1 INTRODUÇÃO
O fenômeno da globalização3 trouxe consigo inúmeros desdobramentos, entre os quais a valorização do papel das empresas (principalmente das transnacionais) nos cenários econômico, social e político, sendo a instituição empresa considerada a vencedora do século XX4. Tal cenário, por si só, seria suficiente para que as empresas assumissem papéis sociais importantes, capazes de auxiliar no desenvolvimento da sociedade como um todo.
Entretanto, a atividade empresarial desencadeou uma potencial violação de direitos humanos5, ensejando a adoção de mecanismos, por organismos internacionais6 e órgãos estatais, de punição, promoção e proteção destes direitos, além de ensejar uma atuação ativa dos sujeitos e atores da sociedade civil contra as atividades nocivas à própria dignidade humana.
Frente a esta conjectura, com reivindicações em prol da proteção e promoção dos direitos humanos nas mais diversas esferas e, com o fito de proteger a sua imagem (considerando os impactos negativos que as violações aos direitos humanos trazem às reputações das empresas), as empresas, principalmente a partir da linguagem da Responsabilidade Social Corporativa, passaram a assumir responsabilidades quanto aos direitos humanos, exigindo um agir pautado na ética tanto em suas atividades internas, como nas relações estabelecidas com terceiros.
Com efeito, a violação de direitos simboliza um alto custo para as empresas, sob o prisma econômico-financeiro e penal, e, ainda, sob o prisma da identidade e reputação empresarial. De igual maneira, “promover direitos simboliza não apenas um alto ganho empresarial (estudos apontam o quanto a diversidade é lucrativa), mas, sobretudo, um ganho na identidade e reputação empresarial”7.
A adoção de medidas pelas empresas para o atendimento a valores éticos restou reproduzida nas relações contratuais travadas no âmbito empresarial, passando os contratos celebrados pelas empresas (principalmente pelas transnacionais) a contar com “cláusulas éticas” que visam, entre outros aspectos, a proteção dos direitos humanos nas relações empresariais.
Estas cláusulas se qualificam como instrumentos de regulação de práticas relacionadas à Responsabilidade Social Corporativa8, determinando obrigações excepcionais do ponto de vista econômico. A sua adoção, além de cristalizar a aproximação entre “empresas e direitos humanos”, vem a corroborar a concepção de que o contrato é um instrumento de emancipação da pessoa humana e não apenas uma ferramenta para a circulação de riquezas.
O presente trabalho visa analisar justamente esta “ferramenta” que recorrentemente vem sendo utilizada no âmbito empresarial. A investigação se justifica na medida em que, apesar da crescente incorporação das cláusulas éticas nos instrumentos contratuais, tanto no âmbito internacional, quanto no nacional, o assunto ainda conta com pouquíssimas incursões acadêmicas no cenário brasileiro, sendo de fundamental importância uma análise mais acurada acerca desta importante ferramenta de efetivação dos direitos relacionados à dignidade humana.
Em sua metodologia, o artigo será dividido em três partes principais. A primeira delas abordará como o contrato passou a ser encarado como instrumento de emancipação da pessoa humana. A segunda trata do tema específico das cláusulas éticas, perpassando por sua definição e tipos de contrato em que estão inseridas. A terceira e última parte do artigo analisa a regulamentação jurídica destas disposições contratuais, voltando os olhos para a Convenção de Viena das Nações Unidas sobre Contratos de Compra e Venda Internacional de Mercadorias.
Como se verá adiante, as cláusulas éticas, as quais já fazem parte da prática contratual, mostram-se como um exemplo concreto (e possível) de que é possível se falar em ética e solidariedade no campo das relações empresariais.
2 O CONTRATO COMO INSTRUMENTO DE EMANCIPAÇÃO DA PESSOA HUMANA
Falar na incorporação de cláusulas que visam proteger e promover os direitos humanos nos contratos firmados no âmbito empresarial é, antes de mais nada, entender o instituto “Contrato” não apenas como um instrumento de circulação de riquezas, mas sim como uma ferramenta que permite a própria emancipação da pessoa humana.
Visualizar o contrato sob tal perspectiva demanda uma análise, ainda que breve, de como se deu a mudança de paradigma no âmbito do Direito Contratual - que deixou de considerar a relação contratual apenas no que concerne aos seus aspectos econômicos, realocando-o e recondicionando-o na moldura da dignidade da pessoa humana.
Por opção metodológica, faz-se um recorte temporal, partindo do contrato moderno para, então, apresentar o “conceito pós-moderno de contrato”9.
