1. Introdução
A transparência é, atualmente, inevitável na regulação dos média. Crescentemente apresentada como um requisito essencial para o funcionamento livre e democrático das sociedades, a promoção da transparência é considerada uma resposta consensual no que respeita às preocupações com a falta de pluralismo mediático e de confiança no jornalismo. Sendo um princípio que se consolidou no domínio da regulação da propriedade, através de múltiplos instrumentos, ultrapassa essa única dimensão material: é igualmente um modo de combater a perda de confiança no jornalismo e nos meios noticiosos por parte do público (Karlsson, 2020).
A transparência é um indicador largamente associado à qualidade do jornalismo (Lacy & Rosenstiel, 2015), funcionando como um mecanismo de responsabilização e como forma de aumentar a legitimidade junto dos cidadãos, quer através da visibilidade dada aos meios de produção jornalística (Kovach & Rosenstiel, 2001), quer através da transparência sobre as ligações que influenciam o seu funcionamento, essencial porque os média são uma das instituições sobre as quais assenta a esfera pública (Allen, 2008). A existência de uma cidadania informada estriba-se no acesso a informação credível e verificada, na qual as pessoas podem confiar para tomar decisões (Strömbäck, 2005). Como esclarecem Craft e Heim (2009), o público precisa “de um certo tipo e qualidade de informação, para ajudar na auto-governação e apoio da comunidade, e de jornalismo [que tem] qualificações exclusivas para fornecer essas informações” (p. 217). Há evidências de que os meios jornalísticos são essenciais para capacitar os cidadãos (Aalberg & Curran, 2012) e de que têm sido instrumentais para aumentar os níveis de responsabilização dos diferentes poderes (Lindgren et al., 2019; Schudson, 2008).
Mas existe também a possibilidade de os média serem instrumentalizados. Porque tendem a reproduzir o status quo, favorecendo assim atores estabelecidos e poderosos, os média podem tornar-se um meio de legitimação das estruturas de poder e da hierarquia social (Hall et al., 2017). Além da propensão dos média para reproduzir a versão das elites, há ainda que considerar a hipótese da sua “captura” por parte de outros poderes estabelecidos, como o governo e agentes políticos ou os proprietários (Cage et al., 2017; Dragomir, 2019). Assim, o exercício e a produção de jornalismo de qualidade devem ser regularmente sujeitos a mecanismos de responsabilização e de verificação da sua efetiva contribuição para a democracia, pois essa função não é uma profecia autorrealizável (Trappel & Tomaz, 2021).
A propriedade e a sua transparência são, nesta matéria, uma dimensão essencial. E esse tem sido o entendimento de instituições como a União Europeia e o Conselho da Europa manifestado nos diversos documentos publicados (entre deliberações, diretivas e recomendações). Não sendo a única condição, é um pré-requisito essencial para que os média não sejam desviados da sua missão fundamental. Devido às ligações com o poder político e com o poder económico, no âmbito da produção noticiosa e do financiamento, os média podem ficar reféns de interesses políticos e económicos. Assim, o princípio da promoção da transparência baseia-se na assunção de que é fundamental que a informação sobre quem detém os média e sobre a forma como o jornalismo é financiado esteja publicamente disponível.
Em Portugal, a transparência da propriedade dos média é exigida pela Lei n.º 78/2015 (2015), que determina a transparência da titularidade, da gestão e dos meios de financiamento da comunicação social, cujo cumprimento é assegurado pela Entidade Reguladora para a Comunicação Social (ERC). Contudo, as consequências da publicação da lei não foram ainda examinadas de forma sistemática. Que ações desencadeou a entrada em vigor da lei, quer a nível dos regulados (agentes do mercado), quer a nível do regulador? Se, do ponto de vista político, a transparência não tem sido questionada, é expectável que, do ponto de vista dos agentes económicos, o seu cumprimento possa ser contestado. A divulgação completa de informação pode prejudicar a vantagem competitiva das empresas (De Laat, 2018) ou colidir com os interesses dos proprietários e acionistas (Henriques, 2013). Assim, e por um lado, interessa perceber de que modo o princípio da transparência dos média tem sido recebido pelos agentes do mercado de média em Portugal, averiguando os incumprimentos e as objeções levantadas pelos proprietários à divulgação da informação requerida por lei. Por outro lado, importa também examinar de que forma a entidade reguladora cumpriu o disposto na nova lei. Esta análise, realizada a partir dos processos avaliados pela ERC, desde a entrada em vigor da lei até fevereiro de 2023, pode contribuir para a compreensão dos desafios que esta dimensão coloca à concretização de um jornalismo exercido em condições de independência e autonomia, essencial para a sua qualidade.
