Introdução
Segundo a Organização Mundial da Saúde (2002) a violência pode ser definida como o uso intencional da força física ou do poder, real ou em ameaça, contra si próprio, outra pessoa ou contra um grupo ou comunidade, que resulte ou tenha a possibilidade de resultar em lesão, morte, dano psicológico, deficiência de desenvolvimento ou privação.
Conforme Brasil (2011) a violência contra a mulher se constitui em uma das principais formas de violação dos direitos humanos. As mulheres sofrem vários tipos de violência cotidianamente e, na maioria das vezes, este fenômeno se manifesta dentro de seus próprios lares, por seus companheiros e familiares. A violência contra a mulher que se apresenta no meio social não distingue ou escolhe raça, idade, sexo, religião ou condição socioeconômica, devendo ser veementemente combatida pelo Estado e sociedade.
Neste sentido, a Secretaria Nacional de Enfrentamento à Violência contra as Mulheres tem fortalecido medidas de enfrentamento, as quais requerem ações conjuntas de diversos setores envolvidos como saúde, segurança pública, justiça, educação, assistência social, entre outros, no sentido de propor ações que desconstruam as desigualdades, combatam as discriminações de gênero e a violência contra as mulheres e que garantam um atendimento qualificado e humanizado àquelas em situação de violência (Brasil, 2011).
Ainda, a Lei Maria da Penha, Lei 11.340 de 2006, instituiu a criação de juizados especiais para os crimes previstos na legislação que estabelece medidas de assistência e proteção às vítimas, além de assegurar a criação de políticas públicas para a garantia dos seus direitos (Carneiro & Fraga, 2012). Embora presentes, políticas e legislações de enfrentamento a violência contra a mulher não tem conseguido reduzir os dados alarmantes desse agravo.
Segundo dados apresentados pelo Atlas da Violência de 2019, no Brasil, entre 2007 e 2017 houve elevação em 20,7% na taxa nacional de homicídios de mulheres, quando a mesma passou de 3,9 para 4,7 mulheres assassinadas por grupo de 100 mil mulheres. Os maiores crescimentos aconteceram nos estados do Rio Grande do Norte, com variação de 214,4%, e no Ceará, com 176,9% (Cerqueira et al., 2019).
Com relação aos casos não fatais, uma pesquisa realizada, no Brasil, pelo Instituto de Pesquisa DataSenado em parceria com o Observatório da Mulher contra a Violência, ouviu mulheres brasileiras acerca da violência sofrida e constatou que das 1.116 mulheres participantes, 29% dessas afirmaram já terem sofrido violência doméstica, sendo que 67% apontaram para a violência física, 47% psicológica, 36% moral, 15% sexual e 8% patrimonial (Brasil, 2017). Essas violências, segundo a pesquisa, têm como os principais perpetradores os atuais companheiros com 41%, seguidos pelos ex-parceiros, com 33% dos casos. Isso mostra que o término da relação não significa o fim da violência, algumas importunações podem se fortalecer após o fim da união e resultar em desordens psicológicas nas vítimas.
Dada a complexidade do fenômeno e sua persistência na sociedade, faz-se necessário abordar as mulheres de forma qualificada desde a sua entrada na rede de enfrentamento da violência, inclusive na identificação de indícios que podem apontar para sequelas e danos psicológicos, comprometedores da saúde física e emocional das vítimas.
Portanto, o objetivo deste estudo é identificar as experiências de violência e desordens psicológicas presentes em mulheres vítimas de violência por ex-parceiros, a fim de aprofundar o conhecimento sobre a temática, para que se possa melhorar a qualidade e o direcionamento da assistência às vítimas.
Metodologia
Tipo de estudo
Trata-se de um estudo transversal, de natureza descritiva e abordagem qualitativa. Foi realizado no período de outubro a novembro do ano de 2017, em uma Delegacia de Defesa da Mulher (DDM), localizada em uma cidade do Nordeste brasileiro.
População
A pesquisa envolveu mulheres que sofreram ou que sofrem violência doméstica pelo ex-parceiro.
Para participar do estudo as mulheres deveriam: i) ter entre 18 e 50 anos de idade, visto que mulheres com essas idades estão mais vulneráveis a sofrerem violência doméstica, ii) possuir estado civil separada/divorciada, iii) estar presente na delegacia realizando denúncia de violência sofrida pelo ex-parceiro (registrando boletim de ocorrência) e iv) residir na referida região estabelecida como lócus do estudo.
