Introdução
Nas últimas décadas, a reemergência do populismo no mundo ocidental suscitou um interesse crescente em variadas áreas de saber. A par da Ciência Política, Relações Internacionais e Sociologia da Política, os estudos em Comunicação Política e em Jornalismo, Média e Tecnologia têm igualmente contribuído para um entendimento mais aprofundado e, simultaneamente, mais complexo do populismo. Estes estudos têm analisado o estilo retórico dos políticos populistas ou dos que, não o sendo, adotam estratégias de comunicação populistas. Outras linhas de pesquisa exploram o uso que estes políticos fazem dos média sociais para a construção da sua visibilidade e relação com o seu (potencial) eleitorado. Pesquisas complementares analisam a relação entre os usos e consumos de média e o voto em partidos populistas, bem como a influência da cobertura jornalística no sucesso eleitoral destes partidos cuja ideologia ora é considerada vaga e indefinida1 ou interpretada como estratégica e pragmática2.
Se a clarificação conceptual continua em debate, é consensual entre académicos que o populismo desafia normas, valores e instituições da política mainstream em nome do «povo». O discurso populista estrutura-se em torno de uma oposição moral, relacional e causal entre «as pessoas boas» e «os outros culpados» pelos males da sociedade3|4. Esses outros são as elites, retratadas como indignas de confiança, e/ou imigrantes, minorias étnicas ou culturais5|6|7. As reivindicações contra estes oponentes tendem a ser feitas da seguinte forma: os políticos tomam decisões que prejudicam os interesses das pessoas comuns e as instituições internacionais deveriam ter menos influência na tomada de decisões políticas nacionais. O «outro» rouba empregos aos nativos, é culpado pelos crimes e insegurança na sociedade ou é responsabilizado pela degradação dos valores tradicionais.
Os políticos populistas assumem, assim, o papel de porta-vozes do povo, personificando a sua frustração, ira e indignação. Para tal, usam uma linguagem emocional, baseada em slogans e estilo tabloide. Esta estratégia discursiva ajuda-os a granjearem visibilidade, marcarem a agenda política e mediática e a chamarem a atenção dos cidadãos8|9|10.
Os políticos populistas precisam da atenção dos média e estes precisam de atores políticos dispostos a cumprir o compromisso das notícias com a vitalidade emotiva. É por esta razão que Gianpietro Mazzoleni11 afirma que é imprescindível compreender a lógica dos média para entender melhor o populismo, uma vez que este também é um «produto» da atividade simbólica dos meios de comunicação12|13|14|15.
A relação entre os média e o populismo é o ponto de partida deste ensaio que se foca no contexto de ação dos média, nomeadamente, o modo como a reconfiguração neoliberal dos média ocidentais os tem crescentemente tornado cúmplices, ainda que involuntários, de projetos políticos e estratégias de comunicação populistas. Se essa cumplicidade é facilmente explicada por razões económicas, neste ensaio pretendemos refletir sobre a institucionalização de uma lógica cultural reconfiguradora do projeto democrático dos média que, ainda que não intencionalmente, beneficia projetos e performances populistas.
De acordo com Wendy Brown16, a racionalidade do mercado neoliberal tornou-se proeminente em todas as esferas da sociedade, na medida em que esvaziou estruturas e processos democráticos. As instituições representativas têm perdido cada vez mais substância à medida que o poder e a dinâmica da democracia se estão a afastar das arenas democráticas para pequenos círculos de elites políticas e económicas que, frequentemente, operam além do escrutínio democrático. Mesmo que em diferentes graus e escalas entre os Estados democráticos, este processo caracteriza o que Colin Crouch 17|18 descreve como o caminho para a pós-democracia e é por isso que Brown19 argumenta que a teoria política precisa de «lamentar a democracia liberal». Por sua vez, Natalie Fenton e Gavan Titley 20 e Sean Phelan e Simon Daws 21 defendem que o conceito de luto de Brown tem implicações para o idealismo sobre os média, ou seja, deve ser utilizado para rever os padrões e valores normativos que caracterizaram os média como uma instituição fundamental para moldar o carácter democrático da sociedade e os conceitos relacionados de esfera pública, liberdade de expressão e pluralismo.