O contrato foi e continua sendo visto como “o instrumento por excelência da autocomposição dos interesses e da realização pacífica das transações ou do tráfico jurídico”10. Tal concepção, em grande parte, decorre da noção moderna do contrato, que encontra nas premissas ideológicas da Revolução Francesa - a liberdade, a igualdade e a fraternidade - a sua base dogmática, eis que o próprio Código Civil Francês de 1804 (o Code) - que lançou luzes para todos os povos do cenário europeu e de suas ainda colônias - incorporou os três alicerces da Revolução em sua estrutura11.
Para Sílvio de Salvo Venosa, o contrato, no sistema francês liberal, era posto como o ponto máximo do individualismo. Segundo o autor, concebia-se a ideia do contrato como algo absolutamente paritário, no qual as partes tinham idêntico poder no embate de suas pretensões12.
De acordo com essa visão, propagada ao redor do mundo ocidental e, posteriormente confirmada com o predomínio do capitalismo industrial da segunda metade do século XIX e da primeira metade do século XX, o contrato era a expressão da liberdade contratual e da autonomia privada, sendo estruturado segundo os esquemas da oferta e da aceitação, do consentimento livre, da igualdade formal das partes e da fórmula do pacta sunt servanda13.
No Brasil, o Código Civil de 1916 refletiu a ideologia do Direito Contratual moderno. Nos moldes inseridos por Clóvis Beviláqua, o tripé principiológico de sustentação do contrato moderno era formado pela liberdade contratual, pela obrigatoriedade do contrato e pela relatividade dos efeitos do contrato; antecedidos pelos princípios gerais do individualismo, da liberdade e da igualdade formal.
O modelo tradicional ou “moderno” de contrato, no entanto, sucumbiu diante da realidade fática que se pôs à sua frente.
As alterações sofridas pelo instituto do contrato, por óbvio, não aconteceram repentinamente. Ao contrário, o contrato, em qualquer quadrante histórico, é fruto do seu tempo, marcado pelo relativismo histórico por meio do qual ele deve ser interpretado, inclusive para a atribuição (ou não) de efeitos jurídicos, pelo juiz ou pelo árbitro. Por consequência, a mudança de paradigma do Direito Contratual é fruto de uma constante evolução histórico-cultural, que desaguou na releitura do ordenamento jurídico como um todo e, via de consequência, dos contornos assumidos pelo contrato.
Diversos fatores contribuíram para a releitura do Direito Contratual moderno, ao longo do século XX e início do atual século XXI: a igualdade formal perdeu espaço, precipuamente em razão da especialização dos contratos de trabalho e de consumo; o Estado passou a intervir de forma mais direta nas relações privadas, limitando a liberdade de contratar e a autonomia privada, marcando a assim denominada “Publicização do Direito Privado”; os institutos do Direito Civil passaram a ser funcionalizados, à luz de constituições socialmente programáticas, notadamente no Brasil, na Itália e quiçá na Alemanha; o absolutismo do vínculo entre o contrato e a vontade das partes contratantes passou a ser questionado a partir do surgimento das contratações em massa (contratos de adesão); surgiram movimentos populares que passaram a postular muito mais que a liberdade e a igualdade formais; a liberdade contratual transformou-se em instrumento de exploração do contratante vulnerável14. Diante desta conjectura, houve uma verdadeira “reconstrução do próprio sistema contratual orientada no sentido de libertar o conceito de contrato da ideia de autonomia privada e admitir que, além da vontade das partes, outras fontes integram o seu conteúdo”15.
O sistema retratado no Code Civil da França revelou esgotamento, cedendo espaço para novos princípios sociais mitigadores da autonomia privada, passando a Constituição, seus princípios e valores a desempenhar papel central no próprio Direito Privado16.
No âmbito teórico, a mudança de paradigma do Direito Contratual não se deu apenas por um caminho. Pode-se dizer, entretanto, que uma das mais importantes vias para a renovação dos institutos privados, nos quais se inclui o Contrato, ocorreu através da adoção da metodologia civil-constitucional - a qual se elege neste trabalho como marco teórico para a abordagem do tema, voltando-se os olhos ao que se produziu no Brasil sobre o assunto.
Grande expoente da escola civil-constitucional é o italiano Pietro Perlingieri que influenciou, de modo direto, juristas dos mais diversos países, incluindo os civilistas brasileiros17. O amadurecimento de suas ideias sobre a leitura do Direito Civil à luz da Constituição passa pelas obras Produzione Scientífica e realtá pratica: una fratura da evitare (1969) e Norme costituzionale e rapporti di diritto civile (1979), desembocando na obra mais penetrante Il Diritto Civile nella Legalitá Costituzionale (1991)18.
