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New Trends in Qualitative Research

versão On-line ISSN 2184-7770

NTQR vol.13  Oliveira de Azeméis set. 2022  Epub 08-Set-2022

https://doi.org/10.36367/ntqr.13.2022.e707 

Artigo original

A população em situação de rua: As estratégias de planejamento intersetorial para o cuidado em saúde

The homeless population: Intersectoral planning strategies for health care

Daniele Carmo Queiroz1 
http://orcid.org/0000-0002-0280-0322

Renata Meira Veras1 
http://orcid.org/0000-0002-1681-1401

Ananda Genonádio1 
http://orcid.org/0000-0002-5986-9371

Adailton Alves da Costa Filho1 
http://orcid.org/0000-0002-3196-2910

1Universidade Federal da Bahia, Brasil


Resumo:

Introdução A população em situação de rua (PSR) se caracteriza por ser um grupo heterogêneo sem domicílio permanente que pernoita em logradouros públicos ou unidades de acolhimento provisórios. Nas últimas décadas essa população vem aumentando gradativamente, tornando-se urgente a criação de políticas públicas voltadas para esse segmento. Nesse sentido, questiona-se quais as orientações teórico-metodológicas utilizadas nas produções científicas acerca da PSR. Objetivo: Esse artigo tem como objetivo analisar a produção científica existente acerca dos programas e projetos desenvolvidos com a população em situação de rua. Método: Foi realizado a partir de uma revisão sistemática de literatura realizada nas bases de dados Scientific Eletronic Library Online (Scielo), Biblioteca Virtual em Saúde (BVS) e Literatura Latino Americana e do Caribe em Ciências da Saúde (Lilacs), com a utilização dos descritores e operadores booleanos (em maiúsculo): população de rua AND projeto. Resultados: Com base na análise dos 10 artigos selecionados, os resultados foram organizados e apresentados em três categorias: assistência social, cuidados em saúde e gestão pública da política. Conclusões: Assim, percebeu-se uma tendência em enfatizar a necessidade de políticas assistencialistas e o cuidado à saúde dessa população, incluindo as pessoas trans e as gestantes. A intersetorialidade foi, marcadamente, a estratégia apontada como diretriz política necessária para o planejamento de programas e projetos voltados para a PSR. Os resultados desse estudo indicam, portanto, para a necessidade de aumentar a produção científica acerca dessa população, assim como para a criação de políticas públicas intersetoriais que extrapolem as ações de assistencialismo, visando a promoção da saúde e qualidade de vida desses cidadãos.

Palavras-chave: População em situação de rua; Programas; Saúde; Intersetorialidade

Abstract:

Introduction The homeless population (PSR) is characterized by being a heterogeneous group without a permanent home that spends the night in public places or temporary shelters. In the last decades, this population has been increasing gradually, making it urgent to create public policies aimed at this segment. In this sense, the theorical- methodological guidelines used in scientific productions about PSR are questioned.; Goals; This article aims to analyze the existing scientific production about programs and projects developed with the homeless population. Methods Based on a systematic literature review carried out in the Scientifict Electronic Library Online (Scielo), Virtual Health Library (BVS) and Latin American and Caribbeand Health Sciences (LIilacs) databases, using of booleand descriptors and operators: homeless population AND project. Results Based on the analysis of the 10 selected articles, the results were organized and presented in three categories: social assistance, helath care and public policy management. Conclusions. Thus, there was a tendency to emphasize the need for welfare policies and health care for this population, including trans people and pregnant women. Intersectoriality was, markedly, the strategy indicated as a necessary political guideline for the planning of programs and projects aimed at PSR. The results of this study indicate, therefore, the need to increase scientific production about this population, as well as the creation of intersectoral public policies that go beyond welfare actions, aiming to promote the health and quality of life of these citizes.

Keywords: Homeless, Programs; Health, Intersectoriality.

