Serviços Personalizados
Journal
Artigo
Indicadores
- Citado por SciELO
- Acessos
Links relacionados
- Similares em SciELO
Compartilhar
Relações Internacionais (R:I)
versão impressa ISSN 1645-9199
Relações Internacionais no.59 Lisboa set. 2018
https://doi.org/10.23906/ri2018.59r02
RECENSÃO
Pensar a guerra na primeira metade do século XX
António Horta Fernandes
NOVA FCSH e IPRI-NOVA, Avenida de Berna, 26-C / 1069-061 Lisboa, Portugal | hortafernandes@fcsh.unl.pt
DAVID ALEGRE, MIGUEL ALONSO E JAVIER RODRIGO (COORDS.) Europa Desgarrada. Guerra, ocupación y violencia 1900-1950. Zaragoza, Prensas de la Universidad de Zaragoza, 2018, 454 páginas. ISBN: 978-84-17358-53-2
O presente livro, coordenado por David Alegre Lorenz, Miguel Alonso Ibarra e Javier Rodrigo Sánchez, é mais um notável resultado fruto de um esforço conjunto de um grupo de jovens historiadores, investigadores e professores – Javier Rodrigo é já um investigador e professor sénior –, quase todos ligados ao GERD (Grupo d’Estudis sobre República i Democràcia), da Universidade Autónoma de Barcelona, os quais têm procurado com êxito desenvolver em Espanha uma marca própria no âmbito da nova história militar e dos estudos da guerra. Não por acaso, estão também por detrás de umas mais chamativas novas publicações de história militar, refiro-me à Revista Universitaria de Historia Militar. Por outro lado, estes investigadores mantêm ligações próximas com outro esforço de vulto em Espanha, o GESI (Grupo de Estudios en Seguridad Internacional), dirigido em Granada por Javier Jordán, procurando dessa forma alinhar o saber histórico, os estudos da guerra, com uma vertente estratégica e de relações internacionais, algo que muito se saúda, criando uma linha de estudos transversal, como é, aliás, apanágio dos estudos da guerra. De resto, a marca de água própria de escola vai-se construindo em torno desta transversalidade, escapando a um especialismo excessivo que, por questões concorrenciais internas, tende a pautar demasiado o mundo académico anglo-saxónico. Outrossim, essa marca própria vai-se edificando igualmente à volta de uma nova história militar crítica, a qual, se bem entrando em diálogo aturado com o melhor que se faz internacionalmente (vejam-se as contribuições da obra em causa), procura sustentar uma perspetiva crítica das lógicas de poder subjacentes a muitos autores de nomeada, nem sempre devidamente interrogadas, antes bastas vezes supostamente neutralizadas por uma investigação dita assética inerente às grandes correntes de investigação impulsionadas pelo mundo anglo-saxónico. Quer isto dizer que a uma suposta investigação impermeável à ideologia mas, na prática, pressupondo uma koinê liberal indiscutida, esta escola espanhola emergente responde com a hermenêutica crítica de todos os pressupostos. Por fim, é imperioso salientar que esta escola espanhola de algum modo prossegue e dá continuidade aos notabilíssimos trabalhos pioneiros (alguns ainda em curso) de um outro académico espanhol radicados nos Estados Unidos, de nome Nil Santiáñez, particularmente Goya/Clausewitz. Paradigmas de la guerra absoluta e Topographies of Fascism: Habitus, Space and Writing in Twentieth-century Spain.
Ora, o esforço sinergético realçado deveria servir também de acicate para um compromisso da mesma igualha na escola estratégica portuguesa e nas instituições que a deveriam acarinhar. Tanto mais que a escola portuguesa há muito está sedimentada e pratica trabalho de vanguarda, em termos mundiais, em particular no âmbito da investigação fundamental. Mas depois deste repto, tornemos, todavia, à obra.
SÚMULA
Trata-se de uma obra coletiva à volta das convulsões bélicas da primeira metade do século XX, e das implicações violentas a vários níveis trazidas por essas mesmas convulsões. Embora falemos de uma obra coletiva, com a natural multiplicidade de pontos de vista, no conjunto é bastante harmoniosa, significando isto não haver textos muito desiguais em qualidade e profundidade. Todas as contribuições incluídas são de enorme interesse para os leitores. De ressaltar que o livro segue um fio condutor cronológico, antecipado por dois textos de maior ambição teórica e temática, sobre os quais me debruçarei amiúde à frente, culminando num texto de balanço sobre as repercussões da guerra para a paz passados os cinquenta anos maiores de guerra quente intraeuropeia.
A anteceder todas essas contribuições, o leitor depara-se com uma muito clarificadora introdução, redigida pelos coordenadores da obra, sobre a qual reservarei algumas palavras adiante.
Após a referida introdução, surge o primeiro dos textos de maior ambição teórica, de Luca Baldissara, historiador italiano da Universidade de Pisa, intitulado «Guerra absoluta y guerra total, guerra civil y guerrilla. Genealogías de las guerras del siglo XX», sobre o qual tenho várias reticências, aprofundadas abaixo.
Segue-se um texto notável de Javier Rodrigo, um dos coordenadores e professor de História Contemporânea na Universidade Autónoma de Barcelona, intitulado «Sobre las ruinas del mundo. Guerra civil y guerra total en Europa (1919-1949)», sobre o qual tecerei adiante também alguns comentários.
