Annette Bongardt e Francisco Torres publicaram, com a chancela da Universidade Católica Editora, um manual de Economia Política Europeia. Esta é uma obra louvável porque mantém aceso o estudo da Economia Política Europeia, que parece ter caído em desuso no panorama académico nacional, numa tendência que não acompanha a atenção que o tema recebe na indústria das publicações académicas no Reino Unido e nos Estados Unidos; tem a ousadia (no bom sentido do termo) de dar à estampa uma obra em língua inglesa sendo nacional o seu mercado-alvo; assim como enquanto manual de apoio a uma unidade curricular lecionada pelos autores, assume frontalmente a opção do inglês como língua franca, opção inquestionável quando entre os alunos (os primeiros interessados na obra) o contingente de não falantes de português cresce todos os anos letivos.
Ao longo de 302 páginas, Bongardt e Torres não escondem os propósitos didáticos do livro, na esteira da tradição dos textbooks publicados em editoras britânicas e estadunidenses. A forma cuidadosa como os materiais foram trabalhados prova-o. Cada capítulo é encimado por uma resenha dos temas tratados, sendo identifica- dos os objetivos de aprendizagem e os conceitos fundamentais. Os capítulos contêm caixas que contextualizam os conceitos ou aspectos específicos do capítulo com o recurso a explicações tecnicamente elaboradas. O contributo para o enquadramento teórico do(a)s leitore(a)s, fornecendo pistas suplementares de leitura e de pesquisa para quem desejar aprofundar o estudo, atravessa os 11 capítulos. Os casos de estudo que percorrem os capítulos possibilitam a articulação dos aspetos teóricos com uma dimensão prática, fazendo do livro uma obra viva que não se enfeuda na teoria.
As opções científico-pedagógicas dos autores são expostas de forma cristalina. Sendo uma obra que explora aspectos político-económicos do processo de integração europeia, os autores são leais à sua interpretação da ontologia do processo. Argumentam que o modelo económico da União Europeia (UE) assenta em três pilares: o Mercado Interno, a União Económica e Monetária (UEm) e o European Green Deal (EGD). Esta é uma visão original, em particular o reconhecimento do EGD como terceiro pilar do modelo eco- nómico da UE. Sendo o mais recente dos pilares, e tendo sido reavivado após a UE e o resto do mundo terem sido afetados pela crise pandémica e pela crise geopolítica em curso (a guerra na Ucrânia), algumas das suas metas apontam para o futuro e dependem da interação da vontade de vários atores políticos, podendo alguns governos nacionais impor obstáculos à consumação da ambição ambientalista da União.
Percebe-se a intenção dos autores ao destacarem a vertente ambiental que, se o EGD for integralmente cumprido, colocará a UE na vanguarda da proteção ambiental. Perante as evasivas de outros atores políticos influentes, esta é uma oportunidade para promover a visibilidade internacional da UE, situando-a como uma referência que pode ser seguida por outros países. Outra opção científico-pedagógica dos autores merece elogio: sendo uma obra marcadamente político-económica, não evita a transdisciplinaridade quando esta opção epistemológica enriquece os capítulos e contribui para que o(a)s leitore(a)s tenham uma visão holística da integração europeia. À incursão pela História, acrescentam-se contributos que bebem inspiração noutras ciências sociais, nomeadamente a Ciência Política, as Relações Internacionais e o Direito. A obra não é o resultado do monolitismo epistemológico, o que quadra com a natureza multidimensional da UE. Os/As leitores(ras) são convidados(as) a transcender as fronteiras que encerram cada domínio do saber no seu perímetro. A obra destaca-se da tradição enraizada no meio académico português, ainda sitiado pelo ensimesmar científico que não é sensível ao cruzamento de saberes como fator que propicia um conhecimento mais rico das realidades observáveis.
Dando corpo ao entendimento que os autores têm do modelo económico da UE, seis dos 11 capítulos promovem o conhecimento dos três pilares desse modelo. O capítulo 6 dedica-se ao Mercado Interno e à sua extensão natural, a política de concorrência. O capítulo 7 centra-se nas questões ambientais e energéticas, abrindo uma janela sobre o EGD e como se pode tornar o vetor central das políticas da União.
