1. Introdução
Ações de saúde do trabalhador figuram no rol de objetivos do Sistema Único de Saúde (SUS) e encontram guarida em distintos normativos legais, a exemplo da Política Nacional de Saúde do Trabalhador e da Trabalhadora (PNSTT) (Portaria n.º 1.823, 2012) que estabelece diretrizes de vigilância e ações de promoção e prevenção à saúde dessa população; propõe a estruturação da Rede Nacional de Atenção Integral à Saúde do Trabalhador (Renast); e indica uma série de práticas, como a articulação entre Unidades Básicas de Saúde, rede de segurança pública e as organizações nas quais os trabalhadores atuam. Entretanto, Rafagnin e Rafagnin (2020) sinalizam que as ações resultantes dessa política pública têm focado, principalmente, no tratamento de adoecimentos, falhando em detectar e prevenir os riscos presentes no trabalho.
Dentre esses riscos, o assédio figura como fenômeno a ser combatido. Recentemente, o Brasil ratificou a Convenção n.º 190 da Organização Internacional do Trabalho (2019), que busca eliminar todo tipo de violência e assédio no mundo do trabalho, aspectos que vêm se destacando como fatores de risco psicossocial, fontes de adoecimento e afetação à saúde mental dos trabalhadores ao redor do mundo. O objetivo desse tratado é promover o trabalho decente, impulsionar a justiça social e assegurar a igualdade nas relações de trabalho, com especial atenção à questão de gênero.
Pari passu, a (Lei n.º 14.457 de 21 de setembro de 2022, altera a Norma Regulamentadora n.º 5 (NR5), ampliando as atribuições da Comissão Interna de Prevenção de Acidentes (CIPA), que deve incorporar, em suas atividades, ações de combate ao assédio sexual e outras violências no ambiente de trabalho. No âmbito da administração pública federal direta, autárquica e fundacional, o (Decreto n.º 12.122, de 30 de julho de 2024, instituiu o Programa Federal de Prevenção e Enfrentamento ao Assédio e a Discriminação, com diretrizes pautadas na universidade, transversalidade, confidencialidade e resolutividade.
Esses avanços normativos, legais, ao mesmo tempo em que representam uma bússola para a atuação em saúde e segurança no trabalho, convidam à reflexão sobre o aumento dos fatores de risco psicossocial, que requerem a construção e efetivação de políticas de promoção ao bem-estar, à saúde, à qualidade de vida no trabalho nos contextos organizacionais, sejam eles públicos ou privados. Concomitante a esse debate, indubitavelmente, a formação dos profissionais da área se mostra um ponto sensível a ser fortalecido.
A formação do psicólogo comporta estágios curriculares em diferentes áreas de atuação. O relato aqui apresentado diz respeito à experiência formativa dos autores, que, por ocasião do estágio curricular em Psicologia Organizacional e do Trabalho (POT), foram designados a trabalhar junto a um comitê operativo de Qualidade de Vida no Trabalho (QVT) de uma Instituição de Ensino Superior (IES), o qual buscava se manter ativo face ao contexto pandêmico.
Cabe contextualizar que essa instituição, em 2017, passou por uma pesquisa diagnóstica organizacional, sob enfoque da Ergonomia da Atividade Aplicada à Qualidade de Vida no Trabalho (EAA_QVT) (Ferreira, 2012), tendo-se daí derivado uma política de QVT e diretrizes que orientavam à criação de um grupo de trabalho para atuar como “guardião” dessa política institucional, corresponsável pela operacionalização de propostas voltadas à promoção da saúde e bem-estar dos trabalhadores. Isso posto, o papel dos estudantes, nesse contexto, tinha o intuito de auxiliar o comitê operativo a desenvolver práticas de QVT, alinhadas aos pressupostos teóricos preconizados pela ergonomia, evidenciados adiante.
No cenário nacional, identificou-se um número restrito de pesquisas empíricas concernentes à qualidade de vida, no contexto do Ensino Superior. A partir da revisão realizada por Amâncio et al. (2021), identifica-se que, em geral, estudos sobre QVT em IES no Brasil visam: (a) analisar os níveis e dimensões de Qualidade de Vida no Trabalho (Matias & Moura, 2019); (b) demonstrar a correlação entre QVT e construtos como satisfação, motivação e liderança; (c) investigar propostas de ações para programas de QVT, as quais se voltam para a promoção da saúde física ou lazer dos servidores; e, também, (d) a proposição de estudos comparativos. Entretanto, fica evidente a falta de materiais que demonstre como e quais as estratégias adotadas na implantação de programas de QVT, além de outros estudos que se aprofundem a aplicação dos seus princípios de forma crítica aos modos de gestão presentes.
