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Laboreal

versão On-line ISSN 1646-5237

Laboreal vol.19 no.2 Porto dez. 2023  Epub 01-Dez-2023

https://doi.org/10.4000/laboreal.21471 

Resumo de tese

Transmitir o que se sabe, como se sabe e quando se pode”: uma análise multidimensional da transmissão de conhecimentos no trabalho para a construção da sua sustentabilidade

Transmitir lo que se sabe, cómo se sabe y cuándo se puede”: un análisis multidimensional de la transmisión de conocimientos en el trabajo para construir su sostenibilidad

« Transmettre ce que l'on sait, comment on le sait et quand on le peut » : une analyse multidimensionnelle de la transmission des connaissances au travail pour construire sa soutenabilité

Transmitting what you know, how you know it and when you can”: a multidimensional analysis of the transmission of knowledge at work for the construction of its sustainability

1Faculdade de Psicologia e de Ciências da Educação da Universidade do Porto, Rua Alfredo Allen, s/n, 4200-135 - Porto, Portugal, cpereira@fpce.up.pt


Resumo

Este texto apresenta um resumo de uma tese de doutoramento em psicologia dedicada ao estudo da transmissão informal de conhecimentos entre trabalhadores de diferentes idades, antiguidades e experiências, procurando-se compreender como se poderá construir uma transmissão sustentável nos contextos de trabalho, valorizando trabalhadores e os seus conhecimentos, tendo em vista o seu desenvolvimento e a preservação da sua saúde. O trabalho empírico desenvolveu-se ao longo de quatro anos, sob o prisma da análise da atividade e da valorização dos seus protagonistas, numa empresa metalomecânica de produção de embalagens de metal em Portugal, junto de trabalhadores de duas áreas operacionais e da equipa de Recursos Humanos e responsáveis de produção. Complementarmente, efetuou-se uma recolha de dados quantitativos com trabalhadores de diferentes contextos do setor secundário. A tese apresenta as características e condições de transmissão e discute os desequilíbrios ainda vivenciados entre a atividade de transmissão e de produção, a partir de diferentes pontos de vista. Perspetiva, também, contributos teórico-metodológicos emergentes da investigação realizada para a construção de uma sustentabilidade da transmissão no contexto de trabalho. Alguns destes elementos são apresentados no presente texto.

Palavras-chave: transmissão de conhecimentos; sustentabilidade; atividade de trabalho; setor industrial; gestão de recursos humanos

Resumen

Este texto presenta un resumen de una tesis doctoral en psicología dedicada al estudio de la transmisión informal de conocimientos entre trabajadores de diferentes edades, antigüedad y experiencias, buscando comprender cómo se puede construir una transmisión sostenible en contextos de trabajo, valorando a los trabajadores y sus conocimientos, con vistas a su desarrollo y a la preservación de su salud. El trabajo empírico se realizó a lo largo de cuatro años, analizando la actividad y valorando a sus protagonistas, en una empresa metalúrgica productora de embalajes metálicos en Portugal, con trabajadores de dos áreas operativas y con el equipo de Recursos Humanos y responsables de producción. Además, se recogieron datos cuantitativos obtenidos de trabajadores en diferentes contextos del sector secundario. La tesis presenta las características y condiciones de la transmisión y discute los desequilibrios aún existentes entre la transmisión y la actividad productiva, desde diferentes puntos de vista. También aborda las contribuciones teórico-metodológicas surgidas de la investigación realizada para la construcción de la sostenibilidad de la transmisión en el contexto laboral. Algunos de estos elementos se presentan en este texto.

Palabras clave: transmisión de conocimientos; sostenibilidad; actividad de trabajo. sector industrial; gestión de recursos humanos