Os capítulos 8, 9, 10 e, em parte, o 11, analisam a UEM, reconhecendo-a como o pilar centrípeto do modelo económico da UE. Bongardt e Torres procuram, no capítulo 8, mostrar como o modelo político-económico da UEM foi permeável às ideias económicas dominantes quando a união monetária europeia foi configurada. No capítulo 9, a UEM é analisada pela ótica dos custos e dos benefícios, inspirando-se na teoria das zonas monetárias ótimas e no desenvolvimento lógico desta teoria, a teoria das zonas monetárias sustentáveis. No capítulo 10, os autores isolam a política monetária do Banco Central Europeu (BCE) para o/a leitor(a) ajuizar o contributo desta política para o desempenho da zona euro, sem se esconderem do debate (politicamente sensível) sobre a legitimidade democrática da autoridade monetária que tem como pano de fundo a independência política outorgada a esta instituição. O capítulo 11 encerra a obra com a avaliação das crises que afetaram a UE num passado recente. Os autores seguem a cronologia das crises, começando pela crise das dívidas soberanas que ameaçou a sobrevivência da UEM, para concluírem com as crises mais recentes: a crise pandémica e a crise geopolítica que marca o presente (resultante da invasão da Ucrânia pela Rússia).
Os capítulos que exploram os três pilares do modelo económico da UE são precedi- dos por cinco capítulos que enquadram, histórica e teoricamente, a economia política europeia. No capítulo 1, a criação das Comunidades Europeias e a sua posterior evolução é enquadrada historicamente. O capítulo 2 abraça aspectos teóricos, em linha com uma análise típica da Ciência Política (o que é a UE enquanto objeto político?), deitando um olhar sobre o sistema institucional da União e os desafios que se colocam à legitimidade democrática de um sistema de governação multinível (ou governança sem governo), como é a UE. O capítulo também cobre os aspectos fundamentais do sistema jurídico da UE. Os capítulos 3 e 4 tratam duas matérias sensíveis para o desenvolvimento da integração europeia, que atravessou as várias etapas da integração económica (de acordo com a escala de Balassa). Por um lado, a dimensão ótima da UE. Por outro lado, a flexibilidade do processo, que contempla a possibilidade de nem todos os Estados-Membros quererem avançar para um certo objetivo, abrindo a porta à integração diferenciada. Por fim, o capítulo 5 mostra como, inicialmente, as vantagens da integração eram limitadas à vertente comercial, fazendo uma incursão pela nova geração de acordos comerciais que a UE tem celebrado com outros parceiros.
Muito embora a elevada qualidade da obra seja incontestável, algumas das opções dos autores não são consensuais. Assim acontece com a cronologia da integração europeia (p. 22), que não autonomiza a crise da zona euro (os autores fazem corresponder o período 2010-2019 à crise económica, à crise dos refugiados e ao EGD). O reconhecimento da dimensão federal do processo de integração (p. 24) parece excessivo, até por colidir com preconceitos enraizados contra a (ideia de) federalização da UE. Porventura seria mais fidedigno reconhecer a natureza puramente supra- nacional da UE. Por outro lado, considerar o Conselho Europeu como uma instituição de decisão (p. 50) não é consentâneo com o papel e as funções desta instituição, como, aliás, é admitido pelos autores um pouco à frente (p. 57), ao esclarecerem que o Conselho Europeu não aprova atos legislativos. A análise do Brexit é punitiva da decisão do Reino Unido (p. 119), pois é sugerido que a saída deste país abriu uma janela de oportunidade para o aprofunda mento da integração europeia, sendo o Brexit encarado como a purga de que a UE precisava. Os autores manifestam um excesso de otimismo quando avaliam as ambições independentistas de certas regiões europeias (Escócia e Catalunha) no quadro da integração europeia. Admitem a UE como a casa comum onde essas regiões (se lhes for reconhecida a independência) teriam acolhimento (p. 122), como se os Estados de quem se separassem não continuassem a ser Estados-Membros da União. Por fim, o EGD é apresentado como o terceiro pilar «em vias de o ser» (p. 203), o que contraria a ideia, previamente exposta, de que este já é um pilar em pleno funcionamento (p. 13).
Não me revejo nas opções perfilhadas pelos autores nestes excertos, o que, toda- via, não diminui a elevada qualidade e o inestimável valor didático da obra. Estas divergências resultam de diferentes pressupostos e de diferentes interpretações da UE. É importante não esquecer que o olhar sobre a UE é permeável à metáfora do homem cego e do elefante1, colhendo a desejável subjetividade ao serviço da aná- lise de assuntos político-económicos, em geral, e da UE, em particular. Essa subjetividade enriquece a ciência.