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Relações Internacionais (R:I)
versão impressa ISSN 1645-9199
Relações Internacionais no.58 Lisboa jun. 2018
https://doi.org/10.23906/ri2018.58a08
HANS MORGENTHAU E POLITICS AMONG NATIONS
O problema da teoria em Morgenthau e Waltz: Realismo(s), delimitações e crescimento científico em relações internacionais
The problem of theory-building in Morgenthau and Waltz: realism, demarcations, and scientific growth in international relations
Luís Lobo-Fernandes
Universidade do Minho | Campus de Gualtar, 4710-057 Braga | luislobo@eeg.uminho.pt
RESUMO
O magnum opus de Hans J. Morgenthau, Politics among Nations: The Struggle for Power and Peace, publicado em 1948, exerceu uma influência determinante não só na consolidação do paradigma realista, mas também na expansão da própria autonomia disciplinar das relações internacionais no século xx. O artigo percorre as principais proposições de Morgenthau, confrontando-as com as observações e a crítica ulterior de Kenneth N. Waltz, concluindo que a redescoberta do realismo complexo de Tucídides pode ajudar a clarificar os enredos metodológicos no seio do realismo e a estabelecer necessárias pontes teóricas e eventualmente sínteses mais produtivas.
Palavras-chave: Hans Morgenthau, Kenneth Waltz, realismo complexo, crescimento científico em relações internacionais.
ABSTRACT
Hans J. Morgenthau’s magnum opus, Politics among Nations: The Struggle for Power and Peace, first published in 1948, has exercised a determining influence not only in the development of the realist paradigm, but most importantly in the scientific autonomy of the field of International Relations in the 20th century. This article explores Morgenthau’s main propositions, confronts them with Kenneth N. Waltz’s own theoretical hypotheses and criticism, and concludes that the rediscovery of Thucydides’s complex realism may help to surmount methodological dead-ends, bringing about necessary theoretical bridges and somewhat more productive syntheses.
Keywords: Hans Morgenthau, Kenneth Waltz, complex realism, scientific growth in the field of international relations.
Numa importante publicação datada de 1955, Philip Quincy Wright (1890-1970) referia que as relações internacionais eram uma disciplina em «processo de formação»1 . A parte mais conclusiva do livro, intitulada «Toward a unified discipline of international relations», contém um esboço do que o professor Wright esperava vir a ser a evolução mais interessante da disciplina, nomeadamente em termos da «forma» que deveria tomar. Um domínio do conhecimento definido pelas relações no plano internacional entre «entidades», «forças», «escolhas», e «processos» relevantes2 . O autor introduziu a ideia de um campo analítico de perfil multidimensional dentro do qual cada um daqueles elementos – ou «sistemas de ação» – pode ser localizado. Um campo analítico que evidencia categorias especiais de interação conducente a um «mapeamento» autónomo – map center, no lúcido neologismo de Harold D. Lasswell – de processos sociais e de dinâmicas de nexo internacional3. Por sua vez, tais sistemas de ação, também referidos como operational indexes, permitem ligar conceitos dentro deste campo analítico marcado fundamentalmente pelo jogo de interesses próprios dos estados territoriais4. Este é porventura o nexo mais discernível na autonomia científica da disciplina, que lhe confere ao mesmo tempo critério, amplitude, e profundidade.
Fazemos aqui uma alusão especial às observações de Quincy Wright, não só porque representam um quadro de referência excecional para a expansão metodológica das relações internacionais, mas sobretudo porque se situam temporalmente entre dois dos mais importantes empreendimentos na aspiração de construir uma «teoria geral» neste domínio do conhecimento, aqui em apreço – Politics among Nations: The Struggle for Power and Peace de Hans Joachim Morgenthau (1904-1980), editado pela primeira vez a 11 de outubro de 1948, e Theory of International Politics de Kenneth Neal Waltz (1924-2013), dado à estampa em 1979. O nosso objetivo mais específico visa situar, de forma sucinta, estes dois contributos em termos da arquitetura interior das respetivas proposições teóricas e do seu impacto para o desenvolvimento da área, propiciado por esta evocação tempestiva dos 70 anos da publicação da obra de Hans Morgenthau.