1.Introdução

O Estado Brasileiro foi fundado a partir de um processo colonial violento que deixou grandes fissuras no modo como o país se organiza de maneira social, econômica e politicamente. Assim, estando marcado por uma grande desigualdade social, racismo estrutural e dificuldade no acesso às políticas públicas, é comum no Brasil a existência de pessoas que fazem das ruas o seu espaço de sobrevivência. A Política Nacional para a População em Situação de Rua (PNPR) caracteriza a População em Situação de Rua (PSR) como um grupo populacional heterogêneo que vive na extrema pobreza. Esse grupo vive e se sustenta, de forma temporária ou permanente, em logradouros públicos e áreas degradadas ou em unidades de acolhimento para pernoite temporário ou moradia provisória. Além disso, também apresentam vínculos familiares interrompidos ou fragilizados (Brasil, 2009). É importante a compreensão da heterogeneidade da PSR, das formas de se estar na rua e também do uso deste espaço, afinal são milhares de pessoas espalhadas de norte a sul do país. Entretanto, é possível encontrar similaridades nas histórias de vida dessas pessoas que, geralmente, são marcadas por desassistência, negação de direitos e processos de violências (violência doméstica, racismo, transfobia, homofobia e abuso sexual, por exemplo) (Calmon, 2020). A vivência nas ruas é marcada pela imprevisibilidade da vida, principalmente pela incerteza da alimentação. Além disso, essas pessoas estão à mercê de mudanças climáticas, de agressões - por parte do Estado, por parte de civis - e, também, são constantemente vítimas de operações de limpezas sociais. (Souza & Macerata, 2015) No ano de 2009 foi instituída a Política Nacional para a População em Situação de Rua - Decreto Presidencial 7.053/2009. A política é fruto da pressão feita pelos movimentos sociais, que obteve como resposta do governo federal a formação de um Grupo de Trabalho Interministerial - formado pelas áreas da saúde, dos direitos humanos, educação, habitação e cultura - (Amorim et al, 2017) e uma grande pesquisa nacional sobre a população. A Política Nacional para a População em Situação de Rua trouxe visibilidade para os problemas enfrentados pela PSR e, também, indicações de ações governamentais para as superações destas. Atualmente, no Brasil, tanto o Sistema Único de Saúde, quanto o Sistema Único de Assistência Social possuem serviços específicos para atendimento dessa população - respectivamente - o Consultório na Rua e o Centro POP. No entanto, paralelo a estes serviços, outros setores vêm desenvolvendo ações que objetivam a inserção social e profissional da população em situação de rua, assim como a melhoria da qualidade de vida. Nesse sentido, questiona-se qual a natureza e o enfoque teórico metodológico dos projetos voltados para a população em situação de rua? Assim, o presente artigo tem como objetivo analisar a produção científica existente acerca dos programas e projetos desenvolvidos com esse público, classificando-as quanto à natureza das ações e às estratégias teórico metodológicas utilizadas.

2.Metodologia

O estudo em questão tem como método uma revisão sistemática da literatura. Esse tipo de estudo é uma revisão de uma pergunta formulada que utiliza métodos sistemáticos e explícitos para identificar, selecionar e avaliar criticamente pesquisas relevantes e coletar e analisar dados desses estudos que serão incluídos na revisão. Estes estudos se baseiam na recomendação PRISMA (Preferred Reporting Items for Systematic Reviews and Meta-Analyses), utilizando o seu modelo atualizado de flow diagram (Galvão et al, 2015). Nesse estudo, a questão formulada foi: qual a natureza e o enfoque teórico metodológico utilizado nos programas voltados para a população em situação de rua? Nesse tipo de estudo, o PRISMA auxilia os pesquisadores a melhorarem o relato das revisões sistemáticas e meta-análises. Consiste em um checklist e um fluxograma de 4 etapas que organiza e orienta o relato das revisões, oferecendo maior transparência no processo de coleta e análise de dados. Os documentos obtidos nessa pesquisa pertencem ao domínio público e foram originados em instituições de ensino superior e centros de pesquisa, com o intuito de responder quais os projetos e propostas vêm sendo desenvolvidos para e com a população em situação de rua no Brasil. As buscas foram realizadas nas bases de dados Scientific Eletronic Library Online (Scielo), Biblioteca Virtual em Saúde (BVS) e Literatura Latino Americana e do Caribe em Ciências da Saúde (Lilacs), com a utilização dos seguintes descritores e operadores booleanos (em maiúsculo): população de rua AND projeto. As buscas aconteceram no mês de janeiro de 2022. Após a inserção dos descritores, os resultados da pesquisa totalizaram 3607 documentos, sendo 3466 na Scielo, 133 no BVS e 8 na Lilacs. Os critérios de inclusão na pesquisa foram: artigos completos e revisados por pares, publicados nos últimos 10 anos, nas línguas inglês e português e que tenham relação com o tema. Na Scielo, dos 3466 documentos, após o uso dos filtros previamente definidos, restaram 872 artigos. Após a leitura de todos os resumos, restaram 17 artigos, sendo os demais excluídos por não responderem ao objetivo deste estudo. Já na plataforma BVS, após a aplicação dos filtros, dos 133 artigos restaram 45. Todos foram lidos os resumos e após as exclusões, ficaram 13 artigos. Na Lilacs, foram encontrados 8 artigos, porém 7 deles foram excluídos por já constarem dentre os artigos obtidos em outras bases de dados, perfazendo apenas 1 artigo. Posteriormente, foi realizada a leitura na íntegra de todos os artigos, sendo excluídos 21 artigos que não apresentavam relação com o objetivo da pesquisa e com isso se mantiveram 10 artigos. As exclusões foram revisadas e discutidas por uma terceira pessoa. A tabela 1 resume as características da amostra dos artigos incluídos na pesquisa. O diagrama 1, esquematiza as etapas de seleção dos documentos realizada neste presente estudo.

