A ascensão do movimento militante islamista no Norte de Moçambique, após um período de relativa negligência por parte dos think tanks dedicados ao estudo dos denominados grupos terroristas, passou a figurar nos mapas de África dedicados à expansão do islamismo militante em 2020. A título ilustrativo, na sequência dos primeiros atentados em Mocímboa da Praia a 5 de outubro de 2017, nos mapas com a presença dos «grupos militantes islamistas ativos em África», do Africa Center for Strategic Studies (ACSS), Moçambique só foi incorporado a partir de janeiro de 2019 com a sinalização de grupos sem filiação e não identificados. No mapa de janeiro de 2020 o acss já identificava os seguintes grupos: Soldados do Califado em Moçambique e Ahlu Sunnah Wa Jama’a (ASWJ)1 (conhecidos como «Al-Shabaab»)2. A negligência deste movimento não tem apenas uma manifestação internacional, já que em julho e agosto de 2016 ataques a postos (esquadras) de polícia no Norte de Moçambique foram retratados como tendo sido perpetrados pela RENAMO que negou a autoria dos mesmos3.
O presente artigo tem por período de análise de 5 de outubro de 2017 até 24 de março de 2021 e tem como pergunta de partida compreender em que medida a trajetória da insurgência em Cabo Delgado pode ser entendida enquanto manifestação da rutura de confiança entre o Estado pós--colonial e os residentes locais. Posto de outro modo, parte-se da premissa de que o Estado não ficou completo de uma vez por todas com a independência. Com efeito, o artigo defende que o processo de formação do mesmo está em curso e é sempre incompleto e reversível, havendo forças que concorrem para a sua consolidação e outras que concorrem para o seu enfraquecimento4.
Em termos de abordagem metodológica o artigo assenta na estratégia metodológica qualitativa e tem por base trabalho de campo preliminar realizado em Maputo em janeiro de 2018 ao longo de três semanas, com recurso a entrevistas semiestruturadas com um conjunto de atores diversificado sobre os ataques ocorridos a 5 de outubro de 2017 em Mocímboa da Praia na província de Cabo Delgado. Os atores entrevistados incluíram académicos da Universidade Eduardo Mondlane, do ISCTEM, da Universidade Pedagógica, da Universidade Lúrio (Unilúrio), do Instituto Superior de Administração Pública, representantes de instituições do Estado, representantes da sociedade civil incluindo de organizações não governamentais (ONG), de organizações internacionais e de embaixadas de doadores tradicionais da OCDE presentes em Maputo5.
Na análise dos conflitos armados em África qualquer explicação assente numa causa única é à partida parcial e incompleta. Na revisão da literatura secundária publicada, merecem particular destaque os relatórios científicos de investigações levadas a cabo por instituições moçambicanas incluindo universidades moçambicanas6, instituições de investigação7 e/ou ONG8. Esta secção é fundamental para uma aproximação às principais causas apontadas para compreender a origem e evolução do movimento militante islamista no Norte de Moçambique.
Este artigo tem por objetivo a compreensão do papel da religião no conflito na sua relação com o papel do Estado, tendo em conta as especificidades locais que definem o contexto a partir do qual emerge este tipo de movimentos. Para se entender a trajetória do movimento militante islamista em Moçambique temos de começar por analisar a relação entre o Estado e a sociedade9 na província de Cabo Delgado. No contexto deste objetivo cabe explicitar a segunda premissa sobre a qual assenta o artigo: a análise da constelação de situações políticas locais constitui a chave para compreender a emergência da insurgência radical de inspiração religiosa e não as ligações externas10.
Uma vez analisadas as causas consideramos as respostas por parte do Estado. A resposta por parte do Estado moçambicano, insuficientemente planeada, teve como saldo desde 2017 até à tomada de Palma em março de 2021, o falhanço total em proteger os cidadãos moçambicanos, a incapacidade de evitar uma escalada da violência e a expansão do ASWJ. Com efeito, devemos ter em consideração o poder das consequências inesperadas: neste caso, a intervenção por parte do Estado potenciou a capacidade de recrutamento do ASWJ e, com a escalada da violência e associação ao denominado Estado Islâmico, observamos um acréscimo de sofisticação das táticas empregues pelo ASWJ.
