Introdução
O continente africano tem sido palco de intensas transformações. Nas últimas décadas, sobremodo, a gradativa intensidade dos processos de globalização, em suas múltiplas manifestações, deixou, não raramente, rastros de assimetria, de insegurança e de subdesenvolvimento2. Em alguns ambientes, como no continente africano, essas disparidades sistêmicas contribuíram para um perfil de inserção internacional complexo e desigual, cujas dificuldades puderam ser comprovadas por meio de uma subordinação formal ou velada.
Por conseguinte, esse contexto abriu caminho para o surgimento de um movimento pan-africano que, nas palavras de Biswaro «foi concebido e nasceu num ambiente caracterizado pela dominação, opressão, racismo e exploração. O pan-africanismo, enquanto movimento e ideologia, concretizou e sensibilizou os africanos para rejeitarem, entre outras coisas, a dominação estrangeira, a exploração e a discriminação racial dentro e fora da África»3.
A reestruturação que se tem verificado desde então, envolvendo diversos vetores de poder, internos e externos, indica potenciais mudanças no continente. No eixo externo, a África foi, historicamente, uma arena de baixo custo no jogo de poder das grandes potências, figurando como provedor de recursos naturais estratégicos, em meio à lógica centro-periferia. Contudo, a hodierna percepção da África como um Eldorado emergente do século XXI abre possibilidade para um novo jogo de somas positivas, com ganhos recíprocos, em que o Acordo de Livre-Comércio Continental Africano (AfCFTA, na sigla inglesa) pode ser um catalisador desse processo. Já no eixo interno, verifica-se um processo de reorganização4 que define prioridades e cria janelas de oportunidade para promover audaciosa integração das cadeias produtivas regionais, cujo efeito de transbordamento (spillover effect) guarda potencial para aprimorar mecanismos de desenvolvimento e segurança.
Em meio a essa conjuntura, convém investigar o que se pode esperar dessa composição sob uma perspectiva estratégica, destacando-se a realidade africana pós-Guerra Fria em seus fundamentos, processos e vicissitudes. Assim, em que medida novos arranjos integracionistas podem fomentar a formação de uma unidade pragmática em torno de dinâmicas de desenvolvimento e segurança? Haveria condições de se desencadear essa espiral virtuosa de maneira autóctone? O objetivo do artigo é, portanto, verificar características desse processo integrador, considerando seus desdobramentos nos citados setores e, avaliando, também, o quão (in)dispensáveis seriam as interações com potências externas no alcance de interesses africanos. Analisa-se, concomitantemente, nesse decurso, eventuais conexões com interesses brasileiros.
A África no mundo e a busca por um caminho próprio
A história recente do continente africano tem como uma de suas principais marcas deletérias a intervenção extraterritorial. Tendo como força motriz inaugural o apoio à logística expansiva europeia e a formação de uma cadeia de entrepostos, na África e na Ásia, o sistema internacional foi reconfigurado5, consolidando os vínculos entre poder e riqueza6 e, ao mesmo tempo, impulsionando o setor de inovações tecnológicas associado ao binômio desenvolvimento e segurança7.
Assim, essa díade estratégica ganha notável expressão ao longo do tempo. Por um lado, o passado revela uma trajetória que perpassa avanços e retrocessos, conforme se verifica: na tomada de Ceuta (1415), fator de ignição que desloca o eixo de poder dos estreitos de Bósforo e Dardanelos para o Atlântico, convertendo o Mediterrâneo em um mar de trânsito8; no contorno do cabo da Boa Esperança, ressignificando a importância do oceano Índico, por meio do protagonismo atlântico no sistema internacional9; na realização da Conferência de Berlim (1884), cujos efeitos do seu «General Act» operacionalizaram o conceito de estrutura lógica, justificando intervenções, reforçando o imperialismo colonizador em meio a assimetrias erigidas10, de acordo com os interesses daqueles dotados de mais recursos de poder estrutural e/ou relacional11.