Résumé

Ce texte présente un résumé d'une thèse de doctorat en psychologie consacrée à l'étude de la transmission informelle des connaissances entre travailleurs d'âges, d'anciennetés et d'expériences différents, cherchant à comprendre comment une transmission soutenable peut être construite dans des contextes de travail, tout en valorisant les travailleurs et leurs connaissances, en vue de leur développement et de la préservation de leur santé. Le travail empirique a été mené durant quatre ans, selon le principe méthodologique de l'analyse de l'activité et de la valorisation de ses protagonistes, dans une entreprise de métallurgie produisant des emballages métalliques au Portugal, avec des travailleurs de deux secteurs opérationnels, l'équipe des Ressources Humaines et les responsables de la production. En outre, des données quantitatives ont été recueillies auprès de travailleurs de différents contextes du secteur secondaire. La thèse présente les caractéristiques et les conditions de la transmission et questionne les déséquilibres qui subsistent entre l'activité de transmission et l'activité de production, en croisant différents points de vue. Enfin, les apports théorico-méthodologiques issus de la recherche menée pour construire la soutenabilité de la transmission dans le contexte du travail sont abordés. Certains de ces éléments sont présentés dans ce texte.

Mots-clés : transmission des connaissances; soutenabilité; activité de travail; secteur industriel; gestion des ressources humaines

Abstract

This text presents a synthesis of a doctoral thesis in psychology dedicated to the study of informal transmission of knowledge between workers of different ages, seniorities and experiences, seeking to understand how sustainable transmission can be built in work contexts, valuing workers and their knowledge, with a view to their development and the preservation of their health. The empirical work was carried out over four years in a metalworking company producing metal packaging in Portugal. It adopted the perspective of analyzing the activity and valuing its protagonists, with workers from two operational areas and the Human Resources team and production managers. In addition, quantitative data was collected from workers in different contexts in the secondary sector. The thesis presents the characteristics and conditions of transmission and discusses the imbalances still experienced between transmission and production activity, from different points of view. It also provides theoretical and methodological contributions emerging from the research carried out for building the sustainability of transmission in the work context. Some of these elements are presented in this text.

Key words: knowledge transmission; sustainability; work activity; industrial sector; human resources management

Introdução

A tese de doutoramento que aqui se apresenta aborda a transmissão de conhecimentos e construção da sua sustentabilidade nos contextos de trabalho, entre trabalhadores de diferentes idades, antiguidades e experiências, considerando o fenómeno da intensificação do trabalho e respetivos constrangimentos à transmissão.

Esta tese enquadra-se na área da psicologia do trabalho e da ergonomia da atividade, privilegiando a análise da atividade de trabalho e a transformação e melhoria das condições de trabalho dos indivíduos, tendo em vista o desenvolvimento de competências e preservação da saúde (Guérin et al, 1991). Ancorado nesta tradição científica, o projeto visou dar resposta à seguinte questão central de investigação: como se poderá construir, nos contextos de trabalho, uma “transmissão sustentável”, que valorize os trabalhadores e os seus conhecimentos, tendo em vista o seu desenvolvimento e a preservação da sua saúde?

O presente texto apresenta um resumo da tese realizada, considerando o ponto de partida do trabalho e contributos teóricos, as ideias defendidas pela autora na tese realizada e o processo de investigação concretizado, alguns dos principais resultados obtidos e respetivas reflexões acerca do presente e do futuro das condições de transmissão em contexto de trabalho.

A complexidade associada à transmissão ‘do que se sabe’ em contexto de trabalho

O ponto de partida deste projeto de tese prendeu-se com a compreensão de que transmitir, no dia-a-dia de trabalho, aquilo que se sabe, coloca-se, cada vez mais, como um desafio para os trabalhadores. Pela complexidade associada a transmitir “aquilo que se sabe” durante o trabalho (p.e., na dificuldade de verbalização do implícito e incorporado; nos constrangimentos temporais) (p.e., Le Bellu, 2016; Santos & Lacomblez, 2007; Thébault, 2013; Tomás et al., 2009); pelo facto desta decorrer, cada vez mais, no seio de sistemas de produção fortemente ancorados em métodos de otimização de produtividade e qualidade que têm levado a uma intensificação do trabalho e que consequentemente colocam a atividade de transmissão em segundo plano no dia-a-dia (Delgoulet, 2012; Thébault, 2013; Thébault, 2018); e, pela ausência ou escassez de práticas, que valorizem o trabalho real e reconheçam os conhecimentos especializados dos trabalhadores (p.e., Iles et al., 2001), por parte de atores estratégicos nos contextos que podem ter um papel preponderante na criação de condições de transmissão, pela função que assumem na empresa, como é o caso das equipas de Recursos Humanos (RH) (Daniellou, 2010; Grosdemouge, 2017; Hubault, 2006;).