2. A Transparência nos Média
Antes de chegar ao universo dos média, a ideia de transparência consolidou-se em vários setores, do mundo financeiro às políticas monetárias, tendo tido especial apelo em estratégias de combate à corrupção como forma de aumentar o controlo sobre processos governamentais e de dinheiros públicos (Craft & Heim, 2009). Ainda que falhe consenso a nível da concetualização, várias definições têm apontado para noções de visibilidade, abertura e responsabilização, num contexto em que há benefícios sociais dessa exposição (Karlsson, 2010; Singer, 2006). Por exemplo, Holtz e Havens (2009) definem transparência como “o grau em que uma organização partilha dados de que grupos de interesse necessitam para tomar decisões informadas” (p. 2).
No que diz respeito ao campo dos média, a função social do jornalismo está intimamente ligada à questão da transparência, valorizada pelo seu papel na criação e manutenção de credibilidade (Craft & Heim, 2009). Um jornalismo mais transparente - aquele que explica a construção da agenda e a relação com as fontes de informação, assim como aquele que torna visível como se financia - é uma instituição que estabelece uma relação de confiança com o público. A questão da transparência ocupa, portanto, uma dimensão muito relevante do debate público sobre as responsabilidades dos média (Miranda & Camponez, 2022). A transparência pode promover uma prática profissional renovada, favorecendo uma relação mais próxima entre os jornalistas e os seus públicos. A transparência na produção jornalística pode ajudar a reconstruir o relacionamento potencialmente deteriorado com os consumidores de notícias (Bock & Lazard, 2021; Heim & Craft, 2020). A visibilidade da propriedade também pode aumentar a independência e a credibilidade do jornalismo (Cappello, 2021).
A transparência é, assim, um conceito complexo e multidimensional, que pode afetar as condições de produção dos média, como a propriedade (Craufurd Smith et., 2021), a produção dos média jornalísticos (Miranda & Camponez, 2022) e a sua distribuição via plataformas algorítmicas (Diakopoulos & Koliska, 2017). É também um princípio e um desafio, já que existem vários obstáculos à sua concretização: os intrincados mecanismos de propriedade, agravados pela circulação internacional de fluxos financeiros, a ineficiência e inércia das instituições jornalísticas ou a plataformização algorítmica da sociedade e da produção cultural (Poell et al., 2022).
Dentro deste contexto lato de transparência nos média, a regulação da propriedade assume particular importância. As políticas de promoção de transparência, como a obrigatoriedade de identificar nominalmente os beneficiários efetivos da propriedade, têm por base o pressuposto de que os donos podem ter um efeito nos conteúdos, na autonomia profissional e na liberdade de informação (Sjøvaag & Ohlsson, 2019), podendo levantar preocupações no que diz respeito à concentração, comercialização (orientação ao lucro) e clientelismo. Todos estes fenómenos podem impactar a qualidade do jornalismo produzido, justificando, assim, políticas que visam regular a propriedade, nomeadamente a nível da transparência. A justificação é que “a transparência não restringe a propriedade, mas torna-a visível de modo a que o público possa fazer escolhas informadas sobre como reagir ao conteúdo fornecido” (Picard & Pickard, 2017, p. 29).
A nível europeu, há uma importância crescente da transparência da propriedade, o que tem ditado o surgimento de políticas a esse nível. O Conselho da Europa (Council of Europe, 2018) recomendou, para benefício do pluralismo, a produção de legislação que determine a necessidade de transparência a nível da propriedade dos média. Tais medidas, argumenta a recomendação, poderão pôr em evidência questões como propriedade cruzada, direta e indireta, controle e influência efetivos, contribuindo ao mesmo tempo para garantir uma separação efetiva e manifesta entre o exercício da autoridade ou influência política sobre os conteúdos. Além de atuações ao nível da chamada “soft policy” (estratégias de regulação não vinculativas que se apoiam em recomendações, orientações, partilha de recursos, etc.), nomeadamente encomendando estudos sobre a transparência nos média europeus, a Comissão Europeia tem também avançado no domínio legislativo. A revisão da diretiva dos Serviços Audiovisuais, em 2018, aborda explicitamente o princípio da transparência na propriedade. E, recentemente, a Comissão Europeia propôs o Ato Legislativo Europeu Sobre a Liberdade dos Meios de Comunicação Social, que pretende tornar obrigatória a divulgação de dados sobre a propriedade e propõe novos requisitos para a alocação de publicidade estatal. Estas novas disposições ainda precisam de ser aprovadas pelo Parlamento Europeu e pelos Estados-membros, podendo sofrer profundas alterações, sobretudo considerando a recente decisão do Tribunal Europeu de Justiça da União Europeia sobre a divulgação dos beneficiários naturais.
Numa decisão de 22 de novembro de 2022, o Tribunal invalidou uma disposição da 5.ª Diretiva, relativa à prevenção e penalização de branqueamento de capitais na União Europeia, que garantia o acesso público às informações sobre os proprietários das empresas. O caso foi enviado por um tribunal de Luxemburgo, devido à contestação da instituição de registo comercial daquele país, que considerava aquela disposição incompatível com o direito à privacidade. Na sequência dessa decisão, muitas bases de dados públicas sobre registo de proprietários foram temporariamente desativadas. A decisão foi mal recebida por diversos ativistas anticorrupção e outros, ainda que o tribunal tenha considerado que a sociedade civil e os média têm um interesse legítimo em aceder a essas informações, dado o seu papel na luta contra a lavagem de dinheiro. Uma proposta de alteração à diretiva terá agora de ser feita de modo a compatibilizar os diferentes direitos, assim como para operacionalizar esse acesso.