OS MAPEAMENTOS DE MORGENTHAU E WALTZ ENTRE A HERANÇA CÉTICA DO REALISMO, A REGRA DO INTERESSE NACIONAL E O CRITÉRIO SISTÉMICO
Existem vários «realismos» em teoria política internacional, nem sempre de abordagem simples, que vão desde o «realismo clássico» (este mesmo, com diferentes ênfases e eixos intelectivos), passando pelas duas versões neorrealistas de Waltz e Robert Gilpin, até à mais recente «teoria neoclássica» das relações internacionais5. A diversidade de hipóteses dentro do realismo sugere que o termo poderia ter um valor algo dúbio, até ao momento em que essa diversidade se constitui ela mesma como um traço definidor do pensamento realista. O enunciado geral do realismo parte de uma visão pessimista da natureza humana e privilegia nas suas proposições as noções de anarquia internacional, segurança, balança de poder, interesse nacional, projeção de força, e diplomacia. A construção sistemática destaca como variáveis centrais os estados enquanto atores unitários, e o sistema internacional como um meio fortemente descentralizado, principal fator recriador de um problema permanente de segurança para os seus componentes, comummente designado de dilema de segurança, conceito primeiramente sugerido por Tucídides6. A probabilidade de mudança estrutural em tal meio é tendencialmente baixa, sendo que quaisquer variações estarão sobretudo dependentes de alterações significativas na distribuição do poder no sistema. O sistema internacional é, pois, concebido como um meio de poder por excelência, constituindo-se como outro fator central de autonomia disciplinar. Por último, o comportamento estadual configura-se como racional, pelo que a conduta dos estados é compreensível para os observadores externos. No entanto, metodologicamente é patente a diversidade epistemológica no seio desta perspetiva teórica, pelo que o realismo configura mais uma forma de pensar as dinâmicas internacionais do que propriamente uma única escola, uma vez que possui diferentes acentuações e hipóteses, como é especialmente patente nos delineamentos realistas de Morgenthau e Waltz que aqui tentamos evidenciar e aprofundar.
HANS J. MORGENTHAU E A CONSTRUÇÃO DE UMA TEORIA DA REALIDADE INTERNACIONAL
As ideias de Morgenthau dominaram o pensamento em relações internacionais durante mais de quatro décadas, continuando hoje a exercer uma influência assinalável na tradição realista, nomeadamente na conceção do poder como manifestação crítica da política internacional, visível tanto nas políticas do statu quo, como nas políticas do imperialismo, ou meramente nas políticas de prestígio7. Como assinalou John A. Vasquez, numa edição comemorativa dos 50 anos de Politics among Nations, publicada pela International Studies Association (ISA) em 1999, a primeira observação a reter numa apreciação cuidada do magnum opus de Morgenthau é que ele escreve a sua obra logo a seguir ao conflito mais violento e brutal que a humanidade tinha testemunhado, num período de transição hegemónica e, também, de crise intelectual8. Segundo Michael Cox, o ceticismo realista de Morgenthau foi potenciado por «tempos negros» de catástrofe que ele próprio presenciou e viveu9. Tal circunstância marca indelevelmente as suas principais proposições analíticas e, em última análise, o seu desiderato em formular uma modelação teórica da realidade tal como ela é (não como devia ser). Este é um elemento de contraste fundamental da sua construção epistemológica (em contraponto às perspetivas jurídicas ou morais)10. Com efeito, Morgenthau insiste na necessidade de separar o «real» das conjeturas «subjetivas» sobre as relações internacionais, reclamando para si a descoberta de um conjunto de leis objetivas do poder. Nesta medida, dado o impacto que as suas proposições positivistas acabariam por ter no desenvolvimento subsequente da disciplina, imediatamente percetível no momento da difusão da obra em 1948, talvez possamos considerar epistemologicamente o seu trabalho como uma teoria da realidade. A separação marcante, adotada por Morgenthau, entre análise empírica e as conceções normativistas perdura até hoje, e constitui uma distinção fundamental na forma como é organizada a investigação em relações internacionais, um espaço do saber especialmente caracterizado por um assinalável pluralismo metodológico11.