A par desta problemática, alguns contributos centrados no estudo da atividade de produção apresentam pistas que nos levaram a refletir sobre o seu entendimento no campo da atividade de transmissão. Como: i) a necessidade de se repensar os percursos profissionais para promover a saúde e o desenvolvimento em competências (Hélardot et al., 2019; Reboul et al., 2020), que nos fez questionar em que moldes se relacionam a transmissão e os percursos?; ii) a importância de os trabalhadores poderem ter verdadeiras possibilidades de escolha e ação no contexto de autonomia (Clot & Simonet, 2015), que nos levou a refletir sobre como se coloca a autonomia dos trabalhadores em particular na atividade de transmissão?; e iii) as questões da sustentabilidade do trabalho que se têm posicionado como uma preocupação da atualidade (Gollac et al., 2008; Volkoff & Gaudart, 2015), perante a qual questionamos como se poderia equacionar a sustentabilidade da transmissão, uma vez que esta é uma parte do trabalho no dia-a-dia?

No âmbito desta tese, a transmissão de conhecimentos 1 foi entendida enquanto um processo cognitivo, social e organizacional, proteiforme e situado no trabalho (p.e., Delgoulet, 2012; Thébault, 2013; 8). Este conceito foi compreendido a partir das suas configurações no seio de relações de binómio e de coletivos de trabalho, bem como da sua relação com a aprendizagem, desenvolvimento e experiência, com as questões de saúde e segurança no trabalho e com o papel das equipas de RH.

Tese defendida e processo de investigação

Privilegiando uma perspetiva diacrónica, foram defendidas três ideias na tese. Uma primeira, que considera que as condições de transmissão devem ser entendidas a par e integrando as condições de realização da atividade de produção, na articulação e intersecção com estas, e não a estas subjugada. Uma segunda, que propõe que a consideração da sustentabilidade da transmissão nos contextos é o que permitirá a permanência, no trabalho, em desenvolvimento e saúde para os indivíduos, para fazer face a formas de organização que se têm traduzido pela vivência de uma intensificação do trabalho. E, uma terceira, que pressupõe que esta sustentabilidade implica uma análise multidimensional atualizável, numa articulação entre passado-presente-futuro, e um equilíbrio entre as necessidades e liberdades de ação dos trabalhadores e seus coletivos, e as opções tomadas pelos decisores estratégicos e equipas RH, de modo a que a sua implementação possa ser enriquecedora para os trabalhadores e seus contextos.

Considerando estas ideias, duas linhas de investigação foram desenvolvidas sequencialmente. Uma primeira, centrada na análise da transmissão e suas condições (o que se transmite, como, quando e em que condições), seus facilitadores e obstáculos (considerando, p.e., o papel do coletivo, chefias, RH), numa relação estreita com a compreensão das condições de organização e realização da atividade de produção. Três estudos sustentaram esta primeira linha de investigação. Dois de natureza qualitativa, numa empresa metalomecânica de produção de embalagens de metal, junto de duas principais funções consideradas críticas para a continuidade do negócio da empresa - os litógrafos impressores e os serralheiros. Nestes estudos recorreu-se à análise da atividade e a entrevistas individuais semiestruturadas para caracterizar a atividade de produção e de transmissão e a perceção dos trabalhadores sobre as condições de organização e realização da produção e sobre as possibilidades de transmissão na sua atividade no momento atual da entrevista e, em retrospetiva, em relação ao período inicial de aprendizagem desta função. Recorreu-se também a um questionário, concebido no âmbito do projeto para recolha das perceções acerca das condições que se podem assumir como facilitadores e como obstáculos à transmissão no que respeita às condições de trabalho, emprego e saúde, e à relação com equipa, com lideranças, com RH.

Os estudos qualitativos contaram com a participação da totalidade dos trabalhadores das duas áreas identificadas: seis litógrafos impressores (idade entre os 25 e 48 anos; e antiguidade na função entre 1 e 20 anos) e quatro serralheiros (idade entre os 24 e 57 anos; e antiguidade na função entre 4 e 40 anos), todos do sexo masculino. No que respeita à experiência profissional na sua relação com a transmissão, cinco dos litógrafos impressores auto posicionaram-se como experientes e um como competente; e, no caso dos serralheiros, três auto posicionaram-se como experientes, um como competente e um como novato 2.

