Introdução
O tratamento de feridas tem sido uma temática com crescente interesse pelas envolventes que comporta, tanto ao nível físico como psicossocial e é uma área diretamente relacionada com o envelhecimento populacional na sua tendência crescente.
Em 2008, a OMS já considerava as feridas e toda a sua problemática como a nova epidemia escondida(1), afetando milhões de pessoas em todo o mundo. Pela sua elevada prevalência, 1 a 2% nos países desenvolvidos(2), constituem um problema de saúde pública e ainda, nos dias de hoje, um desafio para os profissionais de saúde ligados a essa área de cuidados, mas sobretudo um encargo pesado para os sistemas de saúde. Em Portugal estima-se que existem 3,3 portadores de ferida por cada mil habitantes(3), e a escassez de dados epidemiológicos sobre a prevalência/incidência de feridas na nossa população é evidente.
Verifica-se um aumento de comorbilidades associadas à pessoa portadora de ferida, mas também dos custos diretos e, não menos importantes, dos custos indiretos, tais como perda de produtividade e custos relacionados com a pessoa e com a família. Para além disso, o sofrimento, a dor, a perda de sono, a imobilidade e o isolamento social, são prejuízos na vida quotidiana que importa contabilizar(4) .
O tempo que uma grande percentagem de feridas pode levar a cicatrizar, (um ano ou mais), pode implicar a custos anuais, que a nível europeu, podem chegar à importância de 10000 euros, tomando como exemplo a úlcera de Pé Diabético(2).
O incremento da produção e publicação de estudos na área de tratamento de feridas, bem como o desenvolvimento da indústria farmacêutica e tecnológica, obrigam a um conhecimento e seleção criteriosa dos produtos disponíveis. Esta revisão surge com o objetivo de clarificar a abordagem ao tratamento da ferida complexa, à luz das novas guidelines emitidas por entidades como a European Wound Manegement Association (EWMA).
Material e métodos
Foi efectuada uma revisão narrativa sobre os aspectos actuais da abordagem à ferida complexa ou de difícil cicatrização, (ferida que não regride em 40-50% da sua dimensão em 4 semanas).
Efectuou-se uma pesquisa bibliográfica na Pubmed e nos últimos documentos de consenso elaborados pela EWMA (European Wound Management Association) a qual foi integrada na experiência dos autores no tratamento deste tipo de doentes.
Resultados
Ferida Complexa
Importa definir o conceito de ferida complexa ou de difícil cicatrização, como sendo a ferida que fica estagnada em qualquer uma das fases do processo de cicatrização, (Hemostase, Inflamação, Proliferação e Maturação), por um período de seis ou mais semanas(5), ou seja, falência na sequência ordenada das mesmas, sem que o resultado pretendido, a cicatrização, seja alcançado através da integridade anatómica e funcional. Normalmente esta falência está associada a fatores locais e sistémicos que impedem uma resposta tecidular à lesão e que se prendem essencialmente com a relação entre hipoperfusão tecidular, hipoxia e infeção. Podemos referir também que ferida complexa é aquela cuja dimensão não regrediu entre 40-50% nas primeiras 4 semanas, apesar do tratamento convencional instituído(2). Apesar do desenvolvimento do conhecimento, do incremento de intervenções de cuidados específicos e dos avanços da indústria farmacêutica, vamos sempre encontrar feridas que persistem em não cicatrizar ou em que a cicatrização se prolonga no tempo(6).
Educação
O profissional tem de reforçar as suas competências na formação, como mentor e como parceiro no plano de cuidados, dado que o primeiro passo para a prevenção de feridas é a educação. Esta, deve dirigir-se a duas dimensões essenciais: Capacitação da pessoa portadora de ferida/família/cuidador; Sistema de saúde, na formação dos seus profissionais. Uma mnemónica útil nesta atividade da educação é a EDUCATION (E-Empower D-Develop/deserve what they need; U-Understand problems/risks; C-Care; A- Advocate; T- Teach; I- Inquire; O- Observe; N- Nurture)(7). Deste modo, a adesão terapêutica com a capacitação da pessoa portadora de ferida e da família/cuidador, é um aspeto central e fundamental para o sucesso do tratamento, e todo o tempo consumido na atividade do ensino/formação reverte em ganhos em saúde. Toda a informação disponibilizada deve ser também reforçada com informação escrita, e, se possível, fornecida também aos profissionais dos Cuidados de Saúde Primários(8).