No final, encerramos com um conjunto de considerações acerca de uma intervenção internacional com base num conjunto de lições retiradas das respostas aos movimentos militantes islamistas no Sahel e no Corno de África. Passamos a analisar a relação entre a insurgência e a religião.
A insurgência e a religião
O artigo encontra-se ancorado num conjunto de premissas no que toca à relação entre a violência e a religião, que passamos a clarificar. Em primeiro lugar, a história do islão nas sociedades africanas é de uma grande riqueza e com maior complexidade do que nas sociedades ocidentais11. As suas manifestações caracterizam-se por uma grande heterogeneidade, identificando-se os muçulmanos, em Moçambique como em outras sociedades africanas, com uma grande variedade de interpretações12: desde o sunismo, ao sufismo e ao salafismo, até às interpretações mais recentes tal como veiculadas pela Al-Qaida e pelo denominado Estado Islâmico. O islão e o político em África convergem numa pluralidade de formas que tanto resultam na consolidação e complementaridade face ao Estado como na resistência ao Estado13 e contribuindo em última instância para o seu enfraquecimento e desintegração14. Com efeito, o recurso ao islão tanto pode servir como instrumento para subverter/desafiar a autoridade política como para a consolidar15, sendo que no caso de Moçambique encontramos instâncias das duas manifestações ao longo do processo de formação do Estado16.
Este conjunto de premissas contraria a tendência dominante nos círculos de tomada de decisão para estabelecer um nexo causal entre a religião e o comportamento violento17. Na sequência desta associação errónea as respostas concentram-se na identificação dos atores e locais suspeitos de concorrerem para a radicalização dos jovens: encerram-se madrassas e perseguem-se imãs rotulados de radicais. Na realidade, a radicalização ideológica não tem por consequência obrigatória a comportamental e concluiu-se na sequência de entrevistas a 800 antigos combatentes do Al-Shabaab (Somália) e do Boko Haram que os recrutados por este tipo de movimento são tendencialmente jovens com menor conhecimento do Corão e uma prática recente e não refletida18. Se permanece misterioso aferir o conteúdo das bolsas de estudo que foram oferecidas a jovens moçambicanos uma década antes do ataque de outubro de 2017 em Mocímboa da Praia, o regresso de jovens com ideias e práticas distintas causou tensão junto de outros praticantes do islão, nomeadamente a redução do número de orações de cinco para três, o entrar nas mesquitas calçados, o repudiar da educação oferecida pelo Estado por ir de encontro a valores das sociedades ocidentais e o advogar do fim do Estado e subordinação à sharia (lei islâmica). Morier-Genoud considera que o ASWJ teve origem numa seita. Mas do repúdio das práticas locais do islão até aos ataques e violência direcionados aos residentes locais e o recurso a modos cada vez mais cruéis de matar - tais como decapitações, massacres, alvejar crianças em frente dos progenitores, atirar as mesmas para caldeirões de água a ferver - vai uma distância abismal. Seria de esperar uma radicalização de grupos nas províncias que concentram maior número de cidadãos que se identificam enquanto muçulmanos, nomeadamente nas províncias de Niassa e de Nampula, esta última com 70% de muçulmanos em comparação com 58% em Cabo Delgado19. A religião por si só não justifica a atratividade do movimento e a sua capacidade de mobilização de jovens para as suas fileiras. Na realidade, o ASWJ oferece um modo de sobrevivência alternativo ao desemprego ou à criminalidade transnacional organizada, assim como uma causa com que se possam identificar20; a exemplo do que acontece noutros contextos, é importante averiguar como se percecionam os jovens que ingressam nas fileiras deste tipo de movimentos: potencialmente, percecionam-se como heróis, vítimas ou mártires21 e não como terroristas ou atores imputáveis por crimes de guerra.
O recurso ao rapto de jovens e de mulheres para efeitos de casamento forçado e/ou de escravatura sexual tem sido uma prática imitada de forma recorrente pelos vários movimentos militantes islamistas. É de esperar que no caso de Moçambique, e face às dificuldades dos jovens e das suas famílias em preencherem os requisitos para o dote que os tornaria elegíveis para casar, o facto de ingressarem no ASWJ se torne atrativo na medida em que entre as outras oportunidades de sustento22 se adicione a oportunidade de o fazerem sem custos financeiros incomportáveis.