No estudo de natureza quantitativa, foi ministrado o questionário a 140 trabalhadores de diferentes contextos do setor secundário (idade entre os 20 e os 69 anos de idade; e antiguidade na função entre os 2 meses e 45 anos). A maior parte dos participantes (67%) era do sexo masculino (32% do sexo feminino e 1% que se identifica como “outro”). Neste estudo, 62% auto posicionaram-se como experientes, 22% como novatos e 16% como competentes.

A segunda linha de investigação foi trabalhada a partir dos resultados da primeira, dedicando-se à reflexão sobre uma noção de “transmissão sustentável” e identificação das dimensões passíveis de serem consideradas na construção desta sustentabilidade nos contextos de trabalho, considerando uma análise multidimensional.

De forma complementar, consideramos os contributos da equipa de RH da empresa (três técnicas RH, com antiguidade na função entre 10 meses e 10 anos; e o diretor de RH, com antiguidade de 25 anos na função) e dos responsáveis das duas áreas produtivas da empresa (responsável da litografia, com antiguidade na função de 4 anos; e responsável da serralharia, com antiguidade na função de 10 anos). Estes elementos, para além de acompanharem o projeto e apoiarem na tomada de decisão das áreas produtivas a estudar, constituíram-se como participantes complementares na investigação 3.

As reais condições da atividade de transmissão a partir de diferentes olhares

Nos estudos realizados, e a partir dos dados recolhidos, os trabalhadores reconheceram-se sobretudo num papel de experientes e outros como novatos. Este aspeto levou-nos a privilegiar o ponto de vista dos experientes na recolha e análise dos dados, complementando, quando possível, com o ponto de vista dos novatos.

Ponto de vista dos trabalhadores operacionais

Os estudos na empresa metalomecânica espelharam a complexidade da transmissão, demonstrando que este contexto, caracterizado por práticas de otimização da produção e qualidade e de redução de desperdício, provoca uma intensificação do trabalho que é sentida pelos trabalhadores - “É preciso produzir o máximo possível por dia [...] É preciso estar sempre a produzir...” (Litógrafo Impressor, 3 anos de antiguidade na função). Esta intensificação do trabalho traduz-se em constrangimentos na atividade de produção e de transmissão, tal como um ritmo de trabalho intenso, pressões temporais, imprevisibilidade associada às suas tarefas, equipas instáveis, percursos construídos arbitrariamente sem ter em conta os conhecimentos críticos ou a ausência/escassez de apoio por parte das lideranças e RH na criação de condições de transmissão. Estes constrangimentos, aliados à dimensão das equipas (de três ou quatro elementos) e à referida instabilidade dos coletivos de trabalho, implicam uma frequente transmissão de conhecimentos por parte dos experientes a novatos, mas também a trabalhadores temporários nas equipas (p.e., em períodos de férias ou de maior produção). Esta transmissão implica uma gestão, por parte dos experientes, relativamente aos momentos em que se transmite (p.e., considerando a redução ou ajuste do tempo das suas pausas) bem como àquilo que se transmite e como. Assim, aquilo que se transmite e como tende a corresponder, de facto, ao que se sabe, limitado sobretudo à observação do trabalho por parte dos novatos, àquilo que resulta de renormalizações, e ao que terá impacto efetivo e imediato na produção - “Às vezes é difícil para mim, porque tenho de produzir, mas tenho mesmo de ensinar o [trabalhador] temporário que lá estiver, porque senão só fazem asneiras… e depois, porque nunca são os mesmos, sempre que é preciso um trabalhador temporário, vem um diferente e não há mais ninguém aqui para o ensinar.” (Litógrafo Impressor, 20 anos na função). Portanto, corresponde àquilo que está intimamente relacionado com a concretização da atividade de trabalho e com a fase em que os novatos se encontram (aprendizagem inicial da função vs. período em que já concretizam algumas tarefas), procurando garantir-se a qualidade e a realização de um trabalho bem feito e a preservação da segurança no trabalho - “Quando são trabalhos muito perigosos não deixo [o novato] fazer sozinho para não se magoar e para tentarmos intervir logo bem na peça. Faço eu próprio e explico o que se está a fazer” (Serralheiro 1, 40 anos de antiguidade na função).