A revisão de estudos sobre intervenções em QVT elaborada por Hipólito et al. (2017), proporcionou a categorização dos artigos em três dimensões: atividades físicas e cuidados com saúde (11); demandas mentais relacionadas ao trabalho (8); e capacidade para o trabalho e prevenção de doenças (6). Os autores observaram um baixo número de pesquisas que investigam e apresentam programas de QVT, tendo em vista que coletaram artigos em bases com acesso a trabalhos tanto no Brasil quanto no exterior.
A implantação de programas de QVT em IES públicas foi analisada por Mello e Pedro (2017), que investigaram três universidades federais: Universidade Federal de São Carlos (UFSCar); Escola de Engenharia de São Carlos - Universidade de São Paulo (EESC-USP); e Faculdade de Ciências e Letras - Universidade Paulista (FCL-Unesp). Por meio do estudo, identificaram que, na UFSCar, as ações em QVT partem de instâncias de gestão, porém, todas compartilhavam a falta de uma metodologia de trabalho definida, além da não consulta aos trabalhadores, ausência de instrumentos para diagnóstico e avaliação efetiva. Os autores apresentam sugestões para serem contempladas em processos de implementação de programa de QVT, como o engajamento dos trabalhadores nesse processo, além da adoção de métodos de avaliação consistentes. Em contraste, na EESC-USP e FCL-Unesp analisadas por Mello e Pedro (2017), e na IES em questão deste relato, as ações voltadas à temática partem dos próprios trabalhadores, demonstrando uma perspectiva de mudança que parte do cotidiano desses profissionais, porém, com raio de ação limitado por um apoio institucional insuficiente.
Ao investigar uma IES do nordeste brasileiro, Albuquerque (2015) identificou que, embora não haja uma política de QVT instaurada, uma equipe composta por mais de 30 servidores conduz um programa de QVT na instituição. O programa tem sido avaliado positivamente, tendo, entretanto, baixa adesão por parte dos trabalhadores e ausência de iniciativas voltadas à estrutura de trabalho. Esse relato demonstra iniciativa por parte dos servidores em buscar ações que promovam bem-estar, mas ao mesmo tempo, reforça uma perspectiva hegemônica em QVT, entendida por Ferreira (2018) como aquelas que se apresentam como um cardápio de serviços, sem necessariamente sanar os indicadores críticos que se colocam na raiz dos adoecimentos relacionados ao trabalho.
A execução de programas de QVT tem sido assumida por grupos de profissionais de diversas áreas ou por equipes de Gestão de Pessoas (Coutinho et al., 2010). A experiência aqui relatada se vinculada à formação do psicólogo, a atuação dessa categoria profissional em programas de QVT foi discutida por Trierweiler (2007), que identificou um papel circunscrito à elaboração de objetivos de ação e sensibilização de outros trabalhadores sobre o tema, assumindo a tarefa de coordenação dos programas. Fomentar a formação de distintas categorias profissionais no debate sobre promoção de bem-estar no ambiente laboral é uma estratégia que potencializa a práxis, fortalece a área de gestão de pessoas e encoraja trabalhadores no protagonismo da ação.
No artigo de Telles (2015), a autora descreve a experiência de realização de um workshop sobre QVT junto a trabalhadores da enfermagem, sendo essa uma atividade formativa, com duração de três horas, em que foram propostas atividades de sensibilização dos trabalhadores sobre o tema e o ensino de técnicas de relaxamento. Ainda assim, o direcionamento do workshop remete a uma proposta pontual e superficial em seu modelo, reproduzindo as práticas hegemônicas presentes na maioria das organizações (Hipólito et al., 2017), as quais este estudo busca contrapor.
Nesse sentido, observa-se que as propostas de Qualidade de Vida no Trabalho (QVT) são relevantes para as organizações, porém sua aplicação, geralmente, é focada em questões produtivas e no aumento da lucratividade, baseando-se em práticas e soluções paliativas que não enfrentam diretamente os problemas estruturais que afetam as organizações e repercutem sobre o bem-estar dos trabalhadores. As ações que seguem essa lógica são chamadas de 'hegemônicas', tendo sido nomeadas por Ferreira (2018) de “ofurô corporativo” exatamente por representarem apenas um momento de descompressão sem atacar a raiz dos problemas ou as fontes de mal-estar e adoecimento no trabalho.
A Ergonomia, enquanto disciplina científica, assentou suas bases no estudo do sistema homem/máquina, tanto nos EUA quanto no Reino Unido no final da década de 1940, e desde então a área vem ampliando seu escopo à luz das transformações do mundo do trabalho, influenciando, inclusive, o desenvolvimento das clínicas do trabalho, no campo da saúde mental relacionada ao trabalho. No Brasil, a Norma Regulamentadora (NR-17) impulsionou o desenvolvimento da Ergonomia que já tem se especializado em Ergonomia Física, Cognitiva e Organizacional (Oliveira, 2018).
