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Revista :Estúdio

versão impressa ISSN 1647-6158

Estúdio vol.3 no.5 Lisboa jun. 2012

 

TROPICALTERIDADE

A Condição da mulher em Angola na cerâmica de Helga Gamboa

The Women's condition in Angola: on Helga Gamboa Ceramics

 

Teresa Matos Pereira*

*Portugal, artista visual (artes plásticas, tapeçaria experimental). Professora no Instituto Politécnico de Setúbal / Escola Superior de Educação. Graduação em Pintura, Mestrado em Teorias da Arte, Doutoramento em Belas-Artes / Pintura pela Faculdade de Belas-Artes da Universidade de Lisboa.

Endereço para correspondência

 

 

RESUMO
Esta comunicação propõe uma abordagem à obra da artista plástica angolana, Helga Gamboa. Na sua pesquisa, enquanto ceramista, problematiza a condição angolana, vivida no feminino, incluindo o legado do período colonial, os sinais e símbolos de uma identidade cultural, as adversidades da guerra civil e a fragilidade de mulheres e crianças na sociedade a que pertence.

Palavras-chave: cerâmica, Angola, colonialismo, pós-colonialismo, identidade

 

 

ABSTRACT This communication proposes an approach to the work of Angolan artist, Helga Gamboa. Her research, as ceramist, discusses the Angolan condition including the legacy of the colonial period, the signs and symbols of a cultural identity, the adversities of the civil war and the fragility of women and children in her society.

Keywords: ceramics, Angola, colonialism, post-colonialism, identity

 

 

1. Rotas

Helga Gamboa nasceu em Malange no ano de 1961 e, em Luanda, irá realizar os primeiros estudos artísticos entre 1978 e 1980, através do Curso de Instrutores de Artes Plásticas, promovido pelo Conselho Nacional de Cultura. Na década de noventa irá radicar-se no Reino Unido onde dá prosseguimento aos estudos, dedicando-se à cerâmica.

A sua pesquisa plástica enquanto ceramista cruza-se com uma indagação e investigação mais aprofundada acerca das raízes e identidade cultural, problematizando a condição angolana vivida no feminino onde a educação e o legado do período colonial se cruzam com as adversidades da guerra civil e a fragilidade humana (especialmente de mulheres e crianças) repercutidas em imagens que se disseminam através das redes de um mundo globalizado, onde a mensagem se dilui numa temporalidade efémera ou se banaliza pela contínua repetição.

Atendendo às múltiplas temporalidades e vivências convocadas na obra de Helga Gamboa, procuraremos ao longo desta breve abordagem, propor leituras de algumas das suas peças, alicerçadas não só no testemunho da autora mas igualmente numa articulação entre a imagem e os sedimentos extraídos da complexa história que envolve Angola e Portugal em particular ou África e a Europa em geral

 

2. Signos da identidade

Reinterpretando as técnicas e formas da cerâmica tradicional do sul de Angola nomeadamente Kuanhama e Nhaneca-Humbe, Helga Gamboa cria um conjunto de peças que servem de suporte plástico a inscrições e à impressão de imagens fotográficas reproduzidas em jornais ou revistas – que advertem para o papel da mulher na sociedade Angolana, a sua vulnerabilidade – conduzindo uma subtil articulação entre a exploração das contingências da identidade e raízes culturais transformadas e moldadas pelo ciclo vicioso da guerra e da violência que se repete nas imagens de mulheres e crianças mutiladas, rostos que interrogam o observador, ou inscrições que denunciam as realidades por detrás da desminagem.

A artista utilizará a cerâmica como um veículo não só de exploração plástica mas igualmente como um suporte simbólico que possibilita discutir e explorar questões como as dicotomias entre tradição e modernidade, arte e artesanato – pela recuperação quer de modelos tradicionais quer pela apropriação de tipologias ocidentais fabricadas industrialmente – e, acima de tudo avançar com uma abordagem crítica daquilo que são as contingências inerentes à criação e adoção de representações identitárias, que se confrontam com uma história (não só social e política mas sobretudo uma história de vida) marcada pelo colonialismo, pela revolução, pelo regime socialista pós-colonial e pela guerra civil. Estes factos (históricos) são afirmados por Helga Gamboa não só como dados biográficos mas igualmente como termos que definem as configurações com que a sua própria identidade (enquanto artista e cidadã angolana) se defronta.