Esta imitação de outros movimentos militantes islamistas ao nível das práticas estava bem presente, ao nível da narrativa, nos primeiros vídeos produzidos pelo grupo, em que se verificava que o seu domínio do português era reduzido, bem como o conhecimento do Corão, assistindo-se a uma teatralização nas vestes e nas recitações entoadas. As ligações entre o ASWJ e o Estado Islâmico são defendidas cada vez mais por diversos analistas, no entanto não há dados que permitam concluir que o denominado Estado Islâmico exerça algum tipo de controlo estratégico ou influência tática ao nível do planeamento das hostilidades perpetradas pelo ASWJ.
O ASWJ oferece uma possibilidade de veicular uma raiva intensa individual e social provocada por outros fatores que não a religião. Na próxima secção analisamos a relação entre a insurgência e os fatores económicos, nomeadamente o acesso a recursos críticos tais como a terra.
A insurgência e a terra
Nos conflitos armados e nos contextos caracterizados pela recorrência de violência, como é o caso de Moçambique23, é fundamental ter em conta a economia política do conflito, i. e., a própria conduta de hostilidades e a durabilidade do conflito apresentam aos protagonistas oportunidades de acumulação e enriquecimento. A causa primordial que contribuiu para o espoletar de agravos entre os residentes locais foi a política de reassentamento levada a cabo pelo Estado na província de Cabo Delgado. A necessidade de disponibilizar terrenos para as empresas multinacionais (EMN), para os serviços associados à presença das EMN e, por fim, para o desenvolvimento de infraestruturas essenciais para garantir o escoamento dos recursos naturais para o mercado internacional, levou ao delinear de uma política de reassentamento ad hoc sem consulta popular e sem compensações e indemnizações justas para os grupos afetados.
Com base no estudo levado a cabo por Weimer et al. é possível concluir que no plano de criação do complexo e do porto de Palma o Estado não interveio de forma a garantir uma indemnização justa para os residentes locais, tendo a empresa ligada ao desenvolvimento do porto oferecido apenas 7,5 meticais por hectare24. Nos restantes distritos em que a violência armada provocou queimadas, destruição e a deslocação em massa dos residentes sem qualquer pré-aviso, esta situação teve como consequência a impossibilidade de os mesmos levarem consigo algum documento comprovativo do seu direito de uso e/ou de herança da terra onde estavam enraizados.
A criação de condições por parte do Estado para a implantação de EMN a expensas dos residentes locais criou agravos e ressentimentos e tornou estes grupos vulneráveis ao recrutamento pelo ASWJ, o qual convergia com estes grupos na resistência face a um Estado percecionado como corrupto, ao serviço dos interesses de uma minoria política e que hipotecou os vastos recursos naturais moçambicanos desta província sem quaisquer dividendos para os residentes. Mas, de entre os residentes, há grupos mais afetados de forma negativa pela descoberta dos recursos naturais.
A tendência dominante na literatura tem sido a de associar a insurgência à maldição dos recursos. Na senda dos estudos de Douglas A. Yates em relação aos Estados em África dependentes de rendas associadas à exploração de outros hidrocarbonetos, tais como o petróleo, é de salientar que quer o petróleo quer o gás natural em si não corrompem mas sim o rendimento resultante do diferencial entre o preço final aplicado aos consumidores na venda dos produtos derivados da descoberta, produção, transporte, transformação e o marketing de hidrocarbonetos25. Que condições precisamos de identificar para concluirmos que uma economia é dependente de rendimentos?26 De acordo com o mesmo autor: 1) o produto nacional deve derivar em mais de 40% dos rendimentos associados ao petróleo; 2) a origem dos rendimentos deve ser proveniente de fontes externas à economia; 3) apenas uma minoria beneficia desse rendimento numa economia dependente de rendas; finalmente, 4) o Governo deve ser o principal recipiente desse rendimento27. Desde a descoberta, em 2010, dos vastos depósitos de gás natural em Moçambique e da captação de investimento direto estrangeiro pelas principais EMN ligadas ao setor, podemos verificar que a bênção da descoberta dos recursos naturais alimentou mais disfuncionalidades preexistentes do que preencheu as expetativas de uma distribuição equitativa dos rendimentos associados aos recursos naturais junto dos grupos locais. Com efeito, o Coeficiente de Gini de Moçambique em 2014 situava-se em 54%, colocando Moçambique no mesmo patamar dos Estados com maiores desigualdades sociais, seguindo a tendência de outros Estados caracterizados por uma economia dependente de rendas tais como Angola (55%), Chade (39%), Congo-Brazzaville (47%), Guiné Equatorial (65%), Gabão (41%), Nigéria (44%) e Sudão do Sul (46%)28.