Por outro lado, tal binômio traz novos impulsos na contemporaneidade. Se a Guerra Fria fez da África um dos seus palcos - desencadeando conflitos internos e subversão, em meio a processos de independência12, e condenando o continente à condição de órfão, no contexto da derrocada do socialismo real13 - no século XXI, emerge umarationaleque pode ser assim resumida, conforme interpretação de Visentini:
«O fim da bipolaridade e do conflito Leste-Oeste, agravado pelo desaparecimento da União Soviética em fins de 1991, fizeram com que o continente africano perdesse sua importância estratégica e capacidade de barganha, ao que se acrescentava a própria perda de importância econômica [...] O resultado foi a marginalização da África no sistema internacional e a desestrategização e tribalização dos conflitos e da política regional. As sociedades africanas estão passando por um processo semelhante ao atravessado por outras regiões do mundo, qual seja, a construção dos modernos Estados Nacionais»14.
Destarte, a consolidação e o amadurecimento desses Estados convergem com a formação de projetos de integração regional como é o caso de nosso objeto de análise: o AfCFTA. Contudo, apesar da legitimidade e do sentimento pan-africanista, teria a África a capacidade de valer-se de meios próprios para trilhar esse caminho? Afinal, o que se tem observado é a prevalência de perspectivas pessimistas quando o assunto é o desenvolvimento da maior parte das regiões africanas15. Concomitantemente, evidências históricas indicam que a ajuda externa pode ser um ingrediente indispensável para a superação de gargalos estruturais, cabendo considerar outras condicionantes na equação, sendo uma das principais o aporte econômico-financeiro de potências exógenas, outrora Estados Unidos e Europa e, hodiernamente, com nítidos contornos, a China.
Nesse contexto, há incertezas sobre a possibilidade de os Estados Unidos e os países europeus liderarem iniciativas que satisfaçam as prementes necessidades da África. Embora tenham presença histórica tradicional, há que se considerar que, se, por um lado, a União Europeia (UE) planeja uma parceria estratégica baseada no redesenho do Acordo de Cotonou16 e na construção de uma estrutura de cooperação sobre migração17, por outro lado, a Administração Biden reavalia a baixa prioridade conferida à África pelo seu antecessor, Donald Trump, consolidando iniciativas que priorizam segurança, mudança climática, enfermidades e acesso a mercados18. São agendas relevantes, mas tratam com timidez o desenvolvimento almejado pelos africanos.
Dessa maneira, enquanto o Ocidente euro-americano concentra esforços em temas globais nas relações com a África, a China, guiando-se por uma perspectiva relacional19, cria alternativas que podem auxiliar na busca do continente por desenvolvimento. Em meio a empreendimentos que aprimoram modelos produtivos e gerenciais, a China implementa na África a conversão das tradicionais zonas econô, establidades especiais (SEZ) em zona de cooperação econômica e comercial ultramarina (OECCZ), chamada de «O Ninho da Fênix»20, promovendo uma nova geração de plataformas de exportação. Ademais, a China incentiva a formação de parques tecnológicos científicos e industriais21 e desloca, da China para a África, plantas de manufatura intensiva em trabalho, devido a baixos salários22. Entre outras iniciativas, chineses e africanos:i) criam o Fórum de Cooperação China-África (FOCAC)23,ii) aprimoram o diálogo, ao propor a Política dos Cinco Nãos e as Oito Iniciativas para Uma Nova Era24 eiii) reafirmam intenções pacíficas junto à Belt and Road Initiative25. São propostas que sinalizam a viabilidade de impulsionar um projeto integrador em formação.
Nesse cenário, alguns Estados sentem-se confrontados pela proatividade em meio a cooperação ou competição. É o caso, por exemplo, da B3W Initiative26 proposta por Biden, em 12 de junho de 2021, na cúpula do G7, em Cornwall, na Inglaterra, que planeja recursos para infraestrutura e outras aplicações, assinalando uma contraproposta para neutralizar a Belt and Road Initiative da China27: a B3W, contudo, enfrenta dissenso e cautela dos europeus, que se beneficiam das interações com Pequim. Portanto, laços históricos ocidentais não superam o fôlego chinês para apoiar a alavancagem da África. Assim, infere-se que a abordagem dessas e de outras potências influenciará na operacionalidade dos projetos que se pretende desencadear na África, abrindo caminho para o incremento do AfCFTA, que se encontra em processo de gestação.
Integração regional como estratégia de promoção de desenvolvimento e segurança
A dimensão econômica do processo de globalização contribuiu, sobremodo, para a intensificação dos fluxos comerciais internacionais, principalmente, por evidenciar o surgimento de iniciativas regionais integracionistas traduzidas na formação de blocos econômicos, um dos fenômenos que dão forma ao sistema internacional do pós-Guerra Fria28.