Vem depois uma muito importante contribuição da historiadora Heather Jones, da London School of Economics, intitulada «La Gran Guerra: cómo 1914-18 transformó la relación entre guerra y civiles». Heather Jones mostra-nos quanto a definição (e o mito) criada à época de a Grande Guerra ser uma guerra de soldados é errónea. O desaparecimento ou quase da distinção entre civis e militares não ocorre tanto pelas baixas civis decorrentes das operações militares diretas sobre eles, nem pelo avassalamento das populações, pelo menos no Ocidente, porque no Sudeste europeu houve limpezas étnicas, nem pelas consequências para as potências centrais do bloqueio económico, mas sobretudo porque, numa guerra industrial, o esforço indispensável a montante pedido a civis torna-os como que um alvo legitimável. Ao mesmo tempo, a cada vez maior importância da opinião pública e dos votantes em vários dos contendores, converte os civis num potencial alvo militar de modo a influenciar a ação dos seus governantes, justamente por pressão da opinião pública. Mas mais ainda, com o recrutamento obrigatório generalizado, o cidadão é, para todos os efeitos, um potencial soldado, atingindo a sua máxima realização como cidadão sacrificando-se no altar da pátria. Paradoxalmente, no momento em que militar e civil tendem à desdiferenciação bélica, a sobrevalorização ideológica do soldado em detrimento do civil permite criar o mito de uma guerra de soldados. Um aspeto ainda a ressalvar, também presente noutras contribuições deste livro, diz respeito às reconfigurações nacionais em instância nacionalista, que uma certa cultura militarista, com conivência civil, estimulara. Em nome dessas reconfigurações nacionais permitiu-se a reclusão indiscriminada de populações civis de origem estrangeira inimiga há muito alocadas no território, ou em trânsito no país, abrindo um perigoso precedente do qual só se vieram a revelar todas as consequências no segundo conflito mundial.
Segue-se um artigo da autoria de Carolina García Sanz e Maximiliano Fuentes Codera, sob o título «Los combates por la neutralidad en Gran Guerra: una propuesta desde el caso español». Ela, historiadora da Universidade de Sevilha, ele, um historiador argentino radicado em Espanha, professor na Universidade de Girona. Neste artigo, os referidos historiadores, mediante o caso espanhol, procuram apresentar uma visão renovada e polissémica do que significou ser neutral na Grande Guerra, e de como o conceito de neutralidade não pode ser encarado de modo algum como estritamente neutro em termos diplomáticos e políticos em relação ao conflito. Pelo contrário, a guerra teve um profundo impacto interno nas sociedades dos países não beligerantes, e é nesse sentido que a neutralidade deve ser reequacionada, atendendo, ademais, especificidade de cada país e ao quadro regional em que se insere.
Imediatamente a seguir é-nos apresentado um artigo de Dmitar Tasi, investigador sérvio em estudos da guerra, na Università degli studi di Napoli Federico II. O seu artigo, intitulado «Un largo conflito. Quiénes eran los paramilitares en los Balcanes tras la Gran Guerra?», trata de uma longa tradição paramilitar nos Balcãs, a qual desemboca no fim da Grande Guerra e no pós-guerra na sua ampliação. A incapacidade do Estado para operar com normalidade em regiões a emergir politicamente e ainda com um formato institucional inacabado, faz com que haja uma similitude regional extensível aos diversos protagonistas internos nesta área do Sudeste europeu. Nas condições dos estados balcânicos, e dadas as convulsões provocadas pelas guerras, com vitórias e derrotas, ocupações, migrações forçadas, etc., todos estes fatores ajudaram à criação de um clima de enorme instabilidade, terreno fértil para o desenvolvimento dos grupos paramilitares, e para uma violência societária intestina que se prolongou no tempo, e teve novos reajustamentos com os acontecimentos da Segunda Guerra Mundial, nomeadamente as intervenções italiana e alemã na região.
Miguel Alonso Ibarra, historiador e investigador da Universidade Autónoma de Barcelona, apresenta-nos um texto intitulado «Combatir, ocupar, fusilar. La evolución de la violencia bélica de los sublevados en la guerra civil española (1936-1939)». Nele, o investigador espanhol mostra-nos quanto é unilateral a imagem do combatente heroico e sem medo do soldado sublevado, que as memórias do lado franquista enquistaram. O traumatismo causado pela violência no indivíduo combatente é escalpelizado para o lado nacional, fruto de uma investigação criteriosa em várias frentes arquivísticas que não se cingem às memórias dulcificadas. Mostrando igualmente que as alterações no domínio da violência terrorífica do lado nacional, no sentido de a morigerarem, foram fruto das necessidades político-militares de ganharem as populações hostis à medida que a guerra se aproximava vitoriosamente do fim, evitando uma espécie de coragem do desespero e o prolongamento inútil das hostilidades. A meu ver, as provas apresentadas por Miguel Alonso vão no sentido de descartar a tese de um Franco, muito obstinadamente galego, a querer prolongar a guerra para ir construindo o Estado, «purificando»socialmente Espanha. Uma vitória esmagadora cumpre esses requisitos. Afinal, ninguém faz um pronunciamento militar para não ter êxito logo enquanto pronunciamento.
Francisco Leira Castiñera, historiador galego da Universidade de Santiago de Compostela, num artigo intitulado «Los “Soldados de Franco”: experiencias, memorias e identidades complejas», traça-nos um panorâma de como quão diversa pode ser a identidade dos combatentes franquistas, ou melhor, de como com o tempo podem existir ou coexistir várias identidades. Dadas as levas obrigatórias muitos dos soldados franquistas, no caso galego, não o eram ideologicamente, às vezes até o contrário, mas o receio, a impotência, ou as constrições ambientais levaram-nos a fazer todo um percurso combatente nas forças sublevadas; já outros se escapuliram para o campo republicano. A ideia de duas Espanhas perfeitamente identificadas e estáticas, social, regional e até individualmente, recebe neste trabalho uma notável confutação ao nível dos diversos eus linguísticos em cada uma.