Insurgência, pobreza, exclusão social e aumento das desigualdades sociais
A província de Cabo Delgado é uma das províncias de Moçambique com maior incidência de pobreza e é marcada pela ausência ou presença reduzida de instituições e agentes do Estado. O distanciamento em relação à capital, a proximidade face ao Estado vizinho da Tanzânia e os laços étnicos e linguísticos independentemente das fronteiras dos Estados soberanos ditaram a marginalização no que toca ao desenvolvimento de infraestruturas de comunicação a ligar os grupos nos dois lados da fronteira internacional. Os serviços associados ao Estado ao nível da saúde e da educação são reduzidos e as oportunidades de sustento com base em atividades consideradas lícitas são mínimas.
A pesca artesanal era uma das fontes de sustento para as famílias ao longo da costa. Com o início da exploração do gás este modo de ocupação foi perturbado pelo impacto ambiental associado às atividades das EMN.
É uma região onde abundam atividades ilícitas cujo contrabando floresce através das fronteiras. As atividades ilícitas encontram-se ligadas à exploração dos rubis, contrabando de madeiras preciosas e, dada a extensão da orla costeira, há ligações ao crime transnacional organizado da heroína29. Os interesses dos atores que operam nestas áreas transfronteiriças são divergentes dos interesses da elite política que facilitou a entrada de EMN ligadas ao setor da exploração do gás.
A insurgência e a etnicidade
As clivagens étnicas entre macondes, associados ao partido no poder e a cargos executivos no Estado, e os mwani30, excluídos do acesso aos círculos de poder, dos benefícios associados com o acaparar do Estado e dos dividendos das descobertas de recursos naturais na sua região, desenvolveram ressentimentos que tornaram os mwani mais vulneráveis à radicalização e mais propensos a ingressar nestes movimentos. Na realidade, esta é uma área que carece de maior investigação e em que os vazios de conhecimento tendem a ser povoados de especulações e evidência circunstancial, tendo os primeiros estudos confirmado esta associação. No entanto, com o desenrolar da crise, é de esperar uma maior fluidez e contingência das constelações sociais e políticas locais31. A associação de grupos étnicos de forma binária e exclusivista a um dos lados do conflito parece carecer de sustentação empírica pois o estudo dos conflitos armados em África e em outras regiões do sistema internacional apresenta-nos contextos de extrema volatilidade e fluidez dos alinhamentos32. Faz todo o sentido apoiarmo-nos nos primeiros estudos que defendem esta tese de associação de ASWJ aos qitwani, estudos que resultaram de trabalho de campo na província numa altura em que o Estado permitia o acesso à área33. Com a evolução do conflito e a resposta cada vez mais musculada por parte do Estado, em que os civis se tornaram também alvo de violações de direitos humanos alegadamente por parte das forças de defesa e de segurança (FDS) e das companhias militares de segurança privada (CMSP) de outros grupos, é plausível considerar e explorar a hipótese de que outros grupos, independentemente da sua identificação étnica, tenham ingressado nas fileiras do ASWJ. Acresce o facto de este movimento ter recorrido ao recrutamento pela via da força de residentes das localidades onde se foi implantando, sem atender à identidade étnica ou ao grupo geracional, com relatos de recrutamento de crianças-soldado.
As lições a retirar de outras insurgências radicais em áreas fronteiriças prendem-se à variação de combinações entre os grupos étnicos e os líderes dos movimentos islamistas que incitam à violência, podendo as autoridades tradicionais atuar enquanto mediadores na resolução de conflitos.
