SciELO - Scientific Electronic Library Online

 
vol.5 número10Religiosidad "contracultural" en la obra de Ocaña: Una reinterpretación de la religión a través de la homosexualidad en la transición españolaEscuta e voz: sobre o ato de confissão no trabalho 'Escuto histórias de Amor' de Ana Teixeira índice de autoresíndice de assuntosPesquisa de artigos
Home Pagelista alfabética de periódicos  

Serviços Personalizados

Journal

Artigo

Indicadores

Links relacionados

  • Não possue artigos similaresSimilares em SciELO

Compartilhar


Revista :Estúdio

versão impressa ISSN 1647-6158

Estúdio vol.5 no.10 Lisboa dez. 2014

 

ARTIGOS ORIGINAIS

ORIGINAL ARTICLES

Na contramão da religião: Flávio de Car valho e o bailado da mor te de Deus

Against the grain of religion: Flávio de Car valho and the ballet of the death of God

 

Ricardo Maurício Gonzaga*

*Brasil artista visual. Graduação em Gravura, Escola de Belas Artes, universidade Federal do Rio de Janeiro (EBA/uFRJ). Mestrado em História da Arte (EBA/uFRJ); Doutorado em Linguagens Visuais (EBA/uFRJ).

AFILIAÇÃO: Universidade Federal do Espírito Santo (UFES), Centro de Artes, Av. Fernando Ferrari, 514, Goiabeiras CEP 29075-910 Vitória – ES – Brasil.

 

Endereço para correspondência

 

RESUMO:

O artigo analisa a ação performática de Flávio de Carvalho, figura polivalente do modernismo brasileiro, a Experiência nº 2, em que caminha coberto com um boné verde em sentido contrário a uma procissão de Corpus Christi, no centro da cidade de São Paulo, em 1931. Aproxima a narrativa do fato pelo próprio autor a textos teóricos de sua autoria dedicados à análise de Deus e da religião e de uma peça teatral para tentar inferir possíveis nexos esclarecedores entre prática e teoria.

Palavras-chave: Deus / religião / corpo / experimentação / arte brasileira.

 

ABSTRACT

The article examines the performative action of Flávio de Carvalho, polyvalent figure of Brazilian modernism, Experiment # 2, in which he walks covered with a green cap against the grain of a Corpus Christi procession in the center of the city of Sao Paulo, in 1931. Approaches the narrative of the event by the author to his own theoretical texts devoted to the analysis of God and religion and to a play to try to infer possible illuminating links between practice and theory.

Keywords: God / religion / body / experimentation / Brazilian art.

 

Figura ímpar do modernismo brasileiro, chamado por Le Corbusier de "Revolucionário Romântico" (Carvalho, 1973), engenheiro civil, arquiteto, pintor, escultor, desenhista, cenógrafo, figurinista, dramaturgo e escritor, Flávio de Carvalho (1899-1973) foi também um artista performático avant-la-lettre.

Em 1931, realiza no centro da cidade de São Paulo uma ação que denominaria Experiência nº 2, em que caminha coberto com um estranho boné verde, em sentido contrário a uma procissão de Corpus Christi, despertando a fúria dos crentes, que terminam por partir para seu linchamento, do qual consegue escapar refugiando-se em uma leiteria para ser resgatado em seguida pela polícia, que o leva preso. Ao subdelegado de plantão, teria declarado então que pretendia "fazer uma experiência sobre a 'capacidade agressiva de uma massa religiosa à resistência da força das leis civis, ou determinar se a força da crença é maior do que a força da lei e do respeito à vida humana'" (Carvalho, 2001). Três meses depois do feito, publica texto de mesmo título (Carvalho, 1931, 2001), no qual além de narrar a Experiência, elabora uma 'possível teoria' sobre ela, tendo como base a teoria psicanalítica (Figura 1).

 

 

Esta característica reflexiva, típica do artista moderno, mas inaugural no percurso da arte brasileira, proporciona à análise crítica oportunidade excepcional de aproximação às intenções do autor e às bases conceituais sobre as quais se elabora a ação.