Coleta de Dados
O estudo adotou como técnica de coleta de dados a entrevista semiestruturada, contendo questões sociodemográficas, conhecimento sobre conceito de violência, experiências de vitimização e sequelas psicológicas. No decorrer da coleta foram realizadas perguntas que não seguiam necessariamente o roteiro estabelecido, mas que, de acordo com a pesquisadora, foram necessárias e também consentidas pela técnica, que permite discorrer sobre um tema sem se prender totalmente às perguntas já formuladas (Minayo, 2009).
Vale ressaltar que foi realizado um pré-teste para assegurar que o instrumento de coleta fosse capaz de responder aos questionamentos do estudo, com alteração em seu roteiro se necessário. No entanto, após aplicação do instrumento, verificou-se a adequabilidade dos questionamentos presentes no roteiro de entrevista semiestruturada e alcance dos objetivos propostos pelo estudo, não sendo necessário proceder a quaisquer alterações no roteiro previamente estabelecido.
Procedimento de coleta
Após submissão e aprovação do comitê de ética em pesquisa e parecer favorável da delegada titular para desenvolvimento da pesquisa, a pesquisadora se deslocou a unidade para abordagem das mulheres, avaliação dos critérios de inclusão e realização das coletas após a finalização dos registros dos boletins de ocorrência contra os ex-parceiros.
As mulheres convidadas a participarem da pesquisa e que contemplaram os critérios de inclusão foram encaminhadas pela pesquisadora para uma sala reservada/silenciosa na instituição, e logo após assinatura do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido, iniciaram-se as entrevistas que foram gravadas em mídia digital de acordo com a autorização das participantes entrevistadas e, posteriormente, transcritas. Cada entrevista durou em média 20 minutos. Com a intenção de manter o sigilo e anonimato das participantes, as mulheres foram nomeadas como S1, S2, e assim sucessivamente, sendo “S” para designação de "senhora".
Organização e Análise dos Dados
Os dados foram organizados de acordo com a análise temática de Minayo (2009), na qual o conceito central é o tema que pode ser apresentado de diversas formas, como palavras, frases ou resumos, propondo-se a demonstrar os núcleos de sentido que compõe a comunicação. Posteriormente, foram discutidos conforme a literatura pertinente.
Resultados
Características sociodemográficas
Foram entrevistadas 10 mulheres por motivos de saturação dos dados, uma vez que foi recorrente e semelhante nos discursos das participantes as violências sofridas por seus ex-parceiros e as desordens psicológicas resultantes desse processo. Desta forma, a partir da identificação das recorrências das respostas e suas repetições, bem como o não acréscimo de novas informações, identificou-se o ponto de saturação.
Participaram da pesquisa mulheres jovens, com idade entre 20 e 30 anos. Das 10, oito estavam morando com a sua família nuclear, seus pais. Três trabalhavam, cinco dependiam da pensão alimentícia dada pelo ex-parceiro e pai dos seus filhos e duas das que trabalhavam, estavam morando sozinhas com os filhos.
Todas as mulheres entrevistadas eram mães, sendo que cinco delas tinham dois filhos, duas tinham três filhos e três mulheres tinham apenas um filho, todos menores de idade. Nenhuma das mulheres quis registrar o valor da renda familiar, afirmaram apenas que não recebiam muito, e todas as mulheres que não trabalhavam relataram que dependiam da pensão alimentícia para os cuidados com os filhos, porém alguns dos ex-companheiros não queriam cumprir com a obrigação do pagamento perante a lei, motivo pelo qual também as vítimas frequentavam muito o serviço de segurança.
Em relação à religião, todas se consideraram católicas. Quanto ao nível de escolaridade, duas tinham o ensino fundamental completo, cinco tinham o ensino médio completo e três não tiveram condições de concluir o ensino médio.
Em relação ao tempo de fim do relacionamento, nove das 10 entrevistadas estavam enfrentando o término do relacionamento há pouco tempo (dois a seis anos), e apenas uma mulher estava com tempo de fim do relacionamento mais prolongado (10 anos).