Seguem-se as contribuições de dois reconhecidos historiadores a nível internacional, o alemão Sönke Neitzel, com um artigo de nome «Luchar, matar y morir: consideraciones sobre la identidade de los combatientes en la Segunda Guerra Mundial», e o norte-americano Jeff Rutherford, sob o título «Los soldados alemanes y la guerra total en el Frente Oriental, 1943». Ambos os trabalhos tratam da perceção da guerra por parte dos soldados alemães. Enquanto para Neitzel o reportório de perceções alemão não indica que a ideologia nazi fosse um elemento nuclear, na esteira de um seu livro com Harald Welser – Soldados: Protocolos sobre Lutar, Matar e Morrer, no seu título em português –, frisando antes a noção profissional de cumprimento do dever até ao fim, em comparação, Jeff Rutherford, que no seu livro Combate and Genocide on the Eastern Front. The German Infantry’s War, 1941-1944, faz finca-pé no conceito de necessidade militar contra uma possível unilateralidade das teses de Omar Bartov quanto à ideologização da Wehrmacht, neste artigo parece estabelecer um aparente contraponto a Neitzel, ao reforçar implicitamente a tese de ideologização, estando os militares alemães cada vez mais conscientes de que se tratava de uma luta contra a sociedade soviética no seu todo. Claro que a necessidade militar também contou, porque na mesma forma do caso sublevado narrado por Miguel Alonso, também os alemães se viram na contingência de morigerar a sua ação destrutiva para aproveitar os recursos materiais e humanos soviéticos numa guerra em várias frentes em que iam vendo a sua base de sustentação progressivamente degradada. Aliás, as duas posturas não são antagónicas, como mostra Rutherford: desmontar por completo o edifício da sociedade soviética, mobilizando os seus recursos para o esforço de guerra alemão, ao mesmo tempo que um tratamento mais equilibrado da população e dos prisioneiros de guerra poderia servir para desvirtuar por comparação a sovietização a que tinham sido submetidos.
O texto subsequente, da autoria do jovem professor da Universidade de Girona, David Alegre Lorenz, intitulado «Voluntariado de guerra en la Europa bajo ocupación alemana: reclutamiento, motivaciones, ethos y experiencias (1941-1945)», é um excelente estudo de micro-história, usando, como é natural, o método abdutivo, onde se procura mostrar que o voluntariado colaboracionista nos países ocupados está longe de ser unilateral, antes obedecendo a uma múltipla causalidade, pelo que nem todos os colaboracionista voluntários, muitos alistados em unidades da Wehrmacht e das Waffen-SS, o fizeram por convicção. As circunstâncias foram variadas, mas muitas vezes o apelo do voluntariado militar era uma saída lisonjeira para a situação em que se encontravam na Alemanha enquanto parte da mão de obra forçada mobilizada para o esforço de guerra alemão. Por fim, de salientar que o autor inclui todas estas variegadas experiências de guerra como sintoma da crise da modernidade tardia e do triunfo paulatino do capitalismo. Importaria um outro estudo para designar mais em pormenor esses laços tão bem salientados.
A penúltima contribuição vem da historiadora alemã Franziska Anna Zaugg, da Universidade de Berna, com um estudo intitulado «De colonia italiana a vasallo de Alemania. Violencia en Albania durante la Segunda Guerra Mundial». A historiadora alemã mostra-nos como a ocupação sucessiva da Albânia pelas potências do Eixo, primeiro a italiana depois a alemã, fomentou as rivalidades de todo o tipo já existentes no terreno, além de a Alemanha, de forma sub-reptícia, tentar minar a ocupação italiana, gerando uma situação caótica que impulsionou uma espiral de insurreição e repressão cujo resultado em nada acabou por favorecer os ocupantes.
Finalmente, o texto de balanço, intitulado, «La guerra en la paz: notas sobre olvidos, recuerdos y traumas», do investigador galego Xosé Manoel Núñez Seixas, professor na Universidade de Santiago de Compostela, e outros dos historiadores já com muitos créditos firmados internacionalmente. No seu notável artigo de síntese, o historiador galego faz-nos ver que os conflitos do século XX esbateram a linha de separação entre a paz e a guerra, adentrando em muito a cultura da guerra no espaço e tempo da paz, com um relativo embrutecimento das sociedades, algo que Javier Rodrigo já fizera notar no seu escrito. O autor propõe levar a cabo a sua abordagem por intermédio de cinco vetores críticos, a saber: os veteranos de guerra, bem como as suas culturas memoriais, organizações e visibilidade das mesmas; o culto aos mortos; o dilema entre recordar a guerra e educar para a paz; a desmilitarização das sociedades pós-conflito mediante a redução do peso social e político das forças armadas; o impacto social global da guerra na paz. Em síntese, numa argumentação particularmente acutilante e feliz exprime as suas dúvidas se mesmo uma comemoração das guerras passadas centrada nas vítimas, no sofrimento e nos horrores da guerra, não acaba ainda assim por alimentar atitudes favoráveis à guerra, mitificando e tornando-a esteticamente atraente (p. 434). Acrescentaria eu, branqueando a própria lógica da guerra e condicionando as doutrinas operacionais de guerras a haver, mediante um juízo público distorcido na raiz.
DIÁLOGO CRÍTICO COM ALGUMAS PROPOSTAS DE LEITURA
Como o espaço é necessariamente curto e a competência limitada, cingir-me-ei a aduzir uns quantos comentários em torno da introdução metodológica dos coordenadores, bem como dos textos de maior alcance teórico e temporal, da autoria de Luca Baldissara e Javier Rodrigo, respetivamente.