A integração regional pode ser interpretada como um instrumento de desenvolvimento econômico, pois tem como objetivo primordial eliminar as barreiras alfandegárias entre os países de uma determinada região, promovendo, assim, um aumento das transações comerciais. Por outro lado, estes mesmos processos de integração podem conduzir a desvios ou à supressão da prática do livre-comércio29, uma vez que os países não pertencentes a um determinado bloco são discriminados por meio da adoção de políticas protecionistas que proporcionam arranjos preferenciais de comércio apenas para os países-membros.
Conceitualmente, as etapas do processo de integração econômica têm sido entendidas como uma sucessão gradual de estruturas30: uma área ou zona de livre-comércio; uma união aduaneira; um mercado comum; uma união econômica, ou ainda, em seu estágio mais avançado, uma integração econômica total onde há a adoção de uma política monetária comum instituída na forma de um banco central e moeda únicos, conforme descrito a seguir (Figura 1).
Apesar de destacarmos, neste primeiro momento, temas afetos ao campo econômico, urge pontuar que, se bem-sucedida, a integração regional pode gerar efeitos de transbordamento virtuosos para outras áreas, como a segurança.
Um bom exemplo dessa sinergia é o caso europeu: ao reunir os países do BENELUX (Bélgica, Holanda e Luxemburgo), Alemanha Ocidental, França e Itália, o Tratado de Paris, assinado em abril de 1951, estabeleceu a Comunidade Europeia do Carvão e do Aço (CECA), uma tentativa oportuna de estimular a integração e a cooperação que, por sua vez, abriu o caminho para outras iniciativas como o Tratado de Roma (1957) e o Tratado de Maastricht (1992) que resultou na moderna UE, como é conhecida atualmente. E, de fato, a criação de um mercado comum seguida pela introdução de uma moeda única - o euro - anunciava uma nova era promissora de crescimento econômico e integração32.
Refletindo este projeto de uma Europa mais ampla e sólida, a partir de então, vários aspectos da política e dos processos de tomada de decisão contemplaram uma ampla gama de setores como a Política Externa e de Segurança Comum (PESC). A Política Comum de Segurança e Defesa (PCSD) - originalmente concebida em 1999 como Política Europeia de Segurança e Defesa (PESD) - faz parte da PESC e continua sendo uma ferramenta intergovernamental fundamental para promover a cooperação entre os Estados-Membros da UE em missões operacionais de prevenção de conflitos e a gestão de crises e fortalecimento da segurança internacional com base em ativos civis e militares33.
Assim, ante os prolegômenos conceituais e, igualmente, considerando as evidências empíricas, teria o AfCFTA condições de produzir efeitos de transbordamento, de forma a ser, a seu modo, um fator gerador de estabilidade?
Acordo de Livre-Comércio Continental Africano (AfCFTA)
Tecidas estas considerações estruturais e conjunturais, em busca de respostas para as muitas perguntas suscitadas, o artigo traz breves reflexões sobre possibilidades de iniciativas integracionistas gerarem efeitos de transbordamento para o desenvolvimento e segurança, o que abre um amplo e desafiador campo de investigação. Para tanto, analisamos as potencialidades do AfCFTA34, considerado por muitos o primeiro passo rumo à criação daquela que será a maior zona de livre comércio de bens e serviços do mundo e que, confirmadas as palavras do ex-presidente da União Africana (UA), Cyril Ramaphosa35, será um marco histórico que mudará fundamentalmente o continente. Em vigor desde 30 de maio de 2019, o AfCFTA, de acordo com dados do Banco Mundial, representa uma enorme oportunidade para os países-membros reduzirem restrições ao comércio e à livre-circulação para mais de 1,3 bilhão de africanos. Isso significou um produto interno bruto (PIB) combinado na ordem de 3,4 trilhões de dólares e um aumento do comércio intrarregional em mais de 50% (2022), o que justifica as ambições da iniciativa intitulada «O Ano do AfCFTA: Aceleração da Implementação da Área de Livre-Comércio Continental Africana» - lançada em 2023 - que busca rapidez na operacionalidade do acordo36.
