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Relações Internacionais (R:I)

versão impressa ISSN 1645-9199

Relações Internacionais  no.68 Lisboa dez. 2020  Epub 31-Dez-2020

https://doi.org/10.23906/ri2020.68a02 

As presidências portuguesas do conselho da União Europeia

A quarta Presidência Portuguesa da UE

The fourth Portuguese Presidency of the Council of the European Union

João Ferreira do Amaral1 

1ISEG. Rua do Quelhas 6, 1200-781 Lisboa. Portugal. joaomfamaral@hotmail.com


Resumo

Neste artigo equacionam-se algumas das questões que a Presidência portuguesa da União Europeia irá enfrentar e analisa-se, à luz das presidências portuguesas passadas, o dilema entre promoção de interesses nacionais e pressão centralizadora e uniformizadora das políticas europeias por parte da Comissão Europeia.

Palavras-chave: Presidência 2021; União Europeia; integração; federal

Abstract

This paper discusses some of the issues on the agenda of the Portuguese presidency of the European Union and based on the experience of former Portuguese presidencies debates the dilemma of promoting national interests against the permanent pressure for centralization and implementation of uniform policies by the European Commission.

Keywords: 2021 Presidency; European Union; integration; federal

Enquadramento: a pandemia

O próximo exercício da Presidência do Conselho da União Europeia por parte de Portugal vai ser necessariamente enquadrado pelo que consta do documento1 preparado pelo trio de países que exercerão sucessivamente a Presidência (Alemanha, de 1 de julho a 31 de dezembro de 2020; Portugal, de 1 de janeiro a 30 de junho de 2021; e Eslovénia, de 1 de julho a 31 de dezembro de 2021). No entanto, as grandes incertezas relativas à evolução da pandemia da covid-19 poderão pôr em causa de forma mais ou menos nítida as intenções do documento.

Em todo o caso, este foi preparado já durante o curso da pandemia e essa circunstância implica que o próprio documento, tal como o programa da Presidência alemã2, insira como uma das prioridades a reação aos efeitos económicos da pandemia.

Embora se saiba hoje mais sobre os aspetos epidemiológicos da doença, persistem muitas incertezas sobre a sua evolução futura.

Ainda assim, é possível, mesmo nestas condições muito incertas, fazer uma apreciação geral do documento. A ideia que se fica é que, sem as dificuldades que a pandemia trouxe, não haveria novidades especiais relativamente às questões económicas. Já o mesmo não se poderá dizer relativamente aos aspetos sociais. Por isso, na análise seguinte iremos separar (na medida em que é possível fazê-lo) as questões económicas das questões sociais, para tentar determinar o alcance e a importância das questões que se irão pôr ao Conselho no período da Presidência portuguesa.

As questões económicas escolhas a evitar

Como referimos, embora a verdadeira novidade nesta matéria tenha a ver com a pandemia, abordaremos em primeiro lugar os temas económicos que não são diretamente consequências da covid-19.

Nestas questões não há, como se disse, novidade de maior: do aprofundamento do mercado interno, ao completar da União Bancária, das questões de concorrência e ajudas de Estado, à chamada revolução digital, da economia circular à neutralidade carbónica (agora prevista para 2050), que são mencionadas no documento do trio, todas elas, de uma forma ou outra, fazem já parte da nova agenda estratégica da União para 2019-20243, e, como não poderia deixar de ser, o documento do trio retoma essa agenda na medida do possível.

A capacidade de atuação de um país de menor peso na União, como é o caso de Portugal, quando exerce a Presidência, ainda mais seguindo-se à Presidência alemã, é obviamente limitada. Recorde-se, a esse propósito, que Alemanha, Portugal e Eslovénia (por esta ordem de sucessão de presidências) formaram o primeiro trio de presidências da história da União Europeia (UE) já em 2007-2008 (a Presidência portuguesa nesse período decorreu de 1 de julho a 31 de dezembro de 2007).