No Brasil, a transformação do papel da ordem jurídica constitucional deu ensejo a assim denominada constitucionalização do Direito Privado - significativamente qualificada como uma autêntica “Virada de Copérnico”, de acordo com a inspirada formulação de Luiz Edson Fachin.
Busca-se, antes de mais nada, através da metodologia interpretativa da normalística civil, a unidade do sistema, deslocando o Direito Civil, suas regras e princípios, para a tábua axiológica da Constituição Federal de 198819. Paulo Lôbo define a constitucionalização do Direito Civil como “o processo de elevação ao plano constitucional dos princípios fundamentais do Direito Civil, que passam a condicionar a observância pelos cidadãos, e a aplicação pelos tribunais, da legislação infraconstitucional”20.
Especificamente na seara contratual, ler o Código Civil, à luz da Constituição, implica o distanciamento do individualismo e da patrimonialidade contratual. O deslocamento dos parâmetros de interpretação do contato no sistema civil-constitucional, coloca o indivíduo concreto - e a dignidade que a ele é inerente - no centro das atenções21.
A Constituição Federal brasileira de 1988 tem como foco primordial a proteção do ser humano em seu aspecto existencial, vetor este que se desloca para o Direito Contratual. Assim, apesar de o contrato possuir evidente função econômica, a produção de riquezas não é seu fim único e precípuo, eis que o contrato, em última análise, deve ser uma ferramenta para a emancipação da pessoa humana - eis o germe do conceito pós-moderno ou contemporâneo de contrato.
Paulo Nalin, sob a perspectiva metodológica civil-constitucional, propõe a formulação de um “conceito pós-moderno de contrato”. De acordo com esta concepção, contrato é “relação jurídica subjetiva, nucleada na solidariedade constitucional, destinada à produção de efeitos jurídicos existenciais e patrimoniais, não só entre os titulares subjetivos da relação, como também perante terceiros”22.
Os princípios basilares do Direito Contratual moderno, nesse contexto, não restaram integralmente superados, mas foram mitigados por novos princípios de matriz constitucional23. O contrato, desta forma, como expõe Carlos Pianovski Ruzyk, pode ser visto como “um instrumento de livre desenvolvimento da personalidade”, para a realização de aspirações existenciais, as quais, sob a lente do autor, expressam-se em termos de liberdade positiva24.
A releitura do Direito Contratual não se limita ao contexto brasileiro. No âmbito da doutrina internacional fala-se, recorrentemente, desta mudança de paradigma. Roger Brownsword, por exemplo, destaca que: “Hoje, o propósito do Direito Contratual provavelmente será colocado em termos mais qualificados, servindo para proteger ou cumprir as expectativas razoáveis de homens e mulheres honestos”25.
Os contratos internacionais também sofreram reflexos com as mudanças ocorridas no seio da sociedade e, apesar de não ser fácil apontar uma simples transposição da teoria do Direito Contratual contemporânea “interna” aos contratos internacionais, uma área de influência e diálogo entre ambos pode ser observada26.
Exemplo disto é a Convenção das Nações Unidas sobre Contratos de Compra e Venda Internacional de Mercadorias que traz em seu conteúdo disposições para a realização de contratos mais justos, como o art. 7º (1)27, que salvaguarda o respeito à boa-fé no comércio internacional.
No mesmo caminho, o Instituto Internacional para a Unificação do Direito Privado (UNIDROIT) - organização intergovernamental independente, cujo objetivo consiste em estudar os meios de harmonizar e de coordenar o Direito Privado entre os Estados - lançou no ano de 2010 os “Princípios da UNIDROIT” relativos aos contratos celebrados no comércio internacional, que tem como função originária reduzir a imprevisibilidade relativa ao direito aplicável às relações contratuais internacionais, tendo como um dos dispositivos mais importantes o art. 1.7 que dispõe que: “Cada uma das partes deve comportar-se segundo os ditames da boa-fé no comércio internacional”28. Tais princípios, aliás, foram desenhados com vistas a proteger a parte mais fraca da relação contratual29.
Outro exemplo da nova faceta do Direito Contratual - e talvez um dos mais significante - é a incorporação de cláusulas contratuais em contratos celebrados entre empresas dos mais diversos locais do globo, que visam proteger e promover os direitos humanos, a fim de evitar violações e abusos pelas partes contratantes.