O alcance da sua obra para a consolidação deste domínio do conhecimento – alvo particular do presente número da revista R:I – pode ser localizado em quatro contribuições de relevo, que o autor consagrará nos seus «seis princípios do realismo político» 12. A primeira, que já apontámos, assenta na insistência de Morgenthau na importância crucial de «separar» o real – isto é, o factual – daquilo que possam constituir aspirações de tipo moralista ou preferências ideológicas13. Tal não significa a ausência total de princípios humanistas ou de uma visão despida de quaisquer valores na visão de Morgenthau, mas sim a ideia de que os princípios morais não são suscetíveis de ser aplicados de forma automática nas relações entre estados, ou seja, são matéria de simples amoralidade, na esteira da imagem de estado de natureza de Thomas Hobbes. No seu entender, uma ciência que constantemente tenta «mudar o mundo» tende a perder de vista as dinâmicas e formas como ele realmente funciona – a diferença entre análise empírica e matérias de simples convicção, portanto14. Nas palavras de Christoph Frei, Morgenthau desenha sem rodeios uma «versão crua e frontal do poder» nas relações internacionais15. Uma segunda contribuição é a formulação de uma teoria da realidade assente em princípios lógicos e objetivos (nesta medida, Morgenthau acentua o que ele mesmo propugna no chamado «quinto princípio do realismo político», isto é, a recusa em identificar as aspirações e escolhas morais internas de uma nação com as regras que governam as relações internacionais).
Um terceiro grande escopo do seu esforço de investigação, considerado o mais determinante no dizer de John Vasquez, é que Morgenthau propõe um «paradigma» para o estudo das relações internacionais – que na reconhecida terminologia de Thomas Kuhn é designado de exemplar –, porque representa um salto qualitativo que aponta e define «áreas legítimas de inquirição» para todos aqueles que pretendem prosseguir uma investigação internamente coerente numa determinada área do saber16; como efeito prático mais aparente, Morgenthau e o seu paradigma realista «destronariam» o paradigma idealista de raiz wilsoniana17. Este paradigma realista, plasmado em Politics among Nations, no encalço de uma «objetividade sóbria»18, consolida três premissas fundamentais acerca do sistema internacional que requerem neste âmbito uma atenção especial: os estados (soberanias vestefalianas) ou os seus decisores são os atores mais significativos para atingir uma compreensão fundamental das relações internacionais; existe uma diferença profunda entre o plano doméstico e a política internacional; e, finalmente, as relações internacionais definem-se pelo que Morgenthau enuncia como a luta pelo poder e pela paz – pelo que é fundamental compreender como e porquê essa luta perdura ao longo do tempo. Essa é, aliás, a perplexidade que Morgenthau convida permanentemente a explorar, na linha do grande erudito Nicolas Oresme (1320-1382), que, sintetizando de forma brilhantemente premonitória as dinâmicas políticas que emergiam num continente europeu cada vez mais fragmentado, definiu o sistema de anarquia internacional como de paz armada19. Trata-se de uma formulação verdadeiramente notável que Morgenthau também «fixa» e vai indagar, no que constitui um dos elementos centrais da problemática geral das relações internacionais, a saber, a existência de recursos bélicos substanciais e de exércitos permanentes mesmo em tempo de paz. Tal é, podemos afirmar, um dos cernes do programa de investigação de Morgenthau – numa linha próxima do raciocínio epistemológico de Imre Lakatos20. Morgenthau acaba, aliás, por afirmar que qualquer esforço de inquirição mais consequente do plano internacional que não siga aquele caminho se torna «trivial»21.