Deste modo, o ensaio argumenta que as mudanças estruturais em curso na sociedade democrática estão na base da reconfiguração política e cultural dos média. A expansão de um ethos neoliberal na indústria dos média traduz-se num recuo para a tradição de responsabilidade social e, simultaneamente, uma oportunidade para a propagação do populismo enquanto ideologia. Por sua vez, esta mudança instiga a adoção de estratégias de comunicação populistas pela política mainstream. Dito de outro modo, em tempos de transformação social, política e tecnológica, este ensaio reflete sobre as características, contingências e constrangimentos da comunicação contemporânea, de onde se destaca a emergência de estratégias populistas que se estão a tornar um master frame da comunicação política.
Com vista a desenvolvermos o nosso argumento central, o ensaio estrutura-se em três partes. Começamos por refletir sobre o contexto neoliberal que impulsionou a reconfiguração dos média e os afastou da tradição liberal democrática. Este processo deu lugar a uma crise económica e cívica promotora de um ethos cujo compromisso já não é orientado para o interesse público, mas para a lógica da cultura digital, o que tem vulnerabilizado os média face a novas estratégias de comunicação populistas. Na segunda secção deste ensaio aprofundamos a reconfiguração dos média pela perspetiva da política, nomeadamente as suas estratégias de adaptação às lógicas dos média ao longo do tempo e de como o contexto atual se articula com estratégias populistas de comunicação. Nas reflexões finais assinalamos como as conturbações sociais e tecnológicas que as sociedades contemporâneas atravessam ajudam a compreender porque é que, cada vez mais, o populismo se tornou num instrumento dos média e das plataformas digitais.
O processo de reconfiguração política e cultural dos média
Ao longo das últimas décadas, um vasto corpo de literatura surgiu para explicar porque é que os média ocidentais deixaram de cumprir um papel compatível com os requisitos de uma democracia estabelecida. A globalização, a comercialização, a marketização, a concentração de propriedade e propriedade cruzada, o modelo de negócios e a internet, juntamente com os intermediários digitais, foram identificados como forças dominantes que explicam a transformação da paisagem mediática no contexto neoliberal22|23.
Quando o modelo de negócios do setor já estava à beira do colapso, a comercialização e a concentração da propriedade instigaram uma produção de notícias centrada no entretenimento e voltada para o mercado. Isto comprometeu a produção de notícias que refletia uma agenda variada, plural, crítica e de qualidade essencial para a democracia. Ao mesmo tempo, este movimento contribuiu para dispensar os média das suas obrigações de prestação de contas e cumprir os mecanismos de responsabilidade social.
O modelo do quarto poder da imprensa, forjado no mundo ocidental durante o século XVIII, estabeleceu a liberdade dos média como um dos pilares mais importantes de uma democracia sólida. Sob esta conceção, o jornalismo assumiu um conjunto de responsabilidades políticas fulcrais na sociedade, nomeadamente, de agente que serve e protege os interesses dos cidadãos comuns contra os abusos políticos do poder - transgressões que minam os alicerces dos regimes democráticos24|25.
Se, durante muito tempo, este entendimento foi encarado quase como garantido em democracias bem estabelecidas, na última década, a liberdade e a independência dos média começaram a enfrentar uma espiral descendente, acompanhando as tendências verificadas nas democracias liberais. De acordo com os relatórios da Freedom House26 sobre liberdade no mundo, as democracias estão a sofrer um declínio nos direitos políticos e nas liberdades civis, mesmo em países onde o domínio democrático existia há décadas.