Mas nem por existirem estas limitações, deixa de ser verdade que as autoridades portuguesas devam tentar tudo o que esteja ao seu alcance para impedir decisões que vão contra os nossos interesses. Lembremos a tristíssima subordinação ao roteiro alemão de 2007 quando, como se referiu, Portugal exerceu a Presidência que levou à aprovação do Tratado de Lisboa - visivelmente, como depois tem sido reconhecido, um tratado que em nada favorece os nossos interesses4, antes favorece os alemães - para nos alertar contra os «tiros no pé» que podem ocorrer durante estas presidências e para o grande risco que, sucedendo à Presidência alemã, estejamos, afinal, a prosseguir interesses que não são os nossos.

Ainda relacionada com o decorrer das presidências em 2007, a humilhação portuguesa foi completa quando o Governo português de então, por pressão alemã, se viu obrigado a anular o referendo para aprovação do Tratado de Lisboa, com cuja realização se tinha comprometido firmemente pouco tempo antes.

Os governos dos Estados-Membros (incluindo Portugal, mas excluindo a Irlanda) que decidiram pôr à margem os seus cidadãos da decisão sobre um tratado que implicou perdas de soberania para os respetivos Estados, procederam de forma, para muitos, inaceitável. E é até possível dizer que foi então que verdadeiramente começou o caminho para o Brexit.

Outro risco importante é o de adotarmos prioritariamente, como fio condutor das nossas negociações, a prossecução de objetivos que podem ser mediaticamente importantes a curto prazo, mas que, na realidade, e a mais longo prazo, não justificam que devido a esses objetivos sejam preteridos outros mais importantes.

Assim, no passado, foi prioritário para Portugal nas suas relações com a CEE/EU a maximização da obtenção, no curto prazo, de fundos estruturais europeus. Esta prioridade ofuscou muitas vezes objetivos que seriam mais importantes a longo prazo, nomeadamente os que se traduzissem em regras - em particular nas políticas de concorrência e das ajudas de Estado - favoráveis ao crescimento mais rápido das economias menos prósperas da União, ou seja, favoráveis à chamada convergência real das economias. Esta distorção de visão tornou-se muito clara quando ficou sempre para segundo plano a instituição de um sistema de apoio efetivo e incondicional às economias, em particular as mais débeis, em situação de crise geral - o que abriu caminho aos famigerados e totalmente desajustados programas da Troika na crise que começou em 2008.

Tudo ficou em segundo plano na vertigem de obter mais fundos estruturais. Uma negociação que permita trazer mais milhões de euros é, obviamente, para qualquer governo uma vitória para a sua popularidade - principalmente se a propaganda mediática for competentemente organizada - mas para o país poderá ser uma vitória de Pirro.

Estes são, pois, alguns escolhos a evitar pela Presidência portuguesa, mesmo não esquecendo as dificuldades financeiras que a pandemia provocou e que são um incentivo - neste caso mais compreensível - para tentar maximizar os financiamentos sobre quaisquer outros objetivos.

Na atualidade, o risco pode também vir não das questões relacionadas com a realização do mercado interno, mas das questões relacionadas com a concorrência e ajudas de Estado.

A evolução das últimas décadas tem demonstrado que a forma como se tem orientado esta política na União beneficia os países de maior peso na União e prejudica as condições de convergência real das economias mais débeis.

Inicialmente, no âmbito da CEE, a política de concorrência e de ajudas de Estado atuava principalmente no sentido de garantir a igualdade dos agentes económicos independentemente dos Estados da União em que estavam sediados.

Mas muito influenciada pelas ideias neoliberais, como aliás todas as instituições comunitárias a partir do infeliz Tratado de Maastricht (1992), a política, até hoje, tem também como orientação da atuação - sem que os tratados o imponham - a redução da intervenção dos Estados nas respetivas economias, tudo fazendo para impedir essa intervenção e, na prática, obrigando a privatizações, especialmente gravosas em setores estratégicos.