O quarto contributo – talvez especialmente relevante para o atual ciclo internacional (pós-)pós-Guerra Fria, marcado pela ascensão da China, que assume já iniludíveis características neoimperiais22 – tem a ver com a necessidade acrescida de prudência, a saber, a necessidade de «respeitar» os interesses vitais das potências em jogo, bem como a necessidade de assegurar algum equilíbrio de poder no sistema, condição sine qua non para a manutenção da paz internacional. Nesta medida, pode-se mesmo considerar que o realismo de Morgenthau assume a prudência, enquanto recusa de práticas de aventureirismo na política internacional – e a consequente e lúcida ponderação das alternativas – como um dos traços mais marcantes da modelação realista que nos propõe.
Terá atingido, porém, Morgenthau, com este conjunto de contributos de grande relevância para a análise criteriosa das relações internacionais, o patamar de uma teoria da política internacional? Esta aparenta ser uma questão em aberto, sobretudo quando se equacionam algumas das observações e juízos que nomeadamente Kenneth Waltz virá a suscitar mais tarde, condensados na sua obra de referência – Theory of International Politics.
WALTZ: A PROMESSA DO REALISMO ESTRUTURAL
Segundo Kenneth Waltz, apesar de Politics among Nations encerrar a ideia de que o mais importante desígnio do processo de inquirição internacional é a construção de uma teoria, Hans Morgenthau não terá dado o passo crucial que poderia ter permitido ir para além do desenvolvimento conceptual das noções de «interesse nacional», de «interesse definido em termos de poder», ou até da afirmação da «autonomia dos fatores políticos» – consideradas todavia de grande importância e repercussão – até ao estádio superior de uma teoria das relações internacionais perfeitamente identificável. Deve referir-se que Waltz considera o desenvolvimento conceptual fundamental, embora insuficiente para o estabelecimento de uma teoria; como indica, a partir unicamente da análise do interesse nacional, por exemplo, não é possível avaliar o comportamento de um Estado no sistema internacional23. No ajuizamento crítico de Waltz, Morgenthau ficou algo «confinado» às partes, e não resolveu de forma totalmente eficaz o plano da política externa e o problema de construir uma teoria política internacional, nomeadamente em termos da sua diferenciação lógica. Aliás, o enunciado waltziano começa precisamente com a premissa que uma teoria das relações internacionais e uma teoria da política externa «não são a mesma coisa»24. Em particular, as proposições de Waltz visariam clarificar a determinação das relações causais a dois níveis fundamentais: primeiro, ao produzir uma reinterpretação da noção de poder como «meio útil» à disposição dos estados e não como «fim», algo que afirmará de forma especialmente pungente; na sua conceção o poder relativo reporta-se à capacidade combinada de um Estado no quadro da sua distribuição no sistema internacional. O que o autor está a sugerir é que o objetivo da segurança prevalece sobre o objetivo per se de maximização do poder, em contraposição ao que considera ser um erro recorrente de alguns realistas25. Segundo, a sua teoria mostra que as causas não se processam unidirecionalmente – da ação das unidades estaduais para as resultantes das interações – mas antes bidirecionalmente; deste modo, Waltz conclui que quando variações ao nível das unidades não correspondem às variações nas resultantes observadas, então outras causas podem (e devem) ser localizadas ao nível da estrutura do sistema internacional propriamente dito. Na sua ótica, na construção de uma teoria da política internacional é fundamental distinguir o nível da estrutura do nível das unidades26. E, vai mais longe na sua inteleção da realidade internacional quando afirma que o exercício de análise das diferenças entre várias estruturas internacionais ao longo do tempo «deve omitir» os atributos stricto sensu das unidades componentes; só assim – sublinha Waltz – é que se podem distinguir mudanças ou alterações na estrutura internacional, de outras mudanças que acontecem ao nível interno das suas unidades27. Podemos talvez dizer numa avaliação comparativa que a modelação waltziana emerge como uma construção diferenciada do realismo político, reorganizando o terreno teórico em torno das condições encontradas ao nível do sistema internacional, o chamado terceiro nível de análise – mais tarde também designado de terceira imagem teórica – na metodologia das relações internacionais, termos estes consagrados pelo próprio Kenneth Waltz28. Daí, justamente, que o neorrealismo de Waltz seja também referido como realismo estrutural ou realismo sistémico.
