1. Introdução
Este artigo tem como objetivo enfatizar as estratégias coletivas de gestão da atividade desenvolvidas pela equipe responsável pela análise de lotação de servidores técnico-administrativos recém-concursados da Universidade Federal Fluminense - UFF. No Brasil, as diversas lutas travadas por associações de estudantes, por sindicatos dos professores e dos técnico-administrativos, com apoio de setores expressivos da sociedade civil, conseguiram conquistar, na legislação, o princípio de que uma universidade pública federal tem como finalidade oferecer uma educação pública, gratuita, de qualidade e socialmente referenciada. Além disso, precisa também proporcionar condições de trabalho dignas para seus servidores, visando à saúde desses trabalhadores. Considerando esse contexto, podemos identificar algumas normas antecedentes e afirmar que há valores do bem comum que referenciam o processo de análise de lotação de servidores na Universidade.
O artigo é derivado de uma pesquisa de Doutorado2, iniciada em 2018 e ainda em curso, realizada nesta Universidade, que é composta atualmente por 3.481 docentes e 3.714 técnico-administrativos ativos (Fonte: SIAPE3, junho/2022), categorias de servidores públicos federais regidos pelo Regime jurídico único dos servidores civis da União - RJU (Brasil, 1988) (). Além disso, seu quadro de pessoal também é formado por trabalhadores terceirizados e por celetistas, ambos com contratos regidos pela CLT. O foco deste artigo refere-se especificamente à categoria de servidores técnico-administrativos.
A referida categoria de servidores públicos é regulamentada pela Lei 8.112/90 (RJU) (Brasil, 1990) e pela Lei 11.091/05 (que institui o Plano de Carreiras dos Cargos Técnico-Administrativos em Educação - PCCTAE no âmbito das Instituições Federais de Ensino - IFE) (Brasil, 2005). O ingresso dos servidores técnico-administrativos na UFF acontece por meio de concurso público, conforme previsto na Constituição Federal e no RJU. Dentre as políticas de gestão dos servidores técnico-administrativos da Universidade, estão os processos de distribuição, lotação e movimentação. De acordo com os editais dos concursos de cargos técnico-administrativos da UFF, os candidatos classificados nas vagas homologadas que são convocados para ingresso na Instituição são submetidos à entrevista de identificação de perfil profissional para indicação da Unidade de Lotação - ou seja, setor no qual o candidato atuará - , respeitado o Município de atuação, as demandas institucionais, o quadro de lotação ideal de distribuição da força de trabalho no âmbito de cada Unidade Organizacional e o perfil profissional do candidato, considerando-se as competências requeridas pela Universidade.
Cabe destacar, entretanto, que as etapas da análise de lotação e a forma de concretizá-la não estão expressamente previstas em lei, ou seja, legalmente, a convocação de servidores recém-concursados pode acontecer independente dessas etapas, que não são obrigatórias. Apesar disso, considerando que o concurso público - que possui peculiaridades e limitações próprias, inerentes a qualquer processo de recrutamento e seleção - é o meio disponível mais democrático e isonômico para a seleção de servidores públicos no combate ao patrimonialismo, ao clientelismo e à corrupção no acesso da população aos cargos e aos empregos públicos (Azevedo & Loureiro, 2014) a equipe de trabalhadores responsável pelo processo de análise de lotação de servidores recém-concursados tem buscado estratégias que qualifiquem também essa etapa posterior ao concurso.
É importante ressaltar ainda o cenário no qual se insere a atividade de análise de lotação e seus efeitos na Universidade e na atividade, com as mudanças que se seguem, inclusive, na estrutura organizacional da Instituição. O contexto brasileiro, a partir da década de 1990, é marcado pela Reforma do Estado, que instaura um novo modelo de gestão pública, agora gerencial, e que abre espaço para a consolidação das políticas neoliberais no país, com as premissas de intensificação da exploração e precarização do trabalho. A Reforma gerencial do Aparelho do Estado incide diretamente na reforma da administração pública e, portanto, prevê algumas mudanças que afetarão diretamente as Universidades federais brasileiras (Mancebo et al., 2006). Essas considerações tornam-se especialmente fundamentais neste ano de 2022, quando há uma tentativa por parte de alguns segmentos da sociedade de desqualificar o serviço público, o que tem ganhado força principalmente no Governo atual, que tem tido ações no sentido de derrubar direitos conquistados, a partir da busca pela implementação de reformas como a proposta da nova reforma administrativa enviada ao Congresso na Proposta de Emenda à Constituição (PEC 32/20). Portanto, no caso da atividade de análise de lotação, seu cotidiano é diretamente marcado e influenciado de diversas formas pelo macrocenário político, social e econômico, através das políticas federais. Assim, percebe-se, cada vez mais, a lógica neoliberal, pautada no sucateamento e na precarização de todos os serviços públicos (Mancebo et al., 2016).
No que tange às “políticas de gestão” dos trabalhadores, essa lógica culminará na incorporação das práticas do chamado “modelo de gestão de pessoas por competências”, vinculado aos interesses do capital e marcado política e ideologicamente pelo projeto neoliberal. Ainda nesse sentido, novas demandas são impostas aos trabalhadores, que precisam ser flexíveis, polivalentes, com grande leque de competências, capacidade de aprender e de lidar com o novo ambiente. O problema é que todas essas novas exigências não vêm acompanhadas de condições de trabalho adequadas, de um quantitativo de pessoal suficiente para desenvolver as tarefas exigidas, o que acarreta uma responsabilização individual desses trabalhadores - incluindo aqueles responsáveis pela análise de lotação - pelo sucesso ou fracasso da qualidade e da produtividade no trabalho.
As Universidades públicas federais, afetadas pelas transformações no cenário brasileiro, vêm, desde então, passando por mudanças nas “políticas de gestão de pessoas” dos seus servidores técnico-administrativos. Desse modo, se, por um lado, esse texto iniciou apontando as importantes conquistas dos movimentos sociais em criar normas antecedentes que sejam coerentes com valores do bem comum, é importante considerar que esse cenário, marcado pelo avanço das políticas neoliberais, traz outro tipo de normas antecedentes para o gerenciamento da universidade que provêm de valores mercantis. Assim, a equipe de lotação deve enfrentar um debate de normas e construir maneiras de fazer valer os valores do bem comum nesse contexto tão difícil de políticas de gerenciamento da vida e do trabalho que apontam para individualização e competição, obstaculizando a construção de coletivos de trabalho (Muniz et al., 2020).
2. Referenciais teóricos e metodológicos
A Ergologia aborda o conceito de trabalho a partir do conceito de atividade que, nessa perspectiva, envolve sempre um debate de normas, em referência a um mundo de valores. O conceito de normas antecedentes abrange, segundo Schwartz et al. ,2010a) tudo aquilo que preexiste à atividade visando orientá-la, tudo o que mais ou menos a predetermina. Nesse sentido, (Brito et al. 2011) explicam que as normas antecedentes, além de incluírem as regras, os regulamentos, os procedimentos, as tecnologias disponíveis na situação de trabalho, abarcam tudo aquilo que antecipa e que predefine a atividade de trabalho e que demarca as condições nas quais esta se desenvolve. Ademais, (Brito, 2008a) ainda ressalta que algumas normas antecedentes são moldadas na história do coletivo de trabalho e outras derivam dos destinatários do trabalho, que possuem expectativas e demandas aos trabalhadores. Considerando todos esses aspectos levantados, (Brito, 2008a, Brito et al. 2011) sinaliza ainda que algumas normas antecedentes podem ser contraditórias, o que implica uma concorrência entre as várias normas presentes em uma situação de trabalho e uma permanente tensão no ato de trabalhar, na atividade.
Além disso, segundo (Schwartz et al. 2010b), “o trabalho nunca é pura execução” e, por isso, as normas antecedentes são insuficientes para se pensar a atividade. Considerando que as situações de trabalho sempre envolvem variabilidades, no cotidiano de trabalho, novas normas são produzidas pelo coletivo de trabalhadores para lidar com tais variabilidades. Nesse sentido, na atividade de trabalho, há normas “propostas ou impostas (normas antecedentes)” (p. 189) e há “normas instauradas na própria atividade” (Brito, 2011, p. 487). Portanto, para a Ergologia, o trabalho envolve debate de normas, com referência a valores, e produção de novas normas, movimento denominado “renormatização” (Schwartz et al. 2010b).