A Ergonomia da Atividade, ao colocar o foco de análise no real de trabalho, na atividade desenvolvida pelos trabalhadores na sua efetiva execução (Oliveira, 2018), busca compreender o trabalho para transformá-lo e o faz por meio de propostas interventivas pautadas na AET (Análise Ergonômica do Trabalho) com vistas à promoção de saúde e bem-estar no trabalho (Ferreira, 2011). Desse modo, parte-se da análise das situações de trabalho, com o intuito de elaborar mudanças, sejam elas na dimensão material, social ou organizacional.
Dito isso, Ferreira (2011), sustenta que a pertinência de se aproximar a Ergonomia da Atividade ao campo interventivo denominado Qualidade de Vida no Trabalho (QVT) se justifica na medida em que as ciências do trabalho são convocadas a refletir e apresentar soluções para os problemas contemporâneos das organizações. Para tanto, o autor advoga por uma Ergonomia da Atividade Aplicada à Qualidade de Vida no Trabalho (EAA_QVT), de viés contra-hegemônico, construída com base em cinco dimensões: Condições de Trabalho e Suporte Organizacional; Organização do Trabalho; Relações Socioprofissionais de Trabalho; Reconhecimento e Crescimento Profissional; e Elo Trabalho-Vida Social. Essas dimensões, propostas por (Ferreira, 2012), orientam o processo diagnóstico, a construção de políticas e intervenções no interior das organizações e, também, evidenciam qualidades e pontos críticos da estrutura organizacional.
No processo diagnóstico, a Ergonomia da Atividade Aplicada à Qualidade de Vida no Trabalho (EAA_QVT) pressupõe diferentes níveis de avaliação dos processos macro e microergônomicos, envolvendo coleta de dados por meio de questionários, entrevistas, análises documentais e observação direta. Assim, as estratégias de intervenção orientam-se para as problemáticas encontradas, por meio do método da Análise Ergonômica do Trabalho (AET) (Araújo et al., 2021). Dentre as diversas estratégias de execução de diagnóstico e intervenção, a criação de comitês de QVT emerge como uma possibilidade, funcionando como assessoria da gestão na construção das políticas e programas voltados ao tema (Ferreira, 2012). Nessa perspectiva, compete ao comitê, em integração às lideranças e funcionários, a construção da QVT no âmbito institucional e burocrático. Paralelamente, fica responsável pela coordenação e execução do(s) programa(s) ou das ações do planejamento direcionado à QVT nas instituições, utilizando-se de parcerias intersetoriais (Ferreira, 2012).
Considerando os pressupostos teóricos da Ergonomia da Atividade, que enfatizam o foco nos trabalhadores e a adoção de práticas não-hegemônicas, além da escassez de relatos sobre o desenvolvimento de grupos, comitês ou outras iniciativas de programas de QVT, observa-se a necessidade de pesquisas que sistematizem a aplicação desses conhecimentos nas organizações. O objetivo deste relato é discutir as potencialidades e contradições do comitê operativo em QVT, dando-se destaque à importância dos grupos de trabalho na implementação de propostas interventivas, sem deixar de pontuar a falta de literatura que esclareça como esses grupos funcionam, os desafios para manter a coesão grupal e o alinhamento teórico das atividades.
2. Percurso metodológico
O relato apresentado espelha uma experiência formativa em psicologia e, portanto, implicou em uma pesquisa-intervenção (Nascimento & Lemos, 2020), descritiva e exploratória (Gil, 2008), cujas etapas serão apresentadas adiante. A fundamentação teórico-metodológica baseia-se na Ergonomia da Atividade Aplicada à Qualidade de Vida no Trabalho - EAA_QVT (Ferreira, 2012), na teoria de grupos (Zimerman, 2000) e no Enfoque Participativo (Cordioli, 2001).
A pesquisa-intervenção se deu em uma IES, junto a um grupo de QVT, que foi criado após diagnóstico organizacional e instituição da Política de QVT (PQVT) do órgão. Anos subsequentes, no planejamento estratégico, trouxeram a saúde e bem-estar dos trabalhadores como uma das linhas prioritárias da gestão. Os objetivos da PQVT se pautam na vigilância em saúde e segurança, prevenção das doenças e agravos à saúde, promoção de saúde e bem-estar no trabalho, melhoria do desempenho institucional de modo conciliado ao bem-estar de seus trabalhadores. À época em que se deu este estudo, o campus contava com 373 docentes e 186 técnicos administrativos, além de trabalhadores terceirizados. O estabelecimento possui um Subsistema Integrado de Atenção à Saúde do Servidor (SIASS) e uma Coordenadoria de Saúde Ocupacional (CSO), a partir do qual profissionais da saúde e outros interessados constituíram um comitê para operacionalizar ações vinculadas à PQVT da instituição.