Na sequência, viria a aparecer outro texto, teatral, O bailado do Deus morto, cuja encenação, em 1933, ocasionaria o fechamento, logo após sua estreia, do Teatro da Experiência, criado pelo artista. A escrita deste segundo texto, além de acrescentar rico material para análise, revela a persistência das preocupações de Carvalho em relação à temática religiosa.

Finalmente a publicação póstuma de um terceiro texto, A origem animal de Deus (Carvalho, 1973), revelaria tentativa de elaborar sua posição teórica em relação ao tema a partir estudos de história da religião e de conceitos tais como totemismo, psicologia das massas e do indivíduo, de uma perspectiva intuitiva e francamente descompromissada (Figura 2).

 

 

Em relação à Experiência nº 2, propriamente, apresenta-se, de pronto, à análise o problema de sua natureza artística, que não pode deixar de apontar para outro: o da posição do precursor histórico de determinada categoria antes de sua definição e mesmo nomeação, no caso, a performance. Neste sentido não deixa de ser notável que Flávio de Carvalho, que já revelava pretensões como artista plástico – afinal expusera no Salão Nacional de Belas Artes daquele mesmo ano, de 1931 (Carvalho, 1973) – não fizesse referência em momento algum à palavra 'arte' ou 'artístico' no decorrer do texto que analisa a Experiência nº 2, como bem observa Luiz Camillo Osório (2009). E nem isto lhe seria possível, historicamente. Se, por um lado, em se tratando da prática da performance, podemos localizar (pelo menos) um antecedente nas apresentações dadaístas de Hugo Ball, Tristan Tzara, Jean Arp, Richard Huelsenbeck e companhia, no Cabaré Voltaire, da Zurique de 1916, não há razão para vincular tais eventos à Experiência, ainda que Carvalho pudesse ter tido notícia de sua ocorrência. Na verdade, são manifestações de naturezas muito diferentes em suas origens e contextos próprios: se as apresentações dadaístas recusavam terminantemente serem rotuladas como artísticas – posicionando-se mesmo em oposição à arte, como antiarte, portanto – no entanto, no contexto de uma Europa hiperconsciente cultural e artisticamente, não podiam deixar de se situar em relação ao horizonte de campo da arte, mesmo que por meio de um processo de enfática negação a sua absorção por ele – historicamente inevitável e inexorável, por sinal, como a história haveria de mostrar. Já em Flávio de Carvalho, por outro lado, em consonância com a insipiência da situação da arte no Brasil – e tirando até certo ponto, proveito desta, emerge o caráter radical da experimentação, que se, por um lado, se pretende 'científico', por outro em momento algum se

propicia a possibilidade de efetivamente sê-lo, já que opta por procedimentos e estratégias absolutamente estranhos ao método científico. O que é possível concluir, portanto é que, em relação ao problema da situação do precursor – e isso vale para qualquer um que verdadeiramente o seja – é que ele o é porque em determinado momento histórico futuro a arte, caso se trate dela como no caso, viria a passar por ali, onde ele vinha atuando, de modo que, em retrospecto, se resgata para as tentativas experimentais do precursor seu caráter como tal. Parece óbvio: sem bola de cristal, não há como ser diferente, prevendo-se a possibilidade de desdobramento futuro numa determinada direção e colocando-se, como consequência, em posição de inaugurá-la.

Neste sentido, mais do que a modernidade da Experiência nº 2, parece se evidenciar seu possível caráter pós-moderno, se concordarmos com Thierry de Duve (2003), para quem, na passagem da arte do paradigma moderno para o pós-moderno, a hegemonia da influência da tríade conceitual moderna 'criação-meio-invenção' teria sido substituída pela expressa pelos termos 'atitude-prática-desconstrução', típica, para este autor, da pós-modernidade. Ora, em seus diversos aspectos, a Experiência nº 2 se adéqua perfeitamente a esta definição: pela centralidade de seu caráter intencional, marcadamente derivado de uma atitude de revolta contra uma prática cultural considerada arcaica e obsoleta pelo autor e contra a mentalidade que a gera; pela interdisciplinaridade característica de uma prática que desde sua origem como ideia até sua execução revela a liberdade em relação a meios artísticos específicos, típicos da modernidade; e pelos processos de desconstrução crítica, elaborados a posteriori por meio de textos reflexivos que visavam aprofundar o entendimento relativo aos elementos produzidos no decurso das experimentações.