A evolução da insurgência face à resposta do estado
O acesso a Cabo Delgado a observadores independentes, quer jornalistas moçambicanos quer internacionais, foi sendo restringido até ser vedado com base em razões de segurança nacional; com efeito, e à semelhança do que aconteceu em outros contextos onde operam movimentos jiadistas, assistiu-se a uma securitização da investigação34. Desta importante constatação decorre a necessidade de reconhecer a opacidade dos dados que emergem relativamente à evolução da insurgência e da resposta por parte do Estado nomeadamente até à tomada de Palma, a 24 de março de 2021, pelo ASWJ.
Considerações finais para uma intervenção internacional em Moçambique35
A tomada eminente da capital por parte dos movimentos militantes islamistas na Somália e no Mali, Mogadíscio e Bamako, respetivamente, catalisaram as intervenções na Etiópia a 24 de dezembro de 2006 e, no caso do Mali, das forças armadas de França, a 11 de janeiro de 2013. Nos dois casos há um conjunto de lições a retirar que nos podem servir de guia em relação a uma intervenção internacional no Norte de Moçambique em Cabo Delgado. As forças de defesa e de segurança do Estado moçambicano conduziram a resposta desde os primeiros ataques a 5 de outubro de 2017 com o recurso a companhias militares de segurança privadas (CMSP). Nos últimos anos, receberem maior destaque a russa Wagner e a sul-africana Dyck Advisory Group (DAG).
A primeira lição a retirar dos casos citados é a distância da insurreição em relação à capital. Nos dois casos citados, o risco de a capital ser tomada precipitou o pedido de auxílio internacional por parte dos governos. A capital da província de Cabo Delgado - Pemba - encontra-se afastada da capital moçambicana em 2600 quilómetros. A distância, combinada com a resistência por parte do Governo moçambicano em solicitar apoio internacional para além das CMSP, permite explicar uma parte do falhanço na resposta. Com o ataque a Palma, uma intervenção internacional para fazer face à expansão do movimento ASWJ ou do Al-Shabab torna-se incontornável.
A tomada de Palma a 24 de março de 2021 por este movimento marca um ponto de viragem irreversível na contrainsurreição por, simbolicamente, representar o centro das operações de exploração do gás das principais EMN, nomeadamente a total. Palma encontra-se dentro do raio de 25 quilómetros na zona de amortecimento entre as ameaças da insurgência interna e o investimento direto estrangeiro nas reservas de gás na península de Afungi. Enquanto os residentes locais hesitam entre partir e regressar, os expatriados não vão regressar até estarem reunidas as condições de segurança contempladas no memorando de entendimento (MoU) entre o Governo moçambicano e as EMN.
A segunda lição prende-se com a tendência para a multilateralização de intervenções bilaterais. No caso da Somália, a intervenção liderada pela Etiópia transformou-se numa intervenção da União Africana em março de 2007 mediante constituição da Missão da União Africana para a Somália (AMISOM). No caso do Mali, a operação Serval, liderada pela França, transformou-se na operação Barkhane em 2014 e foi complementada pela Missão Multidimensional Integrada das Nações Unidas para Pacificação do Mali (MINUSMA) e pela criação de uma coligação ad hoc36 regional, o G5 Sahel.
No caso do Norte de Moçambique, o Governo aceitou apoio à formação de militares moçambicanos em contrainsurreição por Portugal, Estados Unidos e Reino Unido, e deu continuidade ao recurso a CMSP, tendo substituído a dag por outra sul-africana: a Paramount (2021).
As opções preferidas desde 2018 até 2021 de recurso a CMSP e a formação especializada no quadro da cooperação bilateral tendencialmente tendem a ser complementadas por uma intervenção internacional regional tal como comunicado na sequência da Cimeira Extraordinária da Comunidade de Desenvolvimento da África Austral (SADC) na designação original. A liderança permanece a questão em aberto, sendo expetável que a África do Sul assuma um papel de destaque rivalizado por Angola e o papel de dois Estados vizinhos contíguos: a Tanzânia e o Zimbabué. Outra alternativa possível, ainda no contexto multilateral, é o recurso a coligações ad hoc, como o Multinational Joint Task Force (MJTF) da bacia do lago Chade e o G5 Sahel, compostas por Estados das regiões mais afetadas pelas atividades destes movimentos com base nas experiências de combate ao Boko Haram e aos movimentos do Sahel filiados na Al-Qaida no Magrebe islâmico respetivamente.