Em outras palavras, o acordo tem potencialidade para retirar cerca de 30 milhões de pessoas da extrema pobreza e permitir incremento de renda a outros 68 milhões que vivem com menos de 5,50 dólares por dia, entretanto, destaque-se, se alinhado à adoção concomitante de reformas políticas e de medidas de facilitação de comércio significativas37. Em tempos em que a crise epidemiológica causada pela covid-19 acentua a pobreza e aprofunda diferenças, a criação deste vasto mercado regional representa uma importante oportunidade para: diversificar exportações, acelerar o crescimento econômico e atrair investimento estrangeiro direto, o que, por sua vez, pode gerar efeitos imediatos na redução destes índices deletérios:
Em termos práticos, com o AfCFTA, haveria queda sustentada nos níveis de pobreza extrema em todo o continente. Previsões indicam que a África Ocidental teria a queda mais acentuada em relação ao número de pessoas que vivem em pobreza extrema: um declínio de 12 milhões (mais de um terço do total de toda a África). A África Central, a África Oriental e a África Austral teriam, respectivamente, uma queda de 9,3 milhões, 4,8 milhões e 3,9 milhões nestas cifras. Em tal cenário, os países com as taxas de pobreza mais altas registrariam as maiores quedas: na Guiné-Bissau, o declínio nas taxas de pobreza seria na ordem de 37,9% para 27,7%, no Mali, de 14,4% para 6,8% e, no Togo, de 24,1% para 16,9%39.(Gráfico 1).
Logo, ao aumentar o comércio regional, reduzir custos e racionalizar procedimentos aduaneiros, a implementação integral do AfCFTA contribuirá, direta ou indiretamente - a depender de características conjunturais e estruturais em cada Estado - para a eficiência dos mecanismos conjuntos de governança. Por conseguinte, abrem-se possibilidades para prover instrumentos que permitam aumentar a resiliência ante externalidades como futuros choques econômicos e contribuir, por exemplo, para a adoção de reformas necessárias ao crescimento a longo prazo.
Importa pontuar que a pobreza extrema e a exclusão social de amplos setores da população têm o potencial de afetar a estabilidade política, erodindo, por conseguinte, a coesão social e vulnerabilizando a segurança dos Estados: são inequívocos indícios da incapacidade estatal de criar e distribuir a riqueza e, ademais, um sintoma de disfunção governativa40.
Dessa maneira, as reflexões em torno do AfCFTA nos permitem inferir que a dinâmica de segurança dos países africanos está intrinsecamente ligada ao processo de formação do Estado (state building) no qual estão empenhados desde a descolonização. Logo, como promover o efeito de transbordamento do campo econômico para a segurança e/ou defesa, tal qual preconizado pela literatura acadêmica?
Efeitos de transbordamento (spillover effects) do AfCFTA
As conexões com uma visão holística do desenvolvimento e da segurança ficam evidenciadas quando analisamos os objetivos da Agenda 2063 - documento lançado em abril de 2015, na cidade de Niamey, no Níger, pela UA. Trata-se de um plano de ação que vislumbra, como objetivo, fazer da África um continente integrado, próspero e pacífico, representando uma força dinâmica na arena global, a partir da promoção de 14 iniciativas em diversas áreas, como: infraestrutura, educação, ciência, tecnologia, cultura e manutenção da paz. Com o lema, «A África que queremos», o documento destaca, como pontos basilares, a busca de uma África:
Próspera, baseada no crescimento inclusivo e desenvolvimento sustentável;
integrada, politicamente democrática e unida com base nos ideais do pan-africanismo e na visão de renascimento da África;
de boa governança, democracia, respeito aos direitos humanos, justiça e o Estado de direito;
pacífica e segura;
com forte identidade cultural, patrimônio, valores, ética comum;
cujo desenvolvimento seja orientado para as pessoas, confiando no potencial dos povos africanos, especialmente no potencial da mulher, da juventude e em que a criança tem tratamento digno;
como um ator e um parceiro forte, unido e influente na arena mundial.
Assim, os dados apresentados, ainda que limitados enquanto amostragem, nos permitem inferir que o AfCFTA contribuiria para a consecução dos objetivos citados, uma vez que impulsiona diversas reformas necessárias para aumentar o crescimento a longo prazo nos países africanos. Além disso, no curto prazo, o acordo assume contornos de uma bem-vinda «política pública regional» ao figurar como potencial instrumento voltado à promoção da segurança alimentar em tempos em que as reminiscências da pandemia da covid-19 ainda potencializam fragilidades e assimetrias.
