Introdução
A automedicação envolve o uso de medicamentos não prescritos pelo consumidor para tratar doenças ou sintomas que este reconhece. Implica também o uso continuado ou intermitente de medicação prescrita pelo médico para doenças crónicas ou sintomas recorrentes. A automedicação é um fenómeno frequente e usado há muitos anos e a sua incidência e distribuição é descrita pela organização mundial de saúde (WHO, 2000).
A prática da automedicação está em ascensão em todo o mundo e constitui-se um grande problema de saúde pública pela sua prevalência em países desenvolvidos e em desenvolvimento (Gelayee, 2017). Sendo desencadeada por fatores económicos, políticos e culturais, aos quais estão associados, o desperdício de recursos, o aumento da resistência a agentes patogénicos e graves implicações para a saúde (Araia, Gebregziabher, & Mesfun, 2019).
Estudo realizado sobre esta problemática demonstra que existe uma grande prevalência da prática da automedicação não responsável pelos estudantes de instituições de ensino superior (IES) (Castro, et al., 2016), o que releva a necessidade de um melhor conhecimento sobre os fatores associados a esta prática e planear intervenções que promovam a responsabilização e conscientização desta população (Alfaro-Mora, et al., 2019; Ortiz, et al., 2019). Pretendemos com este estudo caraterizar a prática da automedicação em estudantes do ensino superior da saúde de duas IES da região centro e norte de Portugal.
Enquadramento/fundamentação teórica
Atualmente, a automedicação é um fenómeno social e cultural que consiste num comportamento global
comum que gera um problema na saúde pública. Muitos jovens e adultos assumem esta prática sem conhecer os possíveis riscos que isso implica para a sua saúde. Posto isto, a automedicação consiste na seleção e uso de medicamentos por indivíduos para tratar condições ou sintomas autorreconhecidos ou diagnosticados (Haque, et al., 2019).
A automedicação responsável define-se como um autocuidado em saúde em que o indíviduo assume um papel de gestor do processo saúde-doença, baseado na responsabilidade e na procura de informação fidedigna por um profissional de saúde (Ortiz, et al., 2019). Esta participação apresenta-se como uma vantagem para o sistema de saúde, na medida em que, há uma gestão mais racional de doenças menores, evitando-se consultas médicas desnecessárias (Ortiz, et al., 2019).
A prática pode comprometer o bem-estar humano e resultar em graves complicações provocadas pelo uso frequente de medicamentos não sujeitos a receita médica, como dosagem inadequada, duplicação de fármacos, interação medicamentosa, falha no tratamento, ocultação de problemas de saúde, sintomas e atraso na prescrição do tratamento adequado (Alshogran, et al., 2018; Castro, et al., 2016). A transição para o ensino superior está marcada por um forte impacte no desempenho académico e comportamental, necessitando de intervenções específicas com vista à minimização de efeitos secundários relacionados com alteração da dinâmica familiar, adaptação a um sistema de ensino diferente, ansiedade decorrente de múltiplas adaptações, entre outros (Príncipe, 2019).
Neste sentido, as IES desempenham um papel fundamental enquanto agentes de promoção da saúde dos estudantes, melhorando o perfil de saúde da comunidade académica através do desenvolvimento do ensino, da investigação e partilha de conhecimentos, contribuindo ainda, para a avaliação da eficácia de programas de intervenção em educação para a saúde (Príncipe, 2019). É importante realçar que a prevalência da prática da automedicação na comunidade académica é elevada. Verifica-se que os estudantes de IES com fácil acesso à internet têm uma grande quantidade de informação disponível. No entanto, nem sempre é fidedigna levando a uma prática não adequada (Alfaro-Mora, et al.,2019).
Vários estudos mostraram que as cefaleias, febre, doenças do foro gastrointestinal e infeções do trato respiratório são algumas das condições médicas comuns que motivam à automedicação, sendo esta mais prevalente entre as mulheres em relação aos homens (Alfaro-Mora, et al., 2019; Orellana, et al., 2019; Gelayee, 2017; López-Cabra, et al., 2016), devido à maior prática de partilha de medicação (Gelayee, 2017).
Relativamente aos estudantes do ensino superior da área da saúde, a autoconfiança, as experiências anteriormente bem-sucedidas e os conhecimentos adquiridos durante o curso sustentam o exercício da prática da automedicação (Gama & Secoli, 2017).
É de extrema importância desenvolver programas de educação em saúde relativamente aos riscos da automedicação inadequada (Gelayee, 2017). A Organização Mundial de Saúde reforça a necessidade da promoção da saúde na automedicação responsável utilizando medidas que tornem esta prática mais segura e eficaz. A conscientização e o conhecimento sobre os malefícios e benefícios da automedicação devem ser aprofundados entre os estudantes de IES. Campanhas de conscientização sobre medicamentos e saúde bem como sessões educacionais nas IES podem constituir estratégias de forma a colmatar estas lacunas (Alshogran, et al., 2018).
Face a esta problemática, foi nosso propósito desenvolver um estudo com estudantes do ensino superior para perceber a dimensão do problema. A questão que norteia o estudo: Qual a prevalência e os principais motivos da prática da automedicação nos estudantes do ensino superior da saúde?