Por outro lado, Waltz refere que definições mais elegantes da noção de estrutura permitem configurar explicações com menos variáveis. Se acrescentarmos demasiadas variáveis a explicação perde nitidez e torna-se menos consequente, isto é, a acuidade teórica dá lugar à descrição, por mais densa e rica que seja, como é seguramente o caso vertente do trabalho de Morgenthau29. Neste sentido, Waltz faz notar que não pretendeu abarcar várias realidades em simultâneo, nem tão-pouco produzir uma teoria do Estado ou uma teoria da política externa. O autor refere que Morgenthau terá talvez «exagerado» o papel de eventos acidentais e inesperados, o que o terá afastado excessivamente da procura de uma «teoria unificada» que pudesse especificar padrões mais perenes e significativos no delineamento dos fatores causais. Waltz tenta, pois, demonstrar que é possível alcançar uma teoria que lida com regularidades verificáveis e que localiza as ligações entre elas30. Ora, as teorias derivam da observação de tais repetições e só são atingíveis se determinados padrões forem identificados ao longo do tempo. E é talvez neste plano onde Waltz parece ser algo mais eficaz do que o autor de Politics among Nations. Waltz sustenta, em particular, que não precisamos de contemplar tudo numa teoria e que, ademais, nem tudo pode ser medido, embora algumas dimensões o possam ser. Nas próprias palavras de Waltz a sua teoria das relações internacionais é uma teoria simples, de tipo problem-solving.
Waltz argumentará que o (seu) novo realismo, em contraste com o enunciado predominante anterior – referindo-se a Morgenthau –, propõe uma solução mais interessante para o problema da distinção dos fatores internos e externos na análise da política internacional. O neorrealismo produz um ajustamento nas relações de causalidade oferecendo uma interpretação diferente de poder, e tratando o plano das unidades, em contraposição ao plano sistémico, de forma diferenciada. A noção de poder privilegiada por Waltz vai no sentido de o definir em termos da distribuição das capacidades, ou seja, uma avaliação sempre pensada na relação com os outros componentes de um mesmo sistema31. Waltz vai projetar, pois, uma solução macroteórica para o que diz ser o «emaranhado» microteórico do realismo tradicional que se concentra em explicações confusas ao nível do indivíduo ou das unidades estaduais, explicações essas – refere – fundadas não raras vezes indistintamente na primeira e/ou na segunda imagens teóricas em relações internacionais. Na conceção privilegiada por Waltz o poder é visto como um meio para alcançar outros fins, nomeadamente segurança, não constituindo o móbil último dos estados, como parecia sugerir Morgenthau32. Waltz adianta que é essa a razão por que, tipicamente, os estados, no decurso do sistema vestefaliano, preferiram esmagadoramente associar-se ao lado que pode reequilibrar a balança (opção maioritária por balancing), e não aliar-se ao lado «mais forte» (opção minoritária por bandwagoning). Num meio de anarquia marcado por grande incerteza, Waltz conclui que os estados privilegiarão a segurança e a sobrevivência, e não tanto acréscimos cegos de poder.
