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Comunicação e Sociedade

versão impressa ISSN 1645-2089versão On-line ISSN 2183-3575

Comunicação e Sociedade vol.41  Braga jun. 2022  Epub 20-Jun-2022

https://doi.org/10.17231/comsoc.41(2022).3697 

Artigos Temáticos

O Ciberespaço Como Denúncia: Assédio e Discriminação Vinculados à Colonialidade no Projeto Brasileiras Não Se Calam

Camila Lamartinei  , conceptualization, investigation, methodology, data curation, formal analysis, writing - original draft
http://orcid.org/0000-0002-0011-7773

Marisa Torres da Silvaii  , writing - review & editing
http://orcid.org/0000-0003-1136-4232

iInstituto de Comunicação da NOVA, Faculdade de Ciências Sociais e Humanas, Universidade Nova de Lisboa, Lisboa, Portugal

iiInstituto de Comunicação da NOVA, Faculdade de Ciências Sociais e Humanas, Universidade Nova de Lisboa, Lisboa, Portugal


Resumo:

O estereótipo da mulher latina é comummente associado à sexualidade. Dentre elas, as mulheres brasileiras parecem carregar ainda mais este estigma mundo fora. Enquanto imigrantes, interseccionadas por outras matrizes de opressão além de género e raça, por exemplo, estas mulheres veem-se sujeitas a diversas marcas ainda remanescentes da colonialidade eurocêntrica que as inferioriza e silencia (Mignolo, 2000/2003), o que é agravado quando o país de emigração é o seu colonizador. Este artigo explora a utilização do ciberespaço como campo de denúncia e ativismo feminista através do estudo de caso do perfil @brasileirasnaosecalam, a partir da análise de conteúdo. O projeto surge na rede social digital Instagram com o intuito de denunciar, de maneira anónima, assédios, discriminações e preconceitos que mulheres imigrantes brasileiras sofrem em Portugal, especificamente por carregarem consigo a sua própria nacionalidade. Assim, através do ciberativismo, também feminista, as mulheres dispõem de um novo ciclo político de oportunidades impulsionadas pela construção e consolidação de laços entre elas ao redor do globo, rompendo binarismos, também entre primeiro e terceiro mundo, num apelo à articulação entre fronteiras (Timeto, 2019). Constata-se a relevância de empreender uma visão ontológica que se apoie numa perspetiva feminista decolonial e interseccional que utiliza o ciberfeminismo como aliado de interconexão entre o espaço digital e o real.

Palavras-chave: ciberativismo; imigração; xenofobia; Brasileiras Não Se Calam; ciberfeminismo

Abstract:

The stereotype of the Latin woman is commonly associated with sexuality. Brazilians seem to be particularly burdened by this stigma among Latin women worldwide. As immigrants, intersected by other matrices of oppression in addition to those of gender and race, for example, these women bear various marks remaining from Eurocentric coloniality that belittles and silences them (Mignolo, 2000/2003), a circumstance that is aggravated when the country of emigration is their coloniser. This article explores resorting to cyberspace as a forum for denunciation and feminist activism through a case study of the profile @brasileirasnaosecalam based on content analysis. The project appeared on the digital social network Instagram to anonymously report the harassment, discrimination and prejudice that Brazilian immigrant women suffer in Portugal, specifically for carrying their own nationality. Thus, through cyberactivism, which is also feminist activism, women are now experiencing a new cycle of political opportunities driven by the building and consolidation of ties among them around the globe, breaking down binarisms, including those between the first and the third world, in an appeal to cross-border articulation (Timeto, 2019). That shows the relevance of pursuing an ontological vision underpinned by a decolonial and intersectional feminist perspective that uses cyberfeminism as an ally to interconnect the digital and the real space.

Keywords: cyberactivism, immigration, xenophobia; Brasileiras Não Se Calam, cyberfeminism

1. Introdução

A conceção de “mulher brasileira” traz consigo uma série de estereótipos e estigmas pré-concebidos que atuam como barreiras de integração, especialmente em Portugal - o país colonizador. O imaginário cultural e as representações sociais em Portugal sobre o Brasil e os brasileiros têm, historicamente, raízes profundas no processo de colonização (encontrando a sua expressão mais forte em estereótipos que combinam desejo, medo e fobia), tendo ganho maior projeção e visibilidade com a intensificação da imigração brasileira em terras portuguesas, sobretudo a partir da década de 2000 (Gomes, 2018; Mingas, 2020).

Na mesma medida, o exotismo e a sensualidade vista como inata integram as representações sociais acerca da mulher brasileira desde o início do empreendimento colonial, tendo sido atualizadas, de acordo com Ester Mingas (2020), por diversos processos e dinâmicas sociais, entre os quais a receção da teoria lusotropicalista em Portugal e, também, a popularidade das telenovelas brasileiras no país (a partir dos anos 70), o que contribuiu para a circulação e reprodução de todo um conjunto de estereótipos já bem sedimentados aquando da chegada das primeiras vagas de imigração brasileira.

De acordo com o Relatório de Imigração, Fronteiras e Asilo (Machado et al., 2020) realizado no ano de 2019 pelo Serviço de Estrangeiros e Fronteiras, os brasileiros representam a principal comunidade estrangeira que reside em Portugal, vindo a corresponder a 25,6% do valor total, que já é o mais elevado desde o ano de 2012. Dentre eles, as mulheres figuram como a maior parcela da população, o que caracteriza o processo internacional de feminização da migração, onde as mulheres são agentes do fluxo migratório (Jerónimo, 2019).