Métodos atuais de tratamento de ferida complexa
A intervenção dirigida à pessoa portadora de ferida complexa deve ter como principal objetivo eliminar as barreiras à cicatrização, como são a senescência celular, a infeção ou a deficiente perfusão sanguínea, etc. Deve assentar também na avaliação dos fatores relacionados com a pessoa, com a ferida e com os recursos disponíveis, procedendo à otimização dos fatores de risco identificados.
Controlo de infeção
O controlo de infeção associado aos cuidados de saúde é uma preocupação crescente dos profissionais de saúde pelos custos associados, quer humanos quer financeiros, e com agravamento dos encargos para os sistemas de saúde. A infeção exerce um efeito considerável na morbimortalidade da pessoa e na sua qualidade de vida. Há evidências de que bundles de cuidados para a prevenção das Infeções Associadas aos Cuidados de Saúde (IACS), promovem resultados positivos e é recomendada a sua adesão(9).
Estas bundles são constituídas por um conjunto de intervenções básicas, como a higienização das mãos, fulcrais para a contenção das IACS. A utilização de equipamento de proteção individual (EPI), a gestão da entrada dos utentes nas salas de tratamentos, a descontaminação das mesmas bem como a vigilância de sinais precoces de infeção e a monitorização bacteriológica das feridas, são algumas das intervenções simples e pouco dispendiosas para o sistema de saúde, mas que dão um contributo essencial para o controlo e prevenção da infeção associada ao tratamento de feridas (Fig.2). Toda esta intervenção deve ter em conta as políticas locais de controlo de infeção.
O risco de IACS depende também de uma combinação de fatores intrínsecos e extrínsecos, relacionados com o tipo de cirurgia e as comorbilidades do doente. Embora possa ser difícil alterar os riscos intrínsecos e extrínsecos das pessoas portadoras de feridas, um referencial de boas práticas focada na redução do risco geral é essencial para garantir as menores taxas possíveis de IACS. O diagnóstico precoce e rápido de infeção é essencial tanto em utentes internados como em regime de ambulatório. Uma avaliação holística da pessoa portadora de ferida e das suas características é importante, e, na avaliação de infeção, e para além da avaliação microbiológica isolada, é necessária a avaliação da presença de sinais clínicos.
Revascularização
Na presença de membro com isquemia crítica e lesões tróficas, a terapêutica de revascularização constitui a primeira linha do tratamento. Sai fora do âmbito deste artigo a discussão sobre as várias técnicas de revascularização disponíveis.
Terapias avançadas
Podemos recorrer, de forma criteriosa, a terapias mais avançadas e que se baseiam em novos princípios e tecnologias ou a uma nova aplicação de princípios e tecnologias já consolidados, sempre baseados na evidência(4). Podemos agrupar estas terapias segundo a sua natureza, material de penso de ação terapêutica, engenharia de células e tecidos, físicas, e tecnologias de informação.
Material de penso de ação terapêutica
Cada vez mais as novas tecnologias vêm revolucionar a gestão de feridas através de diferentes mecanismos, sejam o controlo de exsudado ou o aperfeiçoar da libertação de oxigénio no leito da ferida através de apósitos com difusão de oxigénio. Todos com o mesmo objetivo de reduzir o tempo de cicatrização das feridas.
