Introdução
A separação entre arte e ciência é um fenômeno relativamente recente em termos históricos, e esse breve período de afastamento parece estar chegando ao fim. Raciocínio lógico, criatividade, desenvolvimento de técnicas e capacidade de reflexão fazem mais sentido conectados e são cada vez mais necessários na complexidade do mundo contemporâneo.
As relações entre arte e ciência sempre fizeram parte do interesse da autora, visto sua formação acadêmica e experiência profissional em ambas as áreas. Assim, procurou-se abordar neste artigo aspectos que se verificam em sua pesquisa e se encontram exemplificados nas obras do artista. Neste sentido, nos debruçamos sobre a obra de Mauro Espíndola (Rio de Janeiro, 1962), buscando em seu mais recente trabalho artístico e em seu processo criativo relações com a ciência. O que se procura encontrar são as proximidades e distanciamentos, as (as)simetrias entre arte e ciência.
Mauro é designer gráfico desde 1982 e iniciou sua trajetória em artes visuais no início dos anos 90, quando fez parte de um grupo orientado pelo artista Luiz Ernesto. Mais tarde frequentou o ateliê livre do Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro, sob orientação de Luiz Áquila e Alair Gomes. Desenvolve reflexões poéticas através de livros, pinturas, desenhos, objetos, instalações e vídeos. Atualmente vive e trabalha em um estúdio no antigo moinho da Picada 48, habitação rural construída por imigrantes alemães no século XIX, no Rio Grande do Sul, onde se forma um museu imaginário, lugar de heteronímias e catalogações pseudo-científicas.
As reflexões surgem a partir da mostra Animalis Imaginibvs em exposição durante a 14ª Bienal Internacional de Arte Contemporânea de Curitiba com curadoria de Adolfo Montejo Navas (Madri, 1954), além de entrevistas realizadas com o artista (Espíndola, 2019-2020).
1. Animalis Imaginibvs
Há quatro anos Mauro Espíndola vem fazendo coleta, fotos, vídeos e desenhos de insetos e pequenos vertebrados nos arredores do antigo moinho no qual se considera ao mesmo tempo habitante e habitado. Como lhe atrai o emprego de heterônimos, neste trabalho ele encarna, como figura identitária, o pesquisador Emanoel Leichter, um necroinventariante do bestiário do antigo moinho que habita. O trabalho resulta em gravuras simétricas experimentais geradas com material micro escamoso das asas de borboletas e mariposas encontradas mortas no moinho, que o artista denomina biogravuras (Figura 1, Figura 2).
Animalis Imaginibvs é um projeto em andamento, e analisa-se neste artigo as obras que fazem parte da primeira edição deste trabalho. A exposição no Museu Paranaense é composto por instalação das biogravuras (Figura 3); duas vitrines - Contracampvs com os corpos dos lepidópteros (Figura 4) utilizados nas biogravuras, e os dois volumes do livro - Codex Papilionis Imaginibvs (Leichter, 2018, 2019) editados por Moinho Edições Limitadas (Figura 5).
As obras expostas em um museu junto a várias coleções científicas intensifica a relação entre arte e ciência expressa na criação do artista, surgindo questões sobre as inspirações e pesquisas de artistas sobre temas científicos no processo de criação de suas obras e a busca de uma aproximação entre arte e ciência como forma útil de interpretar o mundo.
2. Metamorfoses
A metamorfose, fato biológico que ocorre durante o crescimento das espécies da ordem Lepidoptera, apresentando as fases ovo, lagarta, crisálida e adulto, é um ciclo que sugere mudança e transformação, culminando em fantásticas cores e simetria da forma de um dos mais belos seres da natureza. Assim também se verifica uma metamorfose no antigo moinho e na mudança de vida do artista. Foi quando Mauro aceitou o desafio de transformar o local que encontrou inabitado e degradado, que iniciou o projeto Animalis Imaginibvs, coletando borboletas mortas que encontrava no local.
Mauro abandonou seu casulo, um pequeno apartamento de poucos metros quadrados onde residia no Rio de Janeiro, e os longos anos de vivência no ambiente urbano, e mudou-se para junto da natureza. O moinho se transformou em moradia, ateliê, editora e espaço para receber visitantes. A tensão urbana substituída pelo mato, pela terra, pela convivência com os animas, pela sensação pulsante de se sentir parte da natureza, gerou mudanças, refletindo nas borboletas que renascem agora nas obras do artista. Utilizando uma técnica própria, o artista transfere para a superfície do papel substratos das asas dos lepidópteros, em uma nova fase do ciclo da borboleta, a biogravura, que imprime sua forma e suas cores, sua essência eternizada em arte.
