.º 253, [15 de dezembro de 2008]. Disponível em: http://www.odi.org.uk/resources/odi-publications/working--papers/253-sovereignty-gap-state-buil-ding.pdf; ROTBERG, Robert – «The failure and collapse of nation-states: breakdown, prevention and repair». In ROTBERG, Robert (ed.) – When States Fail: Causes and Consequences. Princeton: Princeton University Press, 2004, pp. 1-50; BRAINARD, Lael, CHOLLET, Derek, e LAFLEUR, Vinca – «The tangled web: the poverty-insecurity nexus». In BRAINARD, Lael, e CHOLLET, Derek (eds.) – Too Poor for Peace?: Global Poverty, Conflict, and Security in the 21st Century. Washington DC: Brookings Institution Press, 2007, pp. 1-30; RICE, Susan E.– «Poverty breeds insecurity». In BRAINARD, Lael, e CHOLLET, Derek (eds.) – Too Poor for Peace?, pp. 31-49; GHANI, Ashraf. e LOCKHART, Clare – Fixing Failed States: A Framework for Rebuilding a Fractured World. Oxford: Oxford University Press, 2008; INGRAM, Sue – Key Concepts and Operational Implications in Two Fragile States: The Case of Sierra Leona and Liberia. The World Bank – UNDP, 2010.

79Esta seria a «distância» entre a soberania de jure e a soberania de facto. Para mais acerca desta noção, ver GHANI, Ashraf. e LOCKHART, Clare – Fixing Failed States.

80COUTO, Mia – O Último Voo do Flamingo. Lisboa: Editorial Caminho, 2002, p. 111.

81FUKUYAMA, Francis – The Origins of Political Order – From Prehuman Times to the French Revolution. Nova York: Farrar, Straus and Giroux, 2011, pp. 15-16.

82KANT, Immanuel – Perpetual Peace – A Philosophical Essay. Londres: George Allen & Unwin Ltd., 1905 [1795].

83SCHUMPETER, Joseph – «The sociology of imperialism». In SCHUMPETER, Joseph (ed.) – Imperialism and Social Classes: Two Essays by Joseph Schumpeter. Cleaveland: Meridian Books, 1966 [1919], pp. 2-98.

84MONTESQUIEU, Charles de Secondat, baron de – The Spirit of the Laws. Cambridge: Cambridge University Press, 2002 [1748].

85RICHMOND, Oliver – Peace in International Relations. Abingdon: Routledge, 2008, pp. 89-90.

86NEWMAN, Edward, PARIS, Roland, e RICHMOND, Oliver P. (eds.) – New Perspectives on Liberal Peacebuilding, p. 11.

87Para mais a este respeito, ver, por exemplo, HEATHERSHAW, John – «Unpacking the Liberal peace: the dividing and merging of peacebuilding discourses». In Millennium – Journal of International Studies. Vol. 36, N.º 3, 2008, pp. 597-621; DUFFIELD, Mark – Global Governance and the New Wars. Londres: Zed Books. 2001; PARIS, Roland – At War’s End: Building Peace after Civil Conflict. Cambridge: Cambridge University Press, 2004; RICHMOND, Oliver – The Transformation of Peace. New York: Palgrave Macmillan. 2007; RICHMOND, Oliver – «The problem of peace: understanding the “Liberal Peace”». In Conflict, Security & Development. Vol. 6, N.º 3, 2006, pp. 291-314; RICHMOND, Oliver – Peace in International Relations, pp. 89-95. Para uma discussão detalhada das diferentes nuances, gradações e discursos da paz liberal, ver, por exemplo, RICHMOND, Oliver – The Transformation of Peace; HEATHERSHAW, John – «Unpacking the Liberal peace»; RICHMOND, Oliver – «The problem of peace».

88WOUTERS, Jan, e RYNGAERT, Cedric – «Good governance: lessons from international organizations». In CURTIN, Deirdre, e WESSEL, Ramses A. (eds.) – Good Governance and the European Union – Reflections on Concepts, Institutions and Substance. Nova York: Intersentia Publishers, 2005, p. 69.

89ZANOTTI, Laura – «Governmentalizing the post-Cold War international regime: the un debate on democratization and good governance». In Alternatives: Global, Local, Political. Vol. 30, N.º 4, 2005, p. 468.

90WB, WORLD BANK – Governance and Development. Washington, DC: World Bank, 1992, p. 92.

91WOUTERS, Jan, e RYNGAERT, Cedric – «Good governance: lessons from international organizations», pp. 69-77.

92Ibidem, p. 73; ZANOTTI, Laura – «Governmentalizing the post-Cold War international regime», p. 468.

93ZANOTTI, Laura – «Governmentalizing the post-Cold War international regime»,

  1. 469.

94PUREZA, José Manuel, et al. – «Do states fail or are they pushed? Lessons learned from three former Portuguese colonies». In Oficina do CES. N.º 273, abril de 2007, p. 3.

95DOORNBOS, Martin – «Fragile States or failing models? Accounting for the incidence of State collapse». In DOORNBOS, Martin, WOODWARD, Susan, e ROQUE, Silvia (eds.) – Failing States or Failed States? The Role of Development Models: Collected Works. Madrid: FRIDE Working Paper N.º 19, 2006, p. 2.

96GROS, Jean-Germain – «Towards a taxonomy of failed states in the new world order: decaying Somalia, Liberia, Rwanda and Haiti». In Third World Quarterly. Vol. 17, N.º 3, 1996, pp. 455-471.

97JACKSON, Robert – Quasi-States: Sovereignty, International Relations, and the Third World. Cambridge: Cambridge University Press, 1990.

98DOORNBOS, Martin – «Fragile States or failing models?», p. 2; ZARTMAN, William – «Introduction: posing the problem of State collapse». In ZARTMAN, William (ed.) – Collapsed States: The Disintegration and the Restoration of Legitimate Authority. Londres-Boulder: Lynne Rienner, 1995, p. 5.

99ZARTMAN, William – «Introduction: posing the problem of State collapse», p. 8.

100HELMAN, Gerald B., e RATHER, Steven R. – «Saving failed states». In Foreign Policy. N.º 89, inverno de 1992, p. 12.

101 KRASNER, Stephen D., e PASCUAL, Carlos – «Addressing State failure». In Foreign Affairs. Vol. 84, N.º 4, 2005, p. 155.

102PUREZA, José Manuel, et al. – «Peacebuilding and failed states: some theoretical notes». In Oficina do CES. N.º 256, julho de 2006, pp. 2-5.

103Timor-Leste foi um destes casos no qual as Nações Unidas exerceram o poder legislativo, executivo e judiciário do país. Para uma leitura crítica do processo de reconstrução pós-bélica levado a cabo pela ONU no país, ver BLANCO, Ramon – «The UN peacebuilding process».

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