O conforto do doente, a adesividade, a aderência do material ao leito da ferida, a facilidade na remoção, a capacidade de absorção, a capacidade de permeabilidade, as propriedades de ação (antimicrobiana, estabilização das metaloproteases, regeneração de tecidos, desbridante, barreira bacteriana), são algumas das principais características do material de penso de ação terapêutica (MPAT) e há que gerir a sua escolha face às características da ferida alvo de tratamento, face aos recursos da instituição, formação dos profissionais para a sua utilização e a situação da pessoa portadora de ferida em relação ao seu regime de internamento ou ambulatório. Temos pois que combinar os diferentes tipos de ação do MPAT para a sua potencialização, no sentido de corresponder às necessidades da pessoa portadora de ferida em cada momento, e com vista aos ganhos em saúde que são a qualidade de vida e a cicatrização da ferida.
Engenharia de tecidos e células
As terapias celulares, com o objetivo de desenvolvimento de células que possam reparar, incrementar ou substituir a função, têm um contributo positivo no que respeita à reparação tecidular das feridas. Atualmente no tratamento avançado da ferida complexa podemos usar as propriedades regenerativas das plaquetas para acelerar o processo cicatricial usando o plasma rico em plaquetas (PRP). Este é obtido através da colheita de sangue do doente ao qual se destina o tratamento (autólogo) e a sua respetiva centrifugação, sendo usada a fração rica em plaquetas com o objetivo de libertar na ferida fatores de crescimento essenciais na produção de colagénio e da matriz extracelular e promovendo a reparação tecidular e a neovascularização. O PRP caracteriza-se portanto, pela presença de uma concentração de plaquetas superior à fisiológica. Na literatura os diversos autores utilizam o valor de 1.000.000 plaquetas/uL o correspondente a uma concentração de 2.5 a 8 x superior à fisiológica.
As plaquetas armazenam também metaloproteases-4, sendo estas proteínas antibacterianas e fungicidas importantes na prevenção da infeção mas também integrantes na fase inflamatória da ferida.
Existem diversos fatores de crescimento nomeadamente:
Fator de crescimento derivado das plaquetas (PDGF) que interfere na proliferação do tecido conjuntivo, angiogénese, estimulação da síntese de outros fatores;
Fator de transformação do crescimento (TGF- B), responsável pela síntese de colagénio/ matriz extracelular (MEC) e pela inibição da degradação MEC, bem como pela supressão da proliferação celular e imunossupressão;
Fator de crescimento epidérmico (EGF) importante na proliferação/ diferenciação das células mesenquimatosas e epiteliais, potenciação de outros fatores de crescimento e, quimiotaxia e síntese de colagénio;
Fator de crescimento endotelial vascular (VEGF) estimulador da angiogénese;
Fator de crescimento de hepatócitos (HGF) importante na angiogénese e produção de colagénio tipo I;
Fator de crescimento semelhante à insulina 1 (IGF-1) necessário para processos de quimiotaxia, crescimento e regeneração muscular, osteogénese e síntese proteica;
Fator de crescimento fibroblástico (FGF) essencial à proliferação de fibroblastos, mioblastos, queratinócitos, condrócitos e também na angiogénese(10,11).
Este tratamento está assim indicado em doentes com lesões de Pé Diabético e úlceras crónicas dos membros inferiores, sem doença arterial periférica significativa (i.e, isquémia crítica dos membros inferiores), ou loca de amputação minor com mais de seis semanas de duração, sem evolução favorável apesar da implementação dos cuidados standard.
Métodos Físicos
Neste tipo de tratamento verificamos uma interação entre a ferida e um sistema físico em que se dá a transferência de energia da/ou para a ferida, verificando-se alterações observáveis e mensuráveis, no sistema e na ferida. Exemplificando, falamos de terapia compressiva com aplicação de determinada pressão positiva na lesão e que habitualmente está associada ao tratamento da úlcera venosa contribuindo para o controlo do edema e para a redução da hipertensão venosa. Por outro lado, temos o caso paradigmático da aplicação de Terapia de Feridas por Pressão Negativa (TFPN), em que se verifica a aplicação de pressão negativa no leito da ferida para o tratamento de feridas de diversas etiologias. Os principais mecanismos de ação da TFPN são: isolamento da ferida com diminuição do risco de infeção; criação de um meio ambiente húmido; transmissão de pressão e remoção de exsudado; redução do edema; desenvolvimento de stress mecânico nos bordos da ferida; alteração da perfusão sanguínea, angiogénese e formação de tecido de granulação(12,13). Existe uma variedade de fatores a ter em conta na seleção desta terapia, nível de pressão, material de preenchimento, interfaces de contacto, modo de pressão (contínuo/intermitente), com ou sem instilação de soluções (ex. antibióticos), tipo de ferida e configuração, doença de base e necessidades específicas da pessoa portadora de ferida.