3. (As)simetrias
O filósofo grego Aristóteles (384 a.C.-322 a.C.) foi quem introduziu a ideia da simetria, que pode ser entendida tanto de uma forma estrita, em que os lados opostos de uma figura dividida por um eixo central são exatamente iguais, quanto em um sentido amplo, de proporção e equilíbrio entre as partes. As borboletas são belos exemplares de simetria, tanto nos desenhos geométricos quanto no contorno das asas. Mauro sempre foi muito atraído por discussões sobre simetria e assimetria, sobre os dois lados do corpo humano ou animal, considerado simétrico, nunca ser exatamente igual, existindo sempre uma desigualdade, e aborda essas questões em forma de imagens. “A simetria me chama, me perturba, me questiona”, diz Mauro Espíndola (2019-2020). O espelhamento e a simetria, ou pseudo-simetria, entre lados opostos de corpos aparecem em vários trabalhos do artista desde os aos 80.
Em Animalis Imaginibvs, as biogravuras são pseudo-simétricas, assim como a disposição das biogravuras na exposição, o artista assume a identidade de um pseudo-cientista, que se comunica em um pseudo-latim, uma língua inventada com neologismos e palavras híbridas. Mauro conta em entrevista, “Emanoel surge falando nessa língua, um latim contemporâneo, uma derivação do latim”. Era um desejo do artista, que beirava essas manifestações com intenções pseudo-científicas. Mauro conta que, inicialmente, chegou a tentar traduzir algumas expressões para o latim, mas logo compreendeu que a ideia era entender essa outra forma de expressão não com tradutores, mas percebendo as ambivalências, as proximidades do que ele escrevia com uma condução científica e poética. As biogravuras são expostas em antigas molduras, de diferentes tamanhos e procedências, reunidas pelo artista durante o projeto. Agregam, assim, a ideia de tempo necessário na formação de uma coleção. As biogravuras dos lepidópteros acompanhadas de termos no latim inventado compõem o livro Papilionis Imaginibvs, assemelhando-se às imagens simétricas dos animais nos livros de biologia e as nomenclaturas científicas.
Assim, Mauro Espíndola sob o pseudônimo de Emanoel Leichter, flertando com os preceitos que regem a ciência em seu processo artístico repleto de simetrias e assimetrias, aqui entendidas como semelhanças e naturais diferenças, com as questões científicas, provoca diálogos e reflexões sobre as aproximações e distanciamentos entre arte e ciência.
4. Arte e ciência
Arte e ciência sempre caminharam juntas. São vários os exemplos de artistas que ao longo da história dedicaram-se igualmente à ciência ou inspirados por ela conduziram seus processos criativos, assim como a arte também ajudou a ciência a trilhar novos caminhos.
As referências artísticas de Mauro se misturam com as referências científicas, os primeiros anatomistas, Da Vinci, Rafael, Vesalius e tantos outros renascentistas, que em muitas de suas obras representaram a arte por meio da ciência e vice-versa, revolucionando a criação de imagens da anatomia dos corpos.
Especialmente Leonardo da Vinci (1452-1519), que no Homem Vitruviano, desenho baseado nos escritos do arquiteto e engenheiro Marco Vitrúvius, mostra a estética do corpo humano associada a suas proporções, unindo seus conhecimentos científicos e da representação artística. Além da simetria da imagem, o espelhamento está presente em seus escritos no Codex Leicester, feitos da direita para à esquerda como um código indecifrável (Cherem, 2005).
Segundo Kestler (2006), hoje estamos todos acostumados à fragmentação e especialização dos saberes e atividades e, sobretudo, à separação rígida entre arte e ciência, que parece estranho e incomum que artistas na história tenham se dedicado tanto a temas considerados não-poéticos e que não conseguissem enxergar a arte e a natureza em mundos e esferas separados.
Questões comuns aos processos de criação na arte e na ciência sugerem uma correlação entre o que sucede em vários campos do saber. O acerto e o erro, o acaso e a intuição são semelhanças recorrentemente apontadas tanto por artistas como por cientistas.