Conceito atribuído à violência
Qualquer atitude ou ação que cause algum prejuízo físico ou moral a uma pessoa ou ser vivo é designado como violência. Embora seja algo muito presente na sociedade e que seja considerado um agravo de saúde pública, muitas mulheres não se reconhecem como vítimas deste fenômeno. Desta forma, faz-se necessário obter o conhecimento das vítimas sobre o que elas acreditam e definem como violência, como exposto abaixo:
É... tem a violência verbal né? Que foi o que eu mais sofri. Porque ele nunca foi de chegar pra me agredir, mais com o psicológico, ele mexia muito com meu psicológico, e eu cheguei a pouco de procurar um médico, psicólogo [...] que eu cheguei a tempo de tentar tirar a minha vida por causa disso. Só que...aí graças a Deus né, quando a gente é só a gente não pensa, mais quando a gente tem filho a gente já pensa neles né? (S3)
Mulher, é... covardia, é quando o nosso marido bate na gente, e mais essa, tranca nós, não deixa nós sair de casa nem a gente trabalhar. A gente faz de tudo pelo marido da gente mas eles quer mandar em nós, aí quando a gente não quer mais eles, eles vivem infernizando a vida da gente, ameaçando, tirando o sossego da gente. (S9)
É quando a pessoa não tem paz. Vive apanhando, sofrendo dentro de casa e ninguém pode fazer nada pela gente. A gente vive sendo ameaçada o tempo todo e deixa a cabeça da gente ruim, é triste. (S10)
Eu acho que, violência se trata de falta de respeito, é... palavras, agressão física né? (S2)
As mulheres apresentaram em suas falas o conceito atribuído/construído de violência como resultado das experiências à época, em sua maioria, de vivências com os ex-parceiros. As principais violências destacadas foram ameaças, agressões e cárcere privado, que resultaram em alterações psicológicas, como angústia e medo, com indícios de ideação suicida, cogitando-se a procura de profissionais da saúde que pudessem auxiliar diante da pressão psicológica sofrida. Demonstraram, inclusive, que a não aceitação das situações de violência acarretaram ainda mais violências por parte de seus ex-parceiros, que insistiram em não aceitar os términos dos relacionamentos.
É notório que os relatos das vítimas se relacionam com o tipo de violência sofrida por elas, e a violência física e a psicológica se destacaram, apesar de todas as vítimas não estarem mais em convívio com os agressores.
Principais tipos e formas de violência sofrida
Sob diversas formas e intensidades, as mulheres mesmo não estando mais em um relacionamento, ainda sofrem algum tipo de violência, como exposto nos discursos abaixo:
Assim ameaça, ele vem me ameaçando, e mexe muito com meu psicológico ele, ele fica dizendo que vai no meu emprego... que vai montar um barraco lá... que enquanto eu não perder meu emprego ele não sossega... fica tirando meu sossego, aí fica dizendo que vai pegar a menina na creche... aí eu já fico tensa né, qualquer momento ligar ó... vieram buscar ou então ele mermo ir buscar né?. (S3)
Já levei muito tapa dele, num quis mais essa vida, resolvi deixar ele, acho que ele não aceita né? Vive me ameaçando, mandando recado pelo meu filho... não me deixa em paz. (S9)
Violência verbal e física também, ameaça de morte... e só. (S2)
É mais ameaça. Ele diz que ainda vai me matar. Mexe com minha cabeça isso. (S10)
A tentativa de mutilação social fica nítida quando ameaça-se cercear um direito como o trabalho, de modo a estabelecer e fortificar a dependência financeira dessas mulheres. A pressão psicológica exercida vem na dinâmica da opressão e do medo, principalmente quando envolve a prole, usada como instrumento de ameaça, e acaba por interferir no cotidiano e na mente das mulheres.
É infligida uma situação de instabilidade às mulheres na tentativa de retorno ao relacionamento e de manutenção da sensação de posse, como se o agressor pudesse comandar as escolhas de vidas das mesmas, decidindo até sobre quando elas poderiam continuar vivas, desrespeitando o direito humano mais básico existente.
Motivos para manifestação da violência
Percebeu-se que algumas participantes consideraram o período do fim do relacionamento como um período traumático, tenso e motivador da violência, assim como o ciúme.