Dessa forma, ao contribuir para fortalecer a governança regional, o acordo expõe e põe, sob os holofotes, a importância da dimensão política do conceito de segurança ao atribuir às debilidades político-institucionais destes Estados um dos principais fatores responsáveis, por exemplo, por grandes crises humanitárias, o que faz dostate building- aqui retomando parte de nossa argumentação prévia - um desafio estratégico para a segurança dos países africanos.
Quanto ao efeito de transbordamento do AfCFTA para o campo da segurança, uma das possíveis externalidades positivas está em estimular a busca por expectativas confiáveis de mudança pacífica. Tal dinâmica, por conseguinte, pode ensejar a construção de cenários propícios para que, no continente africano, criem-se as condições necessárias para a formação de comunidades de segurança, tal qual observado com relativo êxito em outros casos, como no já citado processo de integração europeia.
Nesse sentido vale lembrar que, originalmente, comunidades de segurança são compostas por Estados que compartilham valores e comportamentos fundamentais para adaptar seus princípios, regras, instituições e processos de decisão conjunta em nome de uma coexistência pacífica41. Este conceito foi refinado por Emmanuel Adler e Michael Barnett que a ele incorporaram elementos como o papel das identidades compartilhadas42. Isso porque elas, as identidades, podem solidificar-se e se tornar elementos relativamente constantes, em suma, uma variável crucial para a compreensão da alteridade construída sobre a relação entre o «Eu» e o «Outro»43.
Isso dito, para o efeitospilloveradvindo do AfCFTA cumprir seu esperado papel, as preocupações de seus integrantes sobre segurança devem ser marcadas por uma estrutura social kantiana, ou seja, na qual os envolvidos deixem, essencialmente, de se perceberem como ameaças. Por conseguinte, a formação de comunidades de segurança na África, nestes termos - enfatizando a interrelação entre desenvolvimento e segurança - pressupõe que haja:a) compatibilidade de valores como a paz, o compromisso com a democracia, o Estado de direito e os direitos humanos;b) capacidade de resposta mútua; c) previsibilidade mútua de comportamento.
Em outras palavras, o AfCFTA demonstra, ainda que no plano das ideias, que fortalecer os Estados africanos, por meio do robustecimento de suas instituições governamentais via integração regional - para que, assim, sejam capazes de cumprir funções primordiais, dentre as quais, prover segurança -, pode ser um componente essencial de cooperação e de estabilidade. Por sua vez, essa inferência vai ao encontro dos anseios brasileiros de ter maior estabilidade em sua área de interesse estratégico, como veremos adiante.
Interesses estratégicos do Brasil
É senso comum, sobretudo, na contemporaneidade, que o continente africano é diverso, multicultural, multiétnico e que, por razões históricas inequívocas, guarda profundos vínculos com o Brasil. Entre os fatos que reforçam esses laços estão os registros de que o primeiro líder político a reconhecer a independência do Brasil ter sido africano44. Uma das características marcantes da «brasilidade» está em sua tridimensionalidade (indígena, europeia, africana), expressa na miscigenação e no componente étnico-cultural45. Ademais, Brasil e nações africanas, em especial aquelas banhadas pelo Atlântico, dada essa comum característica que os conecta, podem compartilhar visão sobre melhores condições de segurança e de desenvolvimento, própria dos países ao Sul46 e de uma de identidade atlântica, em construção perene47.
Isso demonstra que a ligação psicossocial e geo-histórica entre as duas margens do «rio» chamado Atlântico tem raízes profundas48. Assumir essa premissa significa reconhecer que a construção de pontes atlânticas, erigidas sob traços identitários comuns - e, ressalte-se, capazes de contribuir para irromper a deletéria percepção da África como rincão subordinado ao centro do sistema internacional - traduz-se, potencialmente, em relevante ferramenta na busca dos interesses nacionais a partir do binômio desenvolvimento e segurança. É nesse contexto que, na atualidade, esse vínculo socio-cultural agrega tecnologia, assistência técnica e produtividade, como demonstrou o seminário «Brasil-África: Relançando Parcerias» (Painel I):
Assim, a herança africana que permeia a estrutura social brasileira impõe-nos contemplar - além de aspirações comerciais e políticas - vicissitudes que, desde o início do processo de descolonização, verificado no alvorecer dos anos 1950, denotam a busca do continente por propostas africanas para problemas africanos. Em outras palavras, remete a uma alternativa autóctone, capaz de superar, ou minimizar, as duradouras reminiscências originadas de externalidades das disputas geopolíticas no contexto da Guerra Fria.