A disposição da diretiva contra o branqueamento de capitais, quando pensada no contexto dos sistemas mediáticos, aponta também para uma realidade que tem vindo a dominar os mercados: a emergência de atores como fundos financeiros e empresas de capitais privados, sem obrigações de transparência para com os seus acionistas, ou empresários ligados a regimes autocráticos (Dragomir, 2019; Noam, 2018). Em Portugal, por exemplo, a presença nas empresas mediáticas de capitais provenientes de países que não garantem princípios democráticos foi já objeto de preocupação (Figueiras & Ribeiro, 2013; Silva, 2014).
O pressuposto de base é o de que a concentração mediática excessiva ou eventuais conflitos de interesse dos proprietários apenas podem ser claramente identificados se houver visibilidade a nível da propriedade. A transparência é, assim, um instrumento de garantia da diversidade, já que evidencia as diferentes estruturas por trás de serviços mediáticos (Cole & Zeitzmann, 2021), tornando claro se os cidadãos estão, ou não, a ser servidos por um leque de conteúdos que disponibilizam diferentes opiniões e posições. Quando o controlo é inexistente ou escasso, torna-se mais difícil detetar enviesamentos ou omissões, o que pode levar a problemas de confiança nos média, tendo sido já identificada uma relação positiva entre transparência e confiança (Curry & Stroud, 2021). Do ponto de vista do mercado, pode igualmente haver benefícios, já que a transparência contribui para uma concorrência aberta e justa, além de esse princípio poder ser usado como garantia de independência, logo, de qualidade na oferta (Cole & Zeitzmann, 2021).
É possível identificar duas dimensões da transparência: uma de natureza administrativa e legal e outra de natureza cívica (Craufurd Smith et al., 2021). Enquanto esta segunda dimensão visa a responsabilização dos média perante a sociedade e o público em geral, a primeira diz respeito à abertura das empresas à avaliação e controlo por parte de entidades reguladoras e outros agentes públicos. Ainda que a transparência possa não ser uma preocupação premente das audiências e do público em condições normais de funcionamento dos média (Karlsson & Clerwall, 2019), é expectável que a segunda dimensão da transparência traga benefícios, já que agentes reguladores e/ou o Estado estão, à partida, mais conscientes das problemáticas que envolvem a atuação e gestão dos média.
Assim, as políticas de transparência não podem ser usadas como desculpa para evitar outras políticas públicas e regulatórias no setor dos média (Meier & Trappel, 2022). Pelo contrário, já que a transparência será o mecanismo que torna evidente onde e como deve o Estado atuar. É que, alertam estes autores, o princípio da transparência, por si só, não é garantia de concorrência no mercado ou de pluralismo nos média. No mesmo sentido argumentam Craufurd Smith et al. (2021), assinalando que a transparência é necessária, mas não suficiente. Este princípio “só pode ser o ponto de partida - e não o objetivo - de políticas que defendam os ideais normativos dos média em democracias liberais” (Meier & Trappel, 2022, p. 270).
Por outro lado, alcançar efetivamente níveis adequados de transparência pode ser problemático, até porque a aferição da adequação neste domínio continua, em muitos casos, por realizar. Não pondo em causa o valor normativo da transparência, a sua operacionalização no campo dos média permanece ambígua. Ainda que a importância ética da transparência permaneça alta na agenda pública, deve ser reconhecida e refletida a complexidade na sua operacionalização e prática (Bock & Lazard, 2021), assim como devem ser aprofundados os limites à plena concretização de um ideal como pode ser a transparência (Ananny & Crawford, 2018).
Deste modo, é pertinente averiguar de que forma as empresas que operam no setor dos média reagiram ao novo enquadramento legal, já que essa análise pode contribuir para esclarecer o campo real da sua concretização, evidenciando as perceções e práticas dos agentes.
3. A Promoção da Transparência da Propriedade - O Caso Português
Em matéria de políticas sobre a transparência dos média, Portugal está mais avançado do que a maioria dos países europeus, onde não existe legislação específica (Craufurd Smith et al., 2021). Nas várias revisões às leis setoriais que regulam o setor da comunicação social (nomeadamente, as leis da imprensa, rádio e televisão), foram sendo introduzidas alterações de forma a impor a publicação da composição nominativa dos detentores do capital. De acordo com Rabaça (2002), “o princípio da transparência é considerado atualmente uma das melhores formas de realizar a defesa do pluralismo, ajudando a impedir as concentrações” (p. 419), sendo este crescentemente o instrumento legal fundamental. Entretanto, desde 2015, existe legislação que aborda especificamente as obrigações de transparência ao nível da propriedade: a Lei n.º 78/2015 (2015), que estipula a transparência da titularidade, da gestão e dos meios de financiamento da comunicação social. De acordo com a determinação legalmente estabelecida, a ERC deve gerir um Portal da Transparência, onde qualquer cidadão pode encontrar a lista de beneficiários das empresas que operam no setor.