O conceito de atividade de trabalho também implica o entendimento do seu caráter de mediação entre “o ‘micro’ (o espaço-tempo onde ocorre o processo de trabalho) e o ‘macro’ (seu contexto social, econômico e político), entre o local e o global” (Brito, 2008b, p. 456). A Ergologia compreende que a história humana, marcada pela atividade humana, acontece em um espaço de três polos, desenvolvendo um esquema tripolar para entender os processos históricos das nossas sociedades ocidentais atuais. De acordo com Schwartz et al. (2010c), os três polos seriam: o polo I das gestões, lugar dos debates de normas e de valores, onde a história se faz, onde acontece o debate de normas, a operacionalização e a concretização ou a negação dos valores dos outros dois polos; o polo II do mercado, orientado por valores mercantis, próprios dos processos de produção capitalista; e o polo III do político ou Politéia, orientado por valores do bem comum. O olhar para a atividade, portanto, segundo a perspectiva ergológica, permite compreender os condicionantes econômicos e sociais dos processos produtivos, identificando neles as marcas da história de uma sociedade; e, ao mesmo tempo, reconhecer a história singular que se faz no cotidiano desses processos, as dificuldades e possibilidades encontradas nas situações concretas de trabalho (Brito, 2008b).
Os valores mercantis são dimensionados por natureza, mensuráveis por parâmetros quantificáveis, já os valores do bem comum são, em sua origem, sem dimensão. Entretanto, cabe observar que é impossível dar realidade aos valores do bem comum sem atribuir uma dimensão, sem alocar recursos, ou seja, eles precisam ser dimensionados para se concretizarem. Sendo assim, quando se busca dar realidade aos valores não dimensionáveis através de sua concretização e, então, dimensionamento, é preciso assegurar recursos, muitas vezes, mercantis, ou mensurar a partir de indicadores do polo mercantil. Da mesma forma, o polo mercantil precisa, muitas vezes, se submeter aos valores do bem comum, ou é limitado por esses valores (Schwartz et al., 2010c). O polo I, da atividade, interage com os outros dois polos e insere na história o movimento dialético entre eles (Schwartz et al., 2010c).
Cabe ressaltar a observação de (Schwartz et al. 2010c) de que a identificação desses polos não pretende ser estrita nem precisamente delimitada e não significa que estes sejam completamente independentes, havendo várias situações intermediárias. Outra observação importante é a de que, no interior do mesmo polo, há debates de normas, pois pode haver interesses diversos e diferentes percepções sobre como alcançar determinado valor, por exemplo. Nesse sentido, a perspectiva ergológica reforça que a relação entre esses polos é complexa e pode ser diferente em cada situação, contexto, espaço, país. Sendo assim, nas sociedades ocidentais contemporâneas, apesar de ser possível perceber a prevalência do polo mercantil a partir da lógica neoliberal dominante, há também pontos de resistência, há embate entre os polos e no interior de cada polo. Ou seja, mesmo nas sociedades capitalistas, alicerçadas em fortes limites estruturais que dependem de uma revolução social para sua superação, há lutas e conquistas dos valores do bem comum. Ademais, para (Schwartz et al. 2010c), a força desses polos e a forma de concretizar os valores é diferente a depender do contexto, do país.
Nesse sentido, de acordo com (Schwartz et al. 2010d), os impactos econômicos, sociais e políticos são diferentes para cada situação de trabalho, isto é, para a Ergologia, é preciso ter cuidado ao generalizar esses impactos na atividade. Ao mesmo tempo, o olhar para a atividade requer uma necessidade de um vaivém permanente entre o micro e o macro. As situações de trabalho sempre contêm, na sua escala, as questões sociais, uma vez que toda atividade de trabalho envolve debate de normas e encontro de valores. “Assim, mesmo considerando um modo de produção dominante (como o capitalista), uma dada formação social (como a brasileira) e uma dada conjuntura, é importante estar atento às singularidades das situações de trabalho em sua concretude” (Brito et al., 2011, p. 26).
De acordo também com a perspectiva ergológica, os polos II e III têm como ponto comum o fato de produzirem normas antecedentes fortes. O polo I, da atividade, é onde acontece a gestão entre as normas antecedentes e as renormatizações. Nesse sentido, (Venner e Schwartz 2015) explicam que as normas antecedentes podem tanto veicular interesses econômicos de tipo mercantil, como sinalizar valores que afirmam a preocupação com a vida e com o bem comum. “Por isso, é importante considerar sua inserção em um campo de lutas em que são instituídos dispositivos, inclusive legais, em uma conjuntura social específica” (Brito et al., 2011, p. 25).
De acordo ainda com a perspectiva ergológica, o debate de normas, as renormatizações e a gestão do trabalho são operados e sustentados na atividade pelo coletivo de trabalho. Para explicar melhor a função desse coletivo, (Schwartz 2010b) desenvolveu o termo “entidades coletivas relativamente pertinentes” (ECRP). De acordo com Schwartz, a noção de ECRP é uma consequência direta da noção de debates de normas que, por sua vez, está diretamente ligada à noção de atividade (Venner & Schwartz, 2015). Schwartz 2010) explica que as ECRP existem em toda organização, estando sempre presentes nas atividades humanas, mas, ao mesmo tempo, é impossível defini-las sem inseri-las na história da atividade.
Nesse sentido,(Schwartz 2010b) destaca que a ECRP teria uma dupla face, o lado da eficácia, da performance econômica, uma vez que o trabalho depende da forma como as ECRP irão gerir as relações, os debates de normas, as variabilidades; e o lado dos valores socialmente partilhados, que é o que acaba por sustentar o funcionamento da atividade. Segundo ele, na construção das ECRP, valores são partilhados, e os valores considerados importantes para os trabalhadores aderem à atividade. Para ,(Schwartz 2010b), é nas ECRP que acontecem os debates acerca do viver junto e dos valores do bem comum, o que acaba por trazer um debate do campo político para a atividade. Portanto, quando não há espaço para a construção das ECRP, não há espaço para esse debate, inclusive, o político. Schwartz ressalta que “as ECRP reprocessam valores que estão em jogo, local e globalmente, contribuindo, dessa forma, para fazer história” (Schwartz et al., 2010a, p. 150). Dessa forma, a Ergologia enfatizará a importância das ECRP para a atividade de trabalho, pois são elas que sustentarão os debates de normas, as renormatizações e a gestão das variabilidades.
Segundo (Brito et al. 2011), quando o suporte a essas entidades coletivas é frágil e não há possibilidade de construir um patrimônio coletivo de normas, o resultado é nefasto para os trabalhadores, em termos de sofrimentos, fragilização, confiança, e também para a eficácia e para a qualidade do trabalho. Portanto, é fundamental para a atividade que a situação de trabalho possibilite a discussão coletiva sobre as normas antecedentes e sobre as renormatizações operadas na atividade, de modo que as futuras normas antecedentes se configurem como diretrizes para a atividade, evitando regulações individualistas e isoladas (Schwartz, 2010b).
Considerando também a perspectiva marxista, o materialismo histórico-dialético contribui para a compreensão dos fenômenos na sua relação com a totalidade social, entendendo-a como dinâmica e histórica. Para a dialética materialista, a realidade está em movimento e não pode apresentar conexões causais estáticas, definitivas. Essa concepção de movimento é essencial para o método dialético. O motor dessa transformação é a contradição, outro conceito central da dialética. Para Marx, a realidade é contraditória, isto é, as relações entre os elementos que a constituem são produzidas em contextos de contradições (Bottomore, 2013). Todas essas contradições são historicizadas, já que se redefinem e se recriam constantemente. Dessa forma, o método deve sempre se ater à concepção de realidade, às questões ideológicas, de relações de classes e, assim, as categorias de análise, assim como o referencial teórico, devem ser sempre historicizados, construídos e não rígidos.
