Introdução, problema e método
A pandemia da COVID-19 precipitou-nos numa crise sanitária e ampliou uma crise económica e social sem precedentes, escancarando especialmente as contradições e mazelas duma sociedade injusta e desigual. Como num jogo de dominó em que as peças vão caindo em sequência, vimos a pandemia do coronavírus alastrar-se e atingir todos os continentes, impondo a quarentena, o isolamento e o distanciamento físico, travando e reduzindo a atividade econômica. Em dezembro de 2019 em Wuhan, na China, aconteceu a primeira notificação de COVID-19 e, logo a 30 de janeiro de 2020, a Organização Mundial da Saúde (OMS) declarou que o surto da doença causado pelo novo coronavírus (COVID-19) representava uma emergência de saúde pública de importância internacional. Por fim, a 11 de março de 2020, a COVID-19 foi caracterizada pela OMS como uma pandemia e, a partir de então, emergiu à escala mundial um estado de apreensão, medo e insegurança, subindo a cada dia e a nível vertiginoso os números de contágios e de mortes.
Para além da questão sanitária que é extremamente preocupante, a pandemia trouxe efeitos negativos de curto e longo prazo. Segundo a Comisión Económica para América Latina y el Caribe (CEPAL, 2020a), os efeitos de curto prazo traduzem-se em maior desemprego, menores salários e renda, aumento da pobreza e da extrema pobreza e os sistemas de saúde com custos mais altos, incluindo a fragmentação e as desigualdades de acesso aos mesmos, nomeadamente em países mais pobres e municípios mais endividados (Boullosa et al., 2020). Já a médio e longo prazo verificar-se-á o fechamento de mais empresas, a redução do investimento privado, um menor crescimento económico, uma menor integração das cadeias de valor e a deterioração das capacidades produtivas. Tanto os efeitos de curto como de longo prazo geram impactos nas pessoas em situação de pobreza e, sobretudo, em pobreza extrema.
No Brasil, segundo dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE, 2019), quase 35 milhões de indivíduos não possuem acesso a água tratada e 46% da população não possui coleta de esgoto, podendo constatar-se um aumento das desigualdades sociais, agravadas e exponenciadas pelas políticas neoliberais. Como consequência destas desigualdades, a CEPAL (2020b) aponta os efeitos sanitários e socio-económicos em diferentes grupos de população e sua precária e difícil capacidade de resposta, a saber: i) incapacidade de trabalhar remotamente; ii) falta de água tratada e saneamento, aumentando os riscos de infecção dos mais pobres e vulneráveis; iii) maior risco de morte para os pobres e vulnerabilizados devido a doenças pulmonares, cardiovasculares e diabetes, além da falta de acesso a cuidados médicos; iv) vulnerabilidade dos trabalhadores/as informais, sobretudo com maior representação entre mulheres, jovens, afrodescendentes e migrantes, os quais não podem gerar renda nem possuem qualquer poupança para enfrentar a crise; v) embora os primeiros casos de COVID-19 tivessem sido registados em grupos sociais e áreas urbanas com maior rendimento, mais recursos e melhores condições de saúde, muito rapidamente o vírus foi-se expandindo, em grande quantidade, para áreas e grupos sociais de baixo rendimento, economicamente mais vulneráveis e com menos acesso aos serviços de saúde, a que acrescem adicionais consequências negativas pelo facto de os mais pobres não terem condições de cumprir as normas de quarentena; e, por fim, vi) instâncias do poder, designadamente estatal, aproveitaram a conjuntura de excepção para, nalguns casos, abafar toda e qualquer contestação, nomeadamente no campo sindical e de outros movimentos sociais.
Não podemos deixar de frisar que, embora esta situação de excepção se tenha agravado, como referido, a pandemia resultante do COVID-19 não é desligada da dupla crise socio-económica e ambiental do sistema capitalista, visto que, sobretudo desde a década de 1980, à medida que o neoliberalismo se foi impondo como a versão dominante do capitalismo financeiro, constata-se uma realidade em constante estado de crise, tal como refere Santos (2020, p. 5):
Uma situação duplamente anómala. Por um lado, a ideia de crise permanente é um oxímoro, já que, no sentido etimológico, a crise é por natureza excepcional e passageira e constitui a oportunidade para ser superada e dar origem a um melhor estado de coisas. Por outro lado, quando a crise é passageira, ela deve ser explicada pelos fatores que a provocam. Mas quando se torna permanente, a crise transforma-se na causa que explica tudo o resto.
A pandemia também deixou evidente a situação de desamparo da maior parte da população por parte do poder público, o que deve ser compreendido inicialmente pela situação de abandono das pessoas em suas demandas mais básicas de proteção. Segundo Boullosa (2021, p. 443):
Falamos de desamparo público quando passamos a lidar com um afeto coletivamente construído, coletivamente experenciado, êxito de redes compartilhadas de significados ou matrizes extensas, sempre historicizadas. E o desamparo torna-se público quando ele passa a funcionar como afeto constituidor da própria experiência de público.
Em termos metódico-técnicos, foi assumido como principal fonte de dados as bases documentais de fontes estatísticas a nível internacional, nomeadamente dados extraídos de relatórios da Comisión Económica para América Latina y el Caribe, assim como a Organização Mundial de Saúde e outros bases de dados proporcionados pela OXFAM. A nível do próprio Brasil foram consultados sobretudo os dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), particularmente dados relativos aos últimos anos. Por outro lado, foram consultados alguns relatórios e sobretudo dados já trabalhados e analisados em obras de especialistas sobre os temas das desigualdades.