Por ocasião dessa experiência formativa, o comitê constava com uma coordenadora, quatro técnicos administrativos e oito docentes, totalizando 13 servidores voluntários. Dentre os participantes, havia uma psicóloga da CSO e um servidor da área de segurança do trabalho, todos os demais eram de áreas distintas e nenhum deles possuía formação específica em ergonomia. O grupo operativo realizava uma reunião semanal de, aproximadamente, 1h30min, em meio virtual, no qual discutiam-se questões relacionadas ao dia a dia dos servidores, sobre a gestão e funcionamento do campus, além de outras pautas pertinentes ao coletivo.
Como estratégia metodológica de aproximação aos trabalhadores engajados no comitê de QVT e acesso à informação, utilizou-se a observação-participante (Gil, 2008), que preconiza a imersão dos pesquisadores na rotina coletiva. Nessa forma de observação, Gil (2008) afirma que o pesquisador assume papel de um membro do grupo e, portanto, obtém conhecimento sobre ele, a partir do seu interior. Entre as vantagens dessa metodologia estão a rapidez de acesso a dados de situações cotidianas ao grupo, obtenção de informações restritas a sujeitos externos e mais subsídios para interpretação dos comportamentos de seus componentes (Selltiz et al. apud Gil, 2008, p.104). A principal desvantagem da observação, de maneira geral, é a potencial quebra da espontaneidade do grupo pesquisado, podendo gerar ao final do processo, resultados pouco confiáveis (Gil, 2008). Entretanto, neste estudo, foi possível construir, ao longo de dois semestres (oito meses), um relacionamento com seus membros, permitindo um ambiente mais confortável e, portanto, dirimindo possíveis efeitos adversos em virtude da presença dos pesquisadores.
A dinâmica de funcionamento grupal, os temas ali abordados e as problematizações levantadas pelos participantes foram registradas em um diário de pesquisa, no formato físico, ao longo de 13 encontros, durante cerca de três meses, durante as reuniões virtuais semanais do comitê, tendo-se acumulado cerca de 22 páginas de registro escrito. O diário de pesquisa “é uma importante tecnologia de registro e memória dos acontecimentos e da riqueza da pesquisa, tomando forma à medida que esta é realizada” (Araújo et al., 2013, p. 1), possibilitando não só o registro das informações, mas também, uma visão sobre a construção e trajetória do estudo. Ressalta-se que o diário de pesquisa é uma ferramenta que carrega percepções e direcionamentos do seu autor durante o período em campo, portanto, cabem os possíveis cuidados, no caso de sua utilização por autores terceiros (Araújo et al., 2013).
A intervenção inicialmente idealizada para o formato presencial sofreu alterações para que pudesse ser executada integralmente em ambiente virtual, haja vista que, na ocasião, ainda havia recomendações de distanciamento social, em razão do contexto pandêmico ocasionado pela SARS-Cov 2 (Covid-19). Portanto, as ações foram realizadas em ambiente virtual síncrono, com 30 minutos de duração e os momentos divididos em cinco etapas. Esse modelo possibilitou a utilização de múltiplas formas de mídias digitais, além do registro por meio de gravação da ocasião, como forma de gestão de conhecimento. Ainda, a flexibilidade do formato remoto é vista positivamente no mundo do trabalho (Richardson & Antonello, 2023), pois possibilita aos trabalhadores ajustar suas rotinas conforme necessidades pessoais e profissionais (Castro et al., 2024).
Entretanto, a dinâmica virtual dificulta uma maior percepção do grupo e do ambiente, e esse efeito tem sido observado na cultura organizacional pela dificuldade na construção de relacionamentos e comunicação entre equipes remotas (Richardson & Antonello, 2023). O formato on-line prejudica o foco coletivo durante as atividades, fato atestado pelo relato de trabalhadores remotos com dificuldade na separação entre a dinâmica pessoal e profissional, além da desigualdade de gênero, pois mulheres em teletrabalho tem uma maior sobreposição entre o trabalho e tarefas domésticas (Castro et al., 2024). Por último, o formato remoto exige dos seus participantes equipamentos e infraestrutura de conectividade para participação qualitativa dos momentos propostos, todavia, nem todos os trabalhadores têm as mesmas condições de acesso a tais tecnologias (Richardson & Antonello, 2023).