Estes textos, na verdade, como bem observa Osorio (2009), "não são explicações conceituais, não tem a pretensão de justificar algum tipo de produção artística paralela. São parte de seu processo criativo e seu valor é muito mais estético-artístico que teórico". No entanto, funcionam magnificamente no sentido de revelar a base conceitual e até ideológica, o 'pré-texto', para usar a definição de Vilém Flusser (1985) referente a textos que atuam como substrato conceitual para a produção de imagens técnicas, 'pós-históricas' segundo ele (Flusser, 1996). No caso da Experiência nº 2, o livro que a descreve, escrito e publicado no calor da hora, 'visualizando a aventura', como escreve Carvalho, fornece pistas valiosas para a construção do perfil do autor e do trabalho.

De pronto, temos um dado significativo na descrição da função do boné como 'elemento perturbador' da rotina religiosa pela erupção da revolta:

Contemplei por algum tempo este movimento estranho de fé colorida, quando me ocorreu a idéia de fazer uma experiência, desvendar a alma dos crentes por meio de um reagente qualquer que permitisse estudar as fisionomias, [...] palpar psiquicamente a emoção tempestuosa da alma coletiva [...]. Dei meia volta, subi rapidamente em direção à catedral, tomei um elétrico e meia hora depois voltava munido de um boné" (Carvalho, 2001).

De fato, como intuído, seria o uso deste boné na cabeça, mais que a caminhada em direção ao fluxo da procissão, o elemento de conflagração a despertar a ira da massa religiosa. É também notável a distinção que Carvalho faz entre os componentes geracionais da procissão: "à medida que caminhava recebia da parte jovem da assistência olhares agradáveis e da parte velha um certo desagrado" (Carvalho, 2001). Enfrentando a 'indignação geral', ele não hesita em acrescentar novo ingrediente a sua démarche: "empreendi imediatamente uma série de flirts, escolhendo entre outras 2 louras bonitas, 2 morenas bonitas e 2 feias de cada tipo", no que, segundo ele, seria "lentamente correspondido, principalmente pelas feias" (Carvalho, 2001) (Figura 3).

 

 

Quanto a este aspecto da sedução, a análise teórica que se segue à narrativa da Experiência é elucidativa: monoliticamente alicerçado na leitura de Freud, Carvalho desenvolve sua reflexão com base no tripé conceitual 'sujeito', 'totem' e 'fetiche'. Evidencia-se então a contraposição – narcísica (do que ele parece não se dar conta) – e mesmo a tentativa de substituição do totem religioso pela própria figura, a sugerir outra possibilidade de adoração, propositalmente luciferina na sua 'arrogância' (Carvalho, 2001) assumida.

Teria partido de "um colega, um velho amigo, [...] em tom amistoso e firme", a primeira sugestão de correção de conduta e retorno à ordem: "Flávio você precisa tirar o chapéu", ao que ele retruca que o amigo "não perdesse o seu tempo, porque de modo algum tiraria o chapéu" (Carvalho, 2001). Então, a princípio timidamente para aos poucos ganhar corpo, surgem os gritos de "tira o chapéu!" e, se a emoção do momento aconselhava Flávio "seriamente a abandonar o terreno", seu "desejo experimental projetado de antemão", lhe dizia: "continua, continua" (Carvalho, 2001). Confrontado com a crescente manifestação de ira da massa, apela: "eu sou um contra mil". Frente ao impasse e percebendo que "o potencial de ódio aumentava", finalmente cede: "Coagido pela força bruta, vencido pelo número, vejo-me forçado a continuar o meu caminho sem chapéu" (Carvalho, 2001). Tarde demais: da multidão enfurecida partem os gritos de 'pega!", mata!' e 'lincha!' e só resta a ele a fuga desesperada. "Sou um contra mil": mais tarde, (Carvalho, 1973), ele forneceria pistas relativas a natureza destas posições antagônicas, A partir de uma postura francamente modernista e tendo como base os estudos do antropólogo John Frazer, Carvalho situa neste texto as necessidades primitivas do 'homem do começo', concentradas no medo da fome e da morte, como forças motrizes para a invenção de Deus. "Assistimos ao próximo colapso do mundo cristão patriarcal e do mundo religioso e ao aparecimento de um mundo sem Deus e sem destino", acredita, já que "a negação ateísta é uma consequência dos conhecimentos desenvolvidos do homem" (Carvalho, 1973). Como se pode depreender de tais postulações, Flávio de Carvalho se ancorava firmemente em outra crença, a que tem raízes na razão iluminista e incide sobre a noção de evolução da humanidade e de progresso. Deste 'lugar', assume o papel do 'homem moderno', acreditando que, como expressa a última frase de O bailado do deus morto, "a psicanálise matou o deus..." (Carvalho, 1973).