Figura 1- Fonte: Autores do presente estudo (baseado na recomendação PRISMA 2020 - Page MJ, McKenzie JE, Bossuyt PM, Boutron I, Hoffmann TC, Mulrow CD, et al) 

Quadro 1: Características da amostra da revisão de literatura sobre os projetos desenvolvidos para população em situação de rua nos últimos 10 anos. 

Fonte: próprios autores

A técnica utilizada na etapa seguinte foi a análise de conteúdo dos artigos selecionados. Para Minayo (2001), uma das funções da análise de conteúdo, é a busca por resposta das perguntas formuladas. E, nesse processo, a elaboração de categorias é indicada por compilar os conteúdos, ideias e/ou expressões comuns para serem melhor apresentadas e discutidas. Assim, foram construídas três categorias principais para empreender as análises, a saber: a) Assistência Social (considerando os trabalhos que analisaram os projetos e atividades desenvolvidos no âmbito do Sistema Único de Assistência Social voltados para população de rua); b) Cuidado em Saúde (considerando os trabalhos que realizam discussões em torno do campo da saúde e/ou que realizam atividades nesse contexto) e c) Gestão pública da política (considerando os trabalhos que destacam o funcionamento dos serviços e programas a partir da perspectiva da gestão pública, seja evidenciando os desafios da implementação, ou comparando o modo de organização).

Outros temas que aparecem de modo minoritário e transversal nos trabalhos encontrados foram identificados nesta pesquisa como categorias secundárias, a saber: a) Intersetorialidade (nos trabalhos que destacam a importância do diálogo e na efetiva relação entre os diversos setores da rede com os serviços, programas e políticas voltados especificamente para a PSR); b) Formação Profissional (desde os trabalhos que reforçam a necessidade da experiência com a PSR na graduação até aqueles que problematizam o despreparo dos profissionais junto a PSR) ; c) Acessibilidade (os trabalhos que ressaltam as dificuldades de acesso da PSR) e d) Inclusão Social (os trabalhos que discutem a responsabilidade dos serviços, políticas e profissionais na inclusão da PSR, seja a partir da redução das iniquidades seja promovendo emancipação e auto-estima através do exercício da cidadania, da arte, do trabalho etc). O processo de organização e validação das categorias contou com o auxílio de um terceiro investigador. Após a categorização inicial dos resultados, estes foram apresentados e discutidos entre os demais autores e mais um terceiro investigador, tendo sido por fim, definida a categorização final do estudo. Na próxima seção, descrevemos como os trabalhos pesquisados se relacionam com essas categorias destacadas, e faremos uma discussão a respeito.

