As relações profissionais entre compositores e fabricantes de instrumentos são constantes ao longo da história da música, particularmente no campo da música de órgão. A morfologia dos instrumentos, tão variada através da Europa, dependendo do tempo e da região, ofereceu possibilidades - e criou limitações - aos compositores, tendo, portanto, um papel crucial na criação da sua música. No meu artigo «Dynamics and Orchestral Effects in late Eighteenth-Century Portuguese Organ Music: The Works of José Marques e Silva (1782-1837) and the Organs of António Xavier Machado e Cerveira (1756-1828)» (Vaz, 2013), abordei já este assunto, no contexto da relação entre a música de órgão produzida em Portugal no final do século XVIII e as primeiras décadas do século XIX - principalmente em Lisboa e nas áreas circundantes - e o tipo de instrumento desenvolvido nessa região no mesmo período.
No caso de Portugal, a documentação sobre os órgãos em que os compositores executavam suas obras não é abundante. Na mais antiga fonte ibérica de música de tecla, a Arte nouamente inventada pera aprender a tanger de Gonçalo de Baena (Baena, 1540), impressa em Lisboa, o órgão representado na folha de rosto e as letras da tablatura (pensadas para ser recortadas e coladas nas teclas) dão uma indicação clara de que as peças foram compostas tendo em vista um teclado com a extensão de Dó1, Ré1, Mi1, Fá1, Sol1, Lá1 - Sol4 (Baena, 1540, p. [viii])2. Uma fonte posterior, o Livro de obras de Órgão Juntas pela coriosidade de P. P. Roque da Cõceição3, um manuscrito com obras de vários autores, compilado em 1695, exibe o diagrama de um teclado também com «oitava curta», mas atingindo o Lá4. A presença de várias obras do tipo «meio registo»4 indica a presença de um registo solístico de tiple (como a Corneta real) e algumas indicações ao longo das peças sugerem a presença de palhetas. Estas são, evidentemente, indicações muito gerais, das quais não é possível inferir nenhum tipo de interacção directa entre organistas e construtores. No entanto, no final do século XVIII, quando a organaria e a música para órgão se moviam numa nova direcção claramente distanciada da tradição ibérica, os sinais de relação entre música e instrumentos (e entre organistas e organeiros) tornam-se mais evidentes5. Neste contexto, as figuras do organista e compositor Frei José Marques e Silva e do organeiro António Xavier Machado e Cerveira, quase contemporâneos e com uma vasta produção nos domínios correspondentes, assume especial relevo.
Frei José Marques e Silva nasceu em 1782 em Vila Viçosa, onde teve a sua primeira formação musical, e entrou no Convento dos Paulistas em Lisboa por volta de 1800. Nesse mesmo ano, foi admitido na Irmandade de Santa Cecília (na qual a afiliação era obrigatória para todos os músicos activos em Lisboa). Em 1806, foi nomeado organista na Capela da Bemposta (no Palácio da Rainha), onde se tornou mestre de capela em 1816. Em 1821, após um longo processo envolvendo uma competição com António José Soares, assumiu o posto de mestre no Seminário Patriarcal em Lisboa, a escola de música mais importante da época. Composta principalmente para a Igreja, a sua produção é impressionante, incluindo várias obras para órgão solo e cerca de uma centena de obras vocais, a maioria dos quais com acompanhamento de órgão obbligato (Vaz, 2010, Vol. 2, pp. 211-273)6.
A música para órgão de Frei José Marques e Silva, tanto nas peças a solo como nas obras vocais com órgão, é claramente destinada aos instrumentos portugueses da época, nomeadamente os de António Xavier Machado e Cerveira, que construiu mais de uma centena de órgãos, incluindo o da Capela da Bemposta. Uma das características mais marcantes dos órgãos de Machado e Cerveira é a presença do anulador de cheios. Este dispositivo consiste numa corrediça deslizante (activada por meio de um pedal) colocada entre o someiro principal e um someiro secundário que contém a tubaria dos registos das misturas e as suas respectivas corrediças. O organista podia facilmente cortar o fornecimento de vento para o someiro dos cheios, mudando rapidamente entre forte e piano (ou entre o Cheio e o Flautado) num órgão com um único teclado. Essas mudanças de dinâmica tornaram-se tão populares na música de órgão da época, que o anulador de cheios pode ser encontrado até em instrumentos muito pequenos. Em instrumentos maiores, os registos das palhetas horizontais também eram separados do someiro principal por corrediça deslizante operada por um segundo pedal (Vaz, 2013, pp. 159-162).