3. Resultados e Discussão
3.1. Ponto de partida: Análise da demanda do grupo
O trabalho se iniciou com a introdução dos pesquisadores à dinâmica grupal e a sua demanda principal de fortalecimento teórico e metodológico do grupo operativo de QVT do campus da instituição, que por sua vez, “assume, portanto, o estatuto de ‘situação-problema’ para a qual se busca agir para transformar” (Ferreira, 2012, p. 200). A análise da demanda consistiu em quatro etapas: compreensão das políticas institucionais para QVT; observação do funcionamento coletivo; avaliação das iniciativas realizadas pelo agrupamento; e delineamento de objetivos em conjunto. A partir da leitura de documentos, identificou-se que, em 2017, foi realizado diagnóstico e apresentação de indicadores de QVT inspirados na perspectiva da EAA_QVT de Ferreira (Ferreira, 2012). Decorrente disso, em 2019 foi criada a política e o grupo operativo de QVT do campus, voltados para a realização de ações de promoção e vigília do bem-estar dos servidores do local.
Em um segundo momento, foram exploradas as percepções dos integrantes sobre as ações realizadas desde a criação do grupo em 2019 até o momento da realização da intervenção, em julho de 2021. Para tanto, utilizou-se uma plataforma virtual, na qual os participantes citaram atividades já realizadas pelo grupo e, em seguida, fizeram comentários verbais detalhando as iniciativas. Os participantes mencionaram atividades recreativas, expositivas, de acolhimento, integração, socialização e participação na política institucional. A avaliação do grupo em relação às ações já realizadas, no geral, foi positiva, mas com algumas falas trazendo ponderações sobre falta de “visibilidade no campus” em relação às ações do coletivo, “falta de participantes no grupo” e “poucas reuniões de estudo e planejamento”, foram registradas no diário de campo.
Tais respostas evidenciaram a necessidade de socialização e de espaço de fala acerca de experiências relacionadas ao trabalho, como descrita por Bolonha e Gomes (2019), ao compreenderem que é nesses espaços que os trabalhadores podem ressignificar vivências e buscar diferentes estratégias que lhe afastem de um trabalho alienante, proporcionando novos modos de lidar com os sofrimentos que surgem no trabalho. As manifestações dos trabalhadores também demonstraram a existência de lacunas na sua compreensão entre qual é o trabalho de um comitê de QVT e quais são as práticas adotadas por esse grupo, sendo essa “lacuna” preenchida por ações hegemônicas de QVT e descoladas da literatura que vem sendo elaborada na área.
No encontro seguinte, foi proposto ao grupo responder ao questionamento sobre suas expectativas em relação à atuação do agrupamento. Por meio do diário de campo registrou-se apontamentos como: “os servidores ingressantes do grupo de QVT podem fazer curso sobre esse assunto”; “expectativa de que seja um grupo consolidado, de modo que seja ouvido e que esse tema tenha a importância que merece, respeitado e valorizado pelos gestores”; “aumentar a atuação no campus, conseguir atingir mais pessoas” e “fazer uma reunião por mês de planejamento do grupo”. No geral, as respostas sugerem uma busca por aprofundamento teórico em QVT; maior capacidade interventiva do coletivo na estrutura institucional; e maior planejamento das suas iniciativas e regularidade em suas ações.
As respostas à questão inicial sobre as atividades, até então realizadas, demonstraram uma inclinação do grupo por iniciativas de socialização dos pares e a realização de eventos sobre temáticas que dialogam com qualidade de vida e saúde no trabalho. Essa caracterização das atividades sinaliza a predominância de atuações pontuais, em detrimento de intervenções mais profundas na estrutura institucional. Contudo, as respostas dadas às expectativas indicam que os integrantes percebiam a necessidade de desenvolver ações na direção do aprofundamento conceitual sobre o construto de QVT e na estratégia operacional.
O grupo, delineado com caráter operativo institucional (Zimerman, 2000) e de assessoramento da gestão em QVT (Ferreira, 2012) não deixou, em parte, de cumprir esse propósito. Porém, entende-se que a predominância de ações de acolhimento e socialização, apesar de contemplarem dimensões em QVT, não potencializam o papel do grupo e eram realizadas sem processos de planejamento, avaliação e qualificação da atuação coletiva. Verificou-se, portanto, que o agrupamento reproduzia certas práticas em QVT, criticadas por Araújo e Barros (2019).