O resultado dos mecanismos de ação face ao escolhido vão ser: 1 mecanismos de macrodeformação do leito da ferida associada ao aumento da pressão e redução da dimensão da ferida por ação das forças centrípetas exercidas nos bordos da ferida; 2 mecanismos de microdeformação com utilização de interfaces (espuma/gaze) que provocam deformação do citoesqueleto celular resultando em estímulo à proliferação celular e angiogénese, termorregulação, ativação neurocutânea e controlo da resposta inflamatória; 3 remoção do excesso de exsudado que facilita o transporte de nutrientes e oxigenação da ferida pela diminuição do edema na ferida e áreas adjacentes; 4 otimização do leito da ferida por mecanismos moleculares com aumento do tecido de granulação, aumento do fluxo sanguíneo, diminuição da resposta inflamatória local e depuração da carga bacteriana(14).
Este tipo de tratamento é bem tolerado e pouco dispendioso face à possibilidade de ambulatorização da pessoa portadora de ferida complexa. Aspeto importante a considerar no caso da mudança de penso traumática, habitualmente associada ao crescimento de tecido de granulação para os microporos da espuma/gaze, está recomendada a utilização de inferfaces de parafina, silicone ou rede de ácidos gordos esterificados, (impregnada de cloreto de dialquil carbomoil), por forma a criar uma camada de contacto com a ferida. No entanto a adesão terapêutica vai depender da informação disponibilizada pelos profissionais, a formação dos profissionais e do suporte do serviço no apoio às intercorrências e dúvidas que vão surgindo no decorrer do tratamento, para que a pessoa/família não se sinta desprotegida e com níveis elevados de ansiedade(12).
Outras terapias recentemente divulgadas e com aplicação de novas tecnologias, como ondas de choque com a criação de campos elétricos, de campos magnéticos, têm sido também aplicadas na abordagem do tratamento de feridas. As nanotecnologias baseadas na aplicação de diferentes nanopartículas, e com características de grande versatilidade e interação com os diferentes elementos celulares, trazem também ganhos nas diferentes fases da cicatrização(4).
Oxigenoterapia
Oxigenoterapia é um termo geral que inclui a terapia por oxigénio hiperbárico e a terapia tópica de oxigénio. O provimento de oxigénio à ferida depende da pressão de oxigénio (PO2) nos tecidos adjacentes da ferida e da circulação sanguínea. Assim, o edema, a microcirculação alterada e a contração dos vasos no tecido traumatizado, levam a um inadequado abastecimento de oxigénio à ferida levando a que esta se mantenha numa condição pró-inflamatória prolongada, evitando a restauração dos tecidos.
Terapia por Oxigenação Hiperbárica (HBOT) consiste pois na exposição de todo o corpo a uma pressão 2/3 vezes superior à pressão atmosférica e inalando oxigénio (O2) a 100%. A diluição de O2 no plasma difunde para a microcirculação dos tecidos da ferida revertendo a hipoxia local e característica das feridas de difícil cicatrização. Os efeitos mais importantes e amplamente estudados são: alteração do efeito de isquemia; redução do edema; modulação da produção de óxido nítrico; modificação dos fatores de crescimento e do efeito das citoquinas; promoção da proliferação celular; aceleração da deposição de colagénio; estimulação da angiogénese; aceleração da morte microbiana; interferência na proliferação microbiana; modulação da resposta do sistema imunitário e aumento dos recetores de radicais O2, reduzindo a lesão de isquemia.