Após essas breves considerações iniciais e explicitação dos instrumentos metódico-técnicos torna-se claro que o grande desafio posto aos países, enquanto resposta à pandemia, consiste em buscar caminhos e políticas a serem perseguidas com vista à superação destes e doutros efeitos aos quais estamos submetidos. Porém, antes de dar conta das desigualdades no cenário atual, iremos fazer uma revisitação das diversas abordagens clássicas sobre a pobreza, a exclusão e a desigualdade social à luz dos fundadores da Sociologia e de outros teóricos críticos, nomeadamente decoloniais.
Pobreza, exclusão e desigualdade social: breve resenha dos paradigmas sociológicos e perspectiva atual
O conceito de pobreza relativa, embora mantendo-se o seu uso em contraponto com o conceito de pobreza absoluta - enquanto limiar com enfoque biológico abaixo das próprias condições mínimas de sobrevivência da pessoa em risco - tem vindo a ser ora substituído ora complementado com um outro conceito - o de exclusão social, o qual seria visto como um conceito sinónimo de desigualdade social, embora não o seja, como evidencia Silva (2009), dada a polissemia do conceito de exclusão social e suas díspares interpretações, como veremos de seguida.
O conceito de exclusão social é amiúde apresentado como o conceito-chave dum novo e mais recente paradigma, nomeadamente do chamado modelo europeu, sobre inclusão/exclusão social. No entanto, ele já foi elaborado e avançado pelos sociólogos clássicos nomeadamente por Weber (1920/1978). O conceito de exclusão e outros congéneres têm, contudo, interpretações e alcances diferentes conforme a tradição sociológica, o que nos obriga a fazer uma breve revisitação das conceções durkheimiana, (neo)weberiana, simmeliana e interaccionista simbólica e, por fim, (neo)marxista, o que faremos com base numa síntese de texto de Silva (2009), sem deixar de convocar também a teoria decolonial.
A visão durkheimiana
A exclusão social é vista por Durkheim (1893/1977) como perda do laço socio-moral, como fenómeno disfuncional e anómico, como uma forma patológica duma sociedade desregulada, desorganizada e desprovida de valores, códigos e referências morais, nomeadamente junto de alguns dos seus membros que se sentem desestruturados, desligados da sociedade. Durkheim (1893/1977) assume que a divisão do trabalho social gera formas de coesão, solidariedade social e, como tal, esta é vista de modo positivo e funcional. Por outro lado, o autor reconhece as situações de anomia social, as quais dever-se-iam não propriamente à divisão social do trabalho, mas antes à divisão forçada ou excessiva do trabalho que não tenha em conta as capacidades e talentos dos indivíduos ou ainda à prevalência da densidade material das trocas económicas sobre a densidade moral. Ou seja, a anomia teria lugar de modo excepcional, sempre que formas anómalas nas relações sociais se sobreponham à normal divisão do trabalho, alegadamente coesa, solidária e integrada, proporcionada pela partilha da consciência coletiva e respetivas representações sociais.
A perspetiva (neo)weberiana
Partindo de diferentes pressupostos do modelo durkheimiano e admitindo a conflitualidade sob diversas formas - económica (classe), social (estatuto), política (partido) - e outros tipos de conflito como os étnicos ou religiosos (e no seio de cada religião), Weber (1920/1978) sustenta que a exclusão social é resultante ora das formas de concorrência e competição nos diversos mercados de trabalho, ora das relações fechadas próprias de certos círculos que usurpam, monopolizam e/ou restringem o acesso a determinados recursos e bens, saberes e funções, ora ainda da desigual atribuição e distribuição de poderes e recompensas pela via político-partidária. Os processos de fechamento estão presentes nas mais diversas instituições e associações de tipo corporativo, seja de carácter compulsivo tais como o Estado ou a Igreja, seja de tipo relativamente voluntário, tais como associações profissionais, partidos ou clubes.
Os detentores de certos estatutos sociais tendem a limitar o acesso por outros concorrentes a certos recursos, lugares e recompensas através de determinados mecanismos e características exteriores de cada real ou potencial candidato tais como “a raça, a língua, a religião, o lugar de nascimento, a classe social, o domicílio e que podem bastar para haver lugar à exclusão” (Weber 1920/1978, p. 276).
Da visão simmeliana ao interacionismo simbólico
Para Simmel (1903/1987), a forma de “medir” o grau de fechamento ou de abertura duma sociedade reside no modo como os autóctones se relacionam com os forasteiros, os estrangeiros. Estes, quando aceites, sentem-se menos estranhos, sendo relevadas não tanto as suas diferenças, mas mais as suas semelhanças com os autóctones e, a partir daí, começam a ser integrados na coletividade ou grupo de acolhimento. Quando tais processos de inclusão não ocorrem, a individuação e a exacerbação das diferenças étnicas e culturais, sobretudo quando associadas a formas de nacionalismo, provocam quebra dos laços sociais e, com esta, sentimentos de desconfiança, discriminação e racismo, todas elas formas de exclusão social.