3.Resultados e Discussão

3.1 Assistência social

Foram agrupados 03 trabalhos nesta categoria que dizem respeito àqueles que relatam experiências ocorridas no contexto do Sistema Único de Assistência Social, especificamente em parceria com um Centro de Referência Especializado para População em Situação de Rua (Centro Pop), com um Centro de Referência Especializado de Assistência Social da População em Situação de Rua (CREAS POP) e com um serviço de acolhimento institucional para famílias e indivíduos em situação de rua, e que se dedicaram de alguma forma a problematizar o campo da Assistência Social e evidenciar as vicissitudes da população em situação de rua. O trabalho de Moraes e Macêdo (2020) apresenta um projeto de iniciação científica de uma Universidade de São Paulo. Esse projeto intitulado “Caminhos da Autonomia” foi desenvolvido no âmbito de um programa municipal que oferece acolhimento e serviços assistenciais a 150 pessoas em situação de rua. Esse projeto teve como propósito despertar esses indivíduos para as realidades individuais vivenciadas nas ruas compartilhadas no grupo, de modo a transformar suas histórias na busca pela autonomia. Apesar de anunciar como objetivo a autonomia da população, esse projeto estava circunscrito às ações assistencialistas já que enquadra em seu aporte teórico a necessidade da assistência social para construção da cidadania de grupos vulneráveis. Igualmente, a pesquisa de Pinho, Pereira e Lussi (2019) buscou identificar ações de inclusão produtiva realizadas por Centros Pop do Estado de São Paulo e a visão dos coordenadores desses serviços no que tange a dimensão do trabalho com a população em situação de rua. Tendo como objetivo investigar o estímulo à inclusão social da população em situação de rua através do trabalho desenvolvido nos Centros Pop, a ênfase é dada na potencialidade desses centros no apoio e intermediação do acesso aos direitos sociais. Por fim, identificamos ainda nesta categoria o trabalho de Silva et al. (2018). Trata-se de um relato de experiência sobre um projeto de extensão universitária na Universidade de São Carlos promovido junto ao Centro de Referência Especializado de Assistência Social da População em Situação de Rua (CREAS Pop) do município de São Carlos-SP. As estratégias de cuidado com essa população foram aplicadas através de oficinas de arte e da cultura. O foco dessa extensão era fortalecer as redes sociais de suporte para essa população. No entanto, em suas considerações finais, as autoras apontam para a necessidade de se oferecer práticas terapêuticas ocupacionais que poderiam dar sentido às trajetórias de vidas da população de rua. No que tange os recursos metodológicos, dois dos trabalhos analisados (Moraes e Macêdo, 2020 e Silva et al., 2018) tratam-se de relatos das intervenções realizadas com a população em situação de rua. No caso de Moraes e Macêdo (2020), formou-se um grupo reflexivo com temas previamente escolhidos em que se era ofertada escuta e a possibilidade de partilha entre os participantes, buscando “promover a interação entre os participantes, com intuito de ampliar suas perspectivas pessoais, seus processos de conscientização, enfim, promover a partilha de suas experiências de vida, buscando a transformação de sua realidade” (pág. 5). Foram realizados 15 encontros, todos se iniciavam por uma atividade disparadora e de acordo com os autores, através desses encontros, os resultados alcançaram os objetivos do projeto. Quanto ao trabalho de Silva et al. (2018), utilizou-se como estratégia a realização de oficinas de atividades que aconteciam semanalmente com propostas terapêuticas e ocupacionais. As temáticas e atividades eram escolhidas a partir de demandas pertinentes ao grupo, produzindo arte, dinâmicas e produtos que refletiram a cultura da rua. O artigo destaca as atividades mais relevantes que foram nomeadas de Dicionário, Trajetórias, Redes, Blog e Exposição Ética e Estética. Cada experiência citada anteriormente foi descrita bem como foram expostos alguns dos seus resultados e análises. De maneira geral, para os autores, a partir desses encontros foram mobilizadas as potencialidades, o protagonismo e ainda promoveram ampliação dos direitos sociais e humanos. Por fim, o estudo de Pinho, Pereira e Lussi (2019) se classifica como uma pesquisa qualitativa de caráter exploratório, descritivo e analítico. Os autores utilizaram dois instrumentos: um protocolo de identificação de dados pessoais e profissionais dos participantes e do seu local de trabalho (Centro Pop) e um questionário semiestruturado, com questões abertas e fechadas relacionadas à compreensão do aspecto da inclusão produtiva das pessoas em situação de rua e ações existentes/articuladas pelos Centros Pop. Neste estudo, participaram coordenadores de 13 Centros Pop do estado de São Paulo/SP, que receberam por e-mail formulário eletrônico via Google Docs . As análises das respostas das coordenações se dividiu de duas formas: o protocolo de identificação foi analisado descritivamente enquanto que as respostas abertas foi analisado por similitude e chuva de palavras através do software Iramuteq que organizou os os dados dos questionários em quatro grupos de vocabulário. De forma geral, os trabalhos que enfocam a necessidade da Assistência Social nos trabalhos desenvolvidos com a população em situação de rua reconhecem que se faz necessário construir propostas que (re)construam a dignidade da população em situação de rua, seja através de soluções mais concretas como possibilitar caminhos para o mercado de trabalho, através da formação de redes de apoio, pela garantia de direitos básicos ou quando proporcionam laços de afeto e espaços de escuta, em que possam “se sentir como gente”. Atrelado ao enfoque dado à assistência social nesses trabalhos, também identificamos nas suas discussões temáticas como inclusão social, acessibilidade e intersetorialidades.