Durante o período de observação-participante, identificou-se que a descontinuidade da política de QVT, decorrente do processo de transição na gestão do campus à época, deixou lacunas entre a materialização dessa diretriz institucional e sua efetiva execução, fato que impactou no desenvolvimento das ações do grupo de QVT. Igualmente, houve mudanças na organização do trabalho em função da pandemia, exemplificadas pela adoção ao modelo de trabalho remoto e a evasão de membros mais experientes do grupo, alterando a composição e impactando a dinâmica. Nesse cenário, soma-se o fato de que a maioria dos servidores remanescentes do agrupamento não possuíam apropriação teórica em relação ao tema ou sobre o percurso histórico da QVT na instituição. Essa condição acabou por desfasar a atuação do grupo frente a questões de caráter estrutural do estabelecimento, delineadas por meio do diagnóstico em QVT de 2017.
A criação do grupo nessa instituição teve uma perspetiva contra-hegemônica. Contudo, por diversos fatores, o comitê passou a reproduzir aspetos da lógica de “ofurô corporativo”. Verificou-se, então, que a intervenção dos pesquisadores poderia abarcar: (a) alinhamento aos pressupostos teórico-metodológicos da Ergonomia da Atividade; (b) articulação das ações do grupo com a Política de QVT da instituição e pesquisa de 2017; (c) planejamento participativo; e (d) fortalecimento do grupo. O intuito dessas ações foi proporcionar, aos trabalhadores, novas estratégias para retornar à perspectiva inicial de ação sobre a QVT, podendo planejar e executar projetos conectados à Política de QVT, de forma a potencializar o aumento e manutenção da qualidade de vida no campus da instituição.
3.2. Alinhamento do grupo aos conceitos centrais em EAA_QVT
Com base nas perguntas realizadas na análise de demanda, verificou-se a necessidade de alinhar o coletivo teoricamente. Assim, inicialmente foi apresentado um cronograma de atividades a serem realizadas junto ao grupo, as quais pretendiam, ao final do percurso formativo, estabelecer um calendário de ações e iniciativas voltadas à prevenção de potenciais fatores de risco relacionados à QVT. Durante a construção do percurso formativo, utilizaram-se estratégias e conceitos com enfoque participativo, tendo em vista a busca por implicação cada vez maior dos participantes na concepção, desenvolvimento e planejamento das atividades (Cordioli, 2001).
A segunda etapa da intervenção consistiu no aprofundamento teórico sobre QVT. Após analisar a demanda e aprovar o cronograma de atividades com o grupo, foi realizada uma revisão sobre os primeiros encontros e iniciada a parte formativa do trabalho. Primeiro, foram lidos textos de referência na área de EAA_QVT, com o intuito de suscitar reflexões e debates acerca do tema dentro da equipe. Formularam-se duas questões disparadoras, “Cite o que você achou de mais importante no texto” e “Como você definiria QVT, a partir da leitura do texto?”, orientando a discussão do encontro seguinte. No debate, conexões entre texto e ambiente de trabalho foram feitas no registro de campo, em que os docentes relataram enfrentar dificuldades ao encaminhar, semestralmente, relatórios de horas cumpridas, parte essencial na execução do seu trabalho. Outras questões foram levantadas, como a avaliação de desempenho em um cenário atípico de pandemia e a sobrecarga de trabalho, dinâmicas institucionais entendidas como mecanismos de controle causadores de desconforto e insatisfação no trabalho.
Alguns trechos do diário de campo exemplificam as reflexões previamente descritas, como um servidor que afirmou: “a QVT na instituição pública é pouco presente, fazendo um paralelo entre o setor público e privado. No setor privado, a QVT é uma forma de anunciar uma suposta preocupação com os colaboradores”. O mesmo servidor ainda fez um paralelo entre o livro Torto Arado, de Itamar Vieira Junior, e a QVT hegemônica, “O trabalhador podia ter um canto para plantar umas batatas, mas quando o patrão queria, pegava as melhores batatas. A empresa possibilita algum bem-estar para que o colaborador se contente com o lugar de produtividade”.
Os encontros seguintes pautaram-se no estudo das cinco dimensões de QVT elencadas por Ferreira (2012). Buscou-se, durante esses momentos, materializar os conceitos apresentando exemplos concretos de como essas dimensões podem ser visualizadas no dia a dia de trabalho e em resultados de pesquisas sobre QVT. Em cada reunião, ao final da parte expositiva, fomentava-se o debate entre os integrantes, vinculando teoria ao cotidiano.
3.3. Análise do diagnóstico em QVT da instituição em 2017
O início da terceira etapa teve maior envolvimento dos integrantes no processo de construção do planejamento coletivo. Primeiro, foram apresentados os indicadores críticos que emergiram da pesquisa de QVT de 2017 da instituição, alocando-os em planilhas. Esses indicadores foram baseados nos itens e dimensões do diagnóstico, que dentro da escala utilizada, ficaram na zona de transição e de mal-estar dominante. Entre as dimensões elencadas, com base em Ferreira (2012), estavam: condições de trabalho e suporte organizacional; organização do trabalho; relações socioprofissionais de trabalho; reconhecimento e crescimento profissional; e trabalho e vida social.