A liberdade de imprensa é cada vez mais ameaçada pela polarização do cenário político, pelo estabelecimento de governos populistas e pela ascensão de partidos que se situam nos extremos do espectro político (extrema-direita e extrema-esquerda). A capacidade de estas forças emergentes influenciarem as agendas institucionais, nomeadamente, dos partidos políticos e dos meios de comunicação mainstream, está, igualmente, a contribuir para minar os alicerces dos regimes democráticos.
A polarização crescente dos média, que pode ser descrita como uma complexa mistura de ideologia política e estratégia económica sob a ordem neoliberal, tem também comprometido a liberdade dos média e as preocupações associadas ao interesse público. O aumento da polarização social está a abrir o caminho a projetos jornalísticos que operam sob a lógica do particularismo e da exclusão, e que não atuam como uma esfera de representação de diversas visões ideológicas, sociais e culturais. O exemplo mais emblemático deste tipo de meios de comunicação é o da estação televisiva de notícias norte-americana Fox News, porque foi um dos primeiros meios com este posicionamento ideológico-editorial, o que lhe granjeou uma elevada notoriedade internacional. Este meio de comunicação assumiu que o seu trabalho visava, acima de tudo, não informar, mas confirmar as mundividências dos seus espectadores. Para tal, afastou-se do ethos jornalístico - assente na equidistância e isenção no tratamento dos temas - e aproximou-se da luta política comprometida. Deste modo, assumiu-se como um ator político interventivo e contribuiu para a sectarização ideológica da sociedade norte-americana27.
Neste contexto de crescente polarização mediática, importa considerar a situação dos meios mainstream. Se antes do colapso do sistema financeiro americano, em 2008, e da crise que se seguiu na zona euro, os grupos de comunicação já enfrentavam problemas financeiros graves, a sua precariedade aumentou significativamente durante a Grande Recessão. Inúmeras empresas, especialmente as que operam no setor da imprensa escrita, perderam investimento publicitário e leitores, muitos dos quais passaram a aceder a informação gratuita através das redes sociais. Isso conduziu a uma história já conhecida: encerramento de jornais, despedimento de profissionais e redução do número de páginas por edição. As publicações resistentes continuaram a enfrentar dificuldades que comprometem o trabalho diário.
Paralelamente, o desenvolvimento de múltiplas plataformas de comunicação em rede e a proliferação de inúmeras organizações de média deram lugar a um ambiente informativo mais intenso (o fluxo de informação acelerou e os ciclos noticiosos encurtaram), mais extenso (existem mais e diversificadas formas de acesso à informação independentemente da localização física dos sujeitos, exponencialmente potenciada pelas comunicações móveis) e menos controlável pelos atores institucionais do que no passado (cada indivíduo pode ser um broadcaster em nome individual e a articulação desta possibilidade à convergência transmediática tornou o ambiente informativo menos controlável)28.
Neste fluxo de comunicação cada vez mais complexo emergiram novas dinâmicas e enunciadores capazes de lançar e agendar temas, interferir no curso do debate público e no trabalho dos meios de informação profissionais. No novo ambiente desenvolvem-se novas áreas de contacto entre instituições, média e cidadãos. Ou seja, novas condições de tráfego que afetam a lógica das instituições produtoras de informação e dos sujeitos recetores. A direção comunicacional descendente (dos média e/ou política para os cidadãos) e horizontal (entre instituições, como entre a política e os média) tornou-se indissociável de novas dinâmicas introduzidas pela comunicação ascendente [de indivíduo(s) para os média] e horizontal (entre indivíduos nas redes sociais). Deste modo, enunciadores tradicionais (instituições, média) e novos (indivíduos, grupos, fakes), em conjunto, constroem discursos que se alimentam mutuamente.