Embora com antecedentes na Escola de Chicago, uma outra corrente - o interacionismo simbólico - desenvolverá nos anos sessenta a teoria da rotulagem ou etiquetagem centrada na explicação dos comportamentos ditos desviantes como o crime e a delinquência, os estereótipos e estigmas de vária ordem (físicos, de personalidade, tribais) em torno de alcoólicos, homossexuais, prostitutas, portadores de deficiência, doentes mentais, toxicodependentes, desempregados. A interpretação interacionista simbólica representou uma abordagem inovadora na medida em que, enquanto as interpretações estruturo-funcionais até então dominantes, na sua vertente mais relativizada, atribuíam as razões de comportamento “desviante” ora às disfunções da estrutura social, ora, com certa carga psicologizante, às personalidades ou atributos caracterológicos dos indivíduos, os interacionistas simbólicos, nomeadamente Goffman (1963/1988) e Becker (1963/1968), analisavam os dois olhares sobre o comportamento dito desviante: o da sociedade ou dos indivíduos “normais”, estabelecidos e o dos “desviantes”, estigmatizados ou marginalizados. Para esta abordagem, que parte dos sentidos ou significados atribuídos pelos atores sociais nas micro-interações, o “desvio” é assim visto não como qualidade do indivíduo “desviante” mas como consequência da interação entre os infratores e os ditos normais que reagem negativamente à transgressão das normas estabelecidas.
A abordagem (neo)marxista
Exclusão social, na perspetiva marxista, é vista como desapropriação dos meios de produção e demais recursos políticos e simbólicos, incluindo a não participação nos processos de decisão política. Para Marx (1867/1974) serão excluídos não só determinados grupos sociais mais desfavorecidos ou vulnerabilizados e afetados pelo processo de mecanização e modernização (v.g. camponeses e artesãos pobres, desempregados, mendigos, sem abrigo), mas também, em maior ou menor grau conforme o grau de exploração, todos os assalariados dependentes que não têm (quase) nenhum controlo dos meios de produção, os quais acabam por ser centralizados e monopolizados por uma minoria - a classe burguesa - que, com as suas diversas frações (agrária, industrial, comercial e financeira), cresce e se desenvolve à custa da exploração dos diversas frações das classes trabalhadoras (agrícolas, industriais e do comércio ou serviços), incluindo obviamente trabalhadores qualificados como, por exemplo, médicos ou professores assalariados.
A perspetiva decolonial
Os estudos decoloniais1 levam-nos a buscar novas epistemologias, rompendo as lógicas do colonialismo, do eurocentrismo e do etnocentrismo, geradoras de relações hierarquizadas de sobreexploração, dominação e racismo. Esta abordagem abrange uma série de reflexões teóricas que eclodiram nos anos 1980 e vêm reverberando e ganhando notoriedade ao descortinar “situações de opressão diversas” (Cesaire, 1978, p. 90), caracterizadas pela “dominação de uma raça sobre a outra” (Cesaire, 1978, p. 19), em que, segundo Quijano (2005, p. 120):
Os colonizadores exerceram diversas operações que dão conta das condições que levaram à configuração de um novo universo de relações intersubjetivas de dominação entre a Europa e o europeu e as demais regiões e populações do mundo, às quais estavam sendo atribuídas, no mesmo processo, novas identidades geoculturais. Em primeiro lugar, expropriaram das populações colonizadas - entre seus descobrimentos culturais - aqueles que resultavam mais aptos para o desenvolvimento do capitalismo e em benefício do centro europeu. Em segundo lugar, reprimiram tanto como puderam, ou seja, em variáveis medidas de acordo com os casos, as formas de produção de conhecimento dos colonizados, seus padrões de produção de sentidos, seu universo simbólico, seus padrões de expressão e de objetivação da subjetividade. (...) Em terceiro lugar, forçaram - também em medidas variáveis em cada caso - os colonizados a aprender parcialmente a cultura dos dominadores em tudo que fosse útil para a reprodução da dominação, seja no campo da atividade material, tecnológica, como da subjetiva, especialmente religiosa. (...) Todo esse acidentado processo implicou no longo prazo uma colonização das perspectivas cognitivas, dos modos de produzir ou outorgar sentido aos resultados da experiência material ou intersubjetiva, do imaginário, do universo de relações intersubjetivas do mundo, em suma, da cultura.
É de suma importância compreender os processos de colonização, visto que, ao analisar a relação entre coletivos em situação de pobreza e o direito à educação, emerge um primeiro aspeto que diz respeito ao subsídio que o aporte teórico oferece para a desnaturalização das diferentes posições sociais verificadas na sociedade. Em seu bojo, a condição de pobreza pode ser compreendida tanto como consequência, quanto como estratégia dos históricos processos de exploração, subordinação e opressão conduzidos pelas classes e grupos raciais colonizadores e neocolonizadores (Ramalho et al., 2017).
Por conseguinte, as sociedades dominantes idealizam o mundo de forma a constituírem parâmetros que determinam os sujeitos ora como desejáveis ora como não-desejáveis das sociedades, cujos critérios de seleção, por via de regra, obedecem à lógica sociopolítica de sociedades ideologicamente euronortecentradas ( Grosfoguel, 2018; Quijano, 2005). Os parâmetros são previamente definidos por critérios subjetivos por parte dos grupos dominantes, em situações de conforto, constituindo e formando o mundo de forma cartesiana sob padrões e critérios alegadamente objetivos. São compostas visões na base de diferenciações étnico-raciais, que há muito têm misturados interesses econômicos, políticos e sociais na constituição de sujeitos subalternos, cerceando-lhes desde riquezas e acessos a bens materiais até a direitos sociais e tratamento humano (Assis & Souza, 2019).