Eu acredito que ainda é ciúme. Por que devido a nossa separação... por que assim, ele bebe muito, sempre bebeu, nunca mudou, aí... divido a bebida ele faltava com responsabilidade dentro de casa aí já gerava um conflito por que na época eu não trabalhava, aí eu precisei arrumar um emprego pra poder tomar atitude de sair de dendi casa... (S3)
Nunca aceitou que eu deixei ele, por isso vive tirando minha paz. Mais... se não dava mais certo né? Num sou obrigada a ficar com ele. (S10)
Começou com ciúmes né... aí ainda acabou separando por conta das... sempre que ele bebia, ele começava a discussão a gente brigava muito, aí a gente se separou. (S2)
Por que... eu acho que é porque eu deixei ele né, num quis... num tá dando certo mais viver com ele. (S4)
É possível estabelecer uma relação entre estes dois fatores que implicam na mulher sofrer violência: o abuso de bebidas alcoólicas e a subordinação ao agressor. Evidentemente, esses fatores resultam no aumento ou prolongamento dos casos de violência doméstica e, possivelmente, são motivos para separação.
O sentimento de posse sobre a mulher existe dentro e fora do relacionamento. As dependências financeira e emocional são armas nas mãos dos ex-parceiros, formas de perpetuar a violência e tentar coagir as vítimas para retornar aos relacionamentos.
Locais onde ocorrem os atos de violência
Embora as mulheres sofram os vários tipos de violência, em diversos lugares como na rua e no ambiente virtual, percebeu-se que a maioria delas sofre a violência com mais frequência em suas residências e têm seus filhos utilizados como meios de agressão e intimidação.
Em casa e pelo celular do meu menino. Ele manda os recado e ameaças pelo telefone dele. (S8)
Em casa, na rua... onde ele tiver com vontade de fazer. Só que muitas veiz ele evitava na rua né, na rua é muito feio, mais umas três vezes na rua já aconteceu também já. Quando eu vou pegar o dinheiro da pensão ou então quando eu vou cobrar aí ele de vez em quando me esculhambando me chama de rapariga, manda eu tomar no... fala tudo que é nome feio, ele fica dizendo. (S7)
Só na minha casa. (S5)
Além da humilhação cotidiana dentro dos domicílios, a exposição social é mais uma forma de agredir, porém menos utilizada pelos agressores, já que esses atos em público poderiam acarretar algum tipo de retaliação e denúncia de terceiros.
Alterações psicológicas sofridas
As alterações psicológicas podem ocasionar danos e mudanças na saúde e no dia a dia das mulheres que sofrem violência, comprometendo assim o estado emocional e o psicológico, conforme os relatos de desatenção, desorientação, nervosismo, medo, dificuldades para dormir e tristeza.
Medo, andar assombrada olhando pro lado... preocupada por que pode tá atrás da gente... de mim né no caso e... ultimamente eu tô andado muito desatenta, desorientada. (S2)
Hoje me sinto uma pessoa mais alterada...e muito nervosa, a qualquer momento eu temo que ele esteja por perto. Só o fato de viver tensa né, e se o telefone tocar com número desconhecido já bate aquele gelo. (S3)
Medo, num posso sair em paz, vivo recebendo ameaça de morte. Morro de medo, não durmo direito. Mulher sei lá, mexe com tudo né? A gente fica toda doente. (S9)
Nervosismo... fico muito nervosa, agitada com medo. Quero chorar por tudo de vez em quando. (S6)
As alterações relatadas pelas mulheres podem se apresentar como sinais e sintomas de doenças mentais graves e esse quadro merece ser investigado, pois na maioria das vezes essas alterações não se apresentam fisicamente e são difíceis de serem tratadas se não forem investigadas e acompanhadas.
O diagnóstico tardio e suas consequências nas vidas pessoal, familiar e social dessas mulheres podem ser irreparáveis. Diante disso, há uma importante necessidade da rede, profissionais da saúde, de segurança, da assistência social, voltarem os olhares para essa temática ainda tão negligenciada.
Discussão
Com relações aos aspectos sociodemográficos encontrados nesse estudo, como a baixa escolaridade, as desigualdades sociais, dentre outros, a literatura demonstra que eles podem exacerbar problemas na saúde e na vida pessoal das mulheres, colocando assim, mulheres economicamente segregadas em maior vulnerabilidade às diversas violências (Moura et al., 2009).