Praticamente toda a música de José Marques e Silva exige o uso deste dispositivo. No seu primeiro autógrafo datado - o Benedictus Dominus Deus Israel para coro SATB e baixo contínuo (1806) - a linha do baixo cifrado segue a dinâmica das vozes. Esta obra foi escrita para a Basílica de Mártires, em Lisboa, onde o órgão (construído em 1785 por Machado e Cerveira) possui um anulador de cheios e pode facilmente realizar aquelas mudanças de dinâmica.
Outra característica dos órgãos de Machado e Cerveira é a presença de registos de palheta de ressonador curto, na maioria dos casos concebidos como registos solísticos. Indicações para o uso de registos de palheta como o Fagote, a Clarineta ou o Oboé (típico dos órgãos de Cerveira) podem ser encontradas em toda a música de órgão de Frei José Marques e Silva, especialmente nas suas obras a solo.
Embora interessantes, estas relações entre a música e os instrumentos não implicam necessariamente uma influência directa entre o compositor e o organeiro. É razoável supor que Machado e Cerveira se teria cruzado com Marques e Silva ao visitar o órgão da Bemposta, mas não há prova documental dessa ligação.
Os seis órgãos da Basilica de Mafra foram construídos entre 1793 e 1807 por Joaquim António Peres Fontanes e António Xavier Machado e Cerveira. Os últimos dois a serem concluídos - os órgãos do Evangelho e da Epístola, na Capela-Mor - foram inaugurados a 4 de Outubro de 1807, tendo um substancial número de composições envolvendo os seis órgãos sido produzida durante esse ano. Pouco depois disso, as Invasões Francesas e o consequente exílio da corte portuguesa no Brasil levaram a uma certa deterioração no uso dos instrumentos. Uma década depois - possivelmente em conexão com o fim das guerras napoleónicas e a perspectiva do regresso da família real - os seis órgãos foram submetidos a uma intervenção profunda. A intenção destes trabalhos, realizados apenas por António Xavier Machado e Cerveira (Fontanes morre em 1818), não era apenas reparar os instrumentos, mas também aumentá-los7.
A produção musical para Basílica de Mafra por volta de 1807 (destinada aos seis órgãos), é dominada por compositores do virar do século, como António Leal Moreira (1758-1819), João José Baldi (1770-1816) e Marcos Portugal (1762-1830). Baldi e Leal Moreira morreram logo após as Guerras Napoleónicas e Marcos Portugal, que na época era a figura musical dominante em Lisboa, juntou-se à Família Real no Brasil em 1810, aí permanecendo até à sua morte. Foi exatamente nesta segunda década do século XIX que a reforma dos órgãos de Mafra começou - o mesmo período em que José Marques e Silva estabelecia a sua reputação como compositor.
Os trabalhos realizados na Basílica de Mafra por Machado e Cerveira após as Guerras Napoleónicas envolveram todos os seis instrumentos. Todos os órgãos foram desmontados, reparados e mais ou menos transformados. A evolução dessas obras teve reflexos na produção musical para Mafra. Após 1807 (quando foram produzidas várias obras para os seis órgãos), há uma falta de actividade que coincide com as Invasões Francesas. A actividade composicional foi retomada por volta de 1812, envolvendo gradualmente dois, três, quatro e cinco órgãos. Infelizmente, os trabalhos foram interrompidos na década de 1820 (Machado e Cerveira morreu em 1828) e várias tarefas, como a remontagem do órgão de São Pedro d'Alcântara, permaneceram inacabadas até ao recente restauro de todo o conjunto, concluído em 2010 (Vaz, 2015, pp. 88-89)8.
Aparentemente, Machado e Cerveira deu atenção especial aos dois órgãos da Capela-Mor (Figura 1). Estes instrumentos eram originalmente muito menores do que hoje, porque a existência de uma parede de pedra por detrás das tribunas não permitia um someiro suficientemente profundo. Cerveira tentou resolver esse problema colocando o someiro secundário (someiro de cheios) dois metros acima do someiro principal. Embora essa solução fosse - e ainda seja - menos favorável para o vento, permitiu que os órgãos fossem consideravelmente ampliados (Vaz, 2015, pp. 87-88). Sobre as especificações originais (de 1807) dos órgãos da Capela-Mor não subsiste qualquer documentação. No entanto, é óbvio que o órgão da Epístola (originalmente construído por Joaquim António Peres Fontanes) foi alterado para se adequar ao conceito de Machado e Cerveira. Ambos os órgãos passaram a ter pedais de anulação para os registos do cheio e das palhetas horizontais (geralmente, os instrumentos de Fontanes têm esse sistema apenas para o cheio). Os pedais anuladores no órgão do Evangelho, no entanto, diferem da prática usual de Cerveira. Enquanto que o anulador dos cheios tem uma aparência normal (um pedal deslizante), o anulador das palhetas apresenta uma configuração sem paralelo na factura de Cerveira (Fig. 2).