Assim, a importância do olhar decolonial sobre a temática em debate permite ampliar a compreensão e os impactos do colonialismo para as sociedades colonizadas e, ao mesmo tempo, identifica as injustiças sociais, a pobreza, a exclusão como resultantes duma estrutura de desigualdades sociais, relacionando-as com os contextos do passado e do presente e buscando projetar novos cenários. A academia deve contribuir para responder a questões tais como: Qual a relação do colonialismo com as formas de produção de seculares desigualdades sociais? Qual a relação do colonialismo com as desigualdades existentes hoje nas periferias das sociedades modernas e contemporâneas? É exatamente na tentativa de ir ao encontro dessas questões que os estudos decoloniais se debruçam na tentativa de compreender e explicar os efeitos nocivos do colonialismo e apontar novos caminhos no sentido de diminuir e mesmo abolir tais relações sociais desiguais e profundamente injustas.
Por fim, para além dos contributos decoloniais, as reflexões avançadas por vários autores (Agamben, 2003/2018; Benjamin 1921/1974; Ramonet, 2016; Sousa Filho, 2020; Zuboff, 2019), que, em diferentes tempos, estando atentos aos processos de controlo político e de alienação ideológica a partir do próprio Estado e seus diversos aparelhos e órgãos (militar, governamental, parlamentar, judicial, mediático), assinalam as estratégias do capitalismo focadas na criação de “estados de excepção” ou de vigilância permanente, a fim de manter submissos e subalternos os cidadãos/ãs na manutenção do statu quo em favor dos interesses do grande capital nomeadamente financeiro, tornando-se os ditos “estados de excepção” processos mais prolongados ou até inerentes ao próprio funcionamento do capitalismo inclusive no quadro da concorrência internacional entre multinacionais.2
Expostas as principais abordagens sobre exclusões e desigualdades sociais nomeadamente de classe e étnico-raciais, importa, no quadro da análise subsequente, relevar e articular as abordagens weberiana e marxista, as quais podem e devem ser enriquecidas pela perspetiva decolonial e outros posicionamentos críticos, surgidos ora a sul, ora a norte, seja a leste, seja a oeste do planeta. Passemos então a discutir e avaliar os impactos da pandemia no aumento das desigualdades sociais e, em particular, nas situações de pobreza e pobreza extrema, primeiramente, no contexto latino-americano e, posteriormente, no caso específico do Brasil.
A pandemia no contexto latino-americano
Partindo do escopo de uma reflexão sobre as desigualdades ampliadas no início do século XXI, compreender o cenário de pandemia será de vital importância para mensurar o estado da situação socioeconómica da região latino-americana nos próximos anos. Nas palavras de Diniz e Darling (2021, p. 1):
A pandemia do COVID-19 implicou o retorno dos nacionalismos, a ausência de alternativas regionais, a proibição de entrada a migrantes, trabalhadores fronteiriços e o concomitante processo de retorno das mulheres, em muitos casos, ao âmbito doméstico. Esses são apenas alguns elementos que se destacam e que alteraram a vida de nós, homens, mulheres e diversidades, que habitamos o Mercosul. As medidas para enfrentar tamanha situação crítica têm sido diversas, mas nulas podem ser consideradas propostas de transformação estrutural. Os níveis de desemprego, subemprego, desigualdade e pobreza aumentaram notavelmente e políticas como taxação de grandes fortunas ou renda cidadã são apenas consideradas exceção.
A pandemia não só aprofundou problemas sociais de caráter multidimensional como as desigualdades sociais (de classe, étnico-raciais, de género), como também comportou problemas que evidenciaram a ineficiência e caráter discriminatório na gestão de saúde e de educação (cf., Instituto de Pesquisa Económica Aplicada [IPEA], 2020). Os problemas são ainda mais complexos perante o modelo de desenvolvimento dominante na América Latina, embora com especificidades próprias em cada país. Deste modo, a abordagem à complexidade de problemas, eles próprios complexos, requer caminhos plurais e, nas palavras de Daroit (2020) em recente participação em evento do Grupo de Investigação em Governo, Administração e Políticas Públicas (GIGAPP), caminhos plurais a serem percorridos na conjugação de respostas estatais, organizacionais e sociais. As respostas estatais são compreendidas pela necessidade de coordenação vertical e horizontal, bem como pela elaboração de diretrizes; as respostas organizacionais são exemplificadas pelas doações quanto pelas demissões; e as respostas sociais, enquadradas pela solidariedade e organização coletiva, implicam a necessidade de articulação em redes para que a resposta esteja operacional e à altura das necessidades e problemas.
Se a pandemia do COVID-19 é complexa do ponto de vista sanitário, os graves problemas sociais enfrentados na América Latina a agravaram e exponenciaram. Esta pandemia afetou de maneira muito diferenciada os países da América Latina: temporalmente, o impacto da pandemia detonou-se praticamente ao mesmo tempo para todos os países, mas de distintas maneiras. Os países mais afetados foram o Equador, a República Dominicana, o México e o Brasil, sendo este último, durante a intensificação da segunda onda da pandemia, considerado o epicentro da pandemia no mundo.