Neste contexto, a digitalização dos média e o aumento da competição entre meios, potenciada pela emergência de projetos nativos digitais e pelas redes sociais, impulsionaram mudanças nos valores, nas normas e nas práticas jornalísticas: orientação editorial para as redes sociais, polarização do discurso mediático e metrificação do jornalismo. Esta reconfiguração do ethos jornalístico potenciou convergências e cumplicidades - tons, enquadramentos, narrativas, linguagem - com estratégias de comunicação populistas. Dito de outro modo, a crescente comercialização dos média e a orientação editorial para as redes sociais tornou-os ainda mais atraídos pela controvérsia, pelo inesperado e desviante. Esta tendência ficou bem patente numa afirmação proferida pelo diretor da CBS, em 2016: segundo ele, a campanha de Donald Trump podia não ser boa para os Estados Unidos, mas era muito boa para a CBS.
As organizações profissionais de notícias passaram a monitorizar as redes sociais porque as consideram espaços privilegiados para disseminar a informação que produzem, para aferir o impacto do seu trabalho, bem como para instigar o envolvimento dos leitores. Estas alterações refletiram-se na produção noticiosa: privilegia-se cada vez mais o conflito (controvérsias, polémicas e ataques), o entretenimento (abordagem soft, com interesse humano ou humorístico) e imagens fortes (sensacionais ou potenciadoras de emoções), valorizando-se ainda a disseminação de histórias suscetíveis de gerar partilhas e comentários via Facebook, Twitter e outras redes sociais29.
Tal como o jornalismo na era digital é permeável a estratégias de comunicação populistas, também as próprias redes sociais o são. Já no final da década de 1990 Bruce Bimber30 escrevia: «a internet tem o potencial de restruturar o poder político orientando-o numa direção populista». O discurso populista, centrado no povo, contra as elites e antissistema ecoa bem neste jornalismo orientado para e pelas redes sociais. Acresce que os políticos populistas são astutos fazedores de notícia. Eles sabem que um estilo retórico opositor, abrasivo e provocador capta facilmente a atenção dos média.
As estratégias de vitimização e de bullying por eles seguidas são acompanhadas por um desempenho pensado em função das lógicas mediáticas: para além de os média amplificarem as suas mensagens, são vistos como poderosas ferramentas de mobilização para as suas causas.
Nesta nossa era de comunicação personalizada, ubíqua e invasiva, as redes sociais tornaram-se parte integrante da política, em estreita articulação com os média e, em particular, com a televisão. Esta é um elemento-chave na complexa constelação tecnológica contemporânea, que se caracteriza por um ambiente informativo intenso (o fluxo de informação acelerou e os ciclos noticiosos encurtaram), extenso (as comunicações móveis potenciaram novas formas de acesso à produção e de consumo de informação) e incontrolável (os políticos perderam a capacidade de dominar a narrativa mediática). Aprofundamos esta e outras questões relacionadas na próxima secção.
Política e visibilidade mediática
À medida que a comunicação se desenvolveu, os políticos foram perdendo o controlo sobre o seu discurso e a sua imagem, deixando gradualmente de pensar a sua ação à margem dos média, que acabariam por absorver grande parte da gestão da sua visibilidade. Na busca de apoio público - que estrutura a legitimidade da política democrática -, os atores políticos iniciaram um longo trajeto adaptativo aos timings, formatos, linguagem e conteúdos dos média.
A incorporação e rentabilização das lógicas mediáticas sempre foi fundamental para o exercício e conquista do poder. A força, o medo ou a legalidade não bastam, nem nunca bastaram, para garantir legitimidade política. Os políticos precisam de construir vínculos com a comunidade e de manter um determinado imaginário simbólico com a sua base de apoio. Neste processo, a comunicação desempenha um papel central.
Deste modo, os políticos têm-se adaptado aos desenvolvimentos tecnológicos introduzidos pela rádio (a partir da década de 1920), pela televisão (a partir da década de 1950), pela internet (a partir da década de 2000) e pelas redes sociais (a partir da década de 2010). Estas transformações exigiram-lhes uma contínua aprendizagem das lógicas da mediatização analógica e digital31 para que objetivos políticos tradicionais continuassem a ser assegurados: orientar a opinião pública em determinada direção, promover certos temas e granjear popularidade, bem como o contrário, i.e., vulnerabilizar oponentes e as suas propostas.