A lei engloba, em referência ao Artigo 6.º dos estatutos da ERC (Lei n.º 53/2005, 2005), as agências noticiosas, editores de publicações periódicas, operadores de rádio e de televisão, também no digital, e quaisquer outros que disponibilizem regularmente ao público, através de redes de comunicações eletrónicas, conteúdos submetidos a tratamento editorial e organizados como um todo coerente. Desde a transposição da diretiva dos serviços audiovisuais em 2020, as obrigações de comunicação passaram a ser aplicadas também a operadores de serviços audiovisuais a pedido. As empresas são obrigadas a comunicar os titulares das participações sociais e a cadeia de imputação das “participações qualificadas” (iguais ou superiores a 5 %), assim como o aumento ou redução da percentagem de participação. As obrigações de reporte incluem ainda a composição dos órgãos sociais e os responsáveis editoriais, além dos dados financeiros e da identificação dos clientes relevantes e detentores relevantes do passivo. As empresas podem ainda apresentar pedidos fundamentados de confidencialidade dos dados reportados, cuja autorização compete à ERC.
Depois da aprovação da lei (Lei n.º 78/2015, 2015) em 2015, a ERC lançou, em abril de 2016, uma plataforma onde as empresas devem submeter a informação requerida por lei. Nos três anos seguintes, regulador e regulados colaboraram na avaliação e correção dos métodos de reporte, afinando os mecanismos de forma gradual, tendo em consideração orientações relativas à proteção dos dados pessoais (Entidade Reguladora para a Comunicação Social, 2020). Em dezembro de 2019, foi finalmente lançado o Portal da Transparência, que tratou os dados comunicados pelas empresas e os disponibilizou ao público. Apenas alguns meses antes, a ERC tinha começado a deliberar sobre os pedidos de confidencialidade entretanto recebidos, já que só então (em outubro de 2019) haviam sido estabelecidas as orientações para harmonizar o entendimento da entidade sobre a matéria. Os pedidos tinham como fundamentação, de uma forma geral, a sensibilidade dos dados, já que os requerentes “antecipam impactos negativos resultantes da sua divulgação relacionados com estratégias de negócio, estruturas de receitas e a sustentabilidade económico-financeira do meio” (Entidade Reguladora para a Comunicação Social, 2020, p. 264).
Além dos dados disponibilizados no Portal da Transparência, os relatórios de regulação publicados desde 2016 incluem também informação tratada e agregada das empresas e órgãos registados no portal. A 20 de junho de 2022, por exemplo, estavam registados 1.848 órgãos, detidos por 1.463 entidades, 60% das quais tinham como atividade principal a comunicação social (Entidade Reguladora para a Comunicação Social, 2022). Os relatórios de regulação apresentam ainda dados agrupados por setor de atividade, como alimentação ou religião, evidenciando algumas das cadeias de propriedade associadas aos títulos. Mas, publicamente, o cumprimento destas diretrizes não foi suficiente para gerar as mais-valias que se esperam do princípio da transparência, já que, de acordo com Baptista (2022), “a discussão pública é escassa e não contribui para uma compreensão efetiva da dinâmica entre o sistema mediático e os poderes políticos e económicos” (p. 147).
Esta situação leva à necessidade de mapear a resposta à publicação da lei, quer da parte do regulador (a quem cabe dar cumprimento às disposições legais), quer da parte dos regulados (sobre quem impendem as obrigações). Mesmo considerando as perspetivas críticas sobre a transparência - ou seja, não esperando da prossecução deste princípio uma panaceia para todos os problemas ou riscos que afetam os média -, ainda assim é necessário avaliar os resultados da implementação da lei.
4. Metodologia
Esta investigação procura compreender como os regulados (empresas de média) cumpriram diretrizes legais (e, sobretudo, que objeções colocaram) e de que forma o regulador atuou a esse nível. Para cumprir o propósito da pesquisa, escolheu-se realizar uma análise documental das deliberações da ERC, por se entender que estas representam o cerne da atividade regulatória, ao mesmo tempo que resultam da atuação da entidade face ao comportamento dos regulados. Assim, realizou-se uma análise de conteúdo categorial da totalidade do corpus documental extraído do site da ERC, em fevereiro de 2023, utilizando a palavra-chave “transparência”.
Essa pesquisa livre produziu 99 resultados. Uma primeira análise temporal das deliberações demonstrou que 16 desses documentos diziam respeito a um período anterior à entrada em vigor da lei, pelo que foram excluídos. Resultaram 83 deliberações, das quais foram também excluídas 14 por não dizerem respeito à “Lei da Transparência” da propriedade dos média. Nas restantes 69, verificou-se que uma dizia respeito a uma queixa da Impresa sobre uma notícia de um meio pertencente ao grupo Newsplex, que deu origem a um processo paralelo, uma outra referia-se ao arquivamento de um processo contraordenacional e três a clarificações da própria lei. Assim, restaram 64 deliberações que, verificou-se, diziam respeito unicamente a duas situações: (a) pedidos de confidencialidade na divulgação de dados de reporte obrigatório interpostos por empresas de média e (b) processos abertos pela ERC relativos ao incumprimento de obrigações de reporte.