A introdução à obra, intitulada «Ciclos bélicos, guerra total y violencia de masas», de autoria de David Alegre Lorenz, Miguel Alonso Ibarra e Javier Rodrigo Sánchez, também coordenadores da obra, é exemplar no que aos estudos da guerra concerne. Embora os três sejam historiadores, sendo a partir desse ângulo de análise que partem, os autores não resumem os estudos da guerra, war studies, na expressão em inglês, a uma história militar renovada. Pelo contrário, assumem os estudos da guerra numa dimensão transversal e interdisciplinar, contando com o contributo de muitas outras disciplinas, tanto das ciências sociais quanto das humanidades, o que nem sempre acontece quanto a estas últimas. Muitas vezes os historiadores têm uma certa desconfiança para com os saberes mais normativos ou filosóficos das humanidades. Não sendo este o caso, até porque, como já referido, os autores não são alheios a uma posição crítica empenhada de maior calado.
David Alegre, Miguel Alonso e Javier Rodrigo defendem ser os estudos da guerra uma área científica não apenas empenhada no estudo multifatorial das causas da guerra, como na hermenêutica pluridisciplinar da guerra e de objeto alargado. Para além de contemplar a estratégia, as doutrinas militares, tática, comando e liderança, as batalhas em si, os estudos da guerra ocupam-se igualmente da organização militar, da frente interna, do impacto da guerra na política, na economia, na sociedade. Mas também as relações que a guerra tece com a lei, a ética, a literatura, a sociopsicologia dos combatentes, os traumas gerados pelas agruras impostas pela guerra ao quotidiano, entre muitos outros aspetos, são privilegiados pelos estudos da guerra. No fundo, está em causa o camaleão clausewitziano multicolor e multiforme da guerra; o ir à guerra no todo da sua complexidade, da sua natureza, digamos.
Saliento então a compreensão histórica que os autores fazem da ata de nascimento dos estudos da guerra a seguir à Segunda Guerra Mundial. Relevando a figura pioneira de Gaston Bouthoul e da sua polemologia (p. 10). Na sequência do enriquecimento progressivo dos métodos e das problemáticas dos estudos da guerra, destaco a reflexão dos autores sobre como o estabelecimento de uma cada vez mais forte cultura da paz nas sociedades ocidentais, em particular, as europeias, permitiu o desenvolvimento de uma leitura mais ampla da guerra, com o objetivo de não tornar a repeti-la. De forma muito perspicaz, estes historiadores espanhóis, reconhecendo o caráter genuíno e a legitimidade dessa cultura da paz, não escamoteiam as simplificações operadas por essa cultura popularizada na caracterização da guerra, nem as aporias, já referidas, a que Xosé Manoel Núñez Seixas alude no capítulo final; diria eu com manifestas repercussões negativas no desempenho de várias missões de apoio à paz, pelo menos até ao Relatório Brahimi das Nações Unidas.
Os autores chegam a questionar-se, usando de um notável argumento, se a promoção de uma cultura da paz à outrance e a sobranceria acerca de outras realidades mundiais, como se só estas estivessem ainda mergulhadas no reino atávico da guerra, não pretende mascarar a desigualdade das nossas sociedades, desativando o descontentamento que nelas grassa, ao desacreditar de antemão todas as formas de dissensão e veemência franca e aberta, rapidamente comparáveis com formas de guerra ou quase guerra, próprias de gente incivilizada (p. 13). Adicionaria a este incontornável argumento, sobre o situacionismo impositivo dos dispositivos soberano-governamentais, um outro: quando têm de fazer a guerra, porque a fazem, os poderes fáticos das nossas sociedades cobrem-na ideologicamente com outros epítetos, seja operações de imposição da paz, ou operações outras que não a guerra, ou quando não o podem escusar, falam em guerras limpas, guerras imaculadas, danos colaterais, entre demais expressões, todas elas servindo ao acionamento político liberal da guerra. Acertam pois David Alegre, Miguel Alonso e Javier Rodrigo no centro do alvo.
Estes autores procuram ainda estabelecer uma relação estreita entre o fenómeno da guerra e a violência de massas, no eixo da guerra total enquanto dinâmica central para a compreensão da guerra, pelo menos na primeira metade do século XX, aquela que os estudos de caso abrangem. De qualquer forma, essa dinâmica virá já do século XIX e prolonga-se para além de 1950. Nesse sentido, optam pela ideia de um ciclo longo de guerras, conectadas no espaço e no tempo, sem privilegiar uma ou outra conflagração como conflagração modelo e ideal-tipo. Ora, essa análise transnacional em tempo longo permite esclarecer muitos comportamentos sociopolíticos em diferentes sociedades mutuamente afetadas, sem uma ênfase excessiva nas duas conflagrações mundiais e de acordo com os tempos e características de guerra que nestas vigoraram, ou que habitualmente se julgava que vigoravam. Um tal desiderato permite aos autores retomar uma ideia já presente no pensamento de Hannah Arendt, de que a violência desatada nas chamadas pequenas guerras nas colónias terá contribuído para a brutalização (continuo a não ver obstáculo maior no conceito de George Mosse) posterior, própria da violência da sociedade de massas da primeira metade de Novecentos (pp. 29-30). As concatenações implicam prova empírica adicional, mas dirá um senso apurado que terá de haver ligação, já que, por vezes, a prova explícita pode vir ou nem vir mas não é tudo.
Permita-se-me, no entanto, exarar umas quantas críticas à ideia de ciclos longos de guerra e ao emprego do conceito de guerra total.