Ora uma economia de pequena dimensão, periférica e de menor nível de desenvolvimento em relação ao espaço em que economicamente se insere, necessita, em geral, de maior orientação estatal para poder crescer a um ritmo mais rápido do que as economias mais prósperas e atingir por essa forma níveis de vida mais próximos dos da média dos países que compõem o espaço económico em causa.

Há diversas razões para isso: uma economia nesta situação tem um capital humano menos desenvolvido, incluindo no que se refere ao empreendedorismo e, portanto, necessita de uma ajuda estatal para desenvolver setores de atividade que a sua pequena dimensão económica e a sua situação de periferia não deixariam desenvolver.

O argumento chamado de indústrias nascentes que justifica adequadamente, mesmo em economia de mercado, uma ajuda estatal ao menos inicial para desenvolver setores que de outra forma o país não conseguiria desenvolver é mais um caso típico desta situação.

Por isso, será verdadeiramente negativo para a nossa economia que, a pretexto do aprofundamento do mercado interno, a política de concorrência e de ajudas de Estado venha a reforçar a sua ação de oposição ao papel do Estado na economia com o pretexto fictício de proteger a eficiência da economia europeia (não se prova que necessariamente uma economia mais intervencionista seja sempre menos eficiente que uma economia mais liberal), mas com intenção real de proteger o «centro económico» da União.

Como se referiu acima, constitui uma tentação para os governos dos países menos prósperos, a troco de mais fundos, aceitarem regras adicionais do mercado interno que poderão pôr em causa o crescimento e o emprego das suas economias.

É possível que os efeitos da covid-19 e a necessidade de maior intervenção estatal na economia que em consequência surgiu e se efetivou possam vir, neste domínio, a fazer mudar o enquadramento geral no bom sentido, relativamente à intervenção estatal na economia. Mas nada está garantido e pelo contrário a pressão alemã e de outros países vai certamente em sentido contrário. Claro que a margem da Presidência portuguesa será muito estreita neste domínio, mas nem por isso se devem desperdiçar as oportunidades, ainda que reduzidas, que eventualmente surjam de evitar que esta pressão prejudique mais o funcionamento da nossa economia.

As relações com África e o Reino Unido

Um outro aspeto que poderá ter um impacte, neste caso positivo, sobre certos setores produtivos nacionais (embora não seja estritamente do domínio económico), é o da cooperação entre a Europa e África que o trio quer desenvolver.

É certamente uma oportunidade para a Presidência portuguesa não só em relação à economia como em todos os domínios da ação política. É um dos aspetos em que as intenções do documento do trio coincidem em grande parte com os interesses nacionais portugueses e que, portanto, faz sentido que sejam considerados prioritários do nosso ponto de vista.

Também as relações com o Reino Unido no seguimento do Brexit poderão ser da maior importância.

Portugal exercerá a Presidência a partir justamente do final do período transitório do Brexit.

E quer se consiga até ao final de 2020 obter um acordo de comércio livre (e outras questões económicas) quer não, a Presidência portuguesa no período em que surge terá um papel importante na estabilização das relações económicas e políticas da UE com o Reino Unido.

Do nosso ponto de vista, não devem ser apenas as relações Reino Unido-UE que nos devem interessar. As relações bilaterais Portugal-Reino Unido são da maior importância em geral e de forma particular no domínio económico. Como país atlântico que é, Portugal tem o maior interesse em reforçar essas relações bilaterais tendo em vista a extensão da plataforma continental, os nossos interesses no Atlântico Sul, o turismo, a emigração de portugueses para o Reino Unido e a cooperação em termos de ciência e de defesa. Em particular um incremento nas relações entre os meios universitários portugueses e britânicos tem enormes potencialidades de beneficiar o nosso país.