CONCLUSÃO: O REALISMO COMPLEXO DE TUCÍDIDES COMO CRITÉRIO ÚLTIMO DAS DIFERENTES PULSAÇÕES REALISTAS
Que solução possível para a controvérsia entre os dois mais conceituados teóricos do realismo? Uma maior atenção ao potencial e à riqueza do pensamento de Tucídides como possível roteiro para distinguir e discriminar as diferentes proposições de cariz realista permitirá, na nossa ótica, obter um quadro mais completo do esforço de dilucidação de alguns «enredos» teóricos neste domínio do conhecimento. É de notar que, embora existam algumas sobreposições parciais dentro do chamado «realismo clássico» – especialmente na subscrição de uma conceção negativa da natureza humana, antes referida –, Tucídides poderia não subscrever as conclusões de alguns realistas ditos clássicos, nomeadamente na proposição do poder como um «fim em si». É por esta razão que preferimos normalmente o termo realismo tradicional em vez de realismo clássico, uma aferição terminológica que pode fazer mais sentido na exata medida em que o próprio Tucídides é o fundador (clássico) da perspetiva realista das relações internacionais. Com efeito, Tucídides pode guiar uma versão mais apurada dos estudos internacionais, suplementando tanto o realismo tradicional – ênfase na visão pessimista da natureza humana e na noção de interesse nacional –, como o neorrealismo – ênfase na estrutura do sistema internacional. Em especial, Tucídides evidencia tanto o «caráter» das lideranças e as diferentes tipologias das entidades estaduais, como a importância determinante da distribuição de poder no sistema, ou seja, do papel de variações significativas na balança de poder nas resultantes internacionais, e na própria explicação da guerra (caso paradigmático da Guerra do Peloponeso entre Esparta e Atenas). O «realismo complexo» de Tucídides, na lapidar caracterização de Michael W. Doyle33, poderia, assim, reemergir como aferidor último das diferentes pulsações no seio do realismo, estabelecendo novas pontes teóricas e contribuindo para uma maior acuidade e rigor do exercício analítico e de diagnóstico das dinâmicas internacionais contemporâneas. Do mesmo modo, o critério tucidideano pode ser igualmente usado por diferentes intérpretes, atores, e protagonistas para alcançarem uma compreensão mais vasta da política internacional a partir do trabalho de um autor tão proeminente quanto Hans Joachim Morgenthau, aqui evidenciado de forma especial.
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Data de receção: 23 de abril de 2018 | Data de aprovação: 30 de maio de 2018
NOTAS
1 WRIGHT, Quincy – The Study of International Relations. Nova York: Appleton-Century-Crofts, Inc, 1955.
2 Ibidem, p. 536.
3 Cf. LASSWELL, Harold D. – «Some reflections on the study of international relations». In World Politics. Vol. VIII, N.º 4, julho de 1956, 1956, pp. 560-565.
4 A noção de interesse próprio não exclui a consideração de eventuais interesses recíprocos, ou coincidentes (WRIGHT, Quincy – The Study of International Relations, p. 552).
5 Cf. LOBO-FERNANDES, Luís – «Neoclassical Realist theory of international relations». Recensão. In Revista Portuguesa de Ciência Política. N.º 7, 2017, pp. 109-111.
6 Ver LOBO-FERNANDES, Luís – «Estudo Introdutório». In TUCÍDIDES – História da Guerra do Peloponeso. Lisboa: Edições Sílabo, 2015, pp. 11-30.
7 Cf. Oliver Jütersonke, in WILLIAMS, Michael C. (ed.) – Realism Reconsidered: The Legacy of Hans J. Morgenthau in International Relations. Nova York: Oxford University Press, 2007, p. 107. A propósito do valor assinalável destas taxonomias de Morgenthau, atente-se especificamente na pertinência da tipologia política de prestígio para a análise do caso de Portugal nas relações internacionais, com a designação de António Guterres para secretário-geral da ONU, de Mário Centeno para presidente do Eurogrupo, ou, mais recentemente, da eleição de António Vitorino para a liderança da Organização Internacional das Migrações (OIM).