O risco inerente à ideia de ciclos longos de guerra, embora os autores, conscienciosamente, procurem evitá-lo, recusando desde logo qualquer postura teleológica, é o de se confundir um ciclo ininterrupto de guerras num espaço amplo, com uma guerra ininterrupta. O ciclo ininterrupto, se não for exageradamente alargado no espaço, e ainda que não tenha verificação empírica total, é perfeitamente legítimo, porque se trata de uma construção do historiador que pode ser muito útil para explicar certas prevalências nas decisões, nos comportamentos e nas predisposições por parte dos atores políticos e das sociedades em geral. Já a ideia de uma guerra ininterrupta não o é de todo. A guerra acontece quando acontece, perdoe-se a expressão pleonástica, por mais que não seja fácil delimitar com exatidão o início e o fim da contenda. Aquilo que acontece no pós-Primeira Guerra Mundial é que a estratégia passa a operar em todos os azimutes e a tempo inteiro. A estratégia é contínua, pela necessidade de preparar a complexa guerra industrial de massas, a guerra em si não. Por mais voltas que demos, a França não esteve em guerra com Alemanha entre 1919 e 1938. Pode objetar-se que não o esteve nos termos de uma guerra quente, mas houve uma guerra fria, tecnicamente falando. Todavia, isso seria um anacronismo, pois seria retroprojetar conceitos e práticas que não estão prontos para usar antes do final da Segunda Guerra Mundial. O contrário, e em contradição implícita com os próprios propósitos dos autores, que de modo algum pretendem exaltar a guerra, seria fazer do estado de paz um estado parasitário da guerra, algo que nem a modernidade, ao pôr cobro à separação ontológica entre paz e guerra e transformar a guerra, por intermédio do soberano, numa dimensão de acionamento político normalizada, constitutiva, fez – é verdade que os autores reconhecem esse risco, quando afirmam que um dos principais perigos em optar pelos ciclos longos de guerra é dar a entender de forma errónea serem a conflitualidade e a guerra elementos constitutivos das sociedades e das realidades do passado (p. 32). Um estado de guerra como frequência quotidiana de base equivaleria à sua prevalência como estado ontológico reitor, algo inverificado de todo, quanto mais não seja porque uma tal continuidade levaria por certo à ascensão aos extremos, à guerra absoluta, porquanto esta marca a pauta, estabelece o valor marginal de utilidade do fenómeno, estabelece o preço e dá à guerra a sua configuração específica. A guerra absoluta está anichada em qualquer guerra, é o extremo sempre pronto a libertar-se por completo, a extremar-se, e a assenhorear-se do terreno. Ora também sabemos como a guerra é ultimamente intratável, é díscola em relação aos melhores esforços de contenção político-estratégicos. Uma guerra contínua, tendo necessariamente de ser uma guerra quente, com tais proporções, há muito que se teria alforriado, e certamente já não estaríamos aqui para a contar.
Uma palavra ainda em relação ao conceito de guerra total. Os autores usam-no com cuidado e em geral com parcimónia. É verdade que o conceito de guerra total e sua aplicação não morreu completamente com a Segunda Guerra Mundial; a própria guerra subversiva ou insurrecional pode facilmente descambar numa espécie de guerra total, como já intentei dilucidar noutros lugares. Porém, guerra total é um conceito epocal bem datado, ainda que com prolegómenos com raiz nas guerras da revolução e do império, como afere Jean-Yves Guiomar, em rigor ocupa o tempo entre as duas grandes guerras, e mesmo assim nunca se manifestando em estado puro. A guerra total enquanto utilização simultânea, estrategicamente intencional (vendo-se a estratégia compelida a isso pela política), de todos os meios de luta, com a máxima intensidade e com a inversão da pirâmide estratégica, tem o seu fim com o dealbar da era nuclear. A partir de então a época mais instrumental da estratégia cessa, e o que iremos assistir é a uma ponderação judiciosa do emprego dos meios de luta à disposição, que, isso sim, não tem volta atrás. Doravante, podem ser empregados todos eles e não só o vetor militar, bem como a mobilização a montante continua a ser global. Outra coisa é achar-se que em determinados cenários, o mais judicioso, ponderado e temperado é usar tudo, simultaneamente e com elevada intensidade para atingir um objetivo, sob pena de não o fazendo haver uma qualquer escalada. Nada disto obsta a que a própria marcha da guerra, porque, como disse, é sempre díscola, acabe por configurar uma espécie de guerra total e a própria política, mesmo contra a ponderação estratégica, ser tentada pelo corrupio de violência. Obviamente, também nada obsta a que determinados atores políticos possam ter a tentação de reproduzir uma guerra total, nomeadamente em locais onde as respetivas racionalidades sociais estratégicas exerçam uma retroação mais débil sobre a política. Contudo, essa não tem sido a tendência. Assim sendo, quando os autores referem a guerra contra o terrorismo islâmico como uma guerra total com refinamentos (p. 31), aqui sim equivocam-se redondamente. À parte a questão de se poder falar em guerra contra o terrorismo1, tal é a disparidade de poderes entre as duas partes, que por mais que quisessem os oponentes do terrorismo não poderiam de todo acometer uma guerra total, e isto, por definição.
Duas palavras mais para referir o excelente aparato crítico que acompanha o texto, com bibliografia muito atualizada e sobretudo pertinente, e para a forma extraordinariamente elegante e sensível como os autores apresentam os seus próprios percursos vitais na génese do livro. Na verdade, se sabemos que na estética da receção, de Jauss a Ricoeur, a obra quando pública se independentiza dos autores biográficos, não é menos real os projetos não tomarem forma descarnados.
