INTRODUÇÃO
O angiohistiocitoma de células multinucleadas (ACM), descrito pela primeira vez por Smith e Wilson Jones,1 é uma doença rara e benigna, que ocorre principalmente em mulheres de meia-idade.2 Clinicamente caracteriza-se por pápulas ou nódulos, geralmente assintomáticos, de cor que pode variar entre o vermelho e o castanho. As lesões podem surgir agrupadas ou isoladas, mais frequentemente localizadas nas extremidades, existindo poucos casos de ACM generalizado.3,4
A sua patogenia não é completamente compreendida, sendo a hipótese predominante a de se tratar de um processo reativo.2 Histopatologicamente observa-se, na derme superior, a proliferação de pequenos vasos no seio de um estroma denso de colagénio, composto por células fibrohistiocíticas intersticiais e células gigantes multinucleadas de contornos espiculados, que, apesar de ser um achado típico, não é patognomónico.2,4O estudo imunohistoquímico, não sendo fundamental, pode ajudar no diagnóstico. Com alguma variabilidade, as células gigantes multinucleadas apresentam positividade para a vimentina, fator XIIIa e para o CD68 e são negativas para o fator VIII, CD34 e S100.
As células endoteliais, além de marcarem positivo para o fator VIII, CD31 e CD34, podem revelar positividade para o CD68. Por sua vez, as células mononucleares intersticiais
marcam positivo para vimentina, fator XIIIa, MAC387 e lisozima.2,4,5
A evolução das lesões é lenta e progressiva, havendo relatos de casos em que se verificou remissão espontânea.6 O impacto para o doente é fundamentalmente estético.5
A maior revisão da literatura sobre a apresentação clínica e histopatológica do ACM realizada até à data reportou um total de 142 casos, em 2015.2 Em Portugal, existem apenas dois artigos publicados na literatura.7,8
CASO CLÍNICO
Doente de 48 anos, do sexo masculino, observado por três lesões nodulares, assintomáticas, com um ano de evolução, localizadas inicialmente na mão esquerda, com extensão à mão direita.
Apresentava história pessoal de hipertensão arterial, gota, trombocitopenia familiar e hipertrigliceridémia. Mantinha como medicação habitual perindopril, alopurinol e sinvastatina. Negava história de traumatismo. Sem alergias alimentares ou medicamentosas conhecidas.
No exame objetivo observavam-se nódulos e pápulas, no dorso de ambas as mãos, assintomáticos, de cor eritematoviolácea, de consistência dura e sem aumento da temperatura à palpação, alguns esboçando bordo elevado e regular, com depressão central (Fig.s 1 e 2). Não existiam outras alterações de relevo no restante tegumento.
Perante as hipóteses de diagnóstico de eritema elevatum diutinum, de granuloma anular e de ACM, foi realizada biópsia cutânea que mostrou, na derme superficial e média, proliferação de pequenos vasos, de parede fina, rodeados por uma camada de pericitos. Na derme circundante, observam-se células multinucleadas e angulosas, em estroma de colagénio espessado (Fig. 3), características típicas de ACM, diagnóstico que foi assumido.
O doente foi reobservado após um mês, mantendo as lesões no dorso das mãos. Após explicação sobre a benignidade e evolução indolente das lesões o doente mostrou-se tranquilizado, optando-se por não realizar tratamento.
DISCUSSÃO
O angiohistiocitoma de células multinucleadas é uma dermatose rara, cujo diagnóstico parte da suspeição clínica e é confirmado pela presença de características histopatológicas distintas. Pensa-se que resulte inicialmente de um estímulo inflamatório e subsequente proliferação vascular, surgindo mais tardiamente um processo de fibrose e atrofia.2 Cesinaro et al9 propuseram ainda que os estrogénios desempenham um fator determinante no desenvolvimento das lesões, o que justificaria a predominância desta doença no sexo feminino. De facto, numa revisão sistemática de 142 casos, Frew2 relatou que 79% dos doentes eram do sexo feminino. Contudo, nem todos os casos reportados demonstraram sobrexpressão dos recetores de estrogénio.3,5
Além disso, Roy et al,10numa série de casos recente, não encontraram uma diferença significativa entre géneros, com 51,6% dos indivíduos do sexo feminino. De maneira semelhante, também o presente caso, referente a um indivíduo do sexo masculino, coloca em causa a influência da hormona feminina na patogenia do ACM.
A apresentação clínica do ACM caracteriza-se por lesões rosadas, violáceas ou acastanhadas, tumefactas, múltiplas e de tamanho variável (2-15 mm), geralmente unilaterais, em forma de cúpula ou com superfície achatada, podendo coalescer e formar uma estrutura em anel.4 Apesar de a dermatoscopia não ter sido documentada neste caso, nas lesões de ACM podem observar-se áreas de cor avermelhada intercaladas com áreas esbranquiçadas e zonas mais periféricas com um padrão reticulado fino.11 Embora estas características sejam pouco específicas, a dermatoscopia pode ser útil na exclusão de outros diagnósticos.7 No presente caso, as lesões tinham bordos bem definidos e elevados, algumas esboçando uma depressão central, iniciando-se no dorso da mão esquerda e surgindo posteriormente no dorso da mão direita. Pela sua semelhança clínica com o ACM, foram colocados diagnósticos diferenciais de eritema elevatum diutinum e granuloma anular clássico. Estas entidades afetam frequentemente as extremidades, nomeadamente a face dorsal das mãos, formando lesões assintomáticas, isoladas ou múltiplas, geralmente bilaterais.12,13O granuloma anular clássico faz parte das doenças granulomatosas cutâneas. Já o eritema elevatum diutinum é uma vasculite de pequenos vasos. Estes diagnósticos são, assim, facilmente distinguidos através da análise histopatológica. Histopatologicamente, o ACM faz ainda diagnóstico diferencial com dermatofibroma atrófico, que clinicamente se manifesta por lesão única, o que permitiu excluir de imediato este diagnóstico, e com sarcoma de Kaposi, que se caracteriza pela presença de fendas vasculares irregulares, presença de plasmócitos e ausência de células gigantes multinucleadas.14
O ACM é uma doença tendencialmente crónica, de evolução lenta e de carácter benigno.3,5O seu diagnóstico assenta na importância da correlação clínica e histopatológica.
Não foram identificadas características histológicas de malignidade.3 Existem casos raros de envolvimento generalizado do tegumento3 e ainda alguns casos de envolvimento extracutâneo, nomeadamente envolvimento da órbita15 e da mucosa oral.16 Não é necessário qualquer tratamento e não existem terapêuticas formalmente definidas, havendo alguns relatos de remissão espontânea.6 Contudo, o doente pode procurar tratamento por razões estéticas, existindo casos descritos de sucesso terapêutico com a remoção cirúrgica, crioterapia, laser pulsado de contraste, laser Argon, luz intensa pulsada e laser CO2, sendo a evidência científica limitada.5
Deste relato de caso destaca-se o facto de se tratar de um indivíduo do sexo masculino, o que questiona a etiopatogenia do ACM no que respeita ao papel dos estrogénios.
Pretende-se também contribuir para a divulgação dos aspetos do diagnóstico e prognóstico desta entidade clínica rara, que é exemplificativa da importância da correlação clinicopatológica em Dermatologia.