Por outro lado, nos últimos tempos têm surgido terapias de libertação de O2 tópico, quer por sistemas pressurizados quer por sistemas de libertação local, com a função de reverter a hipoxia local, que, por sua vez, leva à morte de bactérias anaeróbicas e aumento da função leucocitária para tratar de outros agentes patogénicos(15).
Desbridamento/Preparação leito ferida/Desbridamento biológico
O que lidera a cicatrização não é o que colocamos na ferida mas o que dela retiramos(16). O desbridamento precoce e continuado é uma ferramenta essencial na promoção da cicatrização da ferida complexa por diferentes aspetos: permite a avaliação mais concreta da ferida, contribui para a diminuição do potencial de infeção, promove a atividade celular, elimina barreiras físicas à cicatrização por diminuição do tecido inviável, permitindo portanto uma atuação mais eficaz do material de penso de ação terapêutica(17). No entanto a utilização desta técnica pressupõe o treino dos profissionais, a sua competência na identificação dos diferentes tecidos presentes na ferida, nunca esquecendo uma avaliação holística da pessoa, com especial preocupação para a correção das causas da ferida.
Dispomos de várias técnicas de desbridamento como o cirúrgico/cortante, mecânico e material de penso de ação terapêutica como o autolítico e enzimático. Mais recentemente surgiram outros métodos como o hidrocirúrgico, por ultrassons e por radiofrequência. Também foi recuperado para a atualidade, e com grande pertinência, o desbridamento biológico por terapia larvar recorrendo à mosca Lucilia sericata numa formulação de ovos desinfetados. Esta terapia tem como mecanismo de ação: remoção mecânica de tecido inviável/ necrótico. A secreção larvar permite liquefazer o tecido e este ser absorvido pelas mesmas. A justificar este mecanismo a presença do aumento do exsudado no inicio do tratamento. Atividade bactericida e bacteriostática com impacto antimicrobiano. Promoção do processo de cicatrização. A remoção de tecido inviável/necrose e a redução da contaminação bacteriana promovem o processo de regeneração. A migração de queratinócitos epidérmicos residentes e células dérmicas, incluindo fibroblastos e células dérmicas microvasculares, das margens do leito da ferida, é um passo crucial na cicatrização das feridas(17,18). Existem disponíveis dois tipos de apresentações, biobag e forma livre, sendo que em Portugal a apresentação aprovada pelo Infarmed é a de biobag em que as larvas estão condicionadas a um pequeno recipiente de malha de rede. Esta terapia tem demonstrado um desbridamento tecidular efetivo, altamente seletivo, indolor, bem tolerado e aceite pelos doentes e profissionais, dispensando a necessidade de deslocações ao bloco operatório e reduzindo o número de dias de internamento.
Bundle Care
Intervenções estratégicas, efetivas, organizadas em bundle e dirigidas aos diferentes fatores que influenciam a cicatrização (fatores relacionados com a pessoa, com a ferida e com os recursos), são necessárias. Há evidência que uma combinação de estratégias produz melhores resultados do que uma intervenção isolada(19).
As intervenções são dirigidas à limpeza do membro afetado, preparação do leito da ferida, não esquecendo o triângulo de avaliação de feridas (preparação do leito da ferida, tratamento dos bordos da ferida e tratamento da pele perilesional). Há que ter em consideração uma série de fatores relacionados com os cuidados na realização do tratamento, como a escolha do MPAT, a prevenção de lesões secundárias ao penso primário, bem como a minimização do penso secundário.
A dinâmica do tratamento deve envolver uma monitorização constante e tem que ter em linha de conta a pessoa como o centro do cuidado.
A atuação deve portanto ter enfoque nos diferentes parâmetros do conceito TIMERS (Tissue, Inflamation/Infection, Moisture, Edge, Regeneration e Social Factors)(2) conceito este que vem atualizar o conceito TIME e valorizar quer a importância dos fatores sociais quer realçar a necessidade de avançar para novas terapias na presença de um processo de cicatrização difícil.