Os indicadores possuem variações em razão das diferentes categorias dos respondentes da pesquisa (docentes e técnicos), portanto, em um segundo momento, após a exposição dos índices de QVT gerais da instituição, os participantes do grupo foram divididos em suas respectivas categorias. Nesse momento, puderam formular propostas de intervenção voltadas aos seus indicadores específicos. Entre os pontos mais críticos elencados estavam: a preocupação da instituição com a QVT dos trabalhadores; o equilíbrio família-trabalho; a pertinência das regras/normas institucionais e capacitações/formações para o trabalho cotidiano; e oportunidades de crescimento e remuneração.
Algumas das propostas elencadas pelos técnicos administrativos descritas no diário de campo, a título de exemplo, foram: “que as oportunidades de capacitação sejam disponibilizadas, considerando as funções e responsabilidades de cada servidor ”; e “fazer um levantamento sobre a área de capacitação, oportunidades, categorias, nível de escolaridade. Propor uma política de formação de gestores que subsidie um olhar democrático, no que se refere às oportunidades de capacitação”. Entre os docentes observaram-se propostas no sentido de “Realizar Pesquisa de Qualidade de Vida no Trabalho promovida pelo IFSC”, renovando o diagnóstico de 2017 e “Propor alternativas para os documentos de planejamento e relatórios atualmente vigentes, que atendam à legislação e que não sobrecarreguem desnecessariamente o docente”. Esses apontamentos realizados nos grupos menores foram sistematizados documentalmente em diferentes propostas de iniciativas e, posteriormente, compartilhadas amplamente com o grupo, discutidas e alteradas conforme sua pertinência.
3.4. Planejamento participativo
A quarta etapa consistiu na análise, seleção dos indicadores e propostas elaboradas anteriormente, escolhendo aquelas que o grupo verificou serem executáveis no semestre subsequente. Esse momento exemplifica a linha de atuação do Enfoque Participativo, um método de planejamento que busca aproximar os processos grupais, mobilizando suas potencialidades e fornecendo instrumentos para a melhoria das ações coletivas, por meio da contribuição ativa de seus membros (Cordioli, 2001).
Foi disponibilizado um modelo de cronograma para o grupo, que ficou encarregado de executar as atividades de forma independente. A autonomia do grupo, nessa etapa, promoveu o desenvolvimento de seu protagonismo, essencial para a realização de planejamentos e ações de modo reflexivo e crítico. Além disso, o desenvolvimento da autonomia se impôs em função do término do período de estágio curricular dos autores do presente relato e proponentes da intervenção, não sendo possível acompanhar o processo de execução das ações formuladas ao final do processo formativo.
3.5. Avaliação: potencialidades e contradições
No final do planejamento, realizou-se um momento de avaliação do percurso, baseado na perceção do grupo, que avaliou positivamente os resultados alcançados nesse período e possibilidades futuras de atuação em nível institucional, sinalizando um acréscimo na potência de ação do comitê operativo. A autora Misoczky (2010) sustenta a compreensão de que organizações são ambientes constituídos pela possibilidade de emancipação, ampliação ou diminuição da potência de agir dos sujeitos. Nesse sentido, observa-se que esse grupo, enquanto conjunto operativo de servidores no âmbito da QVT, compôs um espaço em que houve visível aumento de suas potencialidades, algo que foi descrito pelos próprios sujeitos.
O agrupamento está consciente de que uma atuação amparada em diagnóstico, elemento preponderante na busca de satisfação e desempenho no trabalho (Armenteros et al., 2020), além da teoria e objetivos específicos, pode potencializar suas ações, proporcionando maior compreensão teórica-metodológica e apoio institucional a demandas relacionadas à QVT. Esse respaldo possibilita o exercício de um papel relevante na luta por melhores condições dentro da instituição; reafirma o valor dos trabalhadores para o contexto laboral; fortalece a formação de outros grupos operativos; e os credencia como exemplo para organizações que queiram investir em QVT.
Em contraposição aos achados de Mello e Pedro (2017) acerca da implantação de QVT, partindo da gestão ou de trabalhadores de forma individualizada, pode-se identificar que essa intervenção buscou, sempre que possível, ampliar o protagonismo dos trabalhadores do grupo coletivamente, tanto a respeito das atividades operacionais que tinham de ser realizadas, quanto em debates acerca de aspetos teóricos e da QVT presentes em seu cotidiano. Embora a equipe tenha participado ativamente no processo de elaboração das atividades, o número de trabalhadores envolvidos era pequeno em comparação com o montante da instituição. Além disso, pontualmente, pessoas da gestão se fizeram presentes nos debates, o que demonstra que poucas pessoas em posições de liderança se envolviam nos processos de pensar e executar propostas relacionadas à QVT.