A autora lembra ainda que esta vivência urbana durante o final do período colonial, e a subsequente acentuação de uma política de assimilação cultural, a impediu de contactar e vivenciar formas culturais endógenas, nomeadamente ao nível de um conhecimento prático dos modelos e funções da cerâmica nas sociedades autóctones. Neste sentido, o contacto e interesse pela cerâmica angolana quer utilitária quer cerimonial, estabelece-se no espaço da diáspora, aquando dos estudos no Reino Unido e ironicamente, recorda, foi no plano de uma cultura exógena que aprofunda o conhecimento, ou "desvenda", a própria cultura nativa do seu país.

Na verdade, o contacto com a coleção de cerâmica Kuanhama no Powell-Cotton Museum recolhida, na década de trinta do século 20 por Diane e Antoinette, filhas do Major Pierce Powell-Cotton no sul de Angola, surge como um momento relevante da sua pesquisa, que a leva a considerar as potencialidades deste conjunto como agente de um despertar da identidade cultural. Posteriormente, procura, através de deslocações na região Kwanhama e Nhaneca-Humbe, comparar as modalidades contemporâneas de fabricação artesanal pelas mulheres ceramistas e os registos efetuados na década de trinta pelas irmãs Powell-Cotton, visando aprofundar os conhecimentos técnicos, as possíveis alterações decorridas ao longo deste intervalo de tempo sem esquecer os seus significados e usos particulares (quer funcionais e económicos, quer cerimoniais).

Ao mesmo tempo, esta procura confronta a artista com a complexidade da sua identidade angolana onde emerge uma duplicidade cultural vivida simultaneamente sob o signo da vítima e da privilegiada. Como menciona, o seu desconhecimento das culturas endógenas, das diferentes línguas nacionais – derivado da educação e da infância vivida durante o período colonial onde a língua portuguesa e os padrões europeus haviam sido impostos como marcas de superioridade – coloca-a face a um mundo "desconhecido " ao qual pertence enquanto cidadã angolana. Mas por outro lado não deixa de se sentir privilegiada pelo facto de, através da investigação e pesquisa plástica poder reconstituir uma ligação (até então inexistente) com as raízes de uma cultura que lhe havia sido sonegada. Nas suas palavras:

More importantly the greatest privilege is the understanding I am gaining about my culture and identity through my art and my research. In a sense I am recovering, or excavating elements of Angolan culture previously hidden from me (Gamboa, 2008).

 

3. A obra como denúncia

Considerando o seu poder evocativo, pela ligação que estabelece com uma técnica e matéria primordial como a terra, a ausência ou dificuldade em obter alimentos, o simbolismo e labor feminino – tanto na confeção dos artefactos como na sua utilização – as peças cerâmicas de Helga Gamboa são pensadas não só numa perspetiva estritamente tecnológica mas procuram conjugar aspetos de ordem estética e plástica com uma vertente interventiva onde as consequências da guerra são conjugadas no feminino e na infância. A sua pesquisa tem por objetivo "criar objetos que não poderiam ser vistos apenas como esteticamente agradáveis ou objetos de decoração, mas sim, chamar a atenção para a luta e dor que muitas mulheres suportam" (Gamboa, 2010).

Destacam-se obras como Feeding, Infants ou Aftermath (Figura 1; Figura 2; Figura 4), que, recuperando e/ou recriando modelos tradicionais e reavendo uma técnica artesanal, em que as mulheres assumem uma importância como em nenhum outro lugar, Helga Gamboa conjuga o simbolismo matricial das bases arredondadas com o poder masculino da destruição – figurado nos gargalos alongados – a evocação da terra-mãe com a utilização de modelos europeus e peças de fabrico industrial como símbolos do colonialismo e da produção em série – inclusive de armas como as minas terrestres responsáveis por um número elevado de mortes e mutilações por entre a população civil, e que envolve um negócio que vai além da mera comercialização, como veremos.