A realidade dos negócios vem demonstrando a aproximação cada vez mais estreita entre as políticas sociais e as práticas de mercado. Nesse contexto, um dos instrumentos de regulação de tais práticas é o contrato que fixa ethical standards ou “cláusula éticas”, as quais determinam obrigações excepcionais do ponto de vista econômico, pois relativas aos direitos humanos e às políticas de emancipação social. O contrato, em tal perspectiva, deixa de ser o instrumento de atribuição proprietária pela circulação de bens, passando a ser instrumento de consagração da pessoa humana, a partir de diretivas dos mercados e dos consumidores que dele se servem
Pode-se dizer que, no contexto das “cláusulas éticas”, a disciplina do contrato não está limitada unicamente ao interesse das partes, mas, também, a interesses socialmente legitimados que passam a incidir na relação contratual30. Tais interesses, como se verá adiante, podem, entre outros, dizer respeito aos consumidores, ao meio ambiente, às relações de trabalho, às práticas de corrupção.
É sob esta visão, isto é, de que o contrato se põe como um instrumento de emancipação da pessoa humana e de realização de políticas de emancipação social, é que serão traçadas as próximas linhas deste artigo, aprofundando-se o tema das denominadas “cláusulas éticas”.
3 AS “CLÁUSULAS ÉTICAS”: A UTILIZAÇÃO DOS CONTRATOS COMO MEIO DE PROTEGER E PROMOVER OS DIREITOS HUMANOS
Como se bem sabe, o papel das empresas mudou diametralmente. Se, em um primeiro momento, o propósito único e principal da atividade empresarial era a geração de lucros, hoje, é possível dizer que as empresas buscam muito mais do que isso - assumindo responsabilidades e obrigações que sempre foram vistas como deveres dos Estados31, como a proteção e a promoção dos direitos humanos.
A mudança de paradigma no âmbito empresarial se deve, entre outros motivos, aos benefícios que as empresas colhem quando se comprometem com políticas de responsabilidade social. Segundo Claude Fussler, 76 companhias de capital aberto e publicamente comprometidas com políticas de responsabilidade social, conforme o Dow Jones Sustainability Index (DJSI World Index) tiveram uma sobre-avaliação de suas ações de 3,7%, entre junho de 2001 e junho de 2004, o que demonstra que a reputação social de uma empresa pode se converter em benefícios econômicos32.
D’outra sorte, uma abordagem oposta demonstra que um comportamento antiético não gerará lucros: “se você pensa que se adequar a padrões éticos é caro, tente não se adequar”, provocam Klaus Leisenger e Ingeborg Schewenzer33.
O desenvolvimento de uma política interna de direitos humanos no âmbito das empresas pode encontrar expressão em diversos mecanismos para a sua efetivação. A incorporação de standards éticos nos contratos celebrados por estas empresas é um deles.
Como uma consequência da nova tendência mundial de aproximação entre as empresas e os direitos humanos, atualmente, há uma grande preocupação das empresas com a conduta de seus fornecedores e parceiros contratuais, afastando-se aqueles que, de alguma forma, possam estar violando direitos humanos (seja porque se utilizam de trabalho escravo/infantil, porque violam normas ambientais ou regras e práticas anticorrupção).
Para se alcançar um patamar mais efetivo, os padrões éticos passaram a fazer parte dos contratos propriamente ditos, a partir da inserção das denominadas cláusulas éticas. A observância dos direitos humanos e a sua promoção, portanto, tornam-se obrigações contratuais, que estão sujeitas a todos os efeitos desta concepção.
Partindo da premissa de que o contrato não serve apenas para a circulação de riquezas, mas também para auxiliar na emancipação da pessoa humana e na implementação de políticas que visam ao desenvolvimento da sociedade, não é difícil visualizar que obrigações relacionadas aos direitos humanos estão sendo inseridas nos instrumentos contratuais.
A implementação das políticas de direitos humanos nas empresas por intermédio de cláusulas contratuais decorre, em sua grande maioria, pela incorporação das disposições previstas nos códigos de conduta das empresas nos instrumentos contratuais, transformando-se uma obrigação antes “voluntária” em uma obrigação legal34.
As “cláusulas éticas” correspondem, justamente, a um mecanismo jurídico para o cumprimento de obrigações relacionadas aos direitos humanos. Katerina Peterkova Mitkidis, utilizando-se da nomenclatura “sustainability contractual clauses” apresenta uma definição do que seriam estas disposições contratuais. Segundo ela, as “cláusulas contratuais de sustentabilidade” são previsões em contratos celebrados por empresas que acobertam questões sociais e ambientais, as quais não são diretamente conectadas com o objeto principal do contrato, mas prescrevem de que forma as partes devem se comportar na condução daquele contrato35.