Assim, constatam-se dificuldades do coletivo no equilíbrio das demandas conjunturais da instituição em relação a uma atuação planejada com embasamento teórico e técnico. A falta da presença sistêmica dos órgãos de gestão da IES junto ao grupo, aliada a ausência de processos formativos continuados, propiciou a reprodução de contradições comuns à área e, portanto, de práticas que caracterizam o ofurô corporativo. Esse apontamento evidencia que a criação, por si só, de dispositivos de promoção e vigília de QVT nas organizações, elaborados com base em teorias contra-hegemônicas, não garante o alinhamento de sua execução a tais pressupostos, sendo necessário um esforço permanente das instituições para que as iniciativas desempenhem seu papel estratégico.
4. Considerações Finais
O presente relato de intervenção identificou que, na instituição investigada, foi construída uma política voltada à QVT, contudo fatores conjunturais deixaram o grupo operativo sem suporte institucional, favorecendo o desvio de seus objetivos originais para uma atuação de cunho hegemônico. O diagnóstico da instituição, em 2017, elencou alguns indicadores críticos, entre eles: a preocupação da instituição com a QVT dos trabalhadores; o equilíbrio família-trabalho; a pertinência das regras/normas institucionais e capacitações/formações para o trabalho cotidiano; oportunidades de crescimento e remuneração. Entretanto, durante a análise da demanda, constatou-se que a atuação do grupo estava concentrada em atividades de acolhimento e socialização entre os trabalhadores, representantes de dimensões da QVT, porém, realizadas em desalinho com os pontos críticos evidenciados no diagnóstico de 2017.
Nesse sentido, sugere-se que as organizações, no momento de criação da política e dos programas de QVT, estabeleçam diretrizes mais claras sobre o papel do comitê e de seus grupos operativos, com o intuito de auxiliar tais equipes por meio de orientações básicas sobre sua atividade, evitando a reprodução de dinâmicas calcadas no ofurô corporativo e promovendo ações baseadas numa prática contra-hegemônica, que é o propósito central da abordagem da EAA_QVT. Além disso, é imperativa a realização de processos sistemáticos de formação e planejamento dos grupos responsáveis pela execução dessas políticas, aumentando seu valor estratégico para as equipes gestoras, impactando positivamente de forma contínua e aprofundada, a rotina dos trabalhadores e organizações.
O trabalho realizado permitiu que o grupo pudesse repensar sua atuação e o espaço institucional ocupado, se apropriar de conhecimentos e ferramentas úteis à realização da sua função. Foi constantemente reforçada a necessidade do trabalho coletivo estar sustentado por pesquisas empíricas e teóricas em Ergonomia da Atividade Aplicada à QVT, além da pesquisa e política de QVT realizadas na instituição. Revisitar esses documentos teórico-metodológicos no trabalho cotidiano proporciona maior respaldo às iniciativas, tornando suas ações mais estratégicas e fortalecendo o agrupamento enquanto coletivo frente à instituição, melhorando sua efetividade. Nesse sentido, observou-se que as práticas de QVT hegemônicas e descoladas da essência dos problemas em uma organização podem ser modificadas a partir de suporte teórico ao grupo, para que este atue de maneira embasada e autônoma.
Conforme indicado no texto, há uma tendência de profissionais de recursos humanos ou gestão de pessoas trabalharem na elaboração e implantação das ações e propostas em QVT e, nesse sentido, a área se coloca enquanto terreno fértil para a atuação e formação de psicólogos. Por isso, é importante que a formação acadêmica e profissional de estudantes que desejam trabalhar nesses setores tenha estudos de QVT contemplados no currículo, possibilitando que estejam instruídos para trabalhar de forma eficiente com as demandas, quando elas surgirem dentro das organizações.
Este estudo, ao expor as potencialidades e contradições implicadas no tema de QVT, apresenta-se como campo em consolidação no meio organizacional público e privado, havendo dissensos e espaços para continuidade do seu desenvolvimento. A escassez de trabalhos acadêmicos que relatam o desdobramento e atuação de grupos ou comitês de QVT deixa uma lacuna metodológica para os profissionais que trabalham na coordenação e execução desses grupos, sinalizando para a necessidade de pesquisas futuras que investiguem o andamento de programas de QVT ativos e seus impactos nas organizações.