Todos estes aspetos, não derivados diretamente da pandemia, permitem já avaliar a importância dos temas que estarão em cima da mesa.

Mas evidentemente as consequências da covid-19 condicionam fortemente as circunstâncias em que irá decorrer a Presidência. É a altura de abordarmos essas condicionantes.

O impacte da covid-19

Depois de muitas hesitações e negociações complexas pode dizer-se que a resposta da União (não considerando a política de compra de ativos que o Banco Central Europeu tem prolongado com efeitos muito positivos e que tem evitado para já uma crise financeira grave) pode analisar-se segundo duas vertentes:

• A primeira foi a suspensão das apertadas regras comunitárias relativas ao equilíbrio das finanças públicas, o que evidentemente tem toda a justificação face ao aumento da despesa pública em saúde e principalmente à diminuição de receitas e aumento de outras despesas devidas à recessão provocada pelo confinamento, bem como o adicional e forte aumento da despesa pública de apoio à sustentação do emprego das empresas.

• A segunda, que foi a que deu mais polémica, foi a criação de um novo instrumento, ou seja, um programa especial de recuperação, o NextGenerationEU, no montante de 750 mil milhões de euros, a acrescentar ao quadro financeiro plurianual com o fim de permitir que os países disponham de meios financeiros destinados a apoios e a investimento na atividade económica, incluindo investimento público.

Embora o programa inclua uma cláusula de condicionalidade, ou seja, terá de ser submetido à aprovação da Comissão, parece ser relativamente muitos menos penalizante esta condicionalidade que a dos programas da Troika - de má memória e piores resultados.

A crise provocada pela pandemia é uma crise pouco comum em tempos modernos. Trata-se de uma crise de redução da produção, não devida - pelo menos no início - a uma queda de procura de bens e serviços mas decorrente de dificuldades na produção. Estas por sua vez não resultam de uma quebra repentina e profunda do capital físico, ou seja, dos equipamentos destinados à produção, como sucede numa situação de guerra com incidência no território ou numa catástrofe natural como seja um terramoto de grandes proporções. Não são também devidas a desfavoráveis condições climáticas, como foram as grandes crises, originadas na agricultura, das economias pré-industriais.

No caso da atual pandemia as dificuldades na produção resultaram da dificuldade de os trabalhadores permanecerem no local de trabalho e do confinamento dos consumidores devido à necessidade de combater a expansão da doença.

A persistência desta situação difícil na produção complica-se inevitavelmente, passado algum tempo, com uma crise, agora sim de falta de procura de bens e serviços, porque os consumidores reduzem o seu consumo, devido à perda de rendimentos seja pelo aumento do desemprego, seja pela redução dos rendimentos daqueles - relativamente em melhor situação que os desempregados - que estão em regime de lay-off, seja ainda devido à redução drástica do número de turistas estrangeiros e, em geral, à perda de confiança no futuro.

No segundo semestre de 2020 há sinais de que a crise, embora tenham sido registadas melhoras parciais nas condições de produção, já se começou a complicar com uma quebra de procura.

Por isso, o cenário mais provável para o primeiro semestre do próximo ano será o de uma recuperação ainda modesta e titubeante das economias europeias, complicada no entretanto por uma fraca recuperação da procura de bens e acompanhada por um desequilíbrio das finanças públicas, em grande parte herdado de 2020.

Tendo a crise sido complicada por dificuldades da procura na generalidade dos Estados-Membros, estes, se quiserem acelerar a recuperação das respetivas economias, terão no próximo ano de incentivar a procura de bens e serviços, o que só poderá ser realizado com a manutenção de uma política orçamental expansionista. O mesmo é dizer que será de toda a importância evitar que sejam bem-sucedidas as pressões que possam surgir para se voltar prematuramente, ou seja já no próximo ano, ao cumprimento estrito das normas europeias no domínio das finanças públicas, nomeadamente em relação aos défices excessivos.