Metodologia
Estudo de natureza quantitativo e descritivo. A população selecionada foram estudantes do ensino superior da saúde de duas instituições da região centro e norte de Portugal que consentiram participar no estudo de forma voluntária. Foram incluídos os estudantes do 1º Ciclo de estudos das licenciaturas das respetivas instituições, com idade igual ou superior a 18 anos. A amostra é não probabilística por conveninência, tendo participado no estudo 301 estudantes. Como instrumento de recolha de dados foi construído um questionário online (Googledocs) tendo por base a evidência científica acerca do fenómeno em análise. Este questionário é operacionalizado por respostas fechadas e composto por duas partes. A primeira parte permite a caracterização sociodemográfica e recolha de dados acerca dos recursos de saúde e a segunda parte foi constituída para conhecer os fatores associados à prática da automedicação. A recolha de dados decorreu no período compreendido entre setembro e outubro de 2019. O questionário foi submetido a pré-teste numa escola congénere, a estudantes do 1º Ciclo dos Cursos da área da saúde, do qual não resultou qualquer alteração ao questionário. Para o tratamento e análise dos dados quantitativos recorreu-se a estatística descritiva, com recurso ao Statistical Package for the Social Sciences (SPSS) versão 23.0. A participação no estudo foi voluntária, sendo os participantes informados que poderiam desistir a qualquer momento, sem causar qualquer consequência negativa ou prejuízo, o que não se verificou. O anonimato e a confidencialidade do estudo foram garantidos. Podemos ainda garantir que todos os aspetos éticos foram respeitados neste estudo, bem como os direitos fundamentais. Para o estudo obteve- se autorização pela Comissão de Ética e pela Unidade de Investigação e Desenvolvimento, (parecer nº02/2019) e autorização dos Presidentes dos Conselhos de Direção das respetivas escolas.
Resultados
Na análise do estudo foram incluidos 301 estudantes, sendo 109 da Escola Superior de Saúde da zona centro e 192 estudantes da Escola Superior de Enfermagem da zona norte. No que concerne aos cursos frequentados, 95,7% (n=288) estudam Enfermagem, 2,7% (n=8) Acunpuntura e 1,7% (n=5) Osteopatia.
A amostra é constítuida por 79,4% (n=239) indivíduos do sexo feminino e 20,6% (n=62) do sexo masculino, sendo a média de idades 24,87 ± 8,1 anos, variando entre os 18 e os 51 anos. Como recursos de saúde, 68,8% (n=297) afirmam ter enfermeiro de família e 81,7% (n=246) referem que têm médico de família.
Os estudantes do ensino superior apresentaram um consumo de automedicação de 93,4% (n=281). Na tabela 1 apresentamos a frequência com que os estudantes recorreram à automedicação nos últimos 6 meses.
Relativamente aos sinais e sintomas mais frequentes para a prática da automedicação constatou-se que as cefaleias 29,8% (n=199), dismenorreia 13,5% (n=90), febre 9,9% (n=66), dores musculares 9,6% (n=62) e alergias 8,2% (n= 55) foram os mais descritos. Constatou-se que os medicamentos mais usados pelos estudantes foram: os analgésicos/antipiréticos 34,6% (n=212), os anti-inflamatórios 29,2% (n=179), vitaminas e sais minerais 7,4% (n=45), anti-histamínicos 6% (n=37) seguindo-se os antibióticos 4,9% (n=30). Os menos utilizados foram os psicofármacos 0,2% (n=1).
Pretendeu-se também saber durante quanto tempo, os inquiridos utilizaram o mesmo medicamento e as respostas obtidas foram que 82,6% (n=232) utilizou o mesmo fármaco durante 1 a 3 dias, 10% (n=28) durante 4 a 6 dias e 1,8% (n=5) durante 10 a 12 dias. O estudo revelou que 49,8% (n=158) foram influenciados por prescrições anteriores, seguido por familiares 27,8% (n=88) e ainda autoconhecimento 9,8% (n=31). Os estudantes procuraram maioritariamente informação na bula 27% (n=130) antes de se automedicarem, referindo de seguida que recorrem aos profissionais de saúde nomeadamente ao farmacêutico 21% (n=101) e ao enfermeiro 16,8% (n=80). Alguns referiram ainda que recorreram à internet 14,3% (n=69) como fonte de informação.
Relativamente aos motivos que levaram os estudantes a recorrer à automedicação (tabela 2), verificou-se que as experiências anteriores foram o motivo mais evidente, obtendo uma percentagem de 25,2% (n=133).
Discussão
Este estudo demonstra que a frequência de automedicação nos estudantes do ensino superior da saúde é elevada (94,3%), indo de encontro aos resultados de um estudo nacional (Castro, et al., 2016), e sendo também corroborado por estudos internacionais (Malak & AbuKamel, 2018; Al-Ameri, Al- Badri, & Lafta, 2017).