 

 

 

 

Este simbolismo expresso nas formas e nas matérias que remete para um universo das raízes ancestrais da identidade cultural, contrapõe-se às referências de uma repetição em série da tecnologia ocidental, e à globalização, através da reprodução de imagens fotográficas monocromáticas que, compondo frisos, mostram vítimas da guerra – mulheres mutiladas pelo rebentamento de minas terrestres, crianças de rua, vítimas do abandono e da fome – e que igualmente povoam um imaginário trágico, mas banalizado nos meios de comunicação ocidentais. Estes dois últimos aspetos são denunciados em Infants (Figura 2) e numa outra peça não intitulada (Figura 3) onde uma figura de criança interroga o observador com o olhar. Na primeira, o uso do negro como símbolo da perda e de morte, cobre uma forma onde o fundo arredondado remete para o ventre materno, aspeto igualmente patente na segunda aqui reforçada pelos tons da terra.

 

 

A luta pela sobrevivência travada pelas mulheres angolanas em meio rural é o tema da obra Aftermath (Figura 4). O contraste entre o preto – metáfora da morte e da perda – e o branco – metáfora do colonialismo – numa alusão ao legado do passado no presente, à dominação e subjugação, é complementado com a violência das imagens de mulheres amputadas em consequência do rebentamento de minas, apoiadas em muletas e denunciando os espantosos esforços da mulher/mãe angolana numa conjuntura trágica, de fragilidade e privações várias.

A relação entre passado e presente, marcados pela destruição, dominação, exploração, escravatura e morte, primeiro, provocados pelo colonialismo e posteriormente pela guerra civil são evocados em duas outras peças, um conjunto intitulado Breakfast Thoughts (Figura 5), e outra não intitulada (Figura 6). Na primeira, a ceramista recorre ao uso de peças de loiça industrial habitualmente presentes numa mesa de pequeno-almoço europeia como símbolos do colonialismo e da produção em série onde imprime repetidamente a azul e branco, a imagem de uma mulher mutilada, apoiada numa muleta. O conteúdo politicamente interventivo é complementado através de inscrições também a azul (numa subtil alusão ao colonialismo português simbolizado pelas cores da azulejaria) que remetem para as histórias de vida destas mulheres num quotidiano marcado pela ação devastadora das minas terrestres, pela destruição e morte em massa. A segunda, denuncia, através de inscrições, a complexa teia de relações que envolve os negócios da guerra, onde a produção de minas terrestres (originárias de mais de 22 países diferentes) e a posterior desminagem (realizada não raras vezes por ONG desses mesmos países…) são apenas duas componentes de uma economia, responsável pela mutilação de vários milhares de angolanos.

 

 

 

 

4. Nota Final

A duplicidade ou contraste entre a elegância e fluidez das linhas das peças, o acabamento polido, a escala que adivinha uma possibilidade de manuseamento, a recuperação de técnicas e formas antigas, e o sentido político, a dimensão catastrófica dos conteúdos expressos (ou indiretamente evocados), o jogo entre o trabalho manual e a produção industrial em série, a articulação entre o passado histórico e o presente dos quotidianos, transforma estes objetos em documentos plásticos que, numa referência direta a um universo particular da mulher – encarada como esteio familiar e simultaneamente um dos elos mais frágeis do tecido social, conjuntamente com as crianças – alcançam, na obra cerâmica de Helga Gamboa não só uma configuração testemunhal, mas incorrem no campo das construções identitárias onde dimensão autobiográfica não deixa de ser omnipresente.

 

Referências

AAVV (2003). Angola. Tons e Texturas da Angolanidade. Lisboa, Fórum Picoas         [ Links ]

Gamboa, Helga (2008). An Angolan Heritage: the Ceramics of Helga Gamboa, in Interpreting Ceramics. Cardiff: University of Wales. [Consultado em 6-11-2010]. Disponível em http://www.uwic.ac.uk/icrc/issue010/articles/06.htm         [ Links ]

Gamboa, Helga. Reprodução de obras em cerâmica. [Consultado em 6-11-2010]. Disponível em http://www.helgagamboa.com         [ Links ]

Nunes, Augusto. Helga Gamboa expõe obras de cerâmica, in O País [online] 30 de abril de 2010 [Consultado em 6-2-2011]. Disponível em http://www.opais.net/pt/opais/?det=12144         [ Links ]

 

 

Artigo completo submetido em 20 de janeiro e aprovado em 8 de fevereiro de 2012.

 

Endereço para correspondência

Correio eletrónico: teresamatospereira@yahoo.com (Teresa Matos Pereira).

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