A abordagem ao tratamento de ferida complexa deve ser feita em equipa multidisciplinar, com uma preocupação na comunicação efetiva entre os diferentes intervenientes, numa estrutura de serviço de referência(20), com organização de Nivel III(21), com profissionais de saúde com conhecimentos e competências diferenciadas nesta área, nomeadamente o gestor de ferida, com capacidade de prescrever a melhor prática no sentido da prevenção/diagnóstico/decisão terapêutica na ferida crónica, complexa e/ou de difícil cicatrização ou seja o profissional de saúde mais bem capacitado para o desempenho deste papel(22) e tendo em conta um processo holístico, com a avaliação das necessidades da pessoa portadora de ferida por forma a colocá-la no centro dos cuidados e a valorizar o seu bem-estar e qualidade de vida. (Fig.1)
Não podemos descurar a importância da adequada alimentação e eventual suplementação na complementaridade do tratamento de feridas, aspeto cada vez mais alvo de estudos para um suporte da evidência científica.
Os cuidados podológicos associados à descarga da ferida bem como a prescrição do calçado adequado devem ser também alvo da atenção dos profissionais ligados a esta área da saúde. A maioria das lesões nos pés estão associadas ao calçado, nomeadamente ao calçado desadequado para a situação atual do pé.
No caso das feridas de difícil cicatrização, é adequado equacionar o envolvimento de outras especialidades médicas como a Cirurgia Plástica, para tratamento coadjuvante.
Tecnologias inteligentes
A tecnologia está cada vez mais imiscuída nas nossas vidas e nos mais diversos aspetos. Na era da miniaturização dos processadores, avanços nas tecnologias mais sensíveis, disponibilidade, consistente de energia elétrica, omnipresença de acesso à Internet e avanços significativos na compreensão e aprendizagem das máquinas, bem como da inteligência artificial, novas soluções emergentes foram desenvolvidas para melhorar a assistência médica, a satisfação dos doentes e a saúde da população em diferentes disciplinas, reduzindo simultaneamente o custo do atendimento(4,23). Alguns exemplos da aplicação destas tecnologias já disponíveis são a deteção precoce da presença de agentes microbianos, a capacidade de distinção dos diferentes tecidos no leito da ferida, a capacidade de mensuração mais ajustada, a avaliação de humidade subepidérmica, dispositivos de apoio no desbridamento, nomeadamente hidrocirúrgico, entre outros que constituem subsídios importantes na avaliação e tratamento de feridas, bem como instrumentos de pequeno porte mas facilitadores da atividade dos profissionais.
Outro instrumento de apoio aos profissionais de saúde, nesta área de cuidados, são os algoritmos. Em saúde os algoritmos são instrumentos de apoio à decisão clínica, fornecem uma visão de conjunto e funcionam como mapas ou guias para a tomada de decisão na presença de situações complexas(24).
Apresentamos na Fig. 3 uma proposta de algoritmo no Tratamento de Ferida Complexa construído a partir das últimas guidelines, por forma a auxiliar os profissionais de saúde nas suas decisões terapêuticas nesta área de cuidados.
Conclusão
Esta é uma realidade que se impõe nos dias de hoje na abordagem do tratamento de feridas, uma abordagem multidisciplinar, centrada nas necessidades e características da pessoa portadora de ferida e da própria ferida, para a obtenção de uma maior efetividade e sucesso na cicatrização de feridas, e para a obtenção de verdadeiros ganhos em saúde e qualidade de vida da pessoa portadora de ferida.
Esta atividade deve ser sustentada na evidência, devendo recorrer-se a uma correta monitorização e mensuração da ferida e o futuro do tratamento de feridas será revolucionado pela aplicação de terapias inteligentes na prevenção, tratamento e monitorização de feridas crónicas.
A escolha de terapias avançadas deve ser criteriosa pelos seus elevados custos, no entanto dispendiosas são todas as terapias que não geram resultados positivos e cicatrização de feridas.
O presente trabalho pretendeu ser um guia orientador da abordagem da ferida complexa e foi fruto da pesquisa dos últimos documentos de consenso emanados pelas entidades de referência no tratamento de ferida complexa como a EWMA, bem como da experiência profissional desenvolvida nesta área de cuidados.