Atravessadas por diversas camadas de opressões que se agravam por se tratar de corpos colonizados no país colonizador, essas mulheres enfrentam inúmeras facetas de preconceito com teor xenofóbico, colonial, étnico e, acima de tudo, sexualizado (Piscitelli, 2008), que as transformam e divulgam como corpos disponíveis.

A eclosão do ciberespaço permitiu que diversas minorias, como estas mulheres, criassem comunidades em rede a partir da identificação de um ponto em comum, fazendo com que se criassem novas opiniões e discursos além dos anteriormente instituídos (Martino, 2014). É o caso do projeto Brasileiras Não Se Calam que surgiu como um perfil no Instagram com o fim de denunciar preconceitos que mulheres imigrantes brasileiras sofriam em Portugal.

Assim, à luz do estudo de caso do projeto Brasileiras Não Se Calam, objetivamos explorar a utilização do espaço digital como campo de denúncia, disseminação e propagação do ativismo feminista que consegue expandir a consciencialização social e mobilizar a opinião pública (Lamartine, 2021). O projeto vai além de um perfil de denúncias numa rede social digital, ganhando força fora do ciberespaço a partir de uma rede de apoio entre mulheres imigrantes, caracterizando, portanto, a autoridade do ciberfeminismo, sendo capaz de interferir efetivamente entre as relações de poder e cultura, manifestações públicas e políticas (Castells, 2012/2013).

Através de análise de conteúdo (Bardin, 1997/2004), analisamos o período de 3 meses após o 1.º ano do projeto, visto que, depois desse período, as organizadoras lançaram um relatório anual e ganharam maior visibilidade nos média. Portanto, foram analisadas as postagens de 14 de julho a 14 de outubro do ano de 2021, onde os dados foram agregados em três grandes temáticas, sendo estas o “estereótipo”, o “desqualificante” e a “xenofobia”, tendo essa última componente um braço que intitulamos de “racismo”.

Este trabalho discute a necessidade de empregarmos uma abordagem ontológica que reconheça a lógica racializante, introduzida durante os processos de colonização, que estabeleceu não apenas uma relação de inferioridade entre os colonizados/colonizadores, mas também moldes e formas de relações políticas e sociais presentes até os dias de hoje (Mendoza, 2016).

2. A Mulher Brasileira em Portugal: Estereótipos e Sexismo

A busca por melhores condições de vida é, na grande maioria das vezes, o grande fomentador da imigração (Jerónimo, 2019), na conceção de que, na nova terra de acolhida, os inconvenientes do país de origem seriam inexistentes. Entretanto, Dias e Ramos (2019) referem que existe também um lado negativo devido às diversas vulnerabilidades a que os imigrantes estão sujeitos, simplesmente por serem estrangeiros. Essas vulnerabilidades tendem a agravar-se pelos diferentes tipos de preconceitos que acabam por constranger, discriminar e violentar esses indivíduos, especialmente quando falamos acerca do género.

Quando se trata especificamente da comunidade imigrante brasileira em Portugal, percebe-se um somatório de diversos estereótipos que causam interferência nas suas particularidades de integração de forma direta e que acabam por reduzir a probabilidade de maiores oportunidades, seja no campo pessoal ou profissional (Dias & Ramos, 2019).

Esses estereótipos tendem a naturalizar as diferenças implícitas a partir da criação de um consenso social sobre as variadas categorias divergentes como, por exemplo, as de etnia, raça, género e orientação sexual. Dessa forma, através de um reforço de juízos subjetivos, as desigualdades históricas que se vinculam a essas categorias são, rotineiramente, validadas e colocadas em constante reprodução.

Para Passador (2015), os estereótipos atuam como uma ferramenta de segregação dos indivíduos, alocando-os a determinadas áreas de distinção com caráter inferiorizador, que “nos permitem identificar e tipificar rapidamente categorias de pessoas e grupos, e estabelecer suas posições no jogo hierárquico das desigualdades” (p. 25).

Os brasileiros costumam ter analogia às representações que os vinculam a pessoas sempre alegres, festivas, simpáticas, cuja principal característica ou função é entreter o outro. Essa performance é bastante concebida e disseminada em Portugal, sendo acrescida dos papéis de submissão, preguiça e, especificamente, em relação as mulheres, de disponibilidade sexual (Padilla & Gomes, 2016; Queiroz et al., 2020).

Dentro dos estudos da imigração, é possível perceber que, no que compreende as mulheres brasileiras, existe uma consolidação de um teor sexualizado atribuído à sua figura. Trata-se de uma imagem sensual e erotizada que se associa propriamente ao mercado da prostituição (Oliveira & Neto, 2016).

Durante as décadas de 1960 a 1980, o próprio governo brasileiro procurou promover campanhas de atração turística, sobretudo na Europa, que conotava ao país um destino de turismo sexual, atribuindo às brasileiras um lugar de objetificação e disponibilidade aos estrangeiros turistas (Gomes, 2018).

Esta associação ganhou maior notoriedade devido a uma publicação da revista Times que se intitulava “Europe’s New Red Light District” (O Novo Distrito da Luz Vermelha da Europa; Ripley, 2003) - uma alusão à famosa rua de prostituição em Amsterdão. A matéria de capa apresentava a ira das mulheres portuguesas da cidade de Bragança em relação às profissionais do sexo brasileiras, no movimento que ficou internacionalmente conhecido por “mães de Bragança”.

As portuguesas culpavam as brasileiras de “desviarem” seus maridos com a prática da prostituição. Como elucida Gomes (2018), este episódio atribuiu às mulheres brasileiras a postura de pecadoras, libertinas e destruidoras de lares, na medida em que as lusitanas foram cobertas pelo divino manto da castidade, sendo, portanto, exemplares mães e fiéis esposas.