Tendo como base a definição proposta por Katerina Mitkidis, pode-se dizer que as cláusulas éticas expressam obrigações acessórias - que não estão diretamente relacionadas com a prestação principal do contrato, mas que podem com ela guardar relação -, as quais estipulam o modus operandi que devem seguir as partes contratantes antes, durante e depois do período contratual36.
A maioria das questões cobertas pelas cláusulas éticas37 (ou cláusulas de sustentabilidade) relacionam-se com a proteção dos direitos humanos, com as condições de trabalho dos empregados das empresas contratantes, com a proteção ao meio ambiente e, ainda, com previsões anticorrupção38. Tal “lista” demonstra que as cláusulas éticas protegem os interesses gerais da sociedade em detrimento dos interesses privados das partes contratantes, sendo as matérias por elas abordadas concernentes a pessoas que estão “fora” da relação contratual.
A utilização dos contratos para a proteção de interesses extracontratuais socialmente relevantes não corresponde à concepção “tradicional” que colocam os instrumentos contratuais como mero instrumento de otimização de lucros; ao reverso, as empresas estão mais preocupadas em proteger seus interesses “a longo prazo” (como, por exemplo, com a construção de suas reputações), do que em maximizar lucros em uma relação contratual em específico.
A conhecida mudança de paradigma no âmbito do Direito Contratual, desta forma, é espelhada nas cláusulas éticas, consoante aponta Katerina Peterkova Mitkidis:
O uso de contratos para fins não relacionados à troca privada também altera a noção de contrato como tal. Da troca de promessas exigíveis juridicamente, os contratos estão se tornando ferramentas relacionais. Dos quadros das transações privadas, eles se movem para a regulamentação do comportamento em geral. De contratos entre partes independentes, eles se aproximam de um tipo de organização. Essas mudanças podem ser observadas em vários contratos comerciais internacionais. Contudo, é nas cláusulas contratuais de sustentabilidade que todas elas estão presentes ao mesmo tempo39.
As cláusulas éticas, nesse contexto, são mecanismos jurídicos privados para a proteção dos interesses sociais, que abrangem, mas não se limitam, a defesa e a promoção dos direitos humanos. Os valores éticos preconizados e defendidos pelas empresas são incorporados aos contratos, transformando-se em disposições contratuais válidas e passíveis de serem executadas40, de modo que a corporificação do respeito aos direitos humanos em obrigações contratuais dá às partes contratantes inúmeras possibilidades de “forçar” o seu cumprimento.
É possível afirmar, por tais motivos, que este instrumento normativo privado constitui uma das mais importantes alternativas para a mobilização do envolvimento do setor privado nas questões sociais, razão pela qual está sendo cada vez mais utilizado no âmbito do comércio internacional41/42.
As cláusulas éticas são encontradas, principalmente, em contratos de consumo, em contratos de trabalho, em contratos públicos, em contratos de prestação de serviços entre empresas, em contratos de investidores, em contratos de compra e venda de mercadorias - incluindo-se, nestes últimos, contratos celebrados entre empresas transnacionais e seus fornecedores.
O aprimoramento do diálogo entre os atores, com a utilização do contrato como um instrumento formal para a vinculação das partes aos direitos humanos, nesse cenário, abre uma variedade de possibilidades a efetivação destes direitos no âmbito empresarial.
4 A REGULAMENTAÇÃO JURÍDICA DAS CLÁUSULAS ÉTICAS NO ÂMBITO DO COMÉRCIO INTERNACIONAL
A incorporação de cláusulas éticas nos instrumentos contratuais transforma os valores e expectativas perquiridos pelas partes em obrigações contratuais, as quais estão sujeitas ao regime jurídico do Direito Contratual e todos os seus desdobramentos.
A inserção de standards éticos nos contratos, conforme vislumbrado no item acima, serve justamente para que obrigações voluntariamente assumidas pelos atores - no contexto deste trabalho: as empresas - tornem-se obrigações legais, juridicamente exigíveis43.
Surgem, nesse contexto, questões de ordens prática e jurídica como, por exemplo: É possível “forçar” o cumprimento destas disposições contratuais? Quais são as consequências do inadimplemento das cláusulas éticas? A sua não observância pode levar à rescisão contratual? Produtos e serviços ofertados em dissonância com padrões éticos são considerados adequados perante a lei?