Esta pesquisa resulta assim da análise dessas 64 deliberações, cuja primeira leitura permitiu perceber a presença dos seguintes elementos constituintes que foram transformados em categorias para a análise: “data”, “identificação da empresa” e “decisão da ERC”, dividida nas subcategorias a que diziam respeito os “dados de reporte obrigatório” ou “pedidos de sigilo”. De modo a permitir compreender a natureza das empresas em causa, foram acrescentadas duas outras categorias (“tipo de meio de comunicação” e “âmbito geográfico”) para as quais foram recolhidos dados através de consulta de informação pública, numa pesquisa online.
Depois de classificadas as deliberações, a análise passou pela contagem do número de incumprimentos em cada categoria (ver Tabela 1) e subcategoria (ver Apêndice e Tabela A1) e posterior análise estatística descritiva. Nesta contagem, foram consideradas todas as deliberações da entidade reguladora, incluindo as relativas a empresas do mesmo grupo económico e as que visam, por duas vezes, a mesma empresa. De igual modo, foram anotadas todas as ocorrências, podendo uma empresa incumprir mais do que uma obrigação declarativa ou pedir a confidencialidade de mais do que um tipo de informação. Note-se que para duas empresas a ERC não publicou ficha de avaliação, pelo que não foi possível discriminar o tipo de informação de reporte obrigatório em falta.
Nota. Informação retirada das deliberações da Entidade Reguladora para a Comunicação Social analisadas, da Lei n.º 78/2015 (2015) e do Regulamento 835/2020 (2020)
No que toca à omissão de dados de reporte obrigatório, a ERC classifica o grau de cumprimento de forma binária: “presente” ou “ausente”, tendo-se registado duas exceções, classificadas como “a determinar”. Para efeitos desta investigação, considerou-se que, nestes casos, o dever de informação não estava cumprido. Quanto aos pedidos de sigilo, o regulador apenas dá conta da decisão de indeferir ou de deferir parcialmente (nenhum pedido foi deferido).
5. Apresentação de Resultados
Assim, da recolha efetuada resultou um conjunto de 64 deliberações que dizem respeito a 59 empresas de média, já que três empresas foram notificadas duas vezes e registaram-se dois casos de empresas pertencentes ao mesmo grupo empresarial. Estas empresas são referidas apenas no âmbito da abertura de processos pelo incumprimento de obrigações de reporte. Não existem sobreposições entre as empresas notificadas pelo incumprimento de obrigações declarativas e as que solicitaram o sigilo de informações de reporte obrigatório.
Deste modo, foram abertos 48 processos administrativos e/ou contraordenacionais relativos a 43 empresas ou grupos empresariais por incumprimentos de obrigações declarativas e emitidas 16 deliberações sobre pedidos de confidencialidade. No primeiro ano de funcionamento, no site da ERC não consta qualquer deliberação sobre pedidos de sigilo; o ano seguinte, todavia, foi o que conheceu maior número de deliberações: 66% do total (Tabela 2).
Nota. Informação retirada das deliberações da Entidade Reguladora para a Comunicação Social analisadas
Na caracterização das empresas visadas, constatam-se duas realidades: se as publicações periódicas foram o alvo de 52% dos processos por incumprimento de obrigações declarativas, já as rádios sobressaem nos pedidos de sigilo (Tabela 3). Somando as duas categorias, as duas tipologias estão equilibradas.
Nota. Informação retirada das deliberações da Entidade Reguladora para a Comunicação Social analisadas
É notório o caráter local dos meios de comunicação social: 72% têm um âmbito de difusão geográfica local (28 rádios e 15 jornais). Os restantes 28% respeitam a média de difusão nacional, com destaque para revistas especializadas (22% do total): imobiliário, turismo, automóvel, viagens, arquitetura, economia ou religião, entre outros (Tabela 4). O conjunto das revistas especializadas diz respeito a apenas 12 empresas, responsáveis por 27 publicações periódicas. No que toca ao audiovisual, o incumprimento regista-se em três televisões de informação local e dois canais por cabo (dos segmentos da cultura e adultos). Em termos de títulos de alcance nacional, encontra-se apenas a Newsplex, detentora dos jornais de informação geral Inevitável e Pôr do Sol, notificada devido à falta de identificação da estrutura do capital social e dos órgãos de comunicação social detidos, bem como de caracterização financeira da empresa e de dados sobre o governo societário.