Com a pouca margem de manobra que neste domínio terá, a Presidência portuguesa deverá aproveitar todas as oportunidades que surjam para ajudar a impedir tal retrocesso.

Um outro domínio de grande importância, que em parte está relacionado com o anterior, é o da gestão do programa de recuperação.

O período da Presidência portuguesa coincidirá com o período em que se realizarão as primeiras utilizações desse programa e também com o início do quadro financeiro plurianual de 2021 a 2027.

Será assim de esperar da Presidência portuguesa - dadas as dificuldades que a nossa economia, desde a realização da moeda única, tem mostrado em convergir com os restantes países europeus em termos de crescimento económico e dados os desequilíbrios que apresenta, sejam eles provocados pela covid-19 ou correspondentes a desequilíbrios estruturais de muitos anos e que a pandemia veio pôr a nu - que as autoridades portuguesas se esforcem não para obter mais dinheiro, uma vez que ele é amplamente suficiente, mas para obter uma maior agilização da disponibilização de ambos os quadros financeiros.

A coincidência de objetivos europeus com objetivos nacionais como sejam os relacionados com a descarbonização da economia ou com a preparação para a chamada «revolução digital» deve ser claramente assumida e pode facilitar a atuação da Presidência neste domínio. Mas para isso é necessário que sejam nitidamente definidos a nível interno português os circuitos administrativos que permitirão uma boa utilização tanto dos novos fundos como dos mais tradicionais. Infelizmente, no passado esses circuitos têm sido deficientemente concebidos e realizados, pecando em geral por uma excessiva burocratização.

As questões sociais

Vejamos agora de forma bem mais sucinta as questões sociais.

A principal novidade é a intenção de realizar uma conferência social europeia em maio do próximo ano.

Não sabemos se a evolução da pandemia permitirá que a conferência se realize de forma presencial. Se esse for o caso então está dentro do período da Presidência portuguesa.

Pessoalmente não sou entusiasta da realização de uma tal conferência. Para justificar este ceticismo, teremos de fazer um breve excurso.

Sou dos que acreditam que a cooperação entre os Estados europeus em diversos domínios é importante, necessária e benéfica. Mas também sou dos que se opõem à criação de um Superestado europeu, mais ou menos federal para que as instituições comunitárias e em particular a maioria do Parlamento Europeu e a Comissão pretendem arrastar os cidadãos dos Estados europeus, esquecendo que com este arrastamento poderão criar condições para novos períodos de violência na Europa.

O pretexto do reforço do centralismo num espaço à partida diversificado não é novo e tem muitos antecedentes na História, na sua maioria constituindo experiências falhadas ou muito penosas como foi o caso americano, com uma guerra civil das mais sangrentas de sempre em proporção da população envolvida. Argumenta-se com a necessidade de retirar competências aos Estados e transferi-las para órgãos comunitários sejam supranacionais sejam intergovernamentais, em virtude da suposta existência de grandes ameaças mundiais que obrigam a reduzir em muito a soberania dos Estados. No caso da UE o pretexto é completamente falso uma vez que não há razão para supor que as ameaças obriguem a uma eliminação dos Estados soberanos europeus mas antes exigem, isso sim, um reforço da cooperação dos Estados.

Alguns dizem que sem criar um Superestado europeu não haverá civilização europeia. É justamente o contrário que é verdadeiro. A civilização europeia só prosperará se a Europa se mantiver como um espaço de cooperação de Estados soberanos5 ou, para aqueles que têm medo da palavra «soberania», verdadeiramente autónomos.

Se queremos uma Europa próspera e culturalmente avançada é essencial que os Estados se mantenham autónomos e os supostos interesses europeus (que na maior parte dos casos são apenas de Estados com mais poderes ou interesses das diversas burocracias europeias prevaleçam sobre os interesses nacionais) sejam prosseguidos por acordos entre Estados soberanos e não pela eliminação destes.