Talvez o único problema maior deste livro coletivo seja o artigo de Luca Baldissara, até porque Baldissara faz questão em analisar com detença a guerra como fenómeno geral da ação humana, evitando a dispersão empírica (p. 55). Ora, o historiador italiano, num artigo coerente e muito informativo, ademais de uma visão gradativa de materialização histórica da guerra total com a qual não podemos senão concordar, comete um pecado mortal, labora num equívoco estrutural, ao misturar os conceitos de guerra total e de guerra absoluta, que exprimem duas realidades distintas. É certo que o uso simultâneo de todos os meios para atingir a máxima intensidade da força, com vista a alcançar o objetivo, pode bem propiciar e municiar a ascensão aos extremos. Todavia, as similitudes estruturais acabam aí. O conceito de guerra total denota um modo de fazer a guerra (warfare), e mesmo uma tipologia epocal da guerra, consistente, como já mencionámos, no uso simultâneo e não temperado de todos os meios ao dispor, com redução da política aos objetivos estratégicos, senão mesmo a subordinação a eles. Já a guerra absoluta não configura nenhum modo particular de fazer a guerra, nem nenhuma tipologia bélica, antes afere (aliás, como o próprio Baldissara reconhece, com base em Clausewitz, p. 55) «o ponto de referência e a unidade de medida de toda a guerra», o seu núcleo íntimo que especifica o fenómeno na sua singularidade, o extremo insubornável de desrazão, a caótica abissal presente em qualquer guerra e em qualquer escalão, do técnico-tático ao estratégico. Quando muito, a ascensão aos extremos em sentido estrito configura uma forma que a guerra toma, e não uma modalidade de guerra inserível numa qualquer taxonomia de guerras possíveis, porquanto é próprio do extremo extremar-se, materializar-se por completo, libertar por inteiro a potência irredenta do seu núcleo, quando as condições assim o permitirem. A guerra absoluta expressa a razão de (des-)ser da guerra. Ora, as razões que Baldissara apresenta para emparelhar os conceitos, em que a força natural do elemento guerreiro parece possuir os combatentes e governantes, o cavalo governa o cavaleiro, a guerra gera os seus próprios objetivos e se alimenta de si própria sem freios, numa dinâmica, na aparência, imparável de guerra sem quartel, bem como a ideia de guerra de extermínio, são características próprias da guerra absoluta e não da guerra total. A guerra total não é necessariamente uma guerra de extermínio, nem visa obrigatoriamente a pulverização tática do inimigo, ou a sua aniquilação estratégica, antes procura a supressão sem rebuço de qualquer resposta para atingir um objetivo de forma franca e sem lugar a dúvidas. De resto, é isso que se extrai de Ludendorff, o qual até a integra num quadro defensivo, por mais que essa posição denote sofisma ideológico. É certo que Baldissara chama à colação Jean-Yves Guiomar, mas comete precisamente os mesmos erros deste, com a agravante de o historiador francês ainda se interrogar se o conceito de guerra total designa a mesma coisa que o conceito de guerra absoluta, para ele uma questão em aberto, enquanto Baldissara dá o emparelhamento como bom a priori2.
Baldissara prende-se ainda a outros equívocos. Por exemplo, quando remete o conceito de guerra absoluta em Clausewitz para uma formulação geral e abstrata (p. 55), a arrepio de o considerar a unidade de medida da guerra, dois registos incompatíveis. Há muitos exemplos, pace Aron, de que guerra absoluta não é uma mera formulação ideal e teorética, mas basta atender ao capítulo XVI, do livro III, do Da Guerra, quando Clausewitz argumenta que se o evolver normal das campanhas parece o oposto a um incessante avanço em direção ao alvo e a ação a exceção, as campanhas de Bonaparte mostrariam o contrário, o ilimitado grau de energia como lei natural do elemento guerra. E se esse grau é possível então é necessário. Isto quer dizer que é concretizável, não abstrato, e como tal não pode ser deixado de lado, é imprescindível, incontornável para doar o sentido pleno à guerra, através do qual se mostra que esta é assim e não pode ser doutra maneira; exprimindo mesmo a parte mais íntima da natureza da guerra, sendo realmente o núcleo da guerra em si e não mera hipótese teórica3.
Baldissara parece querer carrear ainda outros argumentos para a guerra absoluta e total ainda antes do século XX, para a guerra total ainda antes da guerra total, seguindo o raciocínio de David Bell em The First Total War. Napoleon’s Europe and the Birth of Warfare as We Know It, de que a separação do militar das restantes esferas sociais e a criação de uma cultura militar implica que a guerra deixa de fazer parte da ordem social e do curso normal da história, intensificando a propensão para uma violência cada vez maior, com cada vez menos barreiras (p. 58). O disparate que já era de Bell, retomado por Baldissara, é enorme. Desde logo, a separação da esfera militar é uma separação sociológica inerente à complexificação e especialização das funções do Estado, correspondente à divisão social do trabalho político, com a criação da estratégia para gerir a conduta da guerra. E nesse sentido estrito, a criação de uma cultura castrense em nada a afasta de outros processos de profissionalização e especialização que vão ocorrendo na modernidade, desde a diplomacia à clericização do clero diocesano. Mas tal acontece porque, com o soberano, a guerra é pela primeira vez inserida na ordem social e no curso normal da história, justamente o oposto do argumentado por Bell e Baldissara, e como se percebe que, apesar da tentativa de normalização da guerra por parte da lógica soberana, aquela continua a ser uma exceção em relação à vida social ordinária, na medida em que se procura normalizá-la com êxito muito relativo em ordem à sua cabal domesticação e controlo, e já não fazendo a guerra parte de um continente ontológico apartado da paz, impõe-se criar uma cultura específica com um ethos próprio – algo que nos dias de hoje esquecemos com a aproximação da guerra e da profissão militar ao gestionário, ao management.