Esse movimento emergiu em maio de 2003, com o objetivo de expulsar as profissionais do sexo brasileiras da cidade de Bragança, na intenção de oposição ao entendimento de destruição da moral e dos bons costumes (Gomes, 2018). Houve a formulação de um manifesto assinado por elas que foi entregue prontamente às autoridades locais.

Para muitos autores, o “mães de Bragança” foi uma espécie de gatilho para toda discussão acerca do papel dos média no que tange os seus discursos referentes às brasileiras, isto porque, como explicita João Carlos Correia (2014), a manifestação veio a tornar-se um emblema das representações compostas de estereótipos e xenofobias no tocante ao género nos média.

A disseminação da imagem da imigrante brasileira pelos média associa-se, originalmente, à premissa de ser imigrante pertencente a outro grupo étnico nacional que é periférico, racializado e economicamente inferior. Depois, ao facto de ser caracterizada pela cultura do carnaval, do culto à beleza corporal e sexualização, fruto de sobreposições de marcadores sociais excludentes de uma identidade nacional (Pontes, 2004).

A propagação da hipersexualidade como característica da mulher brasileira encontra eco, como já referido, na imagem vendida para o exterior, fazendo da figura da mulata a representação principal do Brasil. É, portanto, um corpo colonial que, por sua vez, enquanto corpo dominado, é discursivamente construído como disponível (Gomes, 2019), vindo a sintetizar o imaginário acerca das habitantes dos trópicos, cuja sensualidade é o principal atributo (Queiroz et al., 2020).

Nesta perspetiva, é importante ressaltar que o índice de preconceitos em relação às mulheres brasileiras atinge pontos discrepantes numa comparação entre Portugal e demais países de imigração, como também iremos verificar mais adiante nos relatos do Brasileiras Não Se Calam. Os brasileiros são, aliás, a maior comunidade estrangeira residente em Portugal, sendo que um em cinco imigrantes a viver em Portugal são originários do Brasil (Silva, 2019). Isso contribui para uma muito maior visibilidade das mulheres brasileiras na sociedade portuguesa em comparação com outras comunidades de imigrantes, o que reforça e perpetua uma mentalidade colonizadora em conformação com os discursos predominantes e as relações estabelecidas entre o colono e o colonizado (Queiroz et al., 2020).

A feminização da imigração adquiriu maior notoriedade devido aos estudos feministas na academia. Durante o primeiro decênio do século XXI, ao longo da segunda vaga migratória, Portugal registou um enfático crescimento de imigrantes brasileiras, o que teve uma relevante elevação a partir do ano de 2012 (Gomes, 2018; Oliveira & Neto, 2016). O Relatório de Imigração, Fronteiras e Asilo (Machado et al., 2020) traduziu numericamente essa relevância feminina em relação à migração no ano de 2019. As mulheres brasileiras registaram um total de 25.221 para 23.575 de homens brasileiros.

A ideia de que a mulher brasileira é alegre, sensual e sexualmente disponível (Padilla & Gomes, 2016) vai muito além do que considerar a brasileira uma trabalhadora do sexo. Significa, em verdade, julgar toda brasileira como sendo um “corpo colonial”, conceito problematizado por Fanon (1952/1986) em relação ao corpo negro, alvo de opressão e construído discursivamente como hipersexualizado, racialmente fetichizado, a quem são atribuídas características animalescas e primitivas.

Para Gomes (2018) prevalece, no entanto, um discurso lusotropical que atua na omissão de diversas violências passadas, que prega a miscigenação e o não racismo, o que dificulta a identificação e as formulações de medidas de confrontação, que devem, com urgência, ser tomadas para que não acabem como véus a encobrir preconceitos, vindo a apresentar, utopicamente, uma igualdade de género e de oportunidades (Carvalho & Fernandes, 2016).

É necessário ainda referir que, dentro dos estudos migratórios entre Brasil e Portugal, se concebe a caracterização de uma terceira fase de fluxos migratórios, o que interfere no perfil do imigrante brasileiro. Vivenciando uma terceira vaga de migração, onde prevalece uma maior intervenção nos âmbitos dos investimentos, reformados e intensificação de estudantes do ensino superior (França & Padilha, 2018), estes que, na sua maioria, são do sexo feminino (Machado et al., 2020).

3. Ativismo Feminista em Rede

Desde que a tecnologia passou a fazer parte do quotidiano dos indivíduos, o papel social sofreu profundas mudanças no que se refere às suas diversas formas de relacionamento. A internet passa a ocupar um espaço crucial de interação e organização social, vindo a influir diretamente na maneira de comunicar-se, tornando as pessoas os próprios sujeitos das suas vidas (Castells, 2012/2013).

Essa interferência na forma de comunicação deu-se devido à formação do ciberespaço, que suportou uma comunicação democrática e mais horizontalizada, fomentando ações coletivas (Lamartine, 2021). Assim, o ciberespaço consegue determinar uma nova relação entre o espaço e o tempo, reformulando a própria interação, constituindo a informação e o conhecimento enquanto originários de poder, uma vez que o sujeito perpassa na internet a sua conotação dialógica na medida em que permanece a procura por inserir-se numa comunidade digital.

O ativismo digital enquanto fenómeno engloba diversas práticas que ultrapassam as fronteiras geográficas e espaciais da rede, e criam, portanto, espaços virtuais com configurações próprias definidas pelas adesões dos participantes a um ponto em comum, seja político, ideológico ou cultural (Martino, 2014), culminando em movimentos sociais que instigam debates e ações que não se restringem ao mundo digital.