O estudo sobre a atividade dos trabalhadores responsáveis pelo processo de análise de lotação de servidores técnico-administrativos recém-concursados em uma universidade pública brasileira precisa considerar o contexto político e institucional da universidade onde trabalham, incluindo o contexto federal e da macropolítica de educação que prescreve normas para o seu fazer e para a organização institucional. Nesse caso, portanto, a análise, sob o viés do materialismo histórico-dialético, permite compreender o modo de produção, a formação social onde se processa o trabalho e a lógica hegemônica que está na base da demanda da atividade de trabalho investigada. Além disso, a análise materialista dialética auxilia a compreender as contradições que perpassam o contexto e a atividade estudada, contribuindo para a identificação das forças hegemônicas e contra-hegemônicas4.
Segundo a perspectiva do materialismo histórico-dialético, é a partir do desvelamento dos diversos contornos do fenômeno, de suas mediações no plano econômico, político e ideológico e a serviço de quais interesses ele funciona, que se poderá subverter, pelo menos em alguns aspectos, sua lógica utilitarista restrita à reprodução da lógica dominante, e que serão abertas as possibilidades de uma práxis consciente e contra-hegemônica em torno do tema. Ainda segundo essa concepção, os homens são ativos, são capazes de agir sobre as circunstâncias e modificá-las, mas, para isso, é necessário que conheçam os fenômenos em sua essência e não apenas na aparência, para que, assim, possam desvelar seus contornos, finalidades e interesses reais e, assim, superar a lógica dominante. Parafraseando (Marx e Engels 2007), o que permite transformar a história é a práxis revolucionária; o homem é produto, mas também produtor da história humana.
Aqui, é possível traçar um paralelo, portanto, com o entendimento da Ergologia sobre a transformação da atividade através da prática. Movimento que acontecerá, segundo essa visão, a partir do debate de normas num mundo de valores. Debate esse que será emancipador, de acordo com a perspectiva dialética, na medida em que o coletivo de trabalhadores conhece a essência do fenômeno, ou seja, as suas contradições, o embate entre a lógica dominante e os movimentos de resistência dos trabalhadores.
É importante ainda destacar que aqui se está ciente sobre as contradições e sobre os riscos envolvidos na busca pela afirmação de valores do bem comum que podem ser manipulados pela lógica neoliberal de forma a parecer que há interesses comuns e que não há luta de classes. Ressalta-se que, no capitalismo, as contradições e o conflito de interesses e a luta de classes são inerentes à sua lógica e não serão superados. Porém, acredita-se que faz parte da transformação social a luta em todos os espaços pelos valores do bem comum, que se contraponham aos interesses do capital, conquistando-os mesmo que parcialmente, através de movimentos de resistência e de invenção de reservas de alternativas hoje marginais, mas que poderão se tornar hegemônicas no futuro.
O caminho metodológico e a escolha das ferramentas metodológicas da pesquisa da qual esse artigo deriva tiveram como base esses referenciais e pressupostos. Ao tomar como referência o materialismo histórico-dialético, buscando compreender o funcionamento do fenômeno em questão, a investigação parte do real. Não se pode compreender a essência do fenômeno dissociado da sociedade a que ele pertence, é preciso entender as determinações históricas que permitiram chegar ao estado atual do problema pesquisado e inseri-lo no corrente contexto histórico da sociedade capitalista. Em uma direção consonante, na perspectiva ergológica, a investigação sob o ponto de vista da atividade busca confrontar os saberes disciplinares necessários para a compreensão do trabalho, com os saberes da experiência de quem trabalha em uma situação concreta. Com base nesse entendimento, a Ergologia propõe a intervenção na situação de trabalho a partir do dispositivo dinâmico de três polos (DD3P) (Schwartz et al., 2010c), que considera: o polo I dos conceitos, dos saberes “disciplinares”; o polo II das “forças de convocação e validação”, isto é, dos “saberes investidos” na atividade, do saber aplicado; e o polo III, que é o polo das exigências éticas e epistemológicas, que implica o “desconforto intelectual”, em uma postura de respeito em relação aos outros dois polos, necessária para a compreensão do trabalho a partir do diálogo entre os saberes, sem hierarquização. Enfatiza-se aqui a exigência do cuidado ético e da postura de humildade na pesquisa.
A esse respeito, cabe destacar que a compreensão adotada neste artigo se afasta de uma ideia neutra e objetiva de pesquisa, na medida em que a própria motivação para a pesquisa tem como base a busca pela transformação da atividade. Além disso, considera também que o pesquisador e o objeto de pesquisa, bem como o campo, estão sempre implicados (Coimbra & Nascimento, 2008). Somado a esse entendimento, ressalta-se que uma das autoras/pesquisadoras, enquanto integrante da equipe participante da pesquisa, é parte do objeto de investigação. Tal fato foi compreendido como mais um operador que traria benefícios e dificuldades que deveriam ser levados em consideração na construção do trabalho com o intuito de assegurar ética e rigor científico.
O pertencimento ao campo de pesquisa e a relação de confiança, fundamental e já consolidada, com as participantes, facilitou o acesso às informações e a produção de dados. Destaca-se que, desde a construção do projeto de pesquisa, já havia sido negociada, com a equipe e com as instâncias hierárquicas superiores, a possibilidade de o campo ser o seu próprio local de trabalho, o que também contribuiu com a consolidação da confiança.
Entretanto, muitos questionamentos e muitas dificuldades surgiram dessa estreita relação com o objeto de pesquisa. Nesse sentido, ressalta-se a importância das orientações individuais e coletivas enquanto estratégias para possibilitar certo distanciamento do campo e permitir um espaço para trabalhar tais questionamentos e dificuldades. Além disso, ainda nessa direção, outras estratégias adotadas foram a inclusão de uma copesquisadora nos Encontros sobre o Trabalho - dispositivo de intervenção a ser explicitado ainda neste tópico - e as reuniões de orientação com o grupo de pesquisa nos intervalos dos encontros, com a participação do orientador da pesquisa como não participante dos Encontros. Essas reuniões, em que as duas pesquisadoras que foram a campo discutiam com o pesquisador externo, possibilitavam uma confrontação de olhares diferentes sem hierarquização, ampliando a possibilidade de análise de implicação e também dos dados construídos pela pesquisa.
Destaca-se, por fim, que, apesar de conscientes quanto às dificuldades colocadas devido às características da pesquisa e do campo escolhido, em um esforço de cuidado ético, procurou-se neste artigo garantir o anonimato por meio da substituição dos nomes das servidoras participantes por nomes de algumas mulheres que marcaram a história brasileira em campos como o da política, da saúde e da cultura.
2.1. As ferramentas metodológicas
A partir desse entendimento e com o intuito de alcançar os objetivos da pesquisa, as ferramentas metodológicas escolhidas foram: a pesquisa bibliográfica, a pesquisa documental, o dispositivo de Encontros sobre o Trabalho e o diário de campo5. Para a organização e análise dos dados, foi realizada a análise temática.
Os Encontros sobre o Trabalho são dispositivos voltados para reunir trabalhadores para discutir sua própria atividade, refletindo sobre suas escolhas de normas e sobre como elas são um modo de dar concretude a determinados valores. (Durrive 2010) explica que o intuito dos Encontros é multiplicar os lugares de debate sobre a atividade. (Masson et al. 2015) destacam que os Encontros sobre o Trabalho são uma ferramenta metodológica que busca proporcionar o debate, a reflexão e o desenvolvimento da atividade de trabalho, tratando-se de uma produção necessariamente coletiva. As autoras também sinalizam que os Encontros são uma forma de colocar em prática o DD3P (Schwartz et al., 2010c), ressaltando a necessária interlocução entre os saberes disciplinares, constituídos, e os saberes investidos, saberes da experiência, com a exigência de uma postura ética e de humildade epistemológica (Schwartz et al., 2010c). Segundo Durrive (2010), considerando que toda atividade é retrabalho de normas antecedentes e, portanto, fonte de novos saberes, esse espaço de diálogo com os saberes formais pode proporcionar a produção coletiva de saberes novos.