Nesse sentido, o Brasil observa com otimismo a evolução do processo integrador do continente e o efeito de transbordamento dela decorrente como sugerem as palavras do diplomata brasileiro Rodrigo de D’Araújo Gabsch (Painel II):
Em tal processo, temos propósitos e um papel a desempenhar. Isso, pois, as áreas de interesse estratégico de um país são reconhecidas de acordo com a compreensão sobre valores, princípios e expectativas. Complementarmente, nenhum país com aspirações aostatusde protagonista no concerto das nações, como o é o Brasil, pode negligenciar a África, uma das últimas fronteiras econômicas do mundo, sobretudo, considerando-se que os cenários internacionais são dinâmicos e estão em constante mutação, percepção esta confirmada na versão mais recente da Política Nacional de Defesa (PND), de julho de 2020, que: «2.1.6 [...] sem desconsiderar a esfera global, estabelece como área de interesse prioritário o entorno estratégico brasileiro, que inclui a América do Sul, o Atlântico Sul,os países da costa ocidental africanae a Antártica»51.
Dessa maneira, no caso do Brasil, consideram-se como de inegável relevância elementos tais quais estabilidade política, necessidade de neutralização de ameaças e aproveitamento de sinergias em seu entorno estratégico. Isso materializa a condição imprescindível para a consecução de seus objetivos em uma perspectiva mais ampla.
Conclusão
O AfCFTA visa criar a maior área de livre-comércio do mundo e, com isso, nos médio e longo prazos, contribuir para romper a barreira do subdesenvolvimento estrutural que há muito assola o continente africano. Logo, tal qual apontado pela literatura, se confirmadas as expectativas, a iniciativa, ao aprofundar a integração comercial, tem o potencial de inaugurar uma nova era de desenvolvimento na África e, igualmente, fazer transbordar as boas práticas alcançadas para outros campos circunjacentes.
Assim, vejamos: em termos de segurança, o transbordamento de um ciclo virtuoso de integração no campo econômico pode contribuir - a exemplo do que vem ocorrendo no caso da Europa, ainda que entre avanços e retrocessos - para pavimentar a prevalência de uma lógica kantiana entre os países africanos e, por conseguinte, a bem-vinda formação de comunidades de segurança. Ou seja, o comportamento dominante sendo moldado pela cooperação e os conflitos que eventualmente surjam resolvidos por meios próprios da engrenagem normativa derivada desse processo de governança. Por conseguinte, o reconhecimento de tais práticas implicaria na consolidação de um jogo de soma positiva (plus-sum outcome) em que os benefícios da cooperação influem diretamente na forma como os Estados se percebem em um contexto em que ambos, atores e estrutura, se constituem mutuamente.
Nesse desenho ontológico, ao ratificar o Atlântico Sul e, mais especificamente, a costa africana no rol de seus interesses vitais, ao Brasil figura-lhe a opção de reconhecer, ainda que indiretamente, os benefícios aportados por projetos da envergadura do AfCFTA. Isso, pois, uma África mais estável e integrada significa, em tese, menores riscos de que ameaças endógenas sejam transpostas para áreas consideradas prioritárias indicando, destarte, sinergias a serem consideradas como amálgamas entre dois pilares indissociáveis: desenvolvimento e segurança.
Por fim, apesar de inferências obtidas a partir do nível de análise intrarregional, urge destacar que uma compreensão mais ampla e acurada sobre possíveis conexões entre processos de integração e os elementos aqui analisados não pode prescindir de considerar a atuação de potências externas no continente, sobremodo, em um mundo marcado por uma interdependência cada vez mais intensa e complexa entre agentes e fatores produtivos.
Neste ínterim, vetores de poder exógenos e endógenos indicam possibilidades de êxito. Contudo, não constituem soluções definitivas. Conflitos intermésticos, como a ruptura democrática no Níger52 em 2023, por exemplo, fragilizam uma sinergia com capacidade de fortalecer a África como um todo. Não obstante, isso reforça o papel que o AfCFTA pode vir a desempenhar como amálgama entre os processos de desenvolvimento e o imperativo da segurança.
Logo, o compartilhamento de percepções acerca de uma mentalidade intercontinental consolida características basilares que constituem laços e que tornam compreensível o interesse do Brasil no desenvolvimento da África e no fortalecimento de mecanismos de segurança. Sob essas bases se fundamenta a percepção de que a prosperidade do continente promove os interesses estratégicos do Brasil.