A internet foi pela primeira vez integrada em campanhas eleitorais em 1992, na eleição presidencial norte-americana32. Mais tarde, com o lançamento do YouTube (em 2005) e do Twitter (em 2006), e com a abertura do Facebook ao público (nesse mesmo ano), ela deixará de ser usada como um repositório, um lugar onde as candidaturas disponibilizavam material destinado a outros palcos eleitorais, para ser rentabilizada como um espaço de sociabilidade.
Assim, na eleição presidencial de 2008, o famoso grassroot movement de Barack Obama articulou já comunidades online e offline, alcançando uma projeção digital bem superior à do seu opositor33. Obama chegou a novembro de 2008 com muito mais tráfego no seu sítio, visualizações no YouTube, «amigos» no Facebook e colaboradores online do que John McCain. O envolvimento de voluntários na produção e na disseminação de conteúdos permitiu ao candidato democrata colocar em circulação um volume inédito de mensagens e criar a perceção de uma campanha mais genuína, convincente e confiável do que as outras.
Mais recentemente, nas eleições presidenciais norte-americanas de 2016, as redes sociais passaram a assumir uma centralidade inédita na comunicação política. Ao contrário do que os manuais de boas práticas indicavam, os tweets pouco convencionais de Donald Trump acabaram por o beneficiar: garantiram-lhe publicidade online, engagement digital e amplificação mediática. Esta estratégia permitiu-lhe assegurar um objetivo tradicional de campanha34: conduzir a agenda dos média e, consequentemente, a da sua oponente, ou seja, desviar a atenção dada a Hillary Clinton para si próprio.
A par de conteúdos políticos, Trump utilizou as redes para fazer referências à cultura pop, comentar boatos sobre celebridades e falar do seu quotidiano. Ao usar as plataformas sociais da mesma forma que o americano médio, aproximou-se do cidadão comum e do gosto popular. Estas mensagens pouco elaboradas foram interpretadas como sinónimo de autenticidade, contrastando com o discurso politicamente correto da candidata democrata, considerado cerebral e calculista.
As redes sociais ganharam ainda outro tipo de relevância política no mundo atual, cada vez mais interconectado, em que as experiências digitais e físicas estão crescentemente integradas. Os dados e metadados recolhidos do Google, da Amazon, do Facebook e do Twitter, mas também dos telemóveis, computadores e cartões de crédito, por exemplo, passaram a ser entendidos como sintomas dos comportamentos e humores reais das pessoas35. Muitos aspetos da vida social, até então desconhecidos e inalcançáveis, começaram a ser acessíveis por terceiros. Amizades, interesses, conversas triviais, busca de informação e respostas emocionais de agrado/desagrado passaram a ser cientificamente quantificados e a ter valor político. A sociabilidade digital acabou assim por gerar uma indústria baseada em metadados - relatórios automatizados de quem comunica com quem, sobre o quê, a partir de que local e durante quanto tempo.
Usados ainda de modo esporádico na campanha presidencial americana de 2008, os big data tornaram-se, logo em 2012, centrais para entender o comportamento dos eleitores. Ao longo dos dezoito meses que antecederam o ato eleitoral, a equipa de Barack Obama desenvolveu modelos preditivos para construir mensagens adequadas às expetativas e aos interesses de eleitores segmentados, definir táticas e calibrar estratégias.