Na época de realização dos encontros, a equipe era composta por quatro servidoras6 - incluída nesse número a pesquisadora/trabalhadora - ocupantes dos cargos de psicóloga, administradora e assistente em administração. Além das servidoras e da pesquisadora/trabalhadora, os encontros contaram com a participação de uma copesquisadora, integrante do grupo de pesquisa e externa à equipe de trabalho. Foram realizados cinco7 encontros que aconteceram entre os meses de junho e agosto de 2019, com duração média de 1h30, e que foram sendo agendados conforme disponibilidade da equipe e de local para a sua realização. Ficou acordado com o grupo que os encontros aconteceriam durante o horário e no próprio local de trabalho, em sala de reunião reservada para tal.
Após a definição da data do primeiro encontro, foi realizada uma reunião com o grupo de pesquisa para refletir sobre aspectos pertinentes a serem abordados nesse encontro. A partir do segundo encontro, todos foram gravados e transcritos. Além disso, foi elaborado um relato sobre cada encontro. Nos intervalos entre os encontros, também foram realizadas reuniões de orientação coletiva nas quais foram compartilhadas as principais questões debatidas pelo grupo, as impressões da pesquisadora e da copesquisadora sobre as discussões, e as contribuições do orientador da pesquisa. Ademais, foram trabalhados conceitos teóricos importantes para as discussões e propostas algumas tarefas a serem realizadas pelo grupo nos encontros.
A Análise Temática (AT) foi o método escolhido para organização, análise e categorização dos dados produzidos. Braun e Clarke (2006) a definem como um método de análise qualitativa para identificar, analisar e relatar padrões (temas) em um conjunto de dados. Segundo elas, é o julgamento do pesquisador que determinará o que é um tema. Além disso, explicam que a AT não é um processo linear, pois envolve um movimento constante entre o banco de dados e a análise que está sendo produzida. Ainda que não se pretenda determinar regras fixas para sua condução, as autoras contribuem com a descrição de orientações e com fases importantes, que foram aplicadas na pesquisa.
Cabe destacar que uma das propostas de tarefa para os Encontros sobre o Trabalho foi pautada nos eixos de análise gerados na categorização de dados realizada na pesquisa de Sousa (2020), a saber: o que é feito pela equipe; os constrangimentos da atividade; as alternativas para o trabalho. Portanto, uma parte dos saberes constituídos que fazem parte da construção do DD3P tem como referência tais eixos de análise, já que estes estão na base da condução de parte das discussões disparadas a partir das tarefas propostas8 na pesquisa. Nesse sentido, a organização dos dados também foi, em parte, influenciada por essas categorias. Outros temas foram extraídos da análise do material dos encontros e das anotações de campo. Os temas de análise da pesquisa incluem as “normas, valores e saberes da atividade de análise de lotação de recém-concursados”; “os constrangimentos9 da atividade”; “estratégias da equipe para lidar com constrangimentos: possibilidades de atuação”. No presente artigo, este último tema será trabalhado.
3. Resultados e Discussão
3.1. O processo de análise de lotação de servidores recém-concursados na UFF
Para fins do alcance do objetivo do presente artigo, cabe, neste momento, apresentar uma breve descrição e caracterização da atividade pesquisada, a partir do que está previsto na sua prescrição.
O processo de recrutamento e seleção externa através da realização de concurso tem suas peculiaridades e possui instrumentos previamente definidos, como a publicação de Edital de abertura do concurso e a aplicação de provas e a comprovação de titulação. Conforme já destacado, considerando que o concurso público é o meio disponível mais democrático e mais isonômico para a seleção de servidores públicos no combate ao patrimonialismo, ao clientelismo e à corrupção no acesso da população aos cargos e aos empregos públicos, a equipe participante da pesquisa (equipe de análise de lotação, integrante da DGL, que compõe a CPTA, uma das coordenações que integra a PROGEPE10) tem buscado11 estratégias no processo de análise de lotação que minimizem suas limitações e que potencializem sua utilização.
O processo de lotação de servidores técnico-administrativos na UFF acontece12, por ordem de prioridade, por meio de: a) Remoção (movimentação de servidores entre unidades organizacionais); b) Nomeação de Candidatos aprovados em Concurso Público; c) Redistribuição (movimentação externa de servidores de outra IFE); e d) Aproveitamento de Candidatos aprovados em Concurso Público realizado em outra IFE.
Cabe observar que o processo de lotação depende da existência de vaga desocupada ou ocupada (nesse caso, permuta entre servidores) disponível. O presente artigo destacará o processo de lotação por meio da nomeação de candidatos aprovados em Concurso Público. O esquema a seguir apresenta, de forma resumida, algumas grandes “etapas” (Figura 1) envolvidas no processo de lotação de servidores recém-concursados na UFF.
3.1.1. Participação da equipe de análise de lotação nas etapas do processo de lotação de servidores recém-concursados na UFF
De maneira geral, pode-se dizer que o primeiro macroprocesso de impacto na lotação de novos servidores é o planejamento da lotação. O planejamento da força de trabalho e o processo de análise de lotação realizados, atualmente, no escopo de atuação da CPTA e da DGL, são impactados pela necessidade de melhor composição da força de trabalho, o que tem contribuído para a distribuição dos cargos técnico-administrativos da Universidade, ainda que não haja um modelo matemático de dimensionamento estabelecido. Em relação ao planejamento da força de trabalho, da gestão e controle de vagas, são destacados os seguintes eixos de atuação: gestão e controle de vagas de cargos técnico-administrativos; reposição de cargos vagos; análise da pertinência do cargo desocupado e de permuta de códigos de vagas/cargos; levantamento de necessidades quanto às especialidades de cargos (cargos do PCCTAE com possibilidade de definição de área ou habilitação); levantamento e definição do quantitativo de vagas e cargos correspondentes que irão compor o Edital do Concurso e a convocação dos candidatos aprovados; levantamento dos setores previstos de exercício para os cargos.
Além das ações referentes à gestão de vagas que irão compor o Edital do Concurso, algumas das integrantes da equipe de análise de lotação também participam de comissões técnicas específicas designadas a planejar, em parceria com o setor responsável pela organização e execução dos concursos de seleção da Universidade, o Concurso Público dos servidores técnico-administrativos. A equipe também participa, juntamente à chefia da DGL e da CPTA, da construção do Edital e de reuniões junto ao setor responsável pelo concurso. Os Editais de concursos públicos são pautados e obedecem às orientações das legislações pertinentes. Quanto aos aspectos do Edital com maior impacto no processo de lotação na Universidade, segundo informações do diário de campo, estão a distribuição das vagas por Munícipios e as especialidades (área ou habilitação) dos cargos, bem como a impossibilidade de definição da especialidade para determinados cargos, além do delineamento do conteúdo programático.
Entre a realização do concurso e a convocação13 dos candidatos aprovados, a equipe de análise de lotação procede ao novo levantamento de vagas que farão parte da convocação14 e, com base nessa definição, entram em contato com as unidades com vagas desocupadas para que indiquem os setores de lotação previstos para cada cargo. A partir das informações fornecidas, a equipe envia para as respectivas futuras chefias imediatas o material para a realização do mapeamento de cada vaga. O mapeamento da vaga considera o cargo e o setor específico de exercício previsto e é composto pelo mapeamento de atribuições e de processos (MAP15) e pelo mapeamento de competências (MC). Atualmente, é realizado em formato online.
As informações obtidas com o MAP e com o MC, além de servirem de base para a análise da compatibilidade entre o perfil do novo servidor e o perfil da vaga, subsidiam as chefias na orientação ao servidor acerca do seu futuro desempenho e de possíveis necessidades de capacitação (Relatório de Gestão, 201716). O material enviado para a realização do mapeamento da vaga a ser provida inclui o Formulário para Mapeamento da Vaga para cada cargo específico e o Tutorial de Mapeamento de Vagas para Gestores. Nesse momento, são levantadas as principais atribuições do cargo no setor, bem como competências técnicas e comportamentais necessárias para a realização das atribuições demandadas. São possíveis situações em que servidores de mesmo cargo, no mesmo setor, exerçam diferentes atribuições conforme o posto de trabalho. Neste caso, para cada “posto de trabalho”, deve ser preenchido um formulário específico (Tutorial de Mapeamento de Vagas, 202117). Após a entrega do material pelas unidades e setores de lotação, a equipe de análise de lotação analisa os Formulários para avaliar possíveis necessidades de revisão e de informações adicionais. Caso não haja necessidade, procede-se a elaboração das ferramentas de análise de lotação a serem utilizadas na convocação.