Numa esfera pública reconfigurada, os movimentos sociais tornam-se autorreflexivos, num questionamento enquanto grupo e enquanto indivíduos, a fim de andarem em uníssono em direção ao mesmo objetivo social (Castells, 2012/2013). Quando se trata especificamente dos feminismos, este campo conseguiu ampliar a discussão entre as mulheres e as desigualdades a que estavam condicionadas socialmente e dentro da cultura eletrónica, cujo ativismo passou a ser denominado de ciberfeminismo (Lamartine, 2021; Martinez, 2019).

Apesar de possuir origens diversas, algumas características fragmentadas e, logicamente, a apropriação de redes eletrónicas, o ciberfeminismo possibilita uma organização reticular, pois a nomeação dos diversos feminismos num único adjetivo ou ainda a insistência na utilização desse nome é bastante controversa (Lemos, 2009). Ainda assim, a atribuição é feita à filósofa Sadie Plant e ao coletivo feminista de Austrália, VNS Matrix (Lamartine, 2021; Timeto, 2019).

Este grupo publicou um manifesto em homenagem a Donna Haraway, que propôs uma nova releitura aos movimentos feministas, ainda que não tenha utilizado diretamente o termo “ciberfeminismo”. Haraway (1991) teve suas ideias eleitas por diferentes grupos como base teórica ao sugerir uma análise do feminismo sob a ótica das novas tecnologias, incluindo os meios de comunicação, propondo a organização em rede e a apropriação dessas tecnologias como forma de ativismo político (Lemos, 2009).

Haraway (1991) explica que o foco originário do campo tecnológico do ativismo teve como base a convocação da participação feminina nestes espaços a fim de adversar a imagem masculinizada e estereotipada pertencente ao meio específico, além de reconhecer que, devido ao caráter tão multiforme do próprio movimento em si, agrega uma diversidade e pluralidade de sujeitos que estão disponíveis a reconstruir a realidade a partir de formas diferentes de discursos.

Como explicitam Ferreira e Lima (2020), na medida em que as tecnologias da informação e comunicação desafiaram as formas de se relacionar, foi o ciberfeminismo a resposta para esta questão específica no movimento feminista. Percebe-se então, uma desvinculação do debate feminino em relação às organizações e instituições, dando origem ao que para muitos autores significa a quarta vaga do movimento feminista, cuja principal característica é o emergir do ciberespaço, ou seja, das redes e plataformas digitais (Cochrane, 2013; Tomazetti, 2015).

A denominação da quarta vaga do movimento feminista surge em meados de 2013 nos Estados Unidos, não sendo, portanto, uma terminologia que foi cunhada pela academia, e sim disseminada por jornalistas e ativistas, vindo a assinalar que as mobilizações conseguem adentrar nas várias dimensões do feminismo como um todo (Chamberlain, 2017).

A jornalista Kira Cochrane (2013) define quatro características dessa nova fase do feminismo como pertencentes a grandes áreas. A primeira diz respeito ao feminismo online; a segunda trata a questão da cultura da violação; depois, aborda o humor como forma de aprofundar as ideias feministas; e, por último, apresenta a inclusão e a interseccionalidade, tecendo ferrenha crítica à velha “mulher universal”, “tendo como desafio contemporâneo romper as fronteiras de ordem simbólica e material que tangenciam diferentes camadas sociais em nível de classe, etnia e sexualidade” (Tomazetti, 2015, p. 497).

Partindo da asserção de que os movimentos sociais se vinculam a confluências emocionais, no feminismo percebe-se a reunião de vários sujeitos através do compartilhamento de momentos específicos na história, a demonstrar o que Chamberlain (2017) conceitua como “temporalidade afetiva”, sendo esta enquadrada como uma das características constitutivas do feminismo da quarta vaga, que se volta para a solidariedade informativa, onde o ativismo responsivo é motivado pelo afeto, que serve como catalisador da ação.

Foram inúmeras as manifestações digitais - produzidas e motivadas por páginas feministas - que tiveram enorme disseminação e significação em relação ao debate das mulheres com questões como violação, assédio, misoginia e machismo. Através das redes sociais digitais e das suas hashtags diversas mobilizações tomaram o globo em denúncia coletiva, como por exemplo o “#niunaamenos” na Argentina, o “#meuamigosecreto” no Brasil, o “#metoo” nos Estados Unidos, dentre várias outras que acabaram, inclusive, por se tornarem transnacionais como é o caso da “slutwalk” (marcha das vadias) e da greve feminista internacional 8M.

Estas movimentações foram concebidas pelos média como a “primavera das mulheres”, numa união entre a convocatória na rede e a tomada das ruas por milhares de mulheres, constituindo-se num movimento cultural, cujas ações seguem os valores e interesses de seus integrantes, independente da instituição a que pertença (Castells, 2012/2013).

A consolidação do movimento feminista no ciberespaço garante um novo ciclo de abertura política impulsionada pela construção de laços entre mulheres pelo mundo (Lamartine, 2021), onde o ativismo online permite que a quarta vaga do movimento feminista seja mais plural e abrangente na criação de pilares que interconectem, de forma permanente, as mobilizações entre a rua e a rede pelo mundo.

4. O Corpo Colonizado no País Colonizador: Interseccionalidade e Decolonialidade

Ao tratarmos de mulheres imigrantes brasileiras em Portugal, temos de ter atenção que estamos a tratar de um corpo colonizado a viver no país de colonização. Isso acarreta não só marcas diversas da própria colonialidade em si, mas outras matrizes de opressão que se atravessam e se somam. A este encruzamento de diferenças atribuímos o nome de “interseccionalidade”, um conceito que deve ser considerado numa perspetiva feminista, no caso, interseccional.