Vários estudos indicam que a automedicação é mais frequente nas mulheres, devido à maior prática de partilha de medicação, maior procura por cuidados e pelas particularidades relacionadas à saúde da mulher durante o ciclo vital o que é concordante com o resultado deste estudo (Gelayee, 2017; Helal & Abou- ElWafa, 2017).
Na prática da automedicação pelos estudantes, os analgésicos/antipiréticos foram os mais utilizados seguindo-se os anti-inflamatórios e as vitaminas e sais minerais, estes dados são coerentes com outros estudos (Ibrahim & Halboup, 2019; Norori, 2019). De acordo com Norori (2019), o consumo de medicamentos desencadeia uma elevada prevalência de intoxicação, o que evidencia uma necessidade urgente em informar e educar sobre o uso seguro de medicação.
Também a antibioterapia por iniciativa própria constitui um problema de saúde pública, visto que o uso difundido e indevido de antibióticos pode levar ao desenvolvimento de bactérias resistentes (Gama & Secoli, 2017). Embora no estudo, os participantes sejam da área da saúde, os resultados alinham com diversos estudo que comprovam que os estudantes recorrem à antibioterapia sem receita médica (Bohomol & Andrade, 2020; Ortiz, et al., 2019; Alshogran, et al., 2018; Hu, et al., 2018; Al-Ameri, Al- Badri, & Lafta, 2017). Sendo assim surge a necessidade de promover intervenções de forma a consciencializar as pessoas a cumprir a toma de antibióticos na sua totalidade e a não os consumirem sem prescrição médica (Bohomol & Andrade, 2020).
Os principais sintomas que levam à automedicação são as cefaleias, dismenorreia, febre e dores musculares sendo os mais referidos também pelos estudantes deste estudo (Araia, Gebregziabher, & Mesfun, 2019; Ibrahim & Halboup, 2019; AlRaddadi, et al., 2017; Gama & Secoli, 2017). A constipação e a gripe são apontadas como as causas mais comuns para a prática da automedicação segundo diversos autores (Ibrahim & Halboup, 2019; AlRaddadi, et al., 2017), o que pode justificar este resultado.
Prescrições anteriores, aconselhamento pelos familiares e o autoconhecimento, constituem-se como fatores que mais influenciam a prática da automedicação, estando em consonância com outros estudos (Alshogran, et al., 2018; Hu, et al., 2018; Helal & Abou-ElWafa, 2017). Segundo Orellana, et al., (2019) as principais influências para a prática foram os familiares, amigos e profissionais de saúde, nomeadamente o farmacêutico, o que se coaduna com os resultados do estudo de Helal & Abou-ElWafa (2017).
De acordo com o presente estudo e em conformidade com a revisão da literatura, o farmacêutico é o principal profissional de saúde que os estudantes recorrem para obter informação. A OMS refere que este deve desempenhar um papel fulcral em ajudar as pessoas a realizarem escolhas informadas sobre a automedicação (Castro, et al., 2016).
Os nossos resultados vão de encontro aos estudos de Gama & Secoli, (2017), Helal & Abou-ElWafa, (2017) e Castro, et al., (2016) em que os principais motivos que os levaram à prática foram: as experiências anteriores, problemas de saúde ligeiros e a falta de tempo para recorrer aos serviços de saúde.
Conclusão
Este estudo demostra que a automedicação é uma prática evidente entre os estudantes do ensino superior de saúde e revela uma preocupação na medida em que apesar dos estudantes reconhecerem os riscos da prática, não a reduzem. O sintoma referido pelos estudantes mais frequente para a prática de automedicação é as cefaleias. Constate-se que os medicamentos mais consumidos são os analgésicos/antipiréticos. O estudo demostrou que este consumo estava relacionando com experiências anteriores, com uma frequência nos últimos 6 meses de 1 a 3 vezes. Neste sentido, é importante realçar que a educação para a saúde é fundamental para a consciencialização dos indivíduos sobre os riscos bem como sobre a prática de uma automedicação responsável.
Esta problemática deve ser abordada ao longo do curso, tendo em conta que estes jovens são os futuros profissionais de saúde e agentes promotores de saúde, pelo que é importante que estes minimizem os comportamentos de risco, tendo os profissionais de saúde um papel fundamental na promoção de uma automedicação responsável. A disponibilização de medicamentos deve ser controlada pelas autoridades de saúde através do desenvolvimento de estratégias preventivas e interventivas efetivas, de forma a garantir um uso apropriado de medicamentos.
No que concerne às limitações do estudo, a amostra não é representativa de uma dimensão nacional devido ao facto de ser reduzida e composta maioritariamente pelo sexo feminino. Além disso, o instrumento de recolha de dados utilizado não se encontra validado.
Sugerimos que futuramente se realizem estudos mais alargados de âmbito nacional acerca da problemática, de modo a conseguirmos ter uma visão mais exata do panorama nacional.
Os resultados reforçam a necessidade do desenvolvimento de estratégias promotoras de literacia para a saúde e automedicação, devido à sua importância na tomada de decisão, promoção da saúde e prevenção da doença o que se pode relacionar diretamente com a automedicação e ainda incentivar e implementar atividades de educação para a saúde junto dos estudantes de IES.