Nota. Informação retirada das deliberações da Entidade Reguladora para a Comunicação Social analisadas
5.1. Abertura de Processo por Incumprimentos de Obrigações Declarativas
Como referido acima, das 64 deliberações analisadas, 48 visam a abertura de processos por incumprimentos de obrigações declarativas: 47 processos administrativos contraordenacionais (42 dos quais suspensos por 10 dias para que os regulados supram os elementos em falta, permitindo o arquivamento do processo e cinco já efetivos) e um processo contraordenacional, arquivado por insolvência da arguida. O número de incumprimentos registados, mesmo após o período de adaptação concedido pela reguladora, indicia dificuldade na articulação entre a ERC e os regulados.
A legislação supracitada obriga à publicação de 51 dados, organizados por seis áreas: dados gerais de identificação da empresa e do seu mandatário; composição dos órgãos sociais; identificação da estrutura do capital social/participações sociais; identificação dos órgãos de comunicação social detidos e responsáveis editoriais; caracterização financeira da empresa (meios de financiamento); e relatório de governo societário completo (ver Apêndice). A Tabela 5 indica o número de subcategorias assinaladas em cada deliberação (uma empresa poderá estar representada em mais do que uma categoria). A informação financeira destaca-se como a que regista maior número de incumprimentos, a grande distância da identificação da composição da estrutura do capital social das empresas.
Nota. Informação retirada das deliberações da Entidade Reguladora para a Comunicação Social analisadas
Note-se que, nas deliberações publicadas, a ERC decompôs todas as categorias, exceto a “relatório de governo societário”, que poderá por isso estar sub-representada. Quanto à categoria “caracterização financeira”, a entidade reguladora especifica apenas três subcategorias (“fluxos financeiros”, “clientes relevantes” e “detentores de passivo relevante”), de um total de 12 previstas na legislação. A presente investigação anotou todas as ocorrências, podendo uma empresa incumprir várias obrigações declarativas.
Por último, a ERC desagrega, por ano, as categorias “caracterização financeira” (e respetivas subcategorias) e “relatório de governo societário”. Sendo 2017 o ano-zero estabelecido pelo regulador para o reporte anual, verifica-se um aumento paulatino do número de incumprimentos até ao pico, em 2019. Quanto aos anos de 2020 e 2021, os números são despiciendos.
Um processo aberto foi arquivado por insolvência da arguente. Não se encontrou na base de dados informação que permita afirmar se as restantes reguladas sanaram a falha declarativa dentro do prazo de 10 dias ou se a ERC poderá, ainda, dar seguimento ao processo contraordenacional. Os dados revelam que a informação sobre fluxos financeiros, clientes relevantes e detentores relevantes do passivo é considerada particularmente sensível (Tabela 6).
Nota. Informação retirada das deliberações da Entidade Reguladora para a Comunicação Social analisadas
Cruzando a tipologia de meios de comunicação social e o âmbito geográfico com o tipo de informações omitidas, constata-se que os meios locais são os que mais vezes entram em incumprimento. Verifica-se o mesmo para as publicações periódicas (Tabela 7).
5.2. Solicitação de Confidencialidade de Informação
Ainda em matéria de transparência, no período analisado, 16 empresas pediram a confidencialidade de 46 elementos de declaração obrigatória. Dessas, como se indica na Tabela 7, os “clientes relevantes” (11), os “detentores de passivo relevante” (10) e a “globalidade dos fluxos financeiros” (sete) foram as subcategorias de informação visadas com maior frequência. Note-se a coincidência com o tipo de informação não declarada com maior frequência (ver Tabela 4 e Tabela 5).
Além do tipo de informação cuja reserva é requerida, a ERC revela apenas a identidade da empresa requerente: 10 rádios locais, quatro jornais locais, uma televisão local e uma revista nacional e especializada. Com base nessa informação, como se vê na Tabela 8, conclui-se que as empresas de âmbito local assinaram 96% dos pedidos de confidencialidade (à semelhança da metodologia adotada no segmento sobre obrigações declarativas, também aqui se anotam todas as ocorrências, podendo uma empresa pedir a confidencialidade de vários tipos de informação). Os restantes dois pedidos foram entregues por um meio nacional e especializado. Não existe qualquer pedido de meios de âmbito nacional generalista nem de locais especializados. De igual forma, são as rádios as responsáveis pelo maior número de solicitações de reserva de informação.
Nota. Informação retirada das deliberações da Entidade Reguladora para a Comunicação Social analisadas
Nas deliberações sobre pedidos de reserva de informação, a ERC omite a fundamentação apresentada pelos requerentes, invocando a intenção de respeitar a confidencialidade solicitada. Pela mesma razão, não divulga os fundamentos da decisão, indicando apenas a decisão de indeferir ou de deferir parcialmente o pedido (em apenas um caso, da Igreja Universal do Reino de Deus, dona da Global Difusion que opera seis rádios e a quem foi deferida, parcialmente, a não indicação da identificação dos associados que não representem uma participação qualificada). Não houve qualquer pedido liminarmente deferido.