Existe um comportamento epidemiológico do vírus que afeta mais as pessoas com mais de 60 anos, pessoas com comorbidades prévias, com prevalência de mortes de homens por comparação com mulheres; porém, como referido, sabe-se que o vírus afeta de forma diferenciada os países. Para explicar essa diferença e de que maneira seja possível responder a essa questão, não se deve levar em consideração apenas os dados epidemiológicos, mas também as diferenciadas estruturas sociais, respostas políticas dos diversos governos e os próprios comportamentos sociais, amiúde induzidos por esses poderes centrais e locais e sobretudo que tipo de políticas públicas, nomeadamente no campo da saúde, estão presentes e disponíveis para responder à pandemia. Tais fatores provocaram diferentes impactos nas sociedades. Se em vários países, nomeadamente no Equador, no México e no Brasil, se verificou lentidão nas respostas e discussões infrutíferas sobre tipo de isolamento (vertical ou horizontal), o caso do Brasil foi ainda mais grave, na medida em que houve propaganda enganadora sobre tratamento precoce não respaldado pela ciência, ausência de medidas de proteção induzida pela Presidência da República, recusa inicial de encomenda de vacinas e abandono de populações, nomeadamente em Manaus, com falta de oxigénio.3
A região da América Latina e do Caribe já era uma das mais desiguais do mundo entre as regiões em desenvolvimento antes da pandemia (Silva, 2018). Com a emergência desta, este continente se transformou num cenário económico, social e político complexo, resultando num contexto de baixo crescimento e de intensificação de elevados níveis de informalidade do trabalho, no aumento da população em situação de pobreza e extrema pobreza e na desaceleração do processo de redução da pobreza, por comparação com alguns períodos históricos, sobretudo recentes, nos quais pontificaram algumas políticas públicas levadas a cabo por políticas reformistas e social-democratas. Pelos efeitos da pandemia a CEPAL projetou uma queda de 9,1% do produto interno bruto (PIB) na região. E, relativamente aos índices de pobreza e pobreza absoluta, os dados da CEPAL distribuem-se do seguinte modo, conforme se pode ver na Figura 1.
Os índices e indicadores da economia internacional já vinham registando números críticos e, segundo as análises da CEPAL, o desempenho económico da economia mundial já era débil antes da pandemia do COVID-19. No período 2011-2019 a taxa média de crescimento mundial foi de 2,8%, cifra significativamente inferior aos 3,4% do período 1997-2006. Em 2019 a economia mundial registou o seu pior desempenho desde 2009, com uma taxa de crescimento de apenas 2,5%. E, antes da pandemia, as previsões de crescimento do PIB mundial para 2020 foram revisadas em baixa (Bárcena & Cimoli, 2018; Silva, 2018).
Desde a crise financeira mundial de 2008 as economias a nível mundial já estavam enfrentando um tempo de “crise de confiança” na globalização e no multilateralismo como ferramenta para o desenvolvimento, sendo também verificada falta de confiança na capacidade dos mercados, em particular do mercado financeiro, de garantir um crescimento estável na ausência de controlo e medidas regulatórias a nível nacional e internacional.
Segundo dados da CEPAL, o desemprego na América Latina aumentou de 8,1% em 2019 para 13,5% em 2020 e, consequentemente, o número de desempregados na região passaria para mais de 44 milhões de pessoas, o que na prática significou o aumento de mais de 18 milhões de pessoas desempregadas em relação a 2019. Deste modo, a CEPAL previu que a taxa de pobreza aumentaria 7 pontos percentuais em 2020, passando para 37,3%, o que representa um aumento de 45 milhões de pessoas de um total de 231 milhões de pessoas em situação de pobreza. Por sua vez, a pobreza extrema aumentaria 4,5 pontos percentuais, situando-se nos 15,5%, ou seja, viria a conhecer um aumento de 28 milhões de pessoas num total de 96 milhões em situação de pobreza extrema. A questão do emprego foi fortemente impactada pela pandemia, principalmente, porque uma das principais formas de controlar a transmissão implicava distanciamento físico, o qual incluía quarentenas e suspensão das atividades ditas não essenciais, tendo, por consequência, a perda de emprego e rendimento. Esta situação tornou-se ainda mais grave, dado o impacto direto sobre os trabalhadores informais, os quais representavam e representam aproximadamente 54% dos trabalhadores/as da região (CEPAL, 2019 e 2020b).
Além da questão do emprego, outro impacto extremamente forte e desigual incidiu sobre questões relacionadas com a saúde, visto que os sistemas de saúde dos países da região possuem consideráveis debilidades, sendo, na sua grande maioria, sistemas de saúde subfinanciados, segmentados e fragmentados. Tais sistemas de saúde, além de comportarem fortes barreiras no acesso, sofrem sobretudo de má gestão e de baixo investimento público, mantendo-se longe de 6% do PIB recomendado pela Organização Panamericana de Saúde (OPAS), ficando-se numa média de 3,7% do PIB (Comisión Económica para América Latina y el Caribe [CEPAL] & Organización Panamericana de la Salud [OPS], 2020). Uma anterior publicação da OPAS (2019) trouxe-nos dados importantes para compreender o cenário da região: em média, as famílias da região gastam mais de um terço dos rendimentos com gastos em saúde nomeadamente com pagamentos diretos do bolso (34%), ao mesmo tempo que cerca de 95 milhões de pessoas realizam gastos elevados com saúde e cerca de 12 milhões estão empobrecidos devido a esses gastos. A disponibilidade média de médicos/as e leitos hospitalares é cerca de metade do grupo de países mais desenvolvidos, como os da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), conforme podemos observar na Figura 2.