Mauro relata que a solução para seu projeto aconteceu de forma intuitiva. “Um dia Emanoel Leichter simplesmente chegou resolvendo todos os meus problemas”, diz o artista. A descoberta da técnica, por exemplo, que finalmente tornou possivel as biogravuras conforme o desejo do artista, surgiu de uma inspiração, após várias tentativas sem sucesso que Mauro já havia pesquisado.
Segundo o poeta Sant’Anna (2006), “a verdadeira ciência tem tudo a ver com a arte, pois lidamos com o impossível, o que não se pode apreender e se ter à primeira vista” (Sant’Anna, 2006: 214). O artista acrescenta ainda que correlacionar tudo, inclusive os assuntos mais díspares está na raiz da arte e da ciência. “Na crise do que chamamos ‘pos-modernidade’, que é o elogio disparado da fragmentação, a leitura interdiscplinar é mais do que necessária” (Sant’Anna, 2006: 214).
O cientista Bronowski (1908-1979) argumenta que tanto a ciência como a arte, embora utilizando caminhos que lhes são peculiares, nos fornecem conhecimento universal. Bronowski utilizava seu entendimeto sobre a imaginação para estabelecer sua ponte entre ciência e arte:
A imaginação nos atinge e nos penetra de formas diferentes na ciência e na poesia. Na ciência, ela organiza nossa experiência em leis, sobre as quais baseamos nossas ações futuras. A poesia, porém, é outro modo de conhecimento, em que comungamos com o poeta, penetrando diretamente na sua experiência e totalidade da experiência humana (Bronowski, 1998: 20).
O físico Gleiser (1997) diz que, equivocadamente, muitos pensam que a pesquisa científica é uma atividade puramente racional, e os cientistas, insensíveis e limitados. Essa generalização não incorpora a motivação mais importante do cientista, o seu fascínio pela Natureza e seus mistérios. Por essa visão, o processo criativo científico não é assim tão diferente do processo criativo nas artes, sendo também um veículo de autodescoberta que se manifesta ao tentarmos capturar a nossa essência e lugar no Universo.
Segundo Zamboni (2012), o que diferencia arte e ciência é que a arte tem um caráter pessoal de interpretação, pelo fato de haver diferentes linguagens artísticas que, consequentemente, produzem diversas formas de interpretação subjetiva por parte do interlocutor, pois cada indivíduo pode ter uma leitura pessoal e individual do trabalho artístico.
[...] como qualquer atividade humana, pesquisa enquanto processo não é somente fruto do racional: o que é racional é a consciência do desejo, a vontade e a predisposição para tal, não o processo de pesquisa em si, que intercala o racional e o intuitivo na busca comum de solucionar algo. Esses conceitos servem tanto para a ciência quanto para a arte, pois pesquisa é a vontade e a consciência de se encontrar soluções, para qualquer área do conhecimento humano (Zamboni, 2012: 51).
E compartilhando do pensamento de Johann Wolfgang von Goethe (17491832), que conseguiu pensar arte e ciência como uma totalidade, espera-se cada vez mais reaproximação dessas duas áreas do saber na criação de melhores soluções para o complexo mundo contemporâneo.
Quem não está convencido de que todas as manifestações da essência humana, a sensibilidade e a razão, a intuição e o entendimento, devem ser desenvolvidas para se tornarem uma decisiva unidade, independentemente de quais destas qualidades se tornem predominantes em cada um, passará a vida se esgotando nessa redução desagradável e nunca compreenderá, porque tem tantos inimigos tenazes e porque ele mesmo às vezes também vai confrontar outros como inimigos. Assim, um homem nascido e formado para as assim chamadas ciências exatas, quando estiver no ápice de sua razão-entendimento, não compreenderá facilmente que pode haver também uma fantasia sensível exata, sem a qual a arte é impensável (Goethe apudKestler, 2006: 53).
Conclusão
As reflexões provocadas pela análise do processo artístico de Mauro Espíndola permitem concluir que arte e ciência nutrem-se do mesmo húmus, a curiosidade humana, a criatividade, o desejo de experimentar. Ambas são condicionadas por sua história e seu contexto. Estão imersas na cultura, mas imaginam e agem sobre o mundo com olhares, objetivos e meios diversos. O fazer artístico e o científico constituem duas faces complementares da ação e do pensamento humanos, mediadas por tensões e descompassos, que podem gerar o novo, o aprimoramento mútuo e a afirmação humanística.