Em 2018, o escândalo da Cambridge Analytica - o uso, sem consentimento, de milhões de dados recolhidos nas redes sociais para manipular as emoções dos eleitores a favor de Donald Trump nas eleições de 2016 - fez ressurgir o debate sobre as bases de dados eleitorais. Não se trata de uma questão nova: já em 2000 se discutiam os métodos de obtenção de dados sem o consentimento dos eleitores e o seu direito à privacidade. As bases de dados políticas construídas a partir de bases comerciais foram exponencialmente enriquecidas com os metadados coligidos nas plataformas digitais. Interesses, associações e afiliações passaram a permitir construir métricas baseadas em emoções (desejos e medos) e em estilos de vida.
No entanto, o ambiente digital contemporâneo - que se caracteriza por um intenso fluxo comunicativo, múltiplas plataformas e canais interligados em rede - não é controlado pelos políticos, requerendo um ajuste contínuo à perceção dos eleitores e às movimentações dos outros players do jogo político: partidos, jornalistas, comentadores, grupos organizados que se movem nas mais variadas plataformas e grandes empresas tecnológicas, como o Google, Facebook e Twitter. A monitorização em tempo real permite a adaptação constante - no que pode ser entendido como o passo seguinte ao que se convencionou chamar «governar pelas sondagens de opinião».
Além de serem usadas pelos políticos como um instrumento de monitorização, conexão e sociabilidade sem o filtro do jornalismo, as redes sociais são também utilizadas para influenciar os média noticiosos: partidos, governos e candidatos mantêm o interesse nos mediadores tradicionais e continuam a pensar a sua ação também em função dos produtores profissionais de informação.
No entanto, se os políticos controlam o que dizem nas redes, a sua comunicação é condicionada pela arquitetura das plataformas. A arquitetura digital estrutura possibilidades, práticas e perceções. As plataformas potenciam declarações emocionais, controversas e inesperadas que, por sua vez, alimentam estratégias informativas vulneráveis ao clickbait. Muitos políticos aprenderam que, para conseguirem maximizar a visibilidade (nas redes e nos média) e a partilha (quer seja por concordância ou discordância) das suas mensagens, tinham de investir em declarações cada vez mais curtas e simplistas e numa atitude agressiva ou provocadora. Isto significa que os filtros algorítmicos definem as regras de produção, difusão e receção das mensagens. As lógicas operativas do mundo digital traduzem novos modelos de (re)intermediação que organizam a estrutura comunicativa em rede e, por isso, os algoritmos devem ser vistos como gatekeepers. As plataformas têm agência, ou seja, são produtoras de realidade e não apenas intermediárias: moldam conteúdos, determinam a circulação discursiva online e influenciam os fluxos comunicativos nos média.
Na era das redes, encontramos políticos mais bem-sucedidos do que outros na capacidade de tornar as suas declarações relevantes - partilhadas e comentadas - para as plataformas digitais e para os jornalistas. Eles sabem que declarações extremadas são geralmente sobrerrepresentadas nos feeds das redes e têm maior probabilidade de fazerem notícia - o que ajuda a explicar o destaque dado aos tweets de Donald Trump: as características das suas mensagens, bombásticas, desafiadoras e polémicas, convocam a atenção político-mediática, porque congregam vários valores-notícia. Aliás, esta estratégia para dominar as notícias não decorre apenas da sua capacidade de falar para as redes sociais. Num livro publicado em 1987, The Art of the Deal, Trump 36 já demonstrava perceber essa economia da atenção, que as redes não criaram, mas amplificaram: «Uma coisa que eu aprendi sobre a imprensa é que eles estão sempre com fome de uma boa história. E quanto mais sensacional melhor... Se você for um pouco diferente, provocatório ou controverso, a imprensa vai escrever sobre si».
O zeitgeist populista da contemporaneidade produziu, assim, líderes políticos como Donald Trump e Jair Bolsonaro. Ambos podem ser vistos como uma consequência e um sintoma da perturbação social e tecnológica vivida nas sociedades contemporâneas.