6. Discussão e Conclusão
A independência é um princípio fundamental para a qualidade do jornalismo e a transparência da propriedade, assim como dos mecanismos financeiros relacionados com a atividade dos órgãos, é um dos possíveis caminhos para assegurar esse princípio. A transparência permite também examinar as condições para o exercício do pluralismo e da diversidade no campo mediático. Contudo, a transparência pode pôr em causa outros valores, como o da privacidade dos proprietários ou a vantagem competitiva das empresas. Neste conflito de interesses, joga-se também a qualidade do jornalismo, porque é também a partir da propriedade que se pode aferir as condições de produção dos conteúdos jornalísticos. Assim, avaliar que implicações teve a “Lei da Transparência”, a partir da reação dos agentes económicos ao novo enquadramento legal e da ação da entidade reguladora, permite aprofundar as condições de operacionalização deste novo instrumento.
Uma primeira leitura dos dados mostra que, de uma maneira geral, a grande parte dos meios de comunicação social registados na ERC cumpriu de forma satisfatória os requisitos legais, já que o número de situações em que o regulador teve de intervir foi reduzido quando comparado com o universo de meios. Mas a análise efetuada a partir das interações entre a entidade reguladora e as empresas evidencia outros padrões que importa aprofundar. Em primeiro lugar, há que notar as ausências nas deliberações da ERC: as dos grandes grupos empresariais responsáveis pelos principais meios de comunicação social do país. Parece não ter havido dificuldades por parte destes grandes operadores em cumprir os preceitos legais relativos à transparência. Isto pode indicar, contrariamente a algumas preocupações quanto à possibilidade de a divulgação prejudicar a vantagem competitiva das empresas (De Laat, 2018) ou colidir com os interesses dos proprietários e acionistas (Henriques, 2013), uma de duas situações: os grupos receberam as novas diretrizes sobre a transparência não as vendo como problemáticas ou não anteciparam qualquer reação pública negativa aos dados divulgados.
É claro que três dos grandes grupos mediáticos em Portugal (Impresa, Media Capital e Cofina) são cotados em bolsa, o que já implica obrigações de reporte significativas. Mas, por outro lado, apesar de a ERC publicar anualmente um relatório e informação consolidada sobre a propriedade dos média em Portugal, não tem havido por parte dos agentes públicos, nomeadamente do Governo, qualquer debate, medida ou tomada de posição. Repara-se que, no âmbito do tratamento dos dados relativos à nacionalidade da propriedade dos média, a ERC demonstrou a existência de capitais vindos de países com regimes autocráticos em vários meios (Entidade Reguladora para a Comunicação Social, 2022), como Angola e China, aliás uma situação já analisada em trabalhos científicos (Figueiras & Ribeiro, 2013; Silva, 2014), sem que isso tenha merecido uma nota de preocupação por parte do Estado. Também o facto de 40% das empresas que operam no setor não terem comunicação social como atividade principal, com o que isso pode significar em termos de conflitos de interesse (ver, por exemplo, Noam, 2018), não mereceu nota pública.
De facto, a ERC procedeu à recolha da informação solicitada por lei, atuando junto das empresas que não cumpriram, e disponibilizou-a no portal. Contudo, a promoção da transparência não constitui um fim em si mesmo. Aliás, a Lei n.º 78/2015 (2015) diz isso mesmo ao estabelecer no Número 1 do Artigo 1 que a regulação da propriedade a esse nível tem “em vista a promoção da liberdade e do pluralismo de expressão e a salvaguarda da sua independência editorial perante os poderes político e económico”, um objetivo que cumpre à ERC de acordo com os seus próprios estatutos. Ou seja, seria de esperar que, da visibilidade dada à propriedade e aos mecanismos financeiros das empresas, emergisse uma reflexão sobre os riscos da situação portuguesa.
Mas, do facto de a ERC publicar os dados no Portal da Transparência e extrair anualmente informação para os seus relatórios não resultou indicação para uma mudança significativa no panorama da propriedade dos média em Portugal: não há notícias públicas de que a “Lei da Transparência” tenha alterado a dimensão da concentração da propriedade nem foi indicada como fator para atuar ao nível da promoção de pluralismo e diversidade. Assim, nenhuma deliberação ou recomendação por parte da ERC (que, recorda-se, tem as competências legais para tal) resultou da “Lei da Transparência”, abordando a titularidade do capital das empresas de média (nacionalidade ou setor de atividade principal) ou de entidades com capacidade de influência financeira. Também não houve nenhuma tomada de posição por parte do Governo, de partidos políticos ou de outros órgãos da sociedade civil sobre a qual a ERC tivesse de se pronunciar. A inexistência de ações nesse sentido leva a concluir pela relativa ineficácia da lei em promover a capacitação pública para a discussão sobre os riscos da propriedade dos média em Portugal.