A terceira lição a retirar destas intervenções prende-se com as consequências inesperadas das mesmas. Primeiramente, é de destacar a ambivalência das intervenções no que toca ao acréscimo da insegurança que visavam mitigar. A ineficácia das intervenções internacionais é confirmada pela resistência dos movimentos militantes islamistas no Sahel e na Somália, pelo número de baixas em crescendo incluindo civis, pela transnacionalização dos ataques, nomeadamente, contra os Estados que integram as referidas missões de paz37, e a sua capacidade de mobilização de novos combatentes locais é ampliada com a chegada de novos contingentes de combatentes estrangeiros que adquirem legitimidade face à internacionalização dos conflitos e capitalizam no recrutamento pelo apelo do combate às «forças de ocupação estrangeira».
A quarta lição prende-se com a necessidade de resistir aos apelos por parte dos residentes locais de constituírem milícias locais de autodefesa. As lições a retirar do Sahel face à efervescência de milícias locais convergem em evidenciar a multiplicação dos conflitos com maior incidência de conflitos intracomunitários e da intensidade dos confrontos em termos de baixas civis. Estas forças contribuem para o acentuar da incapacidade do Estado em exercer o monopólio dos meios de coerção legítima e conduzem a um maior afastamento dos residentes face ao Estado, que é tido mais como uma ameaça do que como preenchendo o requisito fundamental que justifica a sua existência: o garante da segurança e proteção da sociedade.
A quinta lição está relacionada com a sobreconcentração no instrumento militar e no combate ao extremismo violento e terrorismo quer ao nível da contrainsurreição, quer ao nível do apoio à reconstrução/consolidação do Estado, quer ao nível dos programas de engenharia social. A primazia das intervenções e respetivos programas destinados a mitigar estes movimentos centra-se no reforço do domínio militar ancoradas num paradigma de segurança e de estabilização imediata. Parte-se do pressuposto de que a ideologia islamista constitui um fator essencial na radicalização e como consequência a prevenção deve concentrar-se na contenção das ideias extremistas propagadas nas mesquitas e por imãs designados de radicais38, descurando-se desta feita os fatores não ideológicos. Há na realidade uma distância entre a radicalização ideológica e aquela ao nível da ação violenta e a primeira não constitui a condição essencial da última39. Como bem evidenciam Marchal e Salem, os processos de radicalização não são lineares, nem exclusivamente ideológicos, compreendendo antes aspetos de politização e socialização, decorrendo em última instância mais dos efeitos da marginalização e da precariedade sociais do que da vulnerabilidade psicológica e/ou individual40. Com efeito, ao nível da engenharia social, o atrativo de bolsas de estudo no estrangeiro destinadas a jovens para doutrinação por parte de movimentos radicais islamistas e o recurso ao crime transnacional organizado como forma de sustento e sobrevivência tendem a decrescer à medida que forem criadas oportunidades alternativas que garantam a sobrevivência com dignidade para os próprios e suas famílias.
A sexta lição a retirar é a necessidade de desenvolver uma abordagem holística à contrainsurreição e ir para além da abordagem concentrada no contraterrorismo ou no combate ao extremismo violento. Em complementaridade com a intervenção internacional, os programas de ajuda humanitária e de ajuda ao desenvolvimento devem ter uma componente para prevenir e desradicalizar os grupos vulneráveis à mobilização por parte dos movimentos militantes islamistas, com particular enfoque nos jovens, bem como o apoio por parte dos doadores internacionais ao redesenhar de políticas públicas para a região que contemplem, em cada domínio de intervenção, uma componente de prevenção e que visem mitigar os efeitos da radicalização nos grupos locais.
Finalmente, qualquer intervenção internacional terá de ser pensada a longo prazo visando o reforço do Estado em todos os domínios e não apenas no domínio militar. O principal desafio reside no restaurar da confiança entre o Estado e os cidadãos, imaginar um novo contrato social e apoiar a extensão dos seus agentes e instituições a esta área marginalizada garantindo a prestação mínima de serviços associados ao Estado41.