Com base nas informações coletadas no mapeamento das vagas, a equipe define quais serão as técnicas - dentre entrevista por competências ou dinâmica de grupo e entrevista individual customizada - utilizadas no processo de análise de lotação. Para as entrevistas, são elaborados roteiros, constituídos para a realização de entrevistas semiestruturadas, que são customizadas para cada cargo de acordo com as informações obtidas no MAP e no MC, visando à otimização da obtenção das informações do recém-concursado e a análise da compatibilidade com as possíveis vagas. Para os cargos nos quais apenas a entrevista é aplicada, utiliza-se um roteiro de entrevista por competência, contendo questões comportamentais definidas com base nas competências indicadas no MC. Para os cargos com aplicação da técnica de dinâmica de grupo, o roteiro é customizado com questões para coleta de informações complementares àquelas avaliadas na dinâmica. Cabe ressaltar que o roteiro é construído para cada cargo, pois todos os candidatos convocados para aquele cargo deverão ser submetidos ao mesmo roteiro.
Durante os procedimentos de convocação dos candidatos aprovados nos concursos vigentes, a DGL realiza o processo de análise de lotação que, nesse momento, inclui análise curricular, dinâmicas de grupo e/ou entrevistas individuais com os futuros servidores, grupos de inserção em programa de acompanhamento ao estágio probatório (etapa realizada por outra equipe da DGL), e elaboração de relatos dos grupos e das entrevistas. A análise curricular (e das informações do Formulário de Perfil18) coleta informações que podem ser importantes para a análise de lotação, como local de residência, formação acadêmica, experiências profissionais, cursos realizados, dentre outras. Posteriormente, a equipe realiza as dinâmicas de grupo e/ou entrevistas individuais.
Em seguida, são realizadas reuniões com todas as equipes e a chefia da DGL para a definição da lotação dos recém-concursados. Todas as decisões são tomadas conjuntamente, de forma multidisciplinar, após discussão sobre o perfil de cada candidato e de cada vaga desocupada. Dessa forma, procura-se unir o maior número de informações dos servidores de forma alinhada ao desenho do cargo mapeado, para, então, estabelecer a lotação. O foco é aproximar as expectativas dos ingressantes e da Instituição, realizando uma lotação estratégica e eficiente, baseada, sobretudo, nos aspectos técnicos e comportamentais, bem como nos direitos, no bem-estar e no desenvolvimento profissional dos servidores, de maneira a contribuir de forma mais eficaz com a qualidade do serviço público.
Posteriormente ao processo de lotação, os candidatos convocados são submetidos aos procedimentos de nomeação, posse e exercício, conforme determinação legal19. Nesse sentido, a equipe ressalta, em Tutorial de Mapeamento da vaga (2021), que não é possível, até a entrada em exercício do recém-concursado, garantir que a demanda da Unidade seja atendida. A equipe também destaca que, não sendo atendida a demanda através do processo de lotação vigente, a unidade precisará aguardar a realização de nova convocação (caso haja candidatos homologados) ou novo concurso ou, ainda, processo de remoção ou de redistribuição para a reposição da vaga. Outro ponto sinalizado refere-se às limitações inerentes ao processo de lotação, que podem comprometer a total compatibilidade entre o perfil e as demandas da vaga e o perfil e as expectativas do servidor recém-concursado, já que envolve um universo limitado de possibilidades de lotação (setores com vagas desocupadas) e de possibilidade de candidatos (aprovados no concurso público).
3.2. Estratégias de regulação da equipe na construção de possibilidades de atuação
Considerando os debates realizados sobre a atividade de análise da lotação de servidores recém-concursados na UFF pela equipe responsável por esse processo nos Encontros sobre o Trabalho, a despeito de vários problemas e dos constrangimentos da atividade, o grupo ressaltou, durante todos os encontros, várias conquistas em favor da construção de possibilidades de atuação na atividade. Foi sinalizado que muitas das normas atuais da atividade foram construídas a partir dos debates de normas, contribuindo para a construção de um patrimônio coletivo, o que solidifica essas conquistas. Nessa mesma direção, também foram ressaltadas pelas servidoras várias estratégias que a equipe utiliza para lidar com os constrangimentos e para expandir suas possibilidades de atuação. Conforme já destacado, de acordo com a perspectiva ergológica, diante das variabilidades inerentes ao meio da atividade, “na situação real de trabalho, os trabalhadores (re)criam estratégias, em um movimento contínuo de renormatização” (Brito, 2008b, p. 457). Portanto, dentre essas estratégias, estão as renormatizações operadas na atividade pelos trabalhadores.
Apesar das dificuldades apontadas pelas servidoras e dos diversos constrangimentos que perpassam o processo de análise de lotação, o grupo acredita que os valores que buscam alcançar e as normas criadas para dar concretude a esses valores têm impacto direto na qualidade do serviço público e que, por isso, seu comprometimento com a atividade de trabalho se mantém. Sobre as negociações de normas (Venner & Schwartz, 2015) que buscam consolidar e alcançar os valores nos quais se acredita, o grupo ponderou que sempre procura manter a isonomia do processo de análise de lotação, buscando, ao mesmo tempo, considerar e, sempre que possível, atender às demandas e às expectativas das áreas e dos candidatos. Portanto, ainda que algumas áreas sinalizem interesses em determinado candidato e vice-versa, tudo será ponderado pela equipe de modo que prevaleça o alcance da qualidade do trabalho e do interesse coletivo.
Copesquisadora: O que é interessante (...) é que vocês tentam fazer essas normas e renormatizam para fazer valer esses valores. Só que vocês são atravessados por outros valores (...). Nise: E, às vezes, eles mesmos se esbarram. Por exemplo, a gente tem aqui a qualidade do trabalho de análise, o alcance dos objetivos institucionais e dos trabalhadores, às vezes, esses objetivos esbarram na própria isonomia do processo. Pagu: Foi até o que eu coloquei: interesse coletivo está acima. Na hora de escolher, o que vai prevalecer? Qual valor? Serviço público ou interesse da pessoa? Nise: É, eles esbarram, então, por exemplo. Eu lembro bem desse caso do médico especialidadeque, assim, de uma forma geral, a gente não fala das vagas e, nesse caso, era uma questão de decisão, era um critério de decisão para ele ser lotado em determinado local que não envolvesse plantão. Ele precisava dessa informação para tomar posse e aí isso esbarrava na isonomia do processo, porque a gente não fala. (...) Nise: Porque aí a gente viu que, nesse caso, você estaria prejudicando uma pessoa, a carreira dela. Pagu: Inclusive o serviço público também. Nise: O serviço público, porque ele não daria conta. Copesquisadora: A teoria fala muito desses ajustes no trabalho para fazer valer o valor, né? Então é como se vocês tivessem que o tempo todo estar negociando com esse “caso a caso”. Nesse caso, nessa situação. Pesquisadora: A gente faz isso o tempo inteiro, porque como é muito complexo e envolve muitos critérios, envolve muitos valores, envolve muitos destinatários, precisa o tempo inteiro estar fazendo essas negociações, essas renormatizações. (Trecho de diálogo do 5º Encontro)
A situação relatada no trecho anterior é ilustrativa de um debate de normas operado na atividade. Considerar, na análise de lotação, as necessidades e as expectativas da Instituição e dos servidores, pautando-se, ao mesmo tempo, na isonomia do processo e no interesse coletivo, requer constante debate de normas. Algumas vezes, o próprio grupo questiona, por exemplo, se o fornecimento de uma determinada informação para um servidor recém-concursado específico vai de encontro a alguma norma construída pela equipe ou pela DGL. Porém, ao refletir sobre todos os seus aspectos, avalia ser necessário para a atividade a possibilidade de operar renormatizações, coadunando com os apontamentos da perspectiva ergológica já destacados neste artigo (Schwartz et al., 2010b). Ressalta-se, na situação descrita, como as renormatizações operam nos constrangimentos da atividade, permitindo que a equipe expanda suas possibilidades de atuação e contorne, nesses casos, alguns dos constrangimentos. Foi possível perceber que a área adquiriu uma maior compreensão do processo de análise de lotação, sua complexidade e suas limitações.