Estes líderes adotaram estratégias de comunicação que desafiam interditos da democracia: criticam e ameaçam abertamente o jornalismo, acusam os profissionais da informação de serem o inimigo do povo e os grandes produtores de desinformação, e adotam estratégias de bullying contra os meios que os questionam.
Para além do discurso abusivo e hostil para com os média que não estão alinhados com eles, os governantes populistas e autoritários democraticamente eleitos recorrem a estratagemas económicos (e.g., ordenação de investigações das autoridades tributárias) e legais (e.g., ameaça de cassação de licenças ou instauração de processos judiciais) para os intimidar. Esta estratégia, ao mesmo tempo que promove a desconfiança em relação ao jornalismo independente, visa castigar os meios que eles não conseguem domesticar. Por outro lado, para além de darem informação privilegiada e entrevistas exclusivas aos meios alinhados com a sua política, também os apoiam economicamente (por exemplo, com publicidade estatal e subsídios) e em termos legais (fazendo aprovar regulação favorável).
Ainda que de modo menos intensivo e extensivo, Boris Johnson, ao ser eleito primeiro-ministro da Inglaterra (início de 2020), tomou medidas que têm feito aumentar a tensão entre o Governo e os média. A escalada deve-se a mudanças nos procedimentos estabelecidos entre ambas instituições. Vejamos alguns exemplos.
Com o intuito de limitar o acesso aos briefings diários do Governo, estes mudaram do parlamento para Downing Street. No entanto, os jornalistas admitidos boicotaram as conferências de imprensa e os editores dos média nacionais protestaram contra esta decisão unilateral.
Ainda que, tradicionalmente, a primeira entrevista do primeiro-ministro fosse concedida a um programa informativo, Johnson optou por um programa da manhã da televisão britânica. Privilegiou uma abordagem amigável e suave, menos profunda e questionadora.
Por ocasião do discurso oficial da saída do Reino Unido da União Europeia, o acesso dos jornalistas foi condicionado: apenas um profissional por meio pôde entrar no recinto, o que limitou os ângulos de abordagem deste momento histórico. Por outro lado, o discurso não foi filmado diretamente pelos canais de televisão, mas pelo staff do gabinete de comunicação do primeiro-ministro. Aliás, este gabinete, dirigido por Dominic Cummings (o especialista em comunicação que liderou a campanha do leave no referendo), tem contratado vários profissionais de produção, fotógrafos, operadores de câmara.
O gabinete instituiu também uma nova modalidade de conferências de imprensa em que o primeiro-ministro responde a questões selecionadas de entre as que previamente foram enviadas pelos média. Aos vários membros do Governo foi dada a indicação de não promoverem encontros informais com jornalistas, ao mesmo tempo que a sua presença nos meios de comunicação foi reduzida. (Tal como Jair Bolsonaro, Boris Johnson não participou em alguns debates e não concedeu certas entrevistas durante a campanha eleitoral, e essas recusas inéditas não comprometeram os seus resultados eleitorais.)
Estas medidas indicam uma tendência crescente para a centralização comunicativa. Pretendem reduzir o contraditório e limitar a liberdade de ação dos jornalistas, aumentar o controlo sobre a narrativa política e a imagem dos governantes, orientar a opinião pública em determinada direção e desviar a atenção de assuntos sensíveis para a governação.
O impulso de restringir o fluxo comunicativo é acompanhado por um movimento de sentido oposto: pretende-se rentabilizar a torrente e a aceleração informativa promovida pelo contexto digital. Assente no pressuposto de que o excesso de informação deve ser combatido com ainda mais informação, a propaganda computacional explora as características das plataformas digitais e usa bots para inundar o ecossistema mediático. A disseminação de múltiplas histórias contraditórias (umas verdadeiras e outras falsas) diminui a importância de cada uma delas, dificulta a distinção entre verdade e mentira e aumenta a confusão entre factos e opinião.