Baldissara refere-se ainda à união da liderança política e do comando militar, no período das guerras da revolução e do império, como outro elemento indutor da guerra total (p. 59). Todavia, o racional só vale se pensarmos em Napoleão e no enfeudar a política à estratégia, porque unidade de comando político-militar dir-se-ia ser quase uma constante histórica; a política a comandar a guerra, o príncipe a dirigir a contenda, mesmo delegando no terreno o comando da força.
As aporias teóricas notam-se ainda quando Luca Baldissara identifica os novos meios armamentísticos desenvolvidos no século XIX para pôr cada vez mais homens fora de combate, dado o crescimento dos exércitos, com o ato de os matar (p. 63), estando implícita a ideia de extermínio. Ora, pôr fora de combate significa incapacitar e não matar. Provocar um maior número de feridos é muito mais remunerador em termos psicológicos e da própria mobilidade do inimigo do que simplesmente matá-los. Não por acaso, o desenvolvimento das munições shrapnel ao longo do século XIX vai nesse sentido.
Baldissara estabelece ainda uma frutífera ligação entre os intentos para fixar regras e limites no direito da guerra, a mobilização cada vez maior e mais intensa de forças e a brutalização crescente desta (pp. 66-67). Na verdade, quanto mais brutal for a guerra maiores são os riscos de ascensão aos extremos. Da mesma forma, uma mais extensa e intensa utilização dos meios tende a acarretar uma brutalidade acrescida, historicamente verificável. Porém, uma vez mais, guerra absoluta e guerra total não se miscigenam. A brutalidade acaba sempre por ser uma variável independente, como se pode observar nas diferenças entre a frente ocidental e a frente oriental na Segunda Guerra Mundial, dadas as mesmas condições de mobilização total. Por sua vez, nem sempre a maior intensidade da força mobilizada significa em termos comparativos mais brutalidade; basta pensar na campanha alemã em França, em 1940, por comparação com a guerra franco-prussiana de 1870-1871.
É igualmente excelente a relação estabelecida por Luca Baldissara entre o crescimento da guerra irregular, a violência sobre civis e a cultura militar institucional em desenvolvimento, estritamente ligada esta ao monopólio sobre a violência a que o Estado cada vez mais se arroga ao longo de Oitocentos. A existência de guerrilheiros era vista como uma série ameaça à cultura militar e de guerra emergente e uma ameaça à ordem estabelecida, sendo também um bom pretexto para exercer um controlo férreo sobre a população civil adversária, visto dela brotarem esmagadoramente os irregulares (pp. 65,73,77-78). Os próprios guerrilheiros viam-se a seus próprios olhos cada vez mais como detentores de um potencial insurgente, isto é, de subversão revolucionária das instituições do Estado em virtude de fazerem parte de um «exército popular». Porém, as similitudes acabam aí com as hodiernas guerras subversivas ou insurrecionais, de que são, quando muito, prolegómenos. A guerra irregular até meados do século XX, e por mais que os guerrilheiros constituíssem em si uma questão eminentemente política, era guerra militar, mesmo que estivesse em causa a possibilidade de subversão do Estado – aliás, apenas nesse sentido estrito do vocábulo subversão se pode dizer serem essas guerras subversivas. Não só esse tipo de guerras não representava o eixo central das confrontações – sendo complementar da manobra bélica principal, ainda que os seus protagonistas pudessem acalentar outros desígnios –, como, e mais importante, as guerras subversivas requerem outras formas de coação e outras estratégias que não a militar no papel principal. Todavia, essas novas modalidades de guerra e concomitantes estratégias apenas amadureceram no dealbar da era nuclear. Por outro lado, essas novéis formas de coação eram fundamentais porque eram as que melhor se ajustavam, pelo seu caráter mais sibilino e subtil, ao principal objetivo das guerras subversivas: a conquista do coração e da mente do grosso da população.
Em suma, estamos perante um artigo que carreia excelente informação e preciosa argumentação, mas ambas baseadas no total desajustamento teórico.
Javier Rodrigo oferece-nos um excelente artigo, também de âmbito teórico alargado, acerca de quão complexa pode ser a abordagem às guerras civis, no contexto da guerra total, no horizonte aberto pela Grande Guerra, e onde se cruzam com guerras internacionais e revoluções de vários signos. Como manifesta o historiador espanhol nem sequer há consenso sobre o significado de guerra civil e se em última análise o conceito pode ser operativo para responder a conjunturas tão diversas. É um problema hermenêutico basilar, já entrevisto por Braudel, referindo-se à aplicabilidade da categoria de mercador a épocas distintas. Na verdade, as categorias têm de fazer justiça à contingência histórica, mas não podem ser tão lábeis que se nos desfaçam nas mãos antes de entabularmos o diálogo histórico. Como não há forma de escapar ao círculo hermenêutico, não há instrumentos definitivos nem ângulos de abordagem absolutos, mas há aqueles que permitem um maior alargamento de horizontes e abertura à alteridade. Creio que a categoria ou o conceito de guerra civil está entre esses instrumentos, e por isso mesmo Javier Rodrigo não abdica, e bem, dele. Desconfia sim e muito é das abordagens conceptuais das ciências sociais, sobretudo as quantitativistas extremas que não dão razão da contingência, do agenciar, isto é, do impulso da ação humana nem tão-pouco da empiria enquanto tal (pp. 91-92). Apenas por rebuço extremo me contenho aqui em seguir os racionais de Javier Rodrigo ao limite, mas a minha concordância com ele é plena. Creio que sobretudo a história, e, num outro quadrante, as humanidades, nos oferecem conceptualizações suficientemente profundas de todos estes fenómenos.