O grupo também debateu sobre estratégias que utiliza e que gostaria que se tornassem norma, e não uma ação isolada, o que fica impossibilitado por alguns constrangimentos. Em um dos encontros, uma das participantes relatou uma situação na qual considera que a equipe atuou de uma forma mais próxima com a qual gostariam de atuar em outras situações, já que, para duas áreas, puderam oferecer um retorno mais detalhado sobre os critérios e tudo o que foi considerado para a lotação de um servidor. Sobre esse aspecto, ressaltou-se que haveria dificuldades desse retorno para todas as áreas, mas que seria importante em casos específicos. Nesse sentido, ao descrever uma situação de análise de lotação para um dado cargo, na qual foi necessária uma pesquisa mais ampla das atribuições do cargo, o grupo apontou que considera que seria importante a participação da chefia imediata no processo, na etapa da entrevista, por exemplo. Ponderou-se, entretanto, que, para isso, seria necessário mais tempo para as etapas da atividade e maior autonomia da equipe para definir casos em que haveria essa participação ou para deliberar em casos em que um candidato fosse compatível com mais de uma área, por exemplo.
Nise: Até uma outra coisa que eu ia falar, essa questão do fazer e o que gostaríamos de fazer. Os cargos mais técnicos, no sentido de que não são tanto da área administrativa... Técnico em nutrição e dietética, técnico em química, eletrotécnico que exige um conhecimento técnico que a gente não dispõe... O que seria o melhor dos mundos? O gestor para participar dessa entrevista com a gente, porque ele pode conversar. (...) até porque, por mais que eu estivesse como MAP ali, ele falava assim: “Poxa, mas isso é um campo gigante de atuação, eu não sei dizer por que isso compreende tanta coisa”. (...) Nise: Esse seria o melhor dos mundos, quando a gente trata de cargos muito técnicos. E as pessoas estão entrando cada vez mais capacitadas. Se, por outro lado, o concurso traz muita gente sem experiência, você também tem cargos que as pessoas vêm com pós-doutorado. Então, assim, como eu vou analisar? Eu que não tenho formação nisso vou analisar tecnicamente, porque, às vezes, é o detalhe do detalhe. (...) Nise: É, nesse caso do setor específico], seria fundamental. Pagu: O tempo é uma questão até para essas entrevistas, como é tudo na correria, se você inclui o gestor de uma área, todas as áreas vão querer, então a gente teria que ver como controlar e selecionar isso, que áreas que iriam participar e que áreas que não. Explicar isso: “Olha só, porque nessa área específica...”. Além disso, tem um tempo de, além de você passar por uma entrevista com a gente, passar pela área ou passar junto. Nise: Aí a gente teria que ter ainda mais autonomia, porque eu sempre tenho uma vaga que todo mundo quer, então caberia a gente bater um martelo para quem vai. Se eu não tenho autonomia, quem manda mais vai ficar com esse candidato e isso só iria prejudicar o processo. Pagu: Mas seria um mundo ideal. (Trecho de diálogo do 4º Encontro)
Em outra discussão abordada durante os Encontros sobre o Trabalho e no material do diário de campo, é possível perceber que as servidoras entendem que, dada a complexidade da atividade e a diversidade de constrangimentos, é necessário repensar e rever, constante e cotidianamente, o processo de análise de lotação. Apesar da compreensão sobre a importância da prescrição e das normas antecedentes e sobre os prejuízos da ausência de normas (Brito et al., 2011)20, a equipe também considera que tal atividade de análise de lotação requer, muitas vezes, o olhar para a especificidade de determinadas situações, baseando as decisões que diferem das normas nos valores que a equipe busca afirmar e no debate coletivo. Ao mesmo tempo, à medida que a equipe busca deliberadamente utilizar a aprendizagem da situação anterior para novas situações semelhantes, as renormatizações geram uma reserva de alternativas da atividade, que também fazem parte do patrimônio desse coletivo. Schwartz, em entrevista para (Di Fanti e Barbosa 2016, s. 230), explica que “Cada renormalização é uma reserva de alternativas, uma maneira de propor algo para fazê-lo melhor. Essa reserva de alternativas tem que ser socializada para dar argumentos a uma transformação de tal dimensão do trabalho em comum”. Ele acrescenta que será necessário verificar na atividade a possibilidade de usá-las enquanto alternativas que permitam avanços no trabalho, o que deverá ser pautado nos valores e no debate coletivo.
Outra estratégia de atuação da equipe que tem grande destaque e que aparecerá em quase todos os encontros, é a construção e consolidação de parcerias internas e externas. As parcerias internas envolvem as outras equipes da DGL, a chefia imediata, e os setores e a gerência da CPTA. As parcerias externas, por sua vez, são aquelas com os diversos setores da Universidade, principalmente, aquelas áreas que são usuárias ou destinatárias do serviço.
A equipe não é a única responsável pelo processo de análise de lotação, o que torna essencial o trabalho conjunto entre as equipes da DGL, além da aliança com setores parceiros no processo e com a gerência. O grupo abordou como essa parceria se construiu e os desafios desse processo, ressaltando um de seus aspectos: a necessidade de construção de confiança, que passou por muitas negociações e debates de normas e de como dimensionar os valores. Isso porque, era difícil manejar com as diferenças nas formas de dar concretude aos valores buscados pelas diferentes equipes da DGL. Foi sinalizado que a forma de dar concretude, por exemplo, ao valor qualidade do trabalho construída pela equipe, através das normas relativas às etapas e à metodologia de análise de lotação, pode ser diferente daquela que seria construída pelas outras equipes.
Nise: Então a gente lida ainda com as outras áreas que estão tentando fazer valer as normas dela, os valores dela em relação a isso tudo. Aí o nosso trabalho bate de frente sicpor causa do prazo, mas a gente sabe que está todo mundo buscando a mesma coisa e aí eu acho que isso meio que acalenta. (2º Encontro) Copesquisadora: Pensando em normas, como é que elas afetam o trabalho de vocês, vocês pensam sempre em que? Na qualidade do trabalho, então para vocês é um trabalho estratégico, mas para essa pessoa qualidade é cumprir a lei. Pagu: É o necessário só. Copesquisadora: É o que precisa para que o trabalho seja bem avaliado. Nise: Exatamente, contanto que eu cumpra ali a lei, ele tem qualidade. Copesquisadora: Isso atravessa, né? Isso é muito interessante, como esse debate de normas acaba atravessando o trabalho de vocês. (Trecho de diálogo do 5º Encontro)
Sobre a discussão abordada neste último trecho de diálogo, é possível também destacar algumas questões importantes para reflexão que permeiam as estratégias de regulação da atividade. Primeiramente, é preciso reiterar a importância da reserva legal no sentido amplo e do cumprimento dos princípios constitucionais como forma de garantir a democracia e a prevalência dos interesses coletivos e sociais. Portanto, considera-se imprescindível respeitar os limites da lei e acredita-se no uso dos princípios da burocracia como forma de combate às práticas patrimonialistas, de clientelismo, empreguismo, nepotismo, entre outras. Considerando o primado do interesse público sobre o particular e a ordem democrática, os princípios da legalidade, da impessoalidade, do uso de regras formais e universais, compatíveis com o Estado de Direito, são indispensáveis para a administração pública. Entretanto, sem deixar de ter em conta toda a complexidade e as contradições inerentes à discussão, considera-se que o excesso de formalismo, de legalismo e de rigidez representam um impedimento para a atividade e acabam prejudicando o funcionamento do serviço público. Acredita-se ser fundamental o uso da lei, das legislações como referência de limites e de garantia de direitos e de conquistas, mas estando atento a não enrijecer a atuação a ponto de prejudicar o funcionamento do serviço público e acabar por contribuir, contraditoriamente, com seu desmonte.