Um dado importante observado neste estudo foi a idade das vítimas, consideradas jovens, e que reforçam uma prática muito comum no Brasil, a união de menores de idade, especialmente na região Nordeste, lócus do estudo.
Algumas particularidades reforçam a união precoce nessa região. Estudo realizado em 2019 pela Plan International das Américas, com amostras na Bahia e no Maranhão, sobre casamentos infantis no Brasil, revelou que fatores como reduzida escolaridade, baixa renda, estereótipos de gênero, papel das instituições religiosas e imaginários/vivências frente à sexualidade implicam em casamentos precoces. Frente à esta última, o sentido de honra entre os sexos é diferente. Para o menino, casar é manter a honra como responsabilidade e compromisso; para a menina é não perder a honra moral frente à sexualidade vivenciada e descoberta. O estudo cita inclusive que, para manter a “honra” da filha, muitas famílias as ameaçam e as agridem (Plan Internacional, 2019).
Os dados desta pesquisa ainda reforçam as desvantagens para as mulheres, da união matrimonial precoce. No topo, aparece a responsabilidade com o domicílio e filhos, incluindo o trabalho doméstico, seguindo da perda da liberdade, afastamento do círculo social, atraso ou abandono escolar, baixa renda, dependência financeira e violência doméstica.
Referente às suas diferentes manifestações, a violência tem suas raízes na discriminação e, neste sentido, as mulheres, de uma forma geral, são os sujeitos sociais que mais a tem sentido. O conceito de violência contra a mulher é bastante amplo e compreende diversos tipos de violência como a violência doméstica (que pode ser psicológica, sexual, física, moral e patrimonial), violência sexual (o abuso e a exploração sexual de mulheres adolescentes/jovens e o assédio sexual no trabalho), assédio moral, tráfico de mulheres e violência institucional (Brasil, 2011), sendo neste estudo enfatizada a violência psicológica e suas sequelas, uma vez que os relatos observados acentuam os processos vexatórios, humilhações e ameaças, por vezes, seguidas de agressões físicas.
O processo de violência contra a mulher passa por diversas nuances e, especificamente, a psicológica é marcada por ameaças, humilhações, constrangimentos, perseguições, manipulações, ridicularizações, até privação do direito de ir e vir ou quaisquer outras situações que prejudiquem a saúde mental e autodeterminação das mulheres (Brasil, 2011), esta última condição evidenciada em pesquisa realizada com 2438 mulheres residentes em Sri Lanka, China e Papua Nova Guiné e revelou que a violência emocional por parceiro íntimo foi associada a escores depressivos mais altos e a piores escores de saúde generalizados (Gibbs et al., 2020).
As violências sofridas foram atribuídas a diversos fatores, como ciúmes e não aceitação do término do relacionamento, bem como, em decorrência do consumo de álcool, que pode ser apontado como motivo para comportamento agressivo dos parceiros e ex-parceiros. Ainda, estudo realizado com 150 participantes (51% do sexo feminino), nos Estados Unidos, evidenciou que um aumento de 0,01 na concentração média estimada de álcool no sangue diário de perpetradores foi associado a um aumento de 7% nas chances de perpetração de violência no namoro (Stappenbeck et al., 2016).
O consumo de bebidas alcoólicas tem como principal usuário o público masculino, para o qual o consumo demasiado acarreta mudanças de humor que repercutem negativamente na relação conjugal e potencializam situações de discussões e violência (Reichenheim et al., 2006), e que foram decisivos para a vitimização e abandono da relação das entrevistadas.
Ainda como motivador da violência encontra-se o ciúme, que denota o sentimento de posse e juntamente com a tentativa de prejudicar as atividades laborais das mulheres, se constituem em demonstrações das relações de poder entre os gêneros. Essas relações demonstram a desigualdade entre homens e mulheres pautada pelo patriarcado, um sistema que coloca o homem em uma posição de poder e a mulher em uma posição subalterna, moldando o domínio masculino (Nunes, 2019).
Estudo realizado com 100 homens recém casados na Índia observou que a perpetração de violência doméstica estava associada, dentre outros, a ciúmes se sua esposa conversasse com homens dentro ou fora da família (p≤ 0,01 e p 0,001, respectivamente) (Kalokhe et al., 2018).
Assim, evidencia-se por meio das falas das participantes, a imposição desse domínio em variadas situações, principalmente quando todos os agressores de alguma forma manifestaram ciúmes e apresentaram dificuldade de aceitação da separação.