Javier Rodrigo pensa igualmente que as guerras civis têm sido menos atendidas que as guerras internacionais da primeira metade do século passado, de forma indevida. Certamente terá razão, apresentando uma argumentação séria nesse sentido. Por outro lado, enquadra essas guerras civis no horizonte aberto pela Grande Guerra, enquanto ponto de rutura fundamental para a reconfiguração das entidades étnico-nacionais, e no contexto da guerra total também promovido pela Grande Guerra, levando a que essas reconfigurações se tenham feito de forma particularmente violenta e radical, com purificação social, resolução expedita do problema das minorias, e um amplo etc. Até porque a Grande Guerra criou uma tal pedagogia da violência que esta passou a ser um eixo gravitacional da contemporaneidade europeia (pp. 94-95). Não poderia estar mais de acordo, e nem sempre se frisa de maneira rotunda quanto nós somos netos e bisnetos dessa violência ímpar, preparada de antanho é certo, mas de alguma forma também nova.
Claro está que a guerra total amplia a lógica de violência presente nas guerras civis, mas creio que o autor tende a amalgamar um pouco guerra total e guerra absoluta no respeitante a essa violência (p. 96). É que as guerras civis são, pela sua própria natureza de conflagração no interior da Cidade, guerras fratricidas, em sentido literal, sem as contenções de quem já se conhece por inteiro e sem as mediações de quem não as pode oferecer porque nada sabe das questões intrínsecas daquela família, a não ser por um excesso de otimismo ou de sobranceria, ambos inaceitáveis, e os da família estão por definição envolvidos. Assim, a guerra civil é propícia como mais nenhuma à ascensão aos extremos. Os gregos referiam-se à stasis como o mundo às avessas, pois pressentiam na guerra civil como em nenhuma mais a possibilidade de a guerra assumir o controlo, da guerra absoluta se libertar por completo – o pecado capital da muito badalada obra recente de David Armitage, também citada por Javier Rodrigo, Civil Wars: A History in Ideas, é o de não incluir intencionalmente a stasis no quadro das guerras civis; um dos fatores a motivar um número da revista Critical Analysis of Law (Vol. 4, N.º 2, 2017) dedicado ao debate crítico da obra de Armitage.
Estou em crer que não outra mensagem nos quer transmitir Javier Rodrigo, fazendo entrar na liça a guerra total como catalisador contemporâneo (p. 113) – não sei se aqui ou ali confundindo um pouco os termos.
Umas quantas palavras mais relativas a um tema que se esparze por alguns artigos, onde aparece explícita ou implícita a noção de necessidade militar, tanto mais premente quanto as cláusulas da guerra total a parecem endurecer, em particular no caso da Wehrmacht. Ofuscando um tanto o protagonismo da ideologia, a necessidade militar na guerra total levaria a práticas militares extremas, reforçaria o combate de aniquilação e acabaria numa guerra de extermínio um pouco sem querer. É verdade que a doutrina alemã da necessidade militar e do combate de aniquilação tende a deturpar por excesso as conceções de Clausewitz. Mas obviamente não visava a guerra absoluta, sendo a guerra de extermínio um precipitado desta última. Aquilo que acontece é que a necessidade militar é (ou deve ser) flexível e atender às contingências da guerra. Ora, a guerra vai criando os seus próprios objetivos porque a alimenta em fundo essa cizânia incontrolável que é a guerra absoluta. A páginas tantas é esse extremo caótico caracterizador da guerra absoluta que municia a necessidade militar e as medidas tomadas a partir desta nada mais fazem do que encurtar a marcha para a ascensão aos extremos. O mesmo é dizer, a necessidade militar como sinónimo de uma prerrogativa de controlo sobre a guerra, de autonomia de comando, de liberdade de ação estratégica relativa acaba por ser antes sinónimo de servidão militar à guerra. A meu ver, optar entre necessidade militar e ideologização fanática não é de lei, depende do quadro de referência político, das condições da guerra, da intensidade da mesma, e dos momentos particulares onde a força bruta parece soltar-se por completo. Afinal, o próprio holocausto só se desenrolou daquela forma num quadro bélico de permissividade à ascensão aos extremos. Na prática, estou a argumentar que a guerra de extermínio não decorre sem querer da necessidade militar, porque a intuição mil vezes experimentada de que uma qualquer espécie de necessidade militar levada ao limite é a receita para o desastre está presente (suspeito que) há milénios, e sobretudo somos muito conscientes dela desde Clausewitz. A necessidade militar não é assim uma justificação que deixe melhor parada em termos éticos a força que a invoque só por não ser eventualmente fanática da guerra racial.
Em suma, estamos diante de uma obra doravante incontornável no âmbito dos estudos da guerra; só é pena o pecadilho de não ter sido oferecida ao leitor uma ficha biográfica dos intervenientes.
BIBLIOGRAFIA
CLAUSEWITZ, Carl von – On War. Princeton: Princeton University Press, 1986.
GUIOMAR, Jean-Ives – L’Invention de la Guerre Totale. XVIII-XX siècle. Paris: Félin, 2004.
NOTAS
1 Na presunção de que o terrorismo não é guerra, no máximo, as ações de contraterrorismo envolvendo operações de combate são operações de guerra zero – zero war operations.
2 Cf. GUIOMAR, Jean-Ives – L’Invention de la Guerre Totale. XVIII-XX siècle. Paris: Félin, 2004, p. 302.
3 Cf. CLAUSEWITZ, Carl von – On War. Princeton: Princeton University Press, 1986, p. 219.