Nesse sentido, considera-se que é imprescindível respeitar os limites da lei, mas também questionar o legalismo excessivo, no sentido de cumprir apenas o que está expressamente exigido em lei, que pode, contraditoriamente, impedir o alcance dos demais princípios da Administração pública, bem como de direitos e de interesses coletivos, de valores do bem comum. Por isso, a importância do espaço para a construção das ECRP, que sustentarão, no coletivo, as decisões.
Sendo assim, retomando-se a discussão sobre a construção das parcerias e das alianças, apesar dos desafios, as servidoras enfatizaram sua importância e da contribuição de diferentes visões para a análise de lotação e da decisão e da responsabilidade compartilhadas, por isso consideram ser fundamental que as decisões sobre a lotação, por exemplo, sempre sejam tomadas em conjunto, em reuniões.
Pagu: A gente falou disso até nos primeiros encontros, o MAP não é a ferramenta em si, sozinha ela não comporta. Lembra que a gente até falou do quão complexo é que você tem que analisar depois daquilo, você tem que questionar a área, você vai por outras fontes. Copesquisadora: Vocês falaram de outras áreas. Vocês falaram que é complicado, porque não é só a ferramenta em si, né? (...) Nise: Definição da lotação em reunião multidisciplinar, considerar diversidade de saberes. Pagu: (...), a gente sempre fala da importância disso. Nise: Agrega bastante. Pagu: De outros olhares também, mais gente, até gente que nem participou da entrevista, mas tem conhecimento da área. Olhando o relato a gente também opina, não é só a pessoa que fez a entrevista. Isso agrega, né? Nise: Sim, é compartilhar responsabilidade, porque é uma responsabilidade muito grande, então se eu estou falando ali, a gente enquanto equipepensa em uma lotação e a outra equipeconcorda, (...) Porque é muito grande a responsabilidade, então, a partir do momento que você compartilha... Pagu: E realmente agrega, porque, como a gente falou, são tantos critérios a considerar que só uma pessoa, é difícil. Quando tem mais gente... (..) eu acho que tem que ser compartilhado. Nise: Mas eu ainda acho que a questão da visão multidisciplinar, porque isso pode me faltar e eu nunca vou saber o que está faltando porque eu não tenho essa visão. (Trecho de diálogo do 5º Encontro)
Nesse ponto, é importante relembrar as entidades coletivas relativamente pertinentes (ECRP) (Schwartz, 2010b). A observação das servidoras quanto à construção da confiança está na base dessas ECRP e pauta-se no compartilhamento de valores comuns e na disposição de criar normas que sejam coerentes com esses valores. Considerando que o processo de debate de normas é intenso, uma vez que a forma de concretizar os mesmos valores pode ser muito diferente, a confiança e a cooperação tornam-se fundamentais. Scherer et al. (2009) ressaltam que:
“Conhecer o trabalho do outro é condição necessária para que uma colaboração se desenvolva. A comunicação, a identificação da presença de diversas lógicas e a compreensão, pelos profissionais, das contraintes das outras profissões, podem contribuir para a resolução das dificuldades de colaboração. A gestão cotidiana de compromissos, implícitos ou explícitos, pode articular as diversas lógicas dos distintos atores. (...) A construção do coletivo depende da presença de um mínimo de estabilidade e de certa permanência na organização, pois a confiança e a cooperação se constroem com o tempo” (Scherer et al., 2009, p. 723).
Os autores ainda destacam que a ética da responsabilidade e da solidariedade é fundamental para orientar ações e construir coletivos. Cabe, nesse momento, salientar que, neste artigo, se está atento às contradições inerentes ao trabalho enquanto atividade remunerada na sociedade capitalista contemporânea. Nesse sentido, se está ciente do fato de que as ECRP, a cooperação e a confiança são fundamentais para a saúde dos trabalhadores e para a concretização de valores do bem comum partilhados pelo coletivo e podem fazer parte da luta dos trabalhadores por um trabalho com mais espaço de decisão e de criação, mas também podem ser apropriadas pela lógica neoliberal como forma de aumentar a exploração e de garantir a continuidade da produção e dos interesses do capital. Alves (2000) alerta que, com a expansão da lógica neoliberal, não é apenas o saber operário que é capturado pela lógica do capital, mas a sua disposição intelectual-afetiva que é constituída para cooperar, para trabalhar em equipe, buscando sempre maior qualidade e produtividade.
Entretanto, ainda em uma análise materialista-dialética, há que se considerar que a atividade em questão está inserida no cenário de lutas pelo e no interior do serviço público, que tem seus resultados com efeitos na relação entre o Estado e a sociedade e, portanto, a busca pela qualidade e pela melhoria do trabalho é compatível com os valores do bem comum que se quer afirmar na atividade. Portanto, acredita-se que, nesse espaço de lutas e de contradições, as ECRP, a cooperação e a confiança na atividade de trabalho coadunam com a luta dos trabalhadores e com a melhoria do serviço público. O importante é tentar garantir que a construção dessa cooperação se dê através de objetivos construídos coletivamente e não de uma regra imposta e incoerente com os valores do bem comum.
Em relação à estratégia de construção e consolidação das parcerias com os outros setores da Universidade, fundamental para o processo de análise de lotação, as participantes destacaram o início dessa construção, ressaltando o apoio da gerência e a qualidade do resultado do trabalho, assim como a aposta de algumas áreas na nova metodologia. O grupo explicou que a estratégia inicial para a construção dessas parcerias, após a conquista do apoio da gerência, foi comunicar, através da gerência da CPTA, a mudança para o novo processo de lotação, fazer o contato inicial com as áreas, através do e-mail da CPTA, e fazer reuniões com os dirigentes das unidades e com as chefias imediatas que participariam do processo de análise de lotação para receber servidores recém-concursados.
Nise: Porque, assim, tem áreas que a gente... Grande parte das áreas já são bem parceiras nossas, assim sic]. Uma parceria sempre foi, porque, no fundo, se você pensar na parte legal, não é necessário. Então, assim, foi porque a gente teve uma gestão que comprou a ideia e aí a gente mostrou o nosso trabalho. O trabalho mostrou a qualidade, a gente teve um retorno, mas as áreas, elas poderiam não ter comprado também. Quantas políticas de gestão de pessoas tentam ser implementadas, mas aí você não tem a parceria das outras áreas e o negócio vai embora. Mas a gente tem hoje, eu acho que grande parte, a maioria é parceira. É claro que elas ainda estão cruas tecnicamente em relação a isso, até porque é um processo novo. (2º Encontro) Copesquisadora: Eu não sei se ainda dá tempo, mas eu fiquei curiosa em relação às parcerias. O tempo todo vocês estão falando do avanço das parcerias... Como vocês tem conseguido fazer essas parcerias? (...) Pagu: Na verdade, a gente teve o aval da CPTA, da Coordenação que passou um e-mail para todo mundo, para todos os pró-reitores e diretores, falando do novo processo de lotação. Nise: Sim, eles compraram toda a ideia. Mas foi uma estratégia que a gente arrumou, a gente tinha o processo e a gente viu que não dá para apenas chegar e falar: “Nós somos uma equipe nova e a partir de agora o processo de lotação vai ser esse”. Então, para dar mais credibilidade para isso, para eles lerem nosso e-mail porque vai cair no spam, nunca receberam e-mail nosso. Então manda pela CPTA. Tanto que na primeira convocação, o e-mail não foi enviado pelo nosso e-mail, foi enviado pelo e-mail da CPTA. Aí, a gerêncialevou para uma reunião com dirigentes], explicou nessa reunião], foi um memorando documento oficial de comunicado institucional usado na época]. Então teve toda uma estratégia: “Vamos começar uma coisa nova aí”. Margarida: A gente fazia reuniões, lembra? Pagu: A gente marcou reuniões com as chefias para explicar. Foram quantas reuniões? Muitas. Mais de 50. Nise: Mais de 50. Margarida: A gente fazia o MAP junto com ela, para ela aprender a usar aquela ferramenta nova. Pagu: Explicava a nova lógica de trabalho. (Trecho de diálogo do 2º Encontro)
Segundo o grupo, insistência e persistência, entretanto, foram necessárias para a construção das parcerias devido às diversas dificuldades encontradas ao longo do processo - ocasionadas pelo processo de mudança em si, considerando a introdução de uma nova metodologia, o tempo de aprendizagem necessário, ainda a rotatividade das chefias, e o fato de, muitas vezes, as áreas não utilizarem as instruções de preenchimentos, ainda que haja material com orientações. Sinalizou-se que esse processo de construção de parcerias é contínuo, observando a importância de voltar a fazer reuniões com as áreas e de estreitar os laços da parceria, para aumentar o conhecimento da área sobre o processo de análise de lotação, aumentar o conhecimento da equipe sobre as demandas e necessidades das áreas e fundamentar a gestão de vagas e análise de lotação.