Este investimento individual dos trabalhadores revelou ter custos para a sua saúde, relatados nomeadamente sob a forma de preocupações e tensões pela ponderação entre a produção e a transmissão e situações de autonomia na transmissão 4 impedida ou condicionada. Custos estes que são também explicados pela perceção de uma escassa ação estratégica (dos RH/responsáveis de produção) para a promoção de condições de transmissão. Deste modo, os trabalhadores encontram-se regularmente numa situação de arbitragem entre os objetivos de desempenho, aprendizagem do seu trabalho e a saúde. O compromisso resultante é, portanto, à custa da aprendizagem dos novatos e da degradação da saúde dos trabalhadores experientes. Em linha com contributos de outros estudos, a tese reflete que esta necessidade de gerir o que se transmite, sobretudo num contexto de coletivos instáveis, faz perpetuar os “recursos invisíveis de qualidade” (Gaudart & Volkoff, 2022), como conhecimentos implícitos e saberes investidos que se traduzem em formas e estratégias, truques para resolver problemas, que são dificilmente partilháveis. Este cenário pode ter consequências. Para os próprios experientes, pelo condicionamento das oportunidades de reflexão sobre o próprio trabalho, de transformar a sua própria atividade por meio da transmissão (Cabon et al., Valot, 2014; (Gaudart & Volkoff, 2022). E, para os novatos, por reduzir as oportunidades para a confrontação com diferentes formas de fazer, limitando-se a possibilidade para experimentar e compreender o que se faz de forma consolidada e refletida (Cabon et al., Valot, 2014; (Gaudart & Volkoff, 2022).

Ponto de vista da equipa de Recursos Humanos e responsáveis de produção

O trabalho evidenciou que a criação de condições de transmissão não se coloca como uma prioridade nas agendas de trabalho dos responsáveis de produção nem da equipa de RH, embora seja esperado por estes que esta aconteça no dia-a-dia de trabalho (“É importante para nós saber como está a correr, mas ainda não é urgente. Também não é a intenção da empresa” (Técnica RH, 10 meses de antiguidade na função). No caso dos responsáveis de produção, a ausência de ações e envolvimento na criação e suporte de condições para transmitir (p.e., recursos temporais, materiais) relaciona-se sobretudo com o investimento tecnológico que é feito em cada área de produção (cf. p.e., Dugué, 2006; Ughetto, 2018) e com o facto dos responsáveis de produção terem um discurso tecno-centrado, desvalorizando os conhecimentos e experiência, seja em relação à situação atual (presente) seja em relação ao futuro das respetivas áreas produtivas e papel dos seus trabalhadores -

A transmissão não é uma prioridade, porque estas máquinas [impressoras e painel de bordo] fazem muitas coisas e dão várias indicações, [os trabalhadores] já não precisam de saber muito; tudo o que precisam de fazer é monitorizar a produção e fazer alguns ajustes.” (Responsável de produção da Litografia, 4 anos de antiguidade na função).

Relativamente ao papel dos RH na transmissão, estes atores esperam igualmente que exista a transmissão, mas remetem a responsabilidade para os responsáveis de produção, revelando um distanciamento e desconhecimento das reais condições de trabalho nas áreas produtivas e constrangimentos ao nível das suas próprias condições de trabalho para tornar a transmissão numa efetiva preocupação. Além disto, o entendimento da equipa RH sobre a transmissão é desfasado daquele que é o entendimento científico de ‘transmissão de conhecimentos’ no quadro de referência utilizado, o que faz com que as ações que existem na empresa relacionadas com os conhecimentos sejam encaradas como ações de transmissão, mas, na verdade, correspondem a ações de extração e armazenamento do conhecimento (próximas da abordagem de Gestão do Conhecimento; ver p.e., Iles et al., 2001), reconhecendo-se, assim, a inexistência de apoio à criação ou melhoria de condições de transmissão no dia-a-dia e nas áreas operacionais.