Outro dado que é de suma importância a apontar é que, de acordo com a Comisión Económica para América Latina y el Caribe (CEPAL, 2019), nalguns países da região a pandemia pode causar uma variação de mais de 3 pontos percentuais no índice de Gini, o qual mede a desigualdade, implicando, conforme já apontamos, um aumento do número de pessoas que vivem na pobreza. Essa situação deve-se a vários fatores, entre os quais a perda generalizada de empregos, aliás mal remunerados, e o facto de os trabalhadores ditos autónomos do setor informal terem sido impedidos de exercer suas atividades económicas normais. Em contrapartida, dados recentes indicam que, desde março de 2020, aumentou o rendimento de pessoas individuais e sobretudo empresas e/ou grupos financeiros, respetivamente com salários e rendimentos mais elevados, nomeadamente lucros, juros e rendas (Ruiz, 2020). De acordo com a OXFAM International4 (2020) quanto à variação do património líquido dos bilionários da região entre 18 de março e 12 de julho de 2020, esta agência constatou que, nesse período, o patrimônio líquido combinado dos bilionários nalguns países da América Latina passou, por exemplo, na Argentina de 8.800 milhões para 11.200 milhões de dólares; no Brasil, de 123.100 milhões para 157.100 milhões; na Colômbia, de 13.700 milhões para 14.100 milhões; no Chile, de 21 bilhões para 26.700 bilhões; no Peru, de 5.200 milhões para 5.500 milhões e, na República Bolivariana da Venezuela, de 3.400 milhões para 3.500 milhões de dólares. No total, a riqueza dos bilionários em 73 latino-americanos aumentou em média 48.200 dólares, ou seja, 17% desde o início da pandemia. Desde o início das medidas de confinamento, a cada duas semanas, há um novo bilionário na região (Ruiz, 2020).
Embora a pandemia não tenha finalizado e seja cedo para tirar todas consequências da pandemia e das próprias desigualdades sociais do sistema, os dados recolhidos indicam que a riqueza, detida pelas classes dominantes nos países ditos desenvolvidos (Estados Unidos e Europa) e das próprias oligarquias na América Latina, está a aumentar e a concentrar-se sobretudo nas multinacionais (v.g. media, farmacêuticas) e no capital financeiro, em prejuízo das classes de baixo rendimento e sobretudo de largos milhões de desempregados e pobres sem qualquer rendimento ou subsídio. Os dados apresentados sobre desemprego, pobreza, situações de doenças, dentre outros, apontam para a exacerbação das desigualdades sociais decorrentes do sistema e, em especial, da situação pandémica e pós-pandémica.
A desigualdade brasileira: impactos da COVID-19
A debilidade histórica do Estado social no Brasil, bem como nos demais países latino-americanos, limitou e limita a resposta à crise, pois a pandemia tem tido efeitos diferenciados conforme cada grupo social atingido e sua capacidade de resposta, tal como já salientamos. As diferenciadas pertenças de classe, étnico-racial e de género constituem catalisadores de situações sociais também bem diferentes ou mesmo antagónicas, em que “os de baixo” são mais vulnerabilizados e sofrem desvantagens acumuladas no transcurso de suas vidas, agravadas com a pandemia.
No caso brasileiro a expansão e o agravamento da pandemia de COVID-19 tiveram lugar por uma conjugação de variáveis ou situações, mas, segundo o Boletim de Gestão de Políticas Públicas e COVID-19 do Observatório da Sociedade Pós-pandémica (Boullosa et al., 2020), podem ser vistas como resultantes de, pelo menos, três grandes conjuntos de variáveis ou situações: i) condições objetivas e não objetivas próprias de cada município e preexistentes à situação da pandemia; ii) capacidades dos municípios em fazer frente a essa situação de emergência pública; e sobretudo iii) desorientação, amiúde deliberada, e/ou incapacidade e falta de articulação por parte da União ou Estado Central, institucionalmente corporizada no Ministério da Saúde e, em especial, na Presidência da República, negacionista da ciência, da necessidade de distanciamento físico, falta de apoios sociais e outros cuidados, além de propagandista de um alegado e enganador tratamento precoce - a cloroquina. Partindo dessas constatações, os números de contagiados ao longo de mais de 20 meses e de cerca de 700.000 mortos ao fim de dois anos de pandemia, consolidam a posição do Brasil como o segundo país mais atingido no mundo, atrás apenas dos Estados Unidos, tornando bem patentes a incompetência e o desleixo, senão mesmo uma política deliberada de menosprezo pelos cidadãos/ãs em sofrimento perante esta emergência pública.5
O histórico de desigualdades de rendimento e de acesso a serviços públicos, nomeadamente de saúde no Brasil, evidencia como tal situação se tem prolongado e até agravado nos últimos anos em termos de diversas classes, géneros, grupos étnico-raciais e escalões etários. Com efeito, segundo dados do IBGE de 2019, em 2018 os brancos ganhavam em média 73,9% mais do que pretos ou pardos e os homens ganhavam, em média, 27,1% mais que as mulheres. Outro dado importante é o facto de os jovens de 15 a 29 anos, que nem trabalham nem estudam, serem 23% no ano de 2018. É necessário ter em conta que os 20% mais pobres desta população respondem por mais de 40% desta percentagem (IBGE, 2019). Porém, a pandemia e suas consequências têm impactado de forma também desigual, especialmente nas classes, grupos étnico-raciais e camadas mais pobres e vulnerabilizadas.