8 Ver VASQUEZ, John A. – «The enduring contributions of Hans J. Morgenthau’s Politics Among Nations». In International Studies Notes. Vol. 24, N.º 1, 1999, pp. 5-9. Morgenthau tinha começado a lecionar no Departamento de Ciência Política da Universidade de Chicago, em setembro de 1943, na altura dirigido por Charles E. Merriam. Ver, FREI, Christoph – Hans J. Morgenthau: An Intellectual Biography. Baton Rouge, LA: Louisiana State University Press, 2001, p. 190. A título de curiosidade, refira-se a propósito de Politics among Nations que quando submeteu a obra para publicação, sete editores a rejeitaram. Ver THOMPSON, Kenneth – «The writing of Politics Among Nations: its sources and its origins». In International Studies Notes. Vol. 24, N.º 1, 1999, p. 21.
9 Cf. COX, Michael – «Hans Morgenthau and the Cold War». In WILLIAMS, Michael C. (ed.) – Realism Reconsidered, pp. 166-194, pp. 96-99.
10 A primeira tentativa de Morgenthau de delimitar o elemento político foi expressa na sua tese de doutoramento de 1929 sobre a natureza e as limitações da função judicial internacional, apresentada na Universidade de Frankfurt, quando tinha apenas 25 anos de idade. Cf. FREI, Christoph – Hans J. Morgenthau, p. 123.
11 LOBO-FERNANDES, Luís – «A ética do liberalismo». In PATRÃO NEVES, Maria do Céu, e SEVERIANO TEIXEIRA, Nuno (coord.) – Ética Aplicada: Relações Internacionais. Lisboa: Edições 70, 2018, (no prelo). Naturalmente que a riqueza e a pluralidade epistemológica das relações internacionais não se esgota no realismo e nos seus vários ramos, incluindo outros espaços teóricos de grande relevância para a inteleção de um sistema internacional cada vez mais complexo e dilemático. Ver, por exemplo, LAWSON, Stephanie – Theories of International Relations: Contending Approaches to World Politics. Malden, ma: Polity Press, 2015.
12 Cf. MORGENTHAU, Hans J. – Politics among Nations: The Struggle for Power and Peace. 5.ª edição. Nova York: Alfred A. Knopf Inc., 1973, pp. 4-12. Ver, também, SCHEUERMAN, William E. – Hans Morgenthau: Realism and Beyond. Cambridge: Politiy Press, 2009, pp. 103-109.
13 Como faz notar Vasquez, nesta ciência das relações internacionais – aliás, tal como no domínio da ciência política em geral – existe sempre o perigo desta degenerar em «ideologia», em que a «aspiração pessoal» e o «interesse subjetivo» moldam o exercício analítico. A preocupação permanente com este tipo de desvios leva Morgenthau a uma contribuição teórica determinante que se traduziu na redução das influências ideológicas dentro desta área científica, mesmo se, como é ainda o caso, não foram eliminadas completamente. Cf. VASQUEZ, John A. – «The enduring contributions of Hans J. Morgenthau’s Politics Among Nations»,
pp. 05 e 06.
14 Cf. Ibidem, pp. 05-09.
15 Ver FREI, Christoph – Hans J. Morgenthau, p. 121.
16 VASQUEZ, John A. – «The enduring contributions of Hans J. Morgenthau’s Politics Among Nations», 1999, p. 6.
17 Thomas Woodrow Wilson (1856-1924) foi um dos principais nomes associados a uma visão liberal, algo mais «idealista» das relações internacionais. Foi Presidente dos Estados Unidos entre 1913 e 1921. Curiosamente, foi em grande medida o prestígio consolidado enquanto professor de Relações Internacionais na Universidade de Princeton, onde desempenhou funções de reitor, após ter defendido uma tese de doutoramento neste domínio do conhecimento em 1885 na Johns Hopkins University, que o catapultaria para a presidência dos Estados Unidos.