Para responder a estas perguntas e, tendo em vista os variados tipos de contratos em que as cláusulas éticas são frequentemente inseridas, tanto no âmbito nacional, quanto no âmbito internacional, é necessário que se façam recortes metodológicos. A importância da matéria abordada neste trabalho relaciona-se com a possibilidade de efetivação dos direitos humanos por intermédio dos instrumentos contratuais. Os aspectos jurídicos que importam a tal fim, portanto, são aqueles que dizem respeito à exigibilidade dos standards éticos e, ainda, aos desdobramentos do seu descumprimento. Por isso é que voltaremos os olhos a estes pontos, deixando-se de lado outras possíveis abordagens jurídico-legais.
Além disso, um dos principais tipos de contratos em que estão inseridos os standards éticos são os contratos celebrados por empresas transnacionais. Levando isso em conta, optamos por voltar os olhos à regulamentação jurídica prevista na Convenção das Nações Unidas para a Compra e Venda Internacional de Mercadorias (CISG), que regulamenta grande parte do comércio internacional, já que, atualmente, mais de 70% das operações comerciais internacionais são de compra e venda de mercadorias44.
Tendo mais de 80 países contratantes atualmente45, a CISG apresenta-se como um dos melhores arcabouços jurídicos para cuidar das relações comerciais internacionais entre partes de países distintos, ao trazer resoluções práticas e econômicas para o fomento e desenvolvimento do comércio internacional.
Como bem aponta Pilar Perales Viscasillas: “Os méritos da CISG não podem ser mensurados levando em conta apenas o grande número de países que a ratificaram ou o enorme peso econômico destes Estados; seus méritos também guardam relação com a qualidade, a novidade e a ‘universalidade’ das soluções previstas de acordo com a mais pura técnica legislativa”46.
A Convenção regula os aspectos jurídicos relacionados aos contratos de compra e venda internacional de mercadorias, como, v.g., a formalização dos contratos, os direitos e obrigações do comprador e do vendedor, a responsabilidade por eventuais perdas e danos e o tratamento em casos de inadimplemento47.
Antes de analisarmos a Convenção aplicada ao contexto das cláusulas éticas, é importante destacar que a CISG foi pensada décadas antes do movimento que hoje é direcionado a contemplar ethical standards nos contratos e, por isso, a Convenção pode não trazer respostas precisas e específicas para a questão. Contudo, a CISG regulamenta casos concretos de modo sistêmico, sempre de acordo com seus princípios, de modo que, como aponta a doutrina, a disciplina legal da Convenção é totalmente aplicável às cláusulas éticas48.
O ponto de partida para a análise da regulamentação jurídica das cláusulas éticas pela Convenção das Nações Unidas sobre Contratos de Compra e Venda Internacional de Mercadorias é o que se denomina de conformidade do produto ou do bem - tema que se relaciona com a natureza jurídica do descumprimento do contrato frente à performance das partes contratantes em relação às cláusulas éticas.
A conformidade dos produtos comercializados sob a égide da CISG, isto é, a adequação dos bens que são objeto dos contratos internacionais de compra e venda de mercadorias está disciplinada no art. 35 da Convenção, que dispõe que:
(1) O vendedor deverá entregar mercadorias na quantidade, qualidade e tipo previstos no contrato, acondicionadas ou embaladas na forma nele estabelecida. (2) Salvo se as partes houverem acordado de outro modo, as mercadorias não serão consideradas conformes ao contrato salvo se: (a) forem adequadas ao uso para o qual mercadorias do mesmo tipo normalmente se destinam; (b) forem adequadas a algum uso especial que, expressa ou implicitamente, tenha sido informado ao vendedor no momento da conclusão do contrato, salvo se das circunstâncias resultar que o comprador não confiou na competência e julgamento do vendedor, ou que não era razoável fazê-lo49.
Da leitura do dispositivo legal, percebe-se que a discussão acerca da conformity of goods - isto é, a conformidade/adequação do produto comercializado - emerge apenas e tão somente os aspectos físicos do produto.
Contudo, apesar de o art. 35 tratar, primordialmente, da não conformidade “física” (quantidade/qualidade) do objeto, os juristas que discutem o assunto entendem que a conformidade é estendida às circunstâncias legais e factuais que envolvem a relação contratual, entre as quais se insere o modus operandi descrito nas cláusulas éticas50.
Assim, sob a luz da Convenção e de seus princípios, o que se tem defendido é que a não observância das cláusulas éticas deságua na não conformidade do produto, nos termos do art. 35 (1) da CISG.