Em relação à pobreza, a mesma fonte de dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE, 2020) aponta que mais de 25% da população vive na pobreza (com metade ou menos do salário mínimo), sendo este dado importante para compreendermos a relação direta existente entre rendimento monetário e precariedades e/ou vulnerabilidades nas condições de moradia. Esta situação denuncia uma das maiores dificuldades de combater esta pandemia, pois prejudica ou mesmo impede a adoção das principais medidas de profilaxia. Por exemplo, 8,5% desta população habita em moradias que não possuem banheiro de uso exclusivo dos respetivos moradores/as, 21,1% vive sem coleta de lixo, 25,8% sem abastecimento de água via rede e 56,2% sofrem com a ausência de saneamento. Em relação às questões de género, a pandemia escancarou esse outro tipo de desigualdade, enunciada amiúde eufemisticamente como mais uma “mazela brasileira”. A publicação recente das pesquisadoras Diniz e Darling (2021) traz dados do panorama vivenciado no Brasil, nomeadamente nas questões de género. Neste país 65% das equipas de trabalho em saúde e serviço social são compostas por profissionais do sexo feminino, incluindo médicas, enfermeiras, assistentes sociais, fisioterapeutas, entre outras. Ou seja, as mulheres são as que mais sofrem do desgaste físico e emocional ao terem que lidar diariamente com as mais diversas doenças e, no caso da pandemia, têm acarretado a sobrecarga psicológica no trabalho com pessoas em situação de elevada vulnerabilidade e sofrimento. Além disso, convém salientar que a maior parte destas e de outras mulheres profissionais não deixa de exercer o trabalho doméstico, aliás não remunerado. Dados do IBGE (2019) apontam que as mulheres dedicam mais 73% de horas mais aos cuidados na esfera doméstica que os homens, perfazendo uma média semanal de 18,1 horas.6 E, em termos mais gerais, a maioria das mulheres, especialmente negras, opera na economia informal, sem direitos trabalhistas, em empregos mal remunerados e inseguros.
Uma outra questão não menos importante é a violência no Brasil que, para além da estatal, institucional e policial e noutros setores da sociedade, se repercute também na esfera doméstica. Ficar em casa não é sinónimo de segurança. No caso concreto da pandemia, devido ao confinamento durante a pandemia, as mulheres ficam presas com seus agressores nas próprias casas, onde a procura de ajuda torna-se um mecanismo de difícil acesso. No Brasil, a única decisão tomada foi o auxílio para as mães solteiras, uma política que exclui mães. Como sabemos, por influência do patriarcalismo institucional e comumente aceite na vida quotidiana, as mães casadas podem criar filhos sozinhas, existindo no Brasil 5,5 milhões de crianças sem pai no registo (IBGE, 2020).
Em relação ao impacto da pandemia no rendimento, conforme os dados apontados pelo IBGE (2020), no mês de junho de 2020, 35,9% das pessoas ocupadas tiveram rendimento menor do que o normalmente recebido, conforme o evidencia a Figura 3, ou seja, mais de um terço da população brasileira foi impactada negativamente no que diz respeito aos rendimentos.
Como se constata na Figura 3, salvo 2,8% que fruíram de um rendimento superior ao recebido anteriormente, 61,3% das pessoas não conheceram alteração no rendimento, mas 35,9% sofreram redução de rendimento, o que representa mais de um terço do total.
Ainda em relação ao rendimento, outro dado importante para compreendermos o impacto dessa pandemia foi a abrangência de domicílios que receberam o Auxílio Emergencial do Governo Federal, chegando a atingir em média 43% dos domicílios brasileiros, sendo as regiões Norte e Nordeste aquelas onde teve lugar o maior número de famílias a recorrerem ao auxílio emergencial, como se pode ver pela Figura 4.
Outro indicador que vem reforçar o impacto das desigualdades no Brasil são os dados quanto à adesão ao trabalho remoto durante a pandemia. Considerando que o trabalho remoto já era uma realidade numa pequena parcela das empresas brasileiras, a pandemia exponenciou esta realidade, pois, salvo as atividades ditas essenciais ou da linha de frente, as demais foram encorajadas a ser realizadas em trabalho remoto, para evitar a circulação e aglomeração das pessoas, tal como o mostram os dados expressos na Figura 5 relativos a um determinado período.
Assim, segundo dados do IBGE de 2020, no Brasil, por exemplo entre os dias 21 e 27 de junho de 2020, tivemos 8,6 milhões de pessoas trabalhando remotamente, o que constitui um indicativo do aumento deste tipo de trabalho com a emergência da pandemia. Mesmo quando retomem as atividades em co-presença física, estes dados podem indiciar no futuro um aproveitamento desta modalidade de trabalho que, em certas profissões, atividades ou funções, terá uma maior adesão não só por parte de trabalhadores/as, como sobretudo por parte das empresas, para as quais pode mesmo ser vantajoso.
Se pretendermos diferenciar este tipo de trabalho por nível de instrução, a Figura 6 dá-nos conta dessa distribuição.
Nota: o termo fundamental refere-se ao ensino básico e médio ao ensino secundário. Fonte: IBGE (2020).