Este pedal tem quatro posições diferentes, permitindo que o executante alterne entre as palhetas suaves de ressonador curto e a trombetaria horizontal, ou use ambas (ou nenhumas), sem levantar as mãos do teclado.
Parece altamente provável que a instalação deste sistema, situação única nos órgãos de Machado e Cerveira, tenha sido sugerida por um organista. Também é provável que Frei José Marques e Silva - dada sua posição no Palácio da Bemposta9 e no panorama da música sacra portuguesa da época - tivesse sido a escolha óbvia como consultor de Cerveira. Embora não haja provas desta relação, o facto é que uma das primeiras obras que se sabe terem sido escritas para Mafra após a vitória sobre as tropas francesas foi um Te Deum para coro masculino e dois órgãos de Frei José Marques e Silva, datado de 181210. Nesta obra, a parte do Orgão 1º exige mudanças rápidas de registação, apenas possibilitadas pelo uso dos dispositivos existentes no órgão do Evangelho11. Uma secção (cc. 16-33) do primeiro andamento (Te Deum laudamus) exige uma mudança de Flautado para Clarim, e novamente para Flautado, Clarim, Cheio, Flautado, Obué12 e Flautado, no decorrer de apenas quinze compassos (ver Figuras 4a e 4b).
Embora normalmente essas mudanças sejam impossíveis sem a ajuda de assistentes, os pedais de anulação no órgão do Evangelho permitiam ao organista executá-las facilmente enquanto tocava. Considerando que os registos de cheio e de palhetas tinham sido previamente ligados, as alterações de registação seriam feitas conforme indicado na seguinte tabela:
A parte do Orgão 2º (supostamente tocada no órgão da Epístola) é menos exigente em termos de registação, usando principalmente o pedal anulador dos cheios. Nos compassos 31 a 38 da referida secção inicial desta obra (Figura 5), as mudanças de registação do Órgão I (Flautado - Obué - Flautado - Cheio), facilmente realizáveis no órgão do Evangelho, seriam impossíveis de realizar no órgão da Epístola, que não dispõe de um anulador para os registos de palheta de ressoador curto (Fagote e Oboé). Pelo contrário, as mudanças exigidas ao Órgão II (Flautado - Clarim - Cheio) podem obter-se com facilidade no órgão da Epístola, através dos pedais anuladores dos cheios e das palhetas de ressoador longo (Trompa de batalha e Clarim).
O facto de que a primeira obra executada nos órgãos reformados da Capela-Mor seja tão adaptada aos instrumentos parece ser mais do que uma mera coincidência. É, pois, admissível considerar a possibilidade de algum tipo de ligação entre o compositor e o organeiro.
Há outros elementos que parecem apoiar esta teoria. O órgão do Evangelho na Basílica de Mafra é um dos raros casos em que Machado e Cerveira instalou um dispositivo independente para anular as palhetas de ressoador curto. Este sistema é único porque um único pedal permite activar duas corrediças diferentes - uma para as palhetas de ressonador longo (Trompa de batalha da mão esquerda e Clarim da mão direita) e outro para as palhetas de ressonador curto (Fagote da mão esquerda e Oboé de 16' da mão direita). Este registo de palheta de ressonador curto de 16' é frequentemente chamado Rabecão por Marques e Silva, sendo um dos seus registos solísticos favoritos. Curiosamente, o único instrumento em Lisboa com possibilidade de anular independentemente as palhetas mais suaves (também neste caso 8' à esquerda e 16' à direita) é o órgão da Capela da Bemposta, onde Frei José Marques e Silva era organista (Figura 6)13.
Após o Te Deum de 1812, Frei José Marques e Silva continuou a escrever para Mafra, e a estrutura das suas composições foi também reflectindo a progressão do trabalho de Cerveira nos órgãos da Basílica. O seu motete Veni Assur, escrito em 1814, usa três órgãos e seu Laudamus Te (sem data14) exige quatro. Finalmente, uma Missa escrita em 1825 para a festa de São Francisco faz uso de cinco órgãos. O modo como a escrita musical de Frei Marques e Silva recorre às idiossincrasias dos instrumentos de Cerveira torna altamente provável que o organista da Capela da Rainha e o construtor de órgãos do Reino se encontrassem. A análise de várias das suas obras sugere uma influência mútua: não apenas a música de Marques e Silva é claramente pensada em função dos órgãos de Cerveira, como também algumas características específicas dos instrumentos podem ter sido criadas por sugestão do compositor. As transformações na música de órgão portuguesa durante a fase final do Antigo Regime e o desenvolvimento de um tipo de instrumento gradualmente destacado da tradição hispânica parecem não ser apenas uma questão de causa e efeito (numa ou noutra direcção), mas o resultado de um esforço comum rumo a um universo mais orquestral e operático no campo da música sacra e da música de órgão.