A origem do termo “interseccionalidade” é atribuída à investigadora estadunidense Kimberlé Crenshaw em 1989, na tentativa de perceber a colisão das estruturas e a interação simultânea das variadas definições identitárias, fundamentada no feminismo negro e também voltada para a aplicabilidade nos estudos de direito, expondo a forma pela qual um eixo único de pensamento é capaz de minar o entendimento jurídico, produções de conhecimentos e luta por justiça social (Cho et al., 2013; Collins, 2017; Martinez, 2019).

Dessa forma, a conceção de interseccionalidade ganha espaço a partir do reconhecimento dos diferentes aspetos que cruzam a identidade, como raça, classe, etnicidade, sexualidade, e, claro, género. Essas particularidades são identificadas como camadas de opressão, na medida em que, através da interseccionalidade, se busca uma conciliação entre as demandas de género com as de outras minorias submetidas a interação e interferência quotidiana de diferentes estruturas (Martinez, 2019).

A interseccionalidade vem referir-se, portanto, a forma política de ativismo que deve se colocar em oposição aos berços produtores da diferença numa busca constante pela conciliação dessas diligências, inábil em termos sociais, materiais e intelectuais fomentados pelo neoliberalismo (Collins, 2017; Martinez, 2019). “A interseccionalidade revela o que não conseguimos ver quando categorias como género e raça são concebidas separadas uma da outra” (Lugones, 2008, p. 79).

Ao pensarmos o corpo como uma categoria, afunilando ainda mais para um corpo que é colonizado, evidenciamos a importância de reconfigurar as ideologias postas ontologicamente no decorrer da história e da sociedade. Não se trata, contudo, como tão bem coloca Mignolo (2000/2003) de apagar ou eliminar aquilo que existe de eurocêntrico nas diversas partes do mundo, e sim, de reconstruir as epistemologias originárias que foram esmagadas e apagadas pelo processo colonial.

Para isso, é indispensável que a visão feminista passe para além da interseccionalidade e ganhe asas no feminismo decolonial, cuja predominância e influência se centra na América Latina e nas Caraíbas. Essa teoria consegue penetrar e dialogar com feministas pós-estruturalistas, indígenas, afrolatinas, afroamericanas, mestiças e interseccionais (Mendoza, 2016).

A perspetiva decolonial contesta a padronização do poder epistémico, presente sobretudo subjetivamente, emergente de uma sociedade falocêntrica, eurocêntrica, patriarcal e capitalista, que se fundamenta em medidas de racialização e categorização de forma universalizada, que, de acordo com Mendoza (2016), reforça o poderio dos estudos decoloniais ao unir diferenciações determinantes acerca da colonialidade, modernidade e capitalismo.

Foi a argentina María Lugones (2008) quem propôs o termo após anos de estudo da própria interseccionalidade que, para ela, vem a demonstrar a exclusão de mulheres não brancas da história. Outro marco que a autora considera é a conceção de “colonialidade do poder” de Aníbal Quijano (como citado em Lugones, 2008), que vem a constatar o que parece ser simples, que as relações de colonialidade não tiveram fim com a liquidação do colonialismo, especialmente no âmbito econômico e político (Ballestrin, 2013). Como explicita Lugones (2008): “fazer um cruzamento entre dessas duas linhas de análise me permite chegar ao que estou chamando, provisoriamente, de ‘sistema moderno-colonial de gênero’” (p. 74).

A estrutura da matriz colonial do poder é complexa e nivelada, onde o conceito de colonialidade se desdobra em vários outros domínios (Mignolo, 2000/2003). Para Ballestrin (2013), essa matriz exerce um controle da economia, da autoridade, da natureza e dos recursos naturais, do género e da sexualidade e, ainda, da subjetividade e do conhecimento. Portanto, como refere a autora, a colonialidade do poder manifesta-se em três dimensões diferentes, abrangendo a colonialidade do ser, do saber e, claro, a do poder.

Assim como Lugones, entendemos que o feminismo decolonial percorre, revisa e dialoga com o pensamento e as produções que vêm sendo desenvolvidas por pensadoras, intelectuais, ativistas e lutadoras, feministas ou não, de ascendência africana, indígena, mestiça popular, campesina, imigrantes racializadas, bem como as acadêmicas brancas comprometidas com subalternidade na América Latina e no mundo. (Miñoso, 2020, p. 8)

Dessa forma o sistema de género modernidade/colonialidade só existe devido à colonialidade do poder, uma vez que a classificação em termos de raça, por exemplo, é uma conjuntura necessária (Lugones, 2008). Para Ballestrin (2013), a ideia deve ser compreender como o mundo colonizado se constrói a partir das impressões discursivas do que coloniza, e, do mesmo modo, como o indivíduo colonizado se constrói a si próprio através da alocução do seu colonizador.

5. Brasileiras Não Se Calam: A Denúncia Online do Quotidiano

A hipersexualização atribuída aos corpos das brasileiras é disseminada em toda a sociedade portuguesa, seja através da indústria musical, da publicidade e, claro, dos próprios média. Em meados de 2020, durante o programa Big Brother Portugal, exibido pela emissora TVI, uma participante declarou, após diversos outros comentários racistas e machistas, que toda “brasileira já tem perna aberta” causando um grande debate nas redes sociais digitais. Foi esse o mote que levou cinco amigas imigrantes brasileiras a criarem um projeto com o intuito de denunciar esse tipo de discriminação.