18 Cf. FREI, Christoph – Hans J. Morgenthau, p. 123.
19 Nicolas Oresme (1320-1382), consultor do rei Carlos V de França, filósofo, matemático, e economista, autor de um célebre tratado sobre a moeda, foi talvez o mais notável intelectual europeu do século xiv. Cf. LOBO-FERNANDES, Luís – «O modelo global: espaço de teste da paz e segurança internacionais». In Nação e Defesa. N.º 95-96, 2000, pp. 43-53.
20 LAKATOS, Imre – La metodología de los programas de investigación científica. Madrid: Alianza Universidad, 1999.
21 Cf. VASQUEZ, John A. – «The enduring contributions of Hans J. Morgenthau’s Politics Among Nations», p. 7.
22 Ver, por exemplo, JISI, Wang, et al. – «Did America get China wrong? The engagement debate». In Foreign Affairs. Vol. 97, N.º 4, julho-agosto de 2018, pp. 183-195.
23 Cf. WALTZ, Kenneth N. – Realism and International Politics. Nova York: Routledge, 2008, p. 44.
24 Ibidem, p. 71.
25 Sobre este ponto, Waltz afirma especificamente: «Only if survival is assured, can states safely seek other goals as tranquility, profit and power. Because power is a means and not an end, states prefer to join the weaker of two coalitions. They cannot let power, a possibly useful means, become the end they pursue» (WALTZ, Kenneth N. – Realism and International Politics, p. 46). Não obstante, é de referir que Morgenthau considerava o impulso de preservação e sobrevivência como o «mais óbvio elemento da motivação humana». Cf. FREI, Christoph – Hans J. Morgenthau, p. 126.
26 WALTZ, Kenneth N. – Realism and International Politics, p. 7.
27 Cf. LOBO-FERNANDES, Luís – «Prefácio à edição portuguesa». In WALTZ, Kenneth N. – Teoria das Relações Internacionais. Lisboa: Gradiva, 2002, p. 8. No quadro da racionalização que enuncia, Waltz sustenta que no sistema internacional não há uma diferenciação significativa das unidades; antes, os estados são funcionalmente iguais, uma das suas proposições mais ambiciosas (de notar, contudo, que Tucídides havia já sugerido que a guerra entre Atenas e Esparta tinha ocorrido, não porque aquelas duas potências fossem diferentes, mas precisamente porque eram iguais). Ver, também, LOBO-FERNANDES, Luís – «Uma teoria nomotética da política internacional ou a construção da verdade em Waltz: algumas considerações». In Relações Internacionais. N.º 39, 2013, pp. 15-24.
28 WALTZ, Kenneth N. – O Homem, o Estado e a Guerra. Uma Análise Teórica. São Paulo: Martins Fontes, 1959, p. xi.
29 Esta questão metodológica tem a ver com a validade interna e a validade externa das teorias. A validade interna acentua sobretudo a qualidade dos conceitos operacionalizados, enquanto a validade externa se reporta ao grau de generalização de um determinado enunciado teórico.
30 Cf. KEGLEY, Jr., Charles W. (ed.) – Controversies in International Relations Theory: Realism and the Neoliberal Challenge. Nova York: St. Martin’s Press, 1995, p. 27.
31 Racionalmente, a vulnerabilidade de um Estado pode representar uma vantagem potencial para outro.
32 Nesta medida, Waltz veria sobretudo os estados como defensive positionalists (o que é também designado de realismo defensivo), no qual o objetivo principal é a sobrevivência, em contraposição a uma visão que perspetiva os estados como offensive realists (ou realismo ofensivo), que aspiram à hegemonia e a aumentar o seu poder, na linha de John Mearsheimer. Cf. KRASNER, Stephen D. – Power, the State, and Sovereignty: Essays on International Relations. Londres: Routledge, 2009, p. 4.
33 Cf. DOYLE, Michael W. – Ways of War and Peace: Realism, Liberalism, and Socialism. Nova York: W.W. Norton & Company, 1997.