A Obstetrícia e Ginecologia portuguesa está a passar por uma das fases mais difíceis da sua história, principalmente no sul do país. São vários os serviços hospitalares que se encontram muito debilitados em termos de recursos humanos. Um grande número de hospitais, sobretudo os mais pequenos, os do interior e do sul do país, têm muito poucos médicos especialistas no quadro e alguns praticamente não têm médicos com menos de 55 anos. Fica por explicar como foi possível deixar a situação chegar a este ponto, quando o problema seguramente se foi agravando ao longo de anos.
Neste momento, face às alternativas que existem, sobretudo na medicina privada, na prestação de serviços, e no estrangeiro, muitos profissionais, principalmente da gerações mais novas, não estão interessados em trabalhar no Serviço Nacional de Saúde, porque não lhes dá uma segurança financeira minimamente aceitável, porque não se revêm nas lideranças hospitalares, e porque não veem vontade política em alterar a situação. A medicina privada é financeiramente mais atrativa do que a pública, mas falta-lhe frequentemente algumas componentes do trabalho em equipa, de ensino, investigação, treino pós-graduado e internacionalização, que são importantes para muitos profissionais.
A disseminação do conhecimento e o treino pós-graduado são essenciais para o progresso da especialidade, e têm sido até à data assegurados sobretudo pela medicina pública, com predominância nos hospitais universitários. Os países necessitam de fomentar escolas de conhecimento que permitam avaliar o impacto clínico de novas evidências científicas, e que participem ativamente na criação e na divulgação do conhecimento. São motores essenciais para a evolução da especialidade e para a melhoria dos cuidados assistenciais. Os países europeus mais desenvolvidos têm mantido o seu lugar na vanguarda do conhecimento e dos cuidados de saúde através de uma aposta clara do Estado na medicina pública, como forma de garantir bons serviços de saúde à população, isentos de qualquer interesse financeiro, e catalisadores da melhoria da prática clínica geral.
A opção de deixar a saúde nacional sujeita às leis de mercado, como acontece nalguns países da América Latina e da Ásia, tem riscos enormes de criar iniquidades no acesso aos cuidados de saúde e de levar à estagnação científica do país. Não apostar na diferenciação dos hospitais públicos é um enorme erro estratégico, com consequências a médio-longo prazo na melhoria dos cuidados de saúde. Criar iniquidades no acesso da população a serviços de saúde fiáveis durante a gravidez é outro grave erro político, numa área tão sensível e importante para o futuro demográfico do país.
A história da humanidade e as experiências de vida ensinam-nos que as pessoas, as especialidades, os cuidados de saúde, têm os seus momentos altos e os seus momentos mais baixos; tem alturas de grandes feitos, de grandes avanços, e têm também as suas alturas de crise, as suas travessias do deserto. Estamos atualmente a atravessar um dos períodos mais difíceis da Obstetrícia e Ginecologia nacional, uma das maiores ameaças a que já esteve sujeita. A nossa especialidade continua a estar na linha da frente das dificuldades que afetam o Serviço Nacional de Saúde, e como tal é particularmente perturbada por esta situação. Quando não existe estabilidade nas equipas, quando o foco está em assegurar aspetos tão básicos como as escalas de urgência, quando não é possível os profissionais manterem rendimentos suficientes para um estilo de vida minimamente aceitável, naturalmente que as prioridades se afastam da investigação, da atualização de conhecimentos, da introdução de melhorias na prática clínica, passando a centrar-se em aspetos muito mais básicos do dia a dia.
Mas cabe a cada um de nós manter vivos esses propósitos, tão importantes para a excelência profissional, para a melhoria dos cuidados de saúde, para o progresso da especialidade. Não os podemos perder de vista, porque são aspetos centrais à nossa profissão, e que farão toda a diferença no futuro. Temos de manter acesa a vela da esperança num futuro mais risonho, e não perder de vista o compromisso com os valores essenciais da Medicina: a integridade, o profisionalismo, a excelência clínica e a defesa dos interesses dos doentes.