Em entrevista ao Jornal de Notícias (Costa, 2020), as coordenadoras do projeto, que preferem não se identificar devido às inúmeras ameaças já recebidas, declararam que devido a este episódio perceberam que o preconceito contra as brasileiras estava naturalmente instalado em Portugal a ponto de ser consubstanciado num programa televisivo.

No final do mês de julho de 2020, Brasileiras Não Se Calam ganhou um perfil na rede social digital Instagram e, em menos de 1 mês, alcançou 15.000 seguidores. Em novembro de 2021, o perfil conta com mais de 45.000 seguidores e mantém um bom percentual de engajamento de 5,30%, de acordo com a plataforma de métricas sociais digitais Phlanx (https://phlanx.com).

O perfil publica denuncias enviadas por mulheres brasileiras imigrantes através da função direct (caixa de mensagens) do Instagram. As publicações são feitas em forma de texto, em português e em inglês, todas de forma anónima para manter o sigilo das vítimas e evitar possíveis retaliações (Figura 1 e Figura 2).

Fonte: Retirado de Bandeira do Brasil. Até quando? [Fotografia], por Brasileiras não se calam! [@brasileirasnaosecalam], 2021h, Instagram. (https://www.instagram.com/p/CWI7UmVDVPf/)

Figura 1: Post de Instagram @brasileirasnaosecalam 

Fonte: Retirado de Bandeira do Brasil. 9 anos. Muita força pra nós. [Fotografia], por Brasileiras não se calam! [@brasileirasnaosecalam], 2021d, Instagram. (https://www.instagram.com/p/CSCGJsFDMgx/)

Figura 2: Post de Instagram @brasileirasnaosecalam 

No relatório anual divulgado pelo projeto, que marca o período de julho de 2020 a julho de 2021, foram contabilizados 802 relatos/denúncias em 39 países. Portugal liderada o ranking das denúncias com 541 relatos, seguido de Estados Unidos com 38 denúncias, Inglaterra com 31, Alemanha e Espanha com 29 cada, e Itália com 26.

Dos relatos de Portugal, 354 não especificaram a cidade. A capital, Lisboa, apareceu com 81 denúncias, seguido do Porto com 37, e Coimbra com 13 delações. As responsáveis pelo projeto também relataram na matéria do Jornal de Notícias (Costa, 2020) supracitada que a maioria dos relatos mais violentos e ofensivos, como se vê na Figura 3, são sempre originários de terras lusitanas.

Fonte: Retirado de Bandeira do Brasil. Nojo [Fotografia], por Brasileiras não se calam! [@brasileirasnaosecalam], 2021e, Instagram. (https://www.instagram.com/p/CSz9YNlDPNf/)

Figura 3: Post de Instagram @brasileirasnaosecalam 

O projeto conseguiu apoiar 267 mulheres com a criação de seis frentes de trabalho. O primeiro, “brasileiras são voluntárias”, uniu 43 mulheres que encabeçaram todas as outras áreas de ajuda. O “brasileiras procuram” disponibiliza o currículo de mulheres à procura de emprego, tendo 110 destas registadas no site do projeto. As “brasileiras falam” refere-se ao grupo de apoio de trocas, partilhas e vivências que teve 20 mulheres participantes semanalmente. O “brasileiras apoiam” é destinado ao apoio psicológico por uma profissional, que contemplou 15 mulheres. Já o “brasileiras se apoiam” diz respeito ao apoio social, que alcançou 10 mulheres. E, por fim, “brasileiras denunciam” disponibiliza apoio jurídico às vítimas, tendo atendido 31 mulheres.

Para além dessas atuações, o projeto oferece ainda aconselhamento académico, financeiro, aulas de inglês e francês, atividades de yoga e workshops, tudo isso através de profissionais voluntárias e de forma gratuita às imigrantes.

6. Estudo de Caso e Análise: E 3 Meses Depois?

Conforme exposto anteriormente, os dados divulgados pelo projeto no seu relatório anual constataram um maior índice de denúncias em Portugal - representando mais da metade de todos os relatos dos 39 países (541 denúncias especificamente). Dessa forma, no intuito de percebermos se esses números permaneciam os mesmos após a divulgação do relatório e constatar a premissa de ser um corpo colonizado no país colonizador, optamos por fazer um recorte de 3 meses a contar da data de lançamento do diagnóstico.

Assim, o período de análise foi de 14 de julho de 2021 a 14 de outubro do mesmo ano. Foram coletadas 186 postagens, onde 14 delas foram descartadas desta análise por não serem propriamente uma postagem de denúncia1. Das 172 publicações analisadas, 132 dizem respeito a Portugal, caracterizando, portanto, o corpus deste estudo.

Como refere Bardin (1997/2004), na análise de conteúdo existe a permissão que o objeto fale por si e as categorizações surjam em paralelo à própria análise. À vista disso, utilizámos a técnica de análise temática, onde dividimos os dados em elementos para agrupá-los em categorias a partir de uma correspondência. As categorias foram assim divididas em três áreas temáticas: “xenofobia”, “estereótipo” e “desqualificante”.

A primeira área referida também foi a que apresentou maior número de postagens. Foram 59 relatos acerca da “xenofobia”. Esse preconceito está condicionado diretamente pela questão da nacionalidade do indivíduo, no caso, a nacionalidade brasileira. Para Passador (2015), as formulações preconceituosas passam muitas vezes despercebidas, uma vez que acaba por se naturalizar e difundir, atravessando gerações e faixas etárias.