Carola Glinski esclarece a situação: “O conceito de conformidade não diz respeito apenas às características relacionadas aos aspectos físicos dos produtos em questão, mas também às circunstâncias em que o produto foi produzido”51.
No mesmo sentido, Paulo Nalin: “O desrespeito aos padrões éticos afeta a qualidade do produto, a qual deve ser compreendida em todas as suas dimensões, mesmo porque a violação desses padrões raramente leva à inutilidade física do produto”52.
A conformidade do bem de acordo com standards éticos também se aplica a alguns casos em que os contratos não contêm - nem expressamente e nem implicitamente - nenhuma cláusula ou detalhe acerca do atendimento a valores éticos (art. 35 (2)(b) da CISG).
Nessa hipótese em específico, deve se levar em conta o propósito que o bem objeto do contrato deve servir - tratam-se, por exemplo, daqueles produtos que são comercializados em mercados que demandam padrões éticos na produção do bem53. A destinação do produto nestes casos deve ser conhecida pelo vendedor no momento da conclusão do contrato.
Uma vez verificada a desconformidade do bem em razão da não observância dos valores éticos, seja na hipótese do art. 35 (1), seja na hipótese do art. 35 (2;b), o comprador deve notificar o vendedor de acordo com os arts. 38 (1)54 e 39 (1)55 (2)56 da CISG.
O vendedor que entrega produtos em desacordo com o entabulado pelas partes - no cenário aqui analisado, os valores éticos - fica sujeito às consequências jurídicas da “não conformidade” dos bens (non-conformity of goods): são os “remédios” (remedies) previstos na CISG.
A Convenção fornece quatro soluções distintas para a hipótese de não conformidade dos produtos comercializados: a primeira, é a performance específica da obrigação (art. 46); a segunda é a resolução do contrato (arts. 25 e 49(1)(a)); a terceira é a indenização das perdas e danos (arts, 45 (1) (b) e 74); e a quarta é a redução do preço (arts. 45 (1) (a) e 50).
O primeiro remédio, consistente na performance específica da obrigação, encontra previsão legal no art. 46 da Convenção57. Considerando que a hipótese aqui tratada diz respeito à não conformidade dos bens, a performance específica consiste na substituição dos produtos: “Nos contratos de compra e venda, o comprador raramente pode exigir cumprimento específico ao exigir que o fornecedor mude seus métodos de produção e entregue produtos com a emoção correta”58.
Entretanto, esta hipótese é rara, eis que na maioria das vezes, uma vez transgredidos os standards éticos pelo vendedor, o comprador perde o interesse na transação, optando por rescindir o contrato59.
Há que se advertir, contudo, que a rescisão do contrato, segundo remédio previsto na CISG, não se dá de forma automática. A Convenção adota o princípio da preservação do contrato, sendo a resolução contratual a última opção legal: para que o contrato possa ser rescindido, a conduta da parte faltosa deve configurar uma quebra fundamental do contrato (fundamental breach), resultante de uma falha essencial na performance contratual (substantial deprivation):
Tendo em vista o caráter internacional dos contratos regidos pela CISG e a importância de preservar os negócios internacionais, especialmente a exportação e a importação, bem como as peculiaridades que cercam os comerciantes de várias culturas legais, a rescisão do contrato é a última opção oferecida pela CISG e, portanto, o descumprimento contratual não é suficiente para a rescisão, devendo o inadimplemento ser substancial (violação fundamental), resultante de uma falha essencial no desempenho (privação substancial)60.
O art. 25 da Convenção define com precisão o que seria a fundamental breach:
A violação ao contrato por uma das partes é considerada como essencial se causar à outra parte prejuízo de tal monta que substancialmente a prive do resultado que poderia esperar do contrato, salvo se a parte infratora não tiver previsto e uma pessoa razoável da mesma condição e nas mesmas circunstâncias não pudesse prever tal resultado61.
Em se tratando das cláusulas éticas, se as partes, explícita ou implicitamente, as inseriram no contrato, a sua não observância pode configurar uma violação essencial do contrato, eis que, nestas situações, o atendimento a padrões éticos mostra-se como um interesse essencial de uma ou de ambas as partes. Somado a isso, a rescisão contratual, muitas vezes, é a única maneira de a parte inocente mostrar a terceiros (consumidores, acionistas etc.) que não compartilha de práticas eticamente deficientes.