O ecossistema digital também potencia novas estratégias de desinformação, nomeadamente através de bots (contas automatizadas, sem envolvimento humano), programados para postarem mensagens e interagirem com usuários nas redes sociais. Esta estratégia de espalhar informação falsa visa inflacionar a visibilidade de determinados atores e assuntos, controlar as narrativas nos média e nas redes sociais, manipular a opinião pública, potenciar sentimentos de incerteza e minar os alicerces das democracias liberais.
Reflexões finais
Nas sociedades contemporâneas, a liberdade dos média é cada vez mais ameaçada pela polarização do cenário político, estabelecimento de partidos populistas e da sua capacidade em influenciar as agendas dominantes. Na última década, os média têm enfrentado uma espiral descendente em conjunto com as democracias liberais: as democracias em geral estão a viver um declínio nos direitos políticos, na liberdade de imprensa e nas liberdades civis, mesmo em países onde o regime democrático existe há décadas. Por outro lado, a polarização social abriu caminho para novos projetos de média que operam sob a lógica do particularismo e que não atuam como uma esfera onde diversas visões ideológicas, políticas e culturais são representadas. Estes fatores, em conjunto, estão a contribuir para a reconfiguração do ethos dos média, ou seja, a comprometer as suas preocupações associadas ao interesse público.
Este contexto foi o ponto de partida para este ensaio sobre a relação entre os média e a política, cujo objetivo visava refletir sobre o modo como a institucionalização de uma nova lógica cultural neoliberal reconfiguradora do projeto democrático dos média, ainda que não intencionalmente, beneficia projetos e performances populistas.
Quer seja por razões ideológicas, comerciais ou culturais, os média e a retórica populista apresentam uma crescente convergência de objetivos. Os políticos precisam da atenção dos média e estes precisam de atores políticos dispostos a cumprir o compromisso das notícias com a vitalidade emotiva. Esta convergência de necessidades ajuda a entender porque é que os principais meios de comunicação desempenham um papel importante na amplificação e multiplicação das mensagens populistas. Isto também ajuda a explicar por que políticos e partidos mainstream fazem um uso estratégico de mensagens populistas.
No contexto comunicacional descentralizado, polifónico e imprevisível contemporâneo, a vulnerabilidade política é crescente, tal como o investimento político em estratégias de comunicação para lidar com um ecossistema cada vez mais complexo. Deste modo, a comunicação política orientada para e pelas redes sociais tem potenciado uma cultura beligerante que desvaloriza a construção de consensos e despreza as regras da civilidade. As trincheiras políticas promovem um rastilho mediático e garantem visibilidade sem precedentes na era digital. Este contexto ajuda a perceber porque é que a comunicação populista se está a tornar endémica à própria política: já não é possível falar em opostos (quem é e quem não é populista), mas em graus (quem é mais e menos, quem é sempre e quem é de quando em vez).
Se os políticos populistas precisam da atenção dos média, estes precisam de atores políticos que lhes permitam articular noticiabilidade e viralidade. Tal como referimos, seja por motivos ideológicos, comerciais ou para conseguirem voltar a religar com os seus leitores/espectadores, que estão cada vez mais descontentes com as instituições democráticas, a abordagem dos média foi-se distanciando de enfoques mais racionais e centrados nas elites para apostar em conteúdos sobretudo desafiadores dessas elites, emocionais e leves. Isto significa que o ecossistema mediático atual beneficia os políticos populistas e pressiona os atores mainstream a adotarem estratégias de comunicação populistas.
Em síntese, este processo de reconfiguração político-mediática promove uma nova cultura pública de orientação populista e desconfiada das instituições tradicionais democráticas. Integrados num ecossistema de pós-verdade e onde o volume e a velocidade da informação atingiu uma aceleração pouco compatível com a qualidade e ponderação informativa, os vários fatores debatidos neste ensaio ajudam a compreender porque é que o populismo se está a instituir como um novo master frame da comunicação política e, simultaneamente, como um instrumento dos média e das plataformas digitais.