As mulheres quando decidem pelo rompimento de um relacionamento violento estão também rompendo com expectativas e sonhos relacionados à idealização de um casamento e a constituição de uma família (Nunes, 2019). Há ainda uma crença cultural e religiosa que o casamento deveria ser para sempre, independente da circunstância, o que acarreta julgamentos para as mulheres que decidem se separar, até porque muitas vezes elas desejam apenas que a violência termine, então a rede de apoio se faz extremamente importante na tomada e sustentação da decisão, havendo também a necessidade de respaldo jurídico e social (Krenkel et al., 2019).
Decorrente da separação, as mulheres desse estudo vivenciaram perseguições, ameaças por telefone, celular, redes sociais e no ambiente público (rua). Então, o fim do relacionamento não significou o fim da violência, por vezes, podendo exacerbá-la.
A pesquisa “Visível e invisível: a vitimização de mulheres” realizada pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública e pelo Instituto Datafolha aponta que 22,5% das mulheres passaram por casos de amedrontamento, perseguição, ameaças de agressão, inclusive com faca ou arma de fogo, com prevalência para o uso da arma de fogo (Bueno et al., 2019), que elevam as chances de feminicídio.
Muitas vezes as ameaças de mortes apareceram nos discursos desse estudo, acompanhadas de medo e incertezas, tornando as mulheres ainda mais vulneráveis, especialmente quando estas violências aconteciam dentro de seus lares, deixando este de ser considerado um lugar seguro e acolhedor. Assim, os domicílios passaram a se constituir em lugares extremamente ameaçadores e perigosos, pois foram no âmbito desses espaços que aconteceram as mais terríveis humilhações, agressões físicas e sexuais (Cunha, 2007).
Como resultado, muitas delas saem desses ambientes e passam a morar com familiares e, por vezes, acabam se isolando de tudo e de todos, uma vez que assim sentem-se mais seguras e acolhidas pela família, sobretudo diante das situações de violência que continuam sendo vítimas após os términos.
Entretanto, o domicílio não é o único lugar que a violência ocorre, o espaço público, em menor frequência, e o ambiente virtual também foram citados como lócus, especialmente diante da não mais convivência com o parceiro.
Com os avanços do mundo globalizado, a rede mundial de computadores, que pode hospedar casos de difamação, perseguição e ameaça, se tornou um espaço importante de acontecimento de violências, assim como aconteceu com a professora universitária, ativista e blogueira Lola Aronovich, que deu origem a Lei nº 13.642 (Brasil, 2018), de abril de 2018, que acrescenta responsabilidade à Polícia Federal da investigação de crimes realizados no mundo virtual que difundam ódio e/ou aversão às mulheres.
A violência, seja ela física ou não, tem sido considerada um sério fator de risco à saúde mental das mulheres, podendo estas sofrerem dados psicológicos graves, tendo em vista que se tornam altamente suscetíveis psiquicamente, o que pode ocasionar sérios agravos à sua qualidade de vida e ao desenvolvimento de comportamentos de risco, tais como as tentativas de suicídios, que foi cogitada por uma participante desse estudo.
Os achados sobre os danos psicológicos apresentados pelas mulheres nesta pesquisa são corroborados por Fonseca e Lucas (2006), que ao entrevistarem 25 mulheres vítimas de violência, encontram sentimentos de insegurança, impotência, incapacidade de viverem suas vidas normalmente, estados de tristeza, ansiedade e medo, sequelas que podem repercutir independente do tempo em que a violência foi sofrida.
Revisão sistemática reforça essa prerrogativa ao identificar associação entre a violência praticada por parceiro íntimo e fatores como a depressão, depressão pós-parto, uso de álcool e de drogas pesadas como maconha e desenvolvimento de infecções sexualmente transmissíveis. Ainda, o mesmo estudo indicou a necessidade de aprofundamento em pesquisas e atenção para os efeitos psicológicos desse fenômeno social (Bacchus et al., 2018), que se estendem também à família, como os filhos.
Os impactos da violência na prole se estendem para manifestações, dentre outras, de problemas mentais. Estudo realizado com 3427 estudantes de Uganda revelou que meninas e meninos que testemunharam e sofreram violência tiveram entre 1,66 (IC95% 0,96 a 2,87) e 4,50 (IC95% 1,78 a 11,33) vezes de chances de relatar problemas de saúde mental (Devries et al., 2017).