A configuração da fundamental breach nas hipóteses de violações a cláusulas éticas, todavia, não é regra geral que se aplica indiscriminadamente a todos os casos. Cada caso concreto demanda a aferição das circunstâncias que os envolve. E, neste ponto, exsurgem duas considerações importantes, que são bem destacadas por Renata Steiner: “a primeira delas no sentido de que a interpretação das expectativas contratuais leva em consideração a formatação conferida pelas partes ao contrato (...) A segunda (...) de que a quebra será fundamental quando romper tais expectativas”62.
O outro remédio previsto na Convenção em casos de não conformidade dos produtos é a indenização das perdas e danos (arts. 45 (1) (b)63 e 74 da CISG).
A CISG prevê o remédio reparatório como complementar aos demais remédios por ela regulados, isto é, a parte prejudicada pelo descumprimento contratual tem a faculdade de “escolher entre a utilização de diferentes formas de solução do inadimplemento e, em todas elas, demandar suplementarmente eventuais danos sofridos em decorrência do descumprimento contratual”64.
A primeira forma de compensação possível em caso de inadequação do produto por violação a standards éticos é através da execução de cláusula penal que pode ter sido inserida pelas partes nos contratos, cuja função é antecipar o montante a ser indenizado em caso de descumprimento contratual65. Em não sendo estipulada a cláusula penal, aplica-se o art. 74 da CISG que dispõe que a indenização abarcará os prejuízos sofridos e os lucros cessantes decorrentes do descumprimento contratual: trata-se do princípio consistente na recondução da parte lesada à situação em que estaria se o contrato tivesse sido perfeitamente cumprido66.
O último remédio previsto pela Convenção é a redução do preço, que está prevista nos arts. 45 (1) (a) e 50. Dispõe o art. 50 que: “se as mercadorias não estiverem conformes ao contrato, já tendo ou não sido pago o preço, o comprador poderá reduzir o preço proporcionalmente à diferença existente entre o valor das mercadorias efetivamente entregues, no momento da entrega, e o valor que teriam nesse momento mercadorias conformes ao contrato”.
Quando há transgressão dos standards éticos, o preço a ser pago pelo vendedor deve ser reduzido de forma proporcional à perda do valor do bem, já que produtos produzidos de acordo com padrões éticos são mais valorizados: “normalmente, um produto produzido de forma ética possui um valor mais alto quando comparados àqueles produzidos de forma anti-ética”67. Trata-se de uma hipótese intermediária entre a total reparação dos danos e a resolução do contrato68.
Os quatro remédios previstos na CISG, portanto, podem ser utilizados pelo comprador em caso de violação a cláusulas éticas.
Assim, como se vê, com as adequações e interpretações legislativas cabíveis, o regime jurídico da Convenção das Nações Unidas sobre Contratos de Compra e Venda Internacional de Mercadorias é compatível com as cláusulas éticas, possibilitando que obrigações atinentes aos direitos humanos sejam “transportadas” para instrumentos jurídicos inequivocamente “exequíveis” - como os contratos.
5 CONSIDERAÇÕES FINAIS
Ultrapassadas as digressões propostas pelo presente estudo, faz-se importante tentar colher os frutos que até aqui restaram maduros.
Tem sido referido ao longo do texto que os valores existenciais - ou éticos - passaram a ser incorporados nas atividades empresariais, do que, certamente, não estão excluídas as relações contratuais travadas pelos entes privados no âmbito comercial.
A convergência entre os contratos e os valores éticos, como bem aponta Julia Ruth-Maria Wetzel, criou padrões éticos mínimos a serem seguidos pelas corporações, de forma que a submissão a regras e standards na atividade empresarial resultaram na criação de uma cultura corporativa viável e sustentável69. As cláusulas éticas, nessa conjectura, aparecem como ferramentas para o diálogo entre os direitos humanos e as atividades empresariais, auxiliando na integração dos standards éticos aos negócios.
A importância da incorporação das cláusulas éticas nos contratos celebrados por empresas decorre, principalmente, do fato de que, ao tornar a observância dos direitos humanos uma obrigação contratual, as partes estão sujeitas aos regimes jurídicos que regulamentam a relação contratual travada, como o da CISG, abrindo-se um leque de possibilidades para a efetivação destes direitos.
Por este e outros motivos, entendemos que as cláusulas éticas podem contribuir, e muito, para o respeito e a promoção dos direitos humanos no campo dos negócios.
Frente à concepção de que o contrato é um instrumento de emancipação da pessoa humana, as cláusulas éticas se mostram como um exemplo concreto - e muito cristalino - de que é possível se falar em ética e solidariedade no campo das relações econômicas, com a efetiva proteção e promoção dos direitos humanos pelas empresas.