Há certamente exceções a este princípio, quando o prosseguimento de um interesse de um Estado-Membro prejudica ilegitimamente os interesses dos restantes. Ou seja, quando se tem de defender interesses comuns coletivos6. Neste caso, mas só neste, faz sentido que as regras europeias prevaleçam. Exemplos são a liberdade de comércio ou a questão do aquecimento global. Mas os casos são limitados e não justificam de forma alguma a criação de um Superestado europeu que, como forma declarada de centralismo político, iria muito além do necessário.

Para que os Estados europeus mantenham a sua autonomia é necessário que disponham de instrumentos mínimos para a sua ação política e também de margem de manobra suficiente para que se expressem e possam atuar diversas opções ideológicas, nomeadamente entre o liberalismo/conservadorismo e o socialismo/progressismo.

A intenção da Comissão, principalmente da atual - muito mais centralista que as anteriores - é de continuar com o avanço do centralismo europeu no sentido de retirar cada vez mais a possibilidade de os Estados-Membros terem opções ideológicas contrastadas. Já aconteceu assim, há algumas décadas, conforme referimos, com a opção perfeitamente válida e admissível entre mais ou menos intervenção do Estado na economia. A Comissão Europeia, através da política de ajudas de Estado e com a cobertura do Tribunal de Justiça, ele próprio ideologicamente muito infetado pela ideologia neoliberal e sem que os tratados o impusessem, tem-se encarregado de reduzir a quase nada a possibilidade de, neste domínio, as opções nacionais terem relevância. Ou seja, a Comissão já escolheu pelos cidadãos dos Estados.

Pretende agora a atual Comissão enveredar pelo centralismo no domínio social. Não sabemos qual irá ser o âmbito da tal conferência cuja realização a Comissão tem pressionado. Mas temos um exemplo de um tema que é o do salário mínimo.

Desde o momento em que tomou posse, esta Comissão tem anunciado que quer que haja intervenção europeia no domínio da fixação das regras para um salário mínimo - isto apesar de expressamente o Tratado de Lisboa impedir a intervenção comunitária neste domínio (artigo 153.º do Tratado sobre o Funcionamento da UE). O que pretende a Comissão? Retirar mais uma decisão política extremamente importante aos Estados-Membros, decisão onde se refletem claramente as opções ideológicas que saudavelmente devem ser possíveis a nível nacional. A Comissão, como burocracia que é, tenta avançar e arrastar os Estados no caminho do centralismo tecnocrático cujos riscos para a paz na Europa e para a civilização europeia são imensos como acima referi. Penso que caberá à Presidência portuguesa conter os ímpetos centralistas da Comissão na anunciada conferência e não admitir que sejam postos em causa os tratados pelos avanços da Comissão.

Não que este domínio das competências de uns e outros deva ser tabu. Pelo contrário, deve ser discutido amplamente a nível de todos os Estados-Membros e não pode ser algo que se decide nos gabinetes de uma burocracia ou numa comissão do Parlamento Europeu, eleito por uma minoria de cidadãos dos Estados europeus.

Porém, a experiência da integração europeia desde os anos 1990 demonstra que o princípio da subsidiariedade, no âmbito dos domínios que não da competência exclusiva da União, não é eficaz para evitar o excessivo e crescente centralismo na atribuição de mais competências à União. Não é eficaz não só porque ele próprio é defeituoso7 - principalmente quando combinado com um processo de decisão por maioria qualificada em vez da unanimidade -, como tem sido frequentemente ultrapassado na prática.

O exemplo mais evidente, com graves consequências negativas, que se vão manter ainda por muitos anos, sobre o equilíbrio da União é o da moeda única.