Assim, evidencia-se que a violência psicológica é estimada como a forma mais comum de violência por parceiro íntimo e que juntamente com as demais tipologias (agravos físicos) geram impacto sobre os recursos financeiros, humanos e sociais. No Brasil, por exemplo, o custo equivale a 5,9% do produto interno bruto, 373 bilhões de reais, destes 9 bilhões são direcionados para o setor saúde e 88 bilhões para a segurança pública (Cerqueira et al., 2019), financiamento este que ainda se encontra defasado no que diz respeito a atender todas as reais necessidades das mulheres e enfrentamento ao agravo na sociedade.
Destaca-se assim, a necessidade de maiores investimentos na rede de enfrentamento à violência contra as mulheres, especialmente com destaque ao setor saúde e sua importância no reconhecimento precoce do agravo e suas consequências, como as desordens psicológicas, uma vez que esse setor muitas vezes é tido como porta de entrada de mulheres vitimadas.
Neste sentido, torna-se importante a qualificação e empatia profissional para reconhecimento e abordagem da temática no cenário contemporâneo, através da escuta qualificada e dos encaminhamentos dentro da rede de enfrentamento, com destaque ao acompanhamento psicológico, necessário para auxiliar a mulher vitimizada a superar seu estado de estresse e abalo emocional, sendo capaz de tomar decisões saudáveis no que se refere à mediação de conflitos ou, ainda, a resolução de problemas (Brasil, 2011).
Ainda, torna-se importante o conhecimento por parte dos profissionais da adoção das estratégias de enfrentamento do agravo sofrido, a exemplo do acesso aos setores da justiça, apoio familiar e social, apego maior à religião/fé, considerados importantes durante este período (Costa et al., 2018) e que devem ser incentivados.
Por fim, percebe-se que apesar de avanços nos últimos anos, nos sentidos legislativos e da saúde, ainda se vislumbra uma necessidade de maior articulação intersetorial e de integração de ações e condutas entre o governo, o sistema de segurança e o serviço de saúde pois nem sempre as marcas das violências são visíveis, porém, podem ser profundas e ocasionar situações extremas, que precisam de atenção, tratamento e acompanhamento.
Conclusões e implicações para prática
Nesse estudo, constatou-se que a violência contra mulher traz marcas profundas, com variações na intensidade e nas formas da violência sofrida pelo ex-parceiro, resultando, em todos os casos, em alterações psicológicas.
Verificou-se que os efeitos relacionados ao término do relacionamento ou divórcio, separação inaceitável pelo agressor, transgrediam em constantes violências ameaçadoras à vida e saúde das mulheres. Uma entrevistada afirmou, inclusive, tentativas de suicídio em decorrência dos problemas oriundos dos transtornos causados pelas ameaças e ofensivas verbais que sofriam pelos ex-parceiros.
Percebeu-se que o impacto desta realidade afeta desde a percepção da mulher sobre si mesma, refletida nos sentimentos de insegurança e impotência, até suas relações com o meio social, fragilizadas em decorrência da situação de isolamento. Estados de desordem emocional, pânico, nervosismo, ansiedade, medo e insegurança foram os mais destacados como alterações psicológicas consequentes de violência sofrida.
Diante do exposto, nota-se que é necessário repensar as implicações dessa problemática na saúde das mulheres vítimas de violência, clamando-se a atenção para todos os profissionais de segurança pública e de saúde no tocante a uma melhor avaliação dessas mulheres que vivem importunadas por ex-parceiros. Essa avaliação sendo realiza por um profissional capacitado e inserido em rede pode ofertar a mulher um melhor atendimento e a utilização de estratégias que auxiliem na sua proteção e recuperação.
O estudo apresentou limitações quanto à sua população e amostra e à dificuldade para conversar com essas mulheres vítimas de violência, possivelmente em decorrência dos sentimentos de vergonha e constrangimento das mesmas. Entretanto, os dados obtidos podem a vir contribuir para que a equipe de segurança pública e de saúde possam se sentir incitados a avaliar possíveis alterações psicológicas nas mulheres e utilizar estratégias para uma melhor avaliação das vítimas de violência por ex-parceiros.