Perspetivas para o presente e futuro da transmissão no trabalho: a procura pelo equilíbrio e pela sustentabilidade

O cruzamento entre a história passada (p.e., como se transmitiu no passado e como se aprendeu; que percursos tiveram até ao momento atual) e a história presente (p.e., que condições atuais de trabalho, de transmissão e de saúde) permitiu identificar pistas de reflexão e de melhoria das condições de transmissão-produção para agir no presente (p.e., maior conhecimento das atividades e constrangimentos do trabalho e da transmissão por parte dos RH; criar oportunidades de transmissão no dia-a-dia para além do foco na produção) e equacionar o futuro (que percursos profissionais podem ser pensados? de que forma podem ser repensados os papéis dos experientes nas equipas?). Neste sentido, a consideração, de modo implícito, de diferentes temporalidades, na condução dos estudos, permitiu compreender que, de facto, a transmissão e a sua relação com a atividade de produção deve considerar uma articulação entre passado-presente-futuro quando se pretende pensar a sua sustentabilidade.

A compreensão de um desfasamento entre a grande importância que é atribuída à transmissão e a inexistências de ações/promoção de condições para a sua existência no dia-a-dia é reveladora do caminho ainda necessário. Enquanto a transmissão, tal como a concebemos articulada com a atividade - e não como uma forma para gerir recursos humanos e conhecimentos - não for devidamente reconhecida como uma via estratégica por RH, decisores, lideranças, esta continuará a ser omitida das agendas de trabalho. Isto, a par de uma ausência de análise e transformação das condições de trabalho das próprias equipas de RH locais, continuará a fazer com que estas considerem a transmissão como algo que poderá dispensar a definição de ações e condições facilitadoras e que acontece de forma natural no dia-a-dia de trabalho. Tendo em conta o ponto de partida da empresa para possibilitar a realização do estudo empírico [3], demonstrou-se também que pensar a transmissão associada apenas a preocupações com a reforma e com a perda de conhecimentos no contexto é redutor da importância que esta assume nos contextos e para o desenvolvimento em saúde dos indivíduos.

Não obstante o facto de poderem existir elementos externos que condicionem o caminho e orientem a história da empresa, este trabalho demonstrou que há muito campo para a ação, para a transformação das condições de realização do trabalho. Importará para tal, pensar em formas de concretização, de modo a que esta transmissão possa ser entendida e transformada verdadeiramente por via da consideração da sua sustentabilidade. Foi a partir destas crescentes preocupações e reflexões que se conceberam os contributos apresentados na secção seguinte.

Contributos teórico-metodológicos para a construção de uma transmissão sustentável nos contextos de trabalho

A tese considerou a conceção de três contributos centrais que se assumem como pistas teórico-metodológicas para a construção de uma transmissão sustentável nos contextos de trabalho. Dois destes contributos articulam-se entre si, correspondendo à proposta de uma noção de “transmissão sustentável” e proposta de uma esquematização de dimensões a considerar nesta transmissão acompanhada dos seus princípios orientadores. Neste âmbito, uma “transmissão sustentável” implica uma articulação entre diferentes atores (p.e., binómio novato-experientes, coletivo, lideranças, equipa RH), determinantes (ao nível da empresa e ao nível do indivíduo), relações uni e bidirecionais entre os atores, determinantes e a atividade de trabalho, e influências e renovações (p.e., o meio externo à empresa; carácter atualizável da transmissão), numa estreita relação e equilíbrio com as condições de realização da atividade de produção e de transmissão, e, consequentemente, com a atividade de trabalho.

Estes contributos permitiram sustentar a compreensão da complexidade associada à transmissão, a necessidade de existir uma análise multidimensional que revele dimensões e interações no âmbito da transmissão, e o entendimento de que procurar construir a sustentabilidade da transmissão contribui também para a própria sustentabilidade do trabalho.

De forma complementar, a proposta de uma ferramenta de diagnóstico de condições facilitadores e obstáculos à transmissão (questionário), cujas qualidades psicométricas foram validadas, integra quatro dimensões relativas: ao papel exercido na atividade de trabalho e à relação com a equipa; ao papel dos Recursos Humanos (ou similar) em relação à equipa e aos conhecimentos dos trabalhadores; ao papel das chefias em relação à equipa e aos conhecimentos dos trabalhadores; ao emprego, à realização do trabalho e à saúde e segurança. Esta ferramenta procura, não a substituição do conhecimento e aproximação ao real, mas possibilitar o recurso a uma ferramenta de suporte à análise e discussão conjunta das condições de transmissão na sua relação com a atividade de produção, tendo em vista a melhoria das condições de realização e de organização do trabalho.