As denúncias contidas nessas postagens traziam um alto teor de discriminação e repúdio dos portugueses. Frases como “volta para tua terra” ou “aqui não é o teu lugar/país” foram amplamente abordadas, sendo agravadas em relação ao preconceito linguístico da forma de falar “brasileiro”.

Percebe-se ainda que ao tratarmos em específico do colonialismo de Portugal, há, como mencionado anteriormente, a presença de uma conceção lusotropical que atua na ocultação ou omissão de variadas formas de preconceito e violência sob a suposta ideia de uma miscigenação portuguesa que torna a sociedade diversificada (Gomes, 2018). Dessa forma, a xenofobia aparece no quotidiano de forma velada em pequenos casos como o exposto na Figura 4.

Fonte: Retirado de Bandeira do Brasil. Nojo [Fotografia], por Brasileiras não se calam! [@brasileirasnaosecalam], 2021a, Instagram. (https://www.instagram.com/p/CRq9TauJh9V/)

Figura 4: Post de Instagram @brasileirasnaosecalam 

Dentro dessa categoria, e pegando ensejo da premissa lusotropical, decidimos postular um braço dessa área, pois como nos lembra Lugones (2008), “a raça não é nem mais mítica nem mais fictícia que o género - ambos são ficções poderosas” (p. 93). O racismo apareceu descrito em seis dessas postagens, a corroborar também o que dizem Padilla e Gomes (2016), ao constatarem que o princípio do não racismo português alcança toda a sociedade de forma transversal.

Fruto desta conceção são os últimos dados lançados pela European Social Survey (s.d.) de 2018/2019 vindo a configurar Portugal como um dos países mais racistas da Europa. O estudo investigava a presença do racismo biológico e cultural no país, onde se constatou que as inclinações racistas eram mais fortes nos entrevistados de maior idade e menor escolaridade. Dentre os inquiridos, 62% manifestavam práticas racistas, enquanto, apenas, 11% discordavam por completo do racismo. Ou seja, como apresenta a investigação, um em cada três portugueses manifestam crenças racistas, como se vê na Figura 5.

Fonte: Retirado de Bandeira do Brasil. Muita força pra gente! [Fotografia], por Brasileiras não se calam! [@brasileirasnaosecalam], 2021g, Instagram. (https://www.instagram.com/p/CVnXhXmpGFm/)

Figura 5: Post de Instagram @brasileirasnaosecalam 

A segunda categoria que apresentou 58 relatos foi a de “estereótipo”. Decidimos reunir aqui todas as denúncias que vinculassem as brasileiras a adjetivos pejorativos como “puta”, “prostituta” ou “interesseira”. Além disso, também se encontram nessa categoria denúncias de assédio sexual e moral e, ainda, violência ginecológica.

Os estereótipos atribuídos às mulheres brasileiras tendem a inferiorizar, silenciar, secundarizar e racializar as mulheres, ainda que estas não sejam negras, uma vez que, especificamente nesta situação, a questão étnica não se vincula somente à raça, pois, como elucida Pontes (2004), existe uma ideologia de mestiçagem presente na imagem da mulher que é sensualizada e erotizada, independente de sua cor. O facto de ser brasileira já as filia nesse processo.

Desde o episódio das “mães de Bragança”, as mulheres brasileiras ganharam um estigma de “rouba homens” que quotidianamente as atravessa. Isto é mais que evidenciado em todos os relatos analisados, estendendo-se aos comentários de várias mulheres que também passaram por situações parecidas e carregaram consigo essa ideia erroneamente concebida, como vemos na Figura 6.

Fonte: Retirado de Bandeira do Brasil. Agora, além dos maridos, também roubamos os filhos [Fotografia], por Brasileiras não se calam! [@brasileirasnaosecalam], 2021b, Instagram. (https://www.instagram.com/p/CR4p6PypfdI/)

Figura 6: Post de Instagram @brasileirasnaosecalam 

O retrato da mulher brasileira como alegre, sensual e erotizada foi percebido em todos os relatos e comentários das postagens (e.g., “só podia ser puta”, “vieram para cá roubar maridos”, “só servem para rebolar e entreter” e “interesseiras! Estão sempre atrás de dinheiro fácil”). A Figura 7 traz um desabafo que contempla, quase que em totalidade, o que foi percebido nessa categoria.

Fonte: Retirado de Bandeira do Brasil. Quem mais se sente assim? Comentem aí [Fotografia], por Brasileiras não se calam! [@brasileirasnaosecalam], 2021c, Instagram. (https://www.instagram.com/p/CR_iQUJDWM3/)

Figura 7: Post de Instagram @brasileirasnaosecalam 

A última categoria, que apresentou menor números de relatos, foi intitulada “desqualificante”. Com 15 denúncias, esta categoria engloba os relatos de minoração intelectual e contestação curricular/profissional.

É possível fazer aqui uma analogia também a alguns comentários alocados na categoria “xenofobia” em relação ao português “brasileiro” que é falado. Muitos relatos e comentários trouxeram a ideia de que se não houvesse uma mudança, sobretudo, no sotaque, a integração pessoal e profissional tornava-se quase impossível.

A minoração intelectual dificulta o acesso a empregos que não sejam relacionados com a área dos cuidados e limpeza, o que também é comum noutros países da Europa, pois essas áreas são consideradas mais feminizadas (Jerónimo, 2019). Na denúncia que se segue na Figura 8, a maioria dos comentários foram de apoio e partilha do mesmo sentimento que o desta seguidora que diz

também me vejo neste depoimento! É extremamente frustrante a falta de confiança no nosso trabalho, só por sermos brasileiras! Às vezes é muito difícil ter que conviver diariamente com estas questões! E o pior é que começamos a duvidar do nosso próprio potencial!