Nise: você estava falando da construção dessa parceria, essa parceria foi construída a fórceps. A gente foi entrando... Copesquisadora: Foi desbravando a Universidade. Nise: Aí foi e manda um e-mail, manda outro, aí liga e fala com não sei quem. Pagu: E eu acho que a gente vai ter que continuar, assim... eu acredito, porque hoje a gente não tem força de trabalho suficiente, nós somos poucos, para conseguir isso. Mas eu acho que aumentando, porque a gente tem uma perspectiva de aumentar a equipe, a gente tem que voltar a fazer reuniões, de repente. Pelo menos assim. Margarida: São várias demandas da área né. Pagu: Porque é importante para fortalecer. Margarida: Se a gente souber da demanda que a área tem mesmo ali, para conseguir tomar melhor a decisão. Enquanto eu não consigo avançar melhor ali, eu não consigo tomar a melhor decisão. (Trecho de diálogo do 2º Encontro)
Uma das servidoras destacou ainda que, apesar das dificuldades relatadas, na época dos encontros, a equipe já vinha sendo procurada por muitas áreas como referência para questões sobre gestão de vagas, planejamento e análise de lotação. Outra participante sinalizou também que as áreas onde as parcerias estão mais fortes são áreas nas quais essa parceria é estabelecida através de um técnico-administrativo como referência, como intermediário. Além disso, o grupo observou ainda que, em alguns casos, o fortalecimento da confiança e da parceria se deu após o resultado do trabalho, no sentido de lotações que mostram compatibilidade com demandas da área, atendimento da necessidade e bons resultados.
O grupo ressaltou a importância dessas parcerias, destacando que as parcerias mais duradouras possibilitam maior alcance dos valores que busca afirmar. Essa parceria é fundamental para a atividade de análise de lotação. Quanto mais parceiras, maior o cuidado e os acertos na realização do mapeamento das vagas, aumentando a qualidade das informações necessárias para a análise de lotação, o que também permite maior confiança entre a área e a equipe, além de maior autonomia da equipe para a participação na gestão das vagas e na análise de lotação.
Nise: É, a gente percebe que a gente já está no terceiro ano de convocação nesse modelo, de grandes convocações nesse modelo. O que eu percebo? Que as parcerias que começaram lá em 2017 e que começaram de uma forma mais bacana, né, assim, sicacho que vendo que tem uma área ali para ajudar... (...) Nise: Hoje, o processo já vai redondinho, então os MAPs são melhores estruturados sic], eles entendem quando a gente fala: “Olha, não cabe” determinado cargo naquele setor], então eles falam “Ok, então qual que você acha que cabe? ”, eles devolvem a pergunta para a gente. É o que a gente falou da parceria, são áreas parceiras mesmo. Copesquisadora: (…) algumas áreas, pelo que vocês falaram, só pelo falar... Vocês foram visitar as áreas, foram apresentar o trabalho e eles apostaram, naquele primeiro momento, na primeira convocação. Nise: Essas áreas, o trabalho hoje já está bem estruturado e consolidado. A equipe já é vista como um ponto focal. (...) Pagu: As áreas que a gente tem mais parceria são onde tem um técnico-administrativo que meio que faz a negociação. Que é meio que um suporte ali do dirigente máximo], para o gestor, ou um assessor, que faz essa ponte com a gente, porque eles entendem um pouco mais até. (...) trocou o diretor, mas ela continua e aí ela conseguiu dar essa continuidade. Ela explicou para essa nova diretora o que é o trabalho e é isso, ela usa a gente como referência para tudo. A gente tem uma troca muito boa com essa área. Tem outros que também são assim, são muitas áreas assim. (Trecho de diálogo do 4º Encontro)
O conceito de ECRP (Schwartz, 2010b) também contribui com a compreensão das parcerias construídas na atividade de análise de lotação com as áreas e os setores das unidades que recebem servidores recém-concursados. Um dos aspectos relacionados à discussão anterior que se destaca também nas parcerias externas é a questão do tempo, de um mínimo de estabilidade e de permanência para a construção da confiança e da cooperação, o que se evidencia quando as servidoras destacam o prejuízo da rotatividade das chefias para essa construção e, por outro lado, a força das parcerias estabelecidas através de um técnico-administrativo, mais permanente no setor.
Outro ponto que merece destaque é que a construção dessas parcerias e ECRP baseia-se em valores comuns, compartilhados, em prol da melhoria da atividade e do serviço público. Ressalta-se que a equipe é terminantemente contra qualquer relação clientelista ou de troca de favores, o que seria uma falsa cooperação. As servidoras destacam, inclusive, que, em alguns casos, o fortalecimento da confiança e da parceria se deu após bons resultados do trabalho, representados nos ganhos para a área enquanto atendimento das necessidades institucionais e da possibilidade de continuidade do funcionamento da Instituição com qualidade. Durante toda a pesquisa, a equipe demonstrou estar permanentemente na busca pela qualidade do serviço público e afirmação de valores compatíveis com o bem comum. E, apesar de todos os desafios colocados nesse percurso, as servidoras se mantêm mobilizadas nessa direção.
4. Considerações Finais
Ao pensar o contexto da atividade de análise de lotação, é possível observar a luta cotidiana pela afirmação de valores do bem comum presentes na Universidade como fruto de conquistas, de lutas dos trabalhadores e sindicatos, mas que não estão garantidos, precisando ser constantemente reafirmados, uma vez que se encontram em embate permanente com as forças do polo mercantil, da lógica neoliberal que busca dominar todos os espaços da sociedade, inclusive, o do serviço público. Nesse cenário, a equipe responsável pela análise de lotação dos servidores técnico-administrativos recém-concursados da UFF busca afirmar, no polo da gestão, os valores do bem comum. Considerando as estratégias coletivas de gestão da atividade desenvolvidas, é possível destacar que, apesar dos muitos constrangimentos identificados na atividade, as servidoras seguem buscando estratégias a favor de construir forças de resistência em prol dos trabalhadores e da manutenção e da melhoria do serviço público.
Dentre as diversas estratégias de regulação da equipe na construção de possibilidades de atuação evidenciadas nos Encontros, ressalta-se a importância da aliança e das parcerias internas e externas, o cuidado com o coletivo e com o ponto de vista da atividade. Para construir alianças, é importante compreender que é necessário colocar em diálogo normas diferentes. O diálogo é fundamental para sustentar esse debate de normas. Além disso, a construção coletiva também é imprescindível, uma vez que o processo de análise de lotação não é meramente técnico e prescritivo. É preciso considerar o ponto de vista da atividade de todos aqueles envolvidos no processo, a equipe de análise de lotação, a DGL, a CPTA, as unidades, os candidatos. São muitas normas e muitas expectativas diferentes. A equipe de análise de lotação busca construir soluções que alcancem os objetivos envolvidos. Entretanto, não há resultado perfeito, não há garantias exatas, porque a análise de lotação é um processo de construção constante.
Nesse sentido, ressalta-se que a pesquisa pode ter contribuído com a apropriação da atividade pelas servidoras, elucidando os debates de normas que são operados na atividade e as conquistas, apesar dos constrangimentos. Acredita-se que esse processo de reflexão auxilia a fortalecer os laços e a confiança do coletivo na sua capacidade de fazer uma gestão que articule saúde, produtividade e qualidade em prol de uma universidade pública, gratuita, autônoma e de qualidade.