Caberia, portanto, a este 'herói', que "em seu mundanismo atrai por seu caráter audacioso" (Carvalho, 2001), enfrentar a multidão, encarnando o "homem do Não" de William James (Carvalho, 1973), que, crítico, opõe à rotina das massas passivas, "homens do Sim", sua revolta didática e transformadora, não muito distante de "uma práxis vital libertadora" (Bürger, 2012), o que o aproximaria do conceito adorniano de arte de vanguarda.

Ao final da peça O bailado do Deus morto (Figura 4), após marcar e especificar o fim do Deus, "os homens do mundo" debatem "como usar os seus resíduos no novo mundo" (Carvalho, 1973).

 

 

Como se aplicassem a noção antropocêntrica utilitarista de "animais e vegetais úteis" (que os opunha aos nocivos), tão em voga até meados do século passado, frente à 'mecanização do mundo', as Vozes indagam ao Lamentador:

V1: e o pelo do Deus...
L (cadenciadamente): para fazer pincel... V1: e os ossos do Deus...
L: para farinha de osso...
[...]
V1: E o sangue do deus...
L (bem alto): farinha para as galinhas...
[...]
V1: e as partes imprestáveis...
L: para guano... para guano... [...] A banha lubrificará o moto-contínuo...
[...]
V1: e as glândulas do pescoço... os gânglios... os gânglios...
L: [...] eu sou o médico... com o pescoço e os gânglios... fabricarei o novo deus... V1 (secamente): não pode...
V3: não pode.. não pode... V1: não pode...
V2: não pode...

Cai o pano (Carvalho, 1973).

Ainda hoje – e talvez como nunca – parecem estar a soar os ecos persistentes de tais diálogos e cânticos, como a indagar: pode ou não pode?

Estaria, de fato, morto o Deus?

 

Referências

Bürger, Peter (2012) Teoria da vanguarda. São Paulo: Cosac Naify.         [ Links ]

Carvalho, Flávio (1973) A origem animal de Deus e o bailado do deus morto. São Paulo: Difusão Europeia do Livro.         [ Links ]

Carvalho, Flávio (2001) Experiência n.2 realizada sobre uma procissão de Corpus-Christi: uma possível teoria e uma experiência. Rio de Janeiro: Nau.         [ Links ]

De Duve, Thierry (2003) "Quando a forma se transformou em atitude – e além." Ferreira, Glória; Venâncio Filho, Paulo; Medeiros, Rogério (org.) Arte & ensaios, ano X, n° 10, Rio de Janeiro: Programa de Pós-graduação em Artes Visuais/Escola de Belas Artes, UFRJ.         [ Links ]

Flusser, Vilém (1985) "Prétextos para a Poesia," Cadernos Rioarte, ano 1, nº 3.         [ Links ]

Flusser, Vilém (1996) "Texto/ Imagem enquanto Dinâmica do Ocidente". Cadernos Rioarte, Ano II, nº 5.         [ Links ]

Osorio, Luiz Camillo (2009) Flávio de Carvalho. São Paulo: Cosac Naify.         [ Links ]

 

Artigo completo submetido a 14 de setembro e aprovado a 23 de setembro de 2014

 

Endereço para correspondência

 

Correio eletrónico: ricmauz@gmail.com

Creative Commons License Todo o conteúdo deste periódico, exceto onde está identificado, está licenciado sob uma Licença Creative Commons