Fonte: Retirado de Bandeira do Brasil. São professores… podem não gostar do fato de você ser brasileira??? [Fotografia], por Brasileiras não se calam! [@brasileirasnaosecalam], 2021f, Instagram. (https://www.instagram.com/p/CTSBf4lDbr3/)

Figura 8: Post de Instagram @brasileirasnaosecalam 

Contudo, o destaque nessa categoria, que nos coloca em alerta enquanto investigadoras, é o facto de que a maioria das denúncias se direcionavam à comunidade científica. Denúncias de currículos questionados, notas menores, e ainda o receio de serem perseguidas academicamente, sendo este o provável motivo de não haver muitas (ou existirem de forma inexpressiva) denúncias acerca da discriminação nas instituições e produções científicas (Padilla & Gomes, 2016).

Nesta lógica, as mulheres brasileiras imigrantes que vivem em terras lusitanas são crivadas por dissemelhanças sexuais, nacionais, coloniais e, ainda, étnicas (Piscitelli, 2008). Essas marcas são notórias em todas as atividades do projeto Brasileiras Não Se Calam, desde a denúncia em texto até aos apoios sociais, jurídicos e psicológicos que tentam enfrentar essas discordâncias.

7. Considerações Finais

As heranças da colonialidade deixam marcas profundas que forjam os corpos das mulheres imigrantes brasileiras como cicatrizes vivas. A premissa de ser um corpo colonizado no espaço do colonizador compreende uma verdadeira ambivalência entre a aproximação e o preconceito, que marcam as diversas formas de se relacionar e integrar, o que implica, inclusive, a negociação das suas próprias identidades (Padilla & Gomes, 2016).

Os relatos de teor xenófobos, assédios, misóginos, machistas, racistas, sexistas e violentos descritos pelo projeto Brasileiras Não Se Calam traduzem as marcas dessa colonialidade e como isso impacta negativamente a busca da nova vida associada à ideia de emigrar. Constata-se que o projeto se utiliza o espaço digital como campo de denúncia através do ativismo feminista, ao promover um debate atual, e que não é novo. Denuncia uma relação estruturada entre colonizado/colonizador ao desencobrir a conceituação de um discurso lusotropical que omite e mantém veladas várias violações sob a desculpa de uma sociedade portuguesa que é, na verdade, diversificada.

É de se relevar que, na análise aqui realizada, a maioria das denúncias recebidas anonimamente pelo projeto se localizam em Portugal (mais de 76% do montante total), o que nos faz refletir acerca da insuficiência dos processos de reparação histórica, e a necessidade, urgente, de repensarmos as configurações sociais e epistêmicas.

Seria oportuno, noutro momento, investigar o espaço que o projeto dá às outras representações identitárias sob a perspetiva dos feminismos decolonial e interseccional que são, por si sós, grandes epistemologias de reparação, uma vez que problematizar o dimorfismo biológico é central para perceber o sistema de género (Lugones, 2008).

Portanto, reconhecer a imensa interferência dos processos coloniais tanto a nível de divisão de género, quanto a nível de racialização, é fundamental para uma compreensão apropriada dos esforços passados. Assim, o que colocamos em defensa agora é a fusão de visões ontológicas disruptivas que, ao serem incorporadas ao ciberativismo feminista, conotam o feminismo de um respaldo sem precedentes.

É imprescindível que consideremos um movimento feminista que seja também decolonial e interseccional, projetos políticos e teóricos que desafiem práticas imperialistas e, também, colonizadoras. Um movimento feminista que despreze os limites geográficos que separam conhecimentos e vivências entre norte e sul global, vindo a unir as diversas populações minoritárias e seus diferentes ativismos na busca de um feminismo, de facto, inclusivo.

Agradecimentos

Este trabalho é financiado por Fundos Nacionais através da FCT- Fundação para a Ciência e a Tecnologia no âmbito do projeto Refª 2021.07485.BD.

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1As postagens que foram excluídas referiam-se a promoções de eventos e publicidade.

2Excluded posts related to event promotion and advertising.

Recebido: 18 de Novembro de 2021; Aceito: 09 de Fevereiro de 2022

Camila Lamartine é doutoranda na Universidade Nova de Lisboa. Investiga sobre estudos feministas e de género, ciberativismo e culturas digitais. Trabalha como jornalista, é integrante do Instituto de Comunicação da Nova e diretora de comunicação do grupo de pesquisa Gênero e Justiça - Perspectivas Interdisciplinares (Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa). É membro da Associação Portuguesa de Ciências da Comunicação. Email: camilalamartinemb@gmail.com Morada: Faculdade de Ciências Sociais e Humanas (FCSH)/Instituto de Comunicação da Nova (ICNOVA) - Avenida de Berna, 26-C: 1069-061 Lisboa, Portugal

Marisa Torres da Silva é professora auxiliar do Departamento de Ciências da Comunicação da Nova (Faculdade de Ciências Sociais e Humanas). É investigadora do Instituto de Comunicação da Nova, diretora da revista Media & Jornalismo e coordenadora adjunta do grupo de trabalho Públicos e Audiências da Associação Portuguesa de Ciências da Comunicação. Para mais informações, consultar o ciência ID E811-91FA-DC5E. Email: marisatorresilva@fcsh.unl.pt Morada: Faculdade de Ciências Sociais e Humanas (FCSH)/Instituto de Comunicação da Nova (ICNOVA) - Avenida de Berna, 26-C: 1069-061 Lisboa, Portugal

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