Os economistas sabiam que o espaço europeu não constituía em 1999 (e menos ainda o constitui na atualidade) uma área monetária ótima. Tal significa que a imposição de uma moeda única no espaço europeu seria ineficiente, pelo que seria preferível manterem-se as moedas nacionais e as políticas monetárias nacionais, embora reforçando as regras de cooperação monetária. Forçar uma moeda única nestas condições constituiu uma violação clara do princípio da subsidiariedade tal como ele é hoje definido no n.º 3 do artigo 5.º do Tratado da União Europeia.

A moeda única deve servir de exemplo da forma como a pressão centralista, ao mesmo tempo federalista e burocrática no sentido da criação de um Superestado europeu, ignora mesmo um princípio tão básico como o princípio da subsidiariedade.

Estava previsto que começasse em maio uma conferência importante sobre o futuro da Europa, começo que foi adiado devido à covid-19. Só quando essa conferência for possível - e se não forem convidados para ela apenas burocratas europeus ou ideólogos federalistas, ou seja, se o debate não for falseado - se poderá ter uma visão do que é aceitável e desejável em termos de repartição de poderes entre Estados-Membros e instituições europeias. Até lá, não é admissível pactuar com o centralismo da Comissão.

Avançar como a Comissão Europeia quer no reforço do centralismo europeu, tecnocrático, e fazendo tábua rasa das opções ideológicas possíveis é não só profundamente antidemocrático como cria, tal como foi referido acima, as condições para a emergência de novas formas de violência europeia.

Conclusão

As autoridades portuguesas terão de assegurar a Presidência num semestre em que se tomarão ou se prepararão decisões de grande importância no domínio económico. Espera-se, pois, das autoridades que, defendendo os interesses nacionais e a cooperação entre os Estados, mas não o centralismo, possam orientar as decisões comunitárias num sentido equilibrado. O que infelizmente não aconteceu sempre nas presidências anteriores, em particular no já referido Tratado de Lisboa. No domínio social, o caminho pode estar armadilhado e tal deve ser tido em conta, mesmo sabendo que é muito fácil à Comissão Europeia fazer demagogia mediática sobre esta matéria.

Bibliografia

AMARAL, João Ferreira do - Contra o Centralismo Europeu. Lisboa: Grifo, 2002. [ Links ]

AMARAL, João Ferreira do - «União Europeia: o pós-federalismo». In Boletim de Ciências Económicas. Vol. 49, 2006. [ Links ]

AMARAL, João Ferreira do - Em Defesa da Independência Nacional. Lisboa: Lua de Papel, 2014, p. 95. [ Links ]

CONSELHO DA UNIÃO EUROPEIA - Documento 8086/1/20 REV 1, 2020. [ Links ]

CONSELHO EUROPEU - Uma Nova Agenda Estratégica 2019-2024. Bruxelas: Conselho Europeu, 2019. [ Links ]

MINISTÉRIO DAS RELAÇÕES EXTERIORES DA ALEMANHA - Together for Europe’s Recovery. Berlim: Governo da Alemanha, 2020. [ Links ]

Notas

1 CONSELHO DA UNIÃO EUROPEIA- Documento 8086/1/20 REV 1, 2020.

2 MINISTÉRIO DAS RELAÇÕES EXTERIORES DA ALEMANHA-Together for Europe’s Recovery. Berlim: Governo da Alemanha, 2020.

3 CONSELHO EUROPEU-Uma Nova Agenda Estratégica 2019-2024. Bruxelas: Conselho Europeu, 2019.

4 AMARAL, João Ferreira do -Em Defesa da Independência Nacional. Lisboa: Lua de Papel, 2014, p. 95.

5Ibidem.

6 AMARAL, João Ferreira do -Contra o Centralismo Europeu. Lisboa: Grifo, 2002.

7 AMARAL, João Ferreira do - «União Europeia: o pós-federalismo». In Boletim de Ciências Económicas. Vol. 49, 2006.

Recebido: 08 de Setembro de 2020; Aceito: 15 de Outubro de 2020

João Ferreira do Amaral Professor catedrático aposentado do ISEG - Universidade de Lisboa.

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