Ao compararmos os dados apresentados nas Figuras 5 e 6, podemos inferir o quanto o trabalho remoto também reflete os padrões de desigualdade no Brasil, visto que os grupos ou categorias sociais que aderiram ao trabalho remoto, no que concerne o nível de instrução, foram os graduados e pós-graduados (cerca de 32% do total), enquanto os que possuíam o ensino médio ou secundário representavam apenas 5,6% dos utentes, para não falar dos que nem sequer podem permitir-se exercer as suas atividades em trabalho remoto. Ou seja, uma das principais medidas de profilaxia para evitar o contágio ao vírus, que era o isolamento físico, era restrita a uma formação mais elevada e, consequentemente, a um maior rendimento, ficando mais expostos ao contágio e economicamente mais vulneráveis os que tinham de trabalhar em modo presencial - a grande maioria aliás.
Considerações finais
Neste texto não tivemos a intenção nem a possibilidade de analisar de modo exaustivo a questão das desigualdades sociais no contexto de pandemia. Porém, dos dados estatísticos referidos e outros extraídos de outros estudos é possível inferir algumas conclusões relevantes. Primeiro, a pandemia da COVID-19 agravou as formas e os níveis de desigualdade social. Com efeito, ela permitiu-nos verificar que as desigualdades sociais preexistentes à crise pandémica se agravaram, evidenciando que uma minoria que detém o poder económico e político reforçou a sua posição económico-financeira, enquanto na realidade deveria ser taxada por lucros e rendas mirabolantes nos seus excessivos recursos. Por sua vez, membros de determinadas classes intermédias poderiam eventualmente contribuir mais em termos tributários e inclusive consumir menos, enquanto a grande maioria, privada de bens básicos para a sobrevivência, deveria ter sido apoiada nas suas privações e vulnerabilidades, tendo sido, pelo contrário, objeto de sobreexploração, opressão e discriminação étnico-racial.
Em segundo lugar, sendo a igualdade social um dos objetivos de modelos de desenvolvimento nomeadamente marxista e decolonial, constatam-se enormes obstáculos à consecução deste objetivo no quadro do atual modelo de crescimento impulsionado por lógicas neoliberais com forte componente do capital financeiro, nomeadamente no quadro do agravamento da crise económica e sanitária.
Nas palavras de Alicia Bárcena, Secretária-Executiva da CEPAL, mudar a estratégia de desenvolvimento é essencial na região e avançar na igualdade é fundamental para o controlo eficaz da pandemia e para uma recuperação económica sustentável na América Latina e no Caribe. Devemos atender à emergência e implementar uma estratégia para superar as debilidades estruturais das economias e sociedades e sobretudo superar as enormes desigualdades sociais e regionais. Corroboramos igualmente a tese de Peres et al. (2021), segundo a qual, na sua pesquisa inédita sobre a pandemia de COVID-19, a superação desta, além de exigir ações emergenciais, demanda respostas para muito além do setor de saúde e que levem em consideração as especificidades socioterritoriais dos municípios brasileiros. A pandemia exigiria que a gestão pública assumisse o desafio de enfrentamento das desigualdades, o que não só não aconteceu, como tal omissão marcou negativamente determinados territórios e grupos populacionais. A situação é problemática na medida em que apresenta significativos obstáculos não apenas ao desenho de respostas adequadas e ao enfrentamento ágil das crises sanitária e económica, mas ao próprio desenho de um projeto de país igualitário e, que, numa primeira fase, seja menos excludente e desigual.
Este objetivo é possível, desde que, apesar do eventual agravamento das condições económico-sociais, haja organização, lideranças e uma dose de utopia contraposta às ideologias dominantes, que possibilite um novo contexto em que surjam condições favoráveis para avançar em direção a um modelo de desenvolvimento focado em superar obstáculos estruturais e buscar convergências não só para conseguir maior desenvolvimento sustentável como sobretudo uma mais justa repartição do produto para as gerações presentes e futuras em clima democrático. Tal implicará, consequentemente, uma resposta ou conjunto de respostas por parte do movimento sindical e doutros movimentos sociais (antiracistas, feministas, ecológicos, entre outros), construindo sujeitos coletivos na base de ações e lutas coletivas, tendo no horizonte a emancipação social. Só desta forma será real a abolição de privilégios e o estabelecimento de uma ordem de direitos iguais para todos (Bárcena & Cimoli, 2018). Mas para isso, quer relativamente à maior parte de países na América Latina, quer em particular em relação ao Brasil, um dos pressupostos imprescindíveis é a mudança de poder a nível do Estado Federal no sentido de possibilitar a atenuação dos problemas sociais nomeadamente a eliminação da pobreza extrema, estimular o investimento público, combater os privilégios das classes rentista e financeira e elevar a carga fiscal destas classes parasitárias e pugnar pela soberania nacional, revertendo, na medida do possível, as privatizações de empresas públicas vitais. Porém, para tal só um novo modelo de desenvolvimento neoinstitucional que implique abandono das políticas neoliberais e a introdução de programas de intervenção e regulação estatal que contrariem as lógicas e interesses das classes dominantes nacionais e internacionais - e isto como etapa intermédia para um modelo de desenvolvimento inspirado na articulação das teorias marxista e decolonial.
Em suma, se almejamos direitos iguais, imperioso se torna a construção de uma ordem substantiva de maior igualdade no horizonte, o que implicará desde logo conquistar o poder que proporcione condições e incentive no sentido de alcançar objetivos de bem-estar social, nomeadamente de acesso aos serviços públicos de saúde, educação e segurança social para todos/as.