Espera-se, deste modo, que o projeto desenvolvido e os contributos que dele resultaram possam ter continuidade no terreno, possam ser discutidos nos contextos, nomeadamente com os Recursos Humanos, e colocados “à prova do real”, possibilitando a criação de uma linguagem-comum relativa às questões de transmissão e apoiando, assim, na transformação das condições de trabalho e de transmissão e no desenvolvimento em saúde dos trabalhadores ao longo dos seus percursos.

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1Compreendendo-se as especificidades associadas a distintos conceitos que tipicamente são estudados no âmbito da transmissão, como a transmissão de conhecimentos, de saberes, de competências e de gestos profissionais (p.e., Le Bellu, 2016; Schwartz, 2010; Teiger, 1993; Thébault, 2013; Tomás et al., 2009; Weill-Fassina & Pastré, 2004), estes conceitos (ou quatro domínios) foram alvo de uma reflexão teórica. Atendendo às relações que tacitamente se estabelecem entre estes quatro domínios, optou-se por, no trabalho de tese, recorrer ao uso de transmissão de “conhecimentos” no sentido lato e por se entender que estes integram e articulam os restantes domínios apresentados. Privilegiou-se, ainda, neste trabalho, o “pólo” da prática, da relação com o real (p.e., conhecimentos implícitos, saberes-fazer, competências que possam ser críticas, gestos profissionais), pelo seu carácter de difícil verbalização e transmissão, sem desvalorizar, naturalmente, o pólo dos conceitos teóricos, científicos, académicos.

2Para além dos papéis tipicamente assumidos e relacionados com a experiência profissional (novato-experiente) que foram, de facto, os privilegiados no projeto de investigação, ressalva-se a existência do papel dos “competentes” e dos “mentores” (Dreyfus & Dreyfus, 2012). Considerando este dado, a experiência profissional na sua relação com a transmissão foi definida através de um método de auto posicionamento dos indivíduos em relação à questão: “No seu trabalho atual, que papel desempenha?” (integrada no questionário). Os participantes poderiam escolher entre quatro opções: novato - “ainda não realizo o meu trabalho de forma totalmente autónoma, pois estou a aprender a função”; competente - “realizo o meu trabalho de forma autónoma”; experiente - “tenho experiência e realizo o meu trabalho de forma autónoma”; mentor - “tenho experiência, realizo o meu trabalho de forma autónoma e estou a partilhar os meus conhecimentos com novatos”.

3O ponto de partida da empresa para possibilitar a realização deste projeto prendeu-se com a ideia de que este poderia auxiliar na compreensão daquilo que os RH percecionavam como a sua situação atual: áreas operacionais com equipas envelhecidas e com trabalhadores com uma vasta experiência para a realização de trabalhos complexos e raros, e, portanto, com conhecimentos que seriam perdidos com a sua transição para a reforma. O estudo revelou que as principais áreas e funções críticas para o negócio não se caracterizam por equipas envelhecidas nem se encontraram trabalhadores com idade próxima da idade da reforma. Não obstante, a empresa permaneceu interessada na prossecução da investigação e discussão dos resultados.

4No âmbito da tese, apresentamos a expressão “autonomia na transmissão”, distinguindo-a da “autonomia no trabalho”, mas assumindo que era parte integrante desta (ligada à realização da atividade de produção). A autonomia na transmissão, definiu-se, assim, como a possibilidade que os experientes têm para fazer escolhas, entre o que sabem que sabem e que consideram importante que os novatos saibam, tendo em conta as condições do sistema produtivo em que operam e o reconhecimento dos conhecimentos por parte das chefias, e a partir de ponderações entre a garantia da produção e qualidade e a consideração da relevância dos conhecimentos para os novatos desenvolverem o seu trabalho e a si próprios. Tal como a entendemos, trata-se de uma autonomia exercida na ausência de um carácter de dependência pré-definido exteriormente (Maggi, 2003), mas é sempre ponderada pelos próprios trabalhadores em função da sua atividade produtiva

Recebido: 06 de Outubro de 2023; Aceito: 21 de Novembro de 2023

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