Por exemplo, os resultados mostram que as falhas ao nível da conformidade de reporte e de pedidos de confidencialidade afetam, sobretudo, mercados pequenos: nos segmentos locais (por isso, limitados geograficamente) ou de nicho de revistas especializadas. Esta conclusão levanta uma questão: pode tratar-se de igual modo realidades distintas como as que encontramos nos mercados mediáticos sobretudo quando se sabe que a escala é essencial nesta indústria (Noam, 2014; Picard, 2005)? Por um lado, é necessário determinar se serão suficientemente exigentes para quem tem escala, recursos e capacidade técnica (nomeadamente, contabilística); por outro lado, é preciso investigar se não serão demasiados pedidos para empresas pequenas, a quem falta capacidade técnica para cumprir obrigações contabilísticas e financeiras. Este estudo demonstra a dificuldade que existe em concretizar um “ideal de transparência” (Ananny & Crawford, 2018), porque, sendo a escala uma variável importante, podem levantar-se dúvidas sobre se um único padrão de transparência pode servir com equidade todos os agentes do mercado.
A questão da confidencialidade, pedida por algumas empresas, é também significativa, sobretudo se se considerar sobre quais dados mais é solicitada: detentores do passivo e clientes relevantes. Do mesmo modo, é importante assinalar que uma das principais fontes de incumprimento diz respeito à divulgação dos meios de financiamento das empresas. Assim, o problema poderá não estar nos donos dos média e no seu direito à privacidade, mas em agentes externos aos média que podem pôr em causa a independência dos meios. Assim, será necessário avaliar se estas falhas e pedidos resultam de casos de fragilidade económico-financeira, e se estes podem vir a configurar situações de media capture1 (Dragomir, 2019; Meier & Trappel, 2022) por agentes políticos e económicos. Este alerta é particularmente relevante quando se discute a qualidade do jornalismo por dizer respeito a um tipo de jornalismo muito relevante e particularmente fragilizado: o jornalismo local (Jenkins & Jerónimo, 2021). Contudo, a ERC não revela as justificações invocadas nos pedidos de confidencialidade apresentados, o que impede o escrutínio externo, nem promoveu uma discussão pública sobre este tópico.
Assim, este estudo vem demonstrar, em linha com o defendido já por vários autores, que o princípio da transparência não alcança, por si só, os benefícios antecipados: sendo necessário, é insuficiente (Craufurd Smith et al., 2021; Meier & Trappel, 2022). A análise dos dados permite demonstrar que há lugar para a regulação e para as políticas públicas numa era de transparência. Há, por exemplo, que averiguar o impacto da propriedade nos meios, nomeadamente em situações de capital estrangeiro oriundo de países autocráticos ou de outros setores económicos. Por outro lado, a difícil situação dos média locais deveria merecer uma atenção dos reguladores e decisores públicos: uma análise mais aprofundada dos pedidos de confidencialidade poderia indiciar se o risco de captura é real e que mecanismos para o reforço da independência poderiam ser adotados e/ou reforçados.
Por outro lado, e uma vez que a transparência da propriedade nada diz sobre idoneidade, ou qualificação da propriedade, nem isso tem sido objeto de deliberações por parte da ERC, a visibilidade não pode ser considerada um garante da adequabilidade das condições para a produção de jornalismo de qualidade. Ou seja, a dimensão administrativa e legal da transparência está cumprida na forma, mas falta uma reflexão alargada sobre formas de a tornar um instrumento ao serviço de políticas públicas de comunicação que promovam, por exemplo, a independência e a diversidade no jornalismo.
Outra questão relaciona-se com o âmbito da lei: aplicando-se apenas às empresas que produzem e organizam conteúdos, não abrange os riscos no que diz respeito à distribuição, quer seja ainda analógica, quer seja digital (Russell, 2019). Esta situação pode vir a tornar-se cada mais sensível, dada a algoritmização das principais plataformas de consumo de informação noticiosa e os possíveis enviesamentos no acesso à informação daí decorrentes. Por outro lado, estes limites da lei podem eludir situações que comprometem a concorrência no mercado, já que acordos da produção com a distribuição (sejam intermediários digitais ou redes físicas) podem não ser alvo de escrutínio. A transparência a nível da propriedade da produção não resolve a necessária transparência também a nível da distribuição.
Finalmente, é preciso assinalar que este estudo, analisando o mercado apenas a partir da perspetiva da interação com a entidade reguladora, não dá conta de todas as dimensões da atuação das empresas em relação à transparência da propriedade. Outra limitação deste trabalho, quando se considera a relação da transparência com a qualidade do jornalismo, é a de que algumas das empresas consideradas neste mapeamento podem não ser jornalísticas: são mediáticas, mas, por exemplo, algumas rádios podem ter a classificação de rádio musical. Contudo, há que registar que essa classificação não impede que a programação contenha informação local, apenas não obriga a uma periodicidade em termos de noticiários jornalísticos. Apesar destas limitações, o estudo relativo às deliberações da ERC providencia um quadro relevante da relação das empresas com a transparência da propriedade, sobretudo porque evidencia as invisibilidades do quadro legal e do Estado. Na verdade, e em grande parte, o cumprimento do princípio da transparência pode ter vindo a invisibilizar a necessidade de políticas ativas na promoção da qualidade no jornalismo, a partir do reforço das condições da sua produção.