3.2 Cuidado em Saúde

Essa categoria abrangeu 4 artigos que situavam seu olhar e suas práticas no cuidado à saúde da população em situação de rua. O relato de experiência publicado por Cunha et. al. (2020) objetivou compartilhar a vivência de estudantes de medicina de uma Universidade do Rio Grande do Norte nos cuidados à saúde da PSR. Os estudantes aplicaram suas intervenções junto ao Consultório na Rua, limitando as ações às rodas de conversa acerca de temas de saúde, tais como sífilis, HIV, hepatite, alcoolismo e, também, a higiene e primeiros socorros. Apesar de o enfoque do estudo ser a formação dos estudantes de medicina, há a discussão acerca dos cuidados à saúde dessa população, dificuldades encontradas nos serviços de saúde e a recomendação de ampliar a participação dos futuros médicos em atividades como essa, para que entendam as condições cotidianas enfrentadas nos Consultórios na Rua. O cuidado em saúde também foi assunto central na pesquisa acerca da população transexual em situação de rua publicada por Souza e Tanaka (2022). Tendo como objetivo analisar as representações sobre o cuidado prestado aos trans em situação de rua, foram entrevistadas 13 pessoas que estavam diretamente ligadas ao cuidado a pessoas transsexuais em situação de rua. A partir de uma perspectiva decolonial e interseccional, os autores destacaram as barreiras que impedem as pessoas transexuais de acessar os serviços de saúde adequados para sua situação. Alertam também para a necessidade de adequação tanto da oferta dos serviços de saúde como também da formação de profissionais da saúde para atuarem com essa população historicamente discriminada e estigmatizada. O artigo de Costa et al. (2015) teve como objetivo analisar as vivências das gestantes em situação de rua. Em parceria com a Secretaria de Assistência Social de Santos-SP, as autoras puderam encontrar as gestantes em situação de rua e entrevistá-las. A ênfase temática foi na fragilidade da assistência à saúde destas mulheres gestantes, no entanto, assim como requer a temática da vulnerabilidade social, também foi discutido a necessidade de aumentar o cuidado e proteção social desse público específico. Igualmente, a pesquisa de Rios et al. (2021) também se insere na seara do cuidado em saúde por apresentar a trajetória de duas usuárias em situação de rua marcadas pelo estigma de “casos complexos” e sua itinerância nos mais diversos serviços de saúde de modo a questionar as ofertas tradicionais, a relação verticalizada entre profissional-usuária, e por fim, o modo de operar em saúde que via de regra negligencia a potência, a singularidade e os desejos das PSR. O estudo evidenciou ainda a fragilidade das práticas em saúde habituais baseadas no modelo de “doença como guia”, a necessidade do trabalho intersetorial e a ruptura do saber/poder. Dessa forma, os casos ditos complexos demandam mais investimento das políticas, dos serviços e profissionais, pensadas a partir de uma ótica muitas vezes normatizadora e que não inclui as PSR. No que diz respeito às metodologias dos artigos apresentados, todos possuem abordagem qualitativa. O artigo de Cunha et al (2020) trata-se de um relato reflexivo de experiência que surge a partir das atividades propostas por estudantes de medicina, no projeto “Saúde nas Ruas” que ocorreu em 2019, na cidade de Mossoró- RN, em parceria com o Consultório na Rua, para a população em situação de rua. Já o artigo de Souza e Tanaka (2022) trata-se de uma pesquisa-ação onde foram realizados diversos encontros como, por exemplo, em grupos focais e seminários. Entretanto, os resultados do artigo são fruto das entrevistas, feitas com questões abertas, a 13 pessoas que trabalhavam com o cuidado em saúde de pessoas trans em situação de rua. As entrevistas ocorreram em locais variados e foram escolha dos participantes, seus conteúdos foram transcritos integralmente e analisados com o programa Qualitative Analyses Software Certified Partner® (NVivo® , versão 11). Além disso, a análise dos conteúdos foi feita com base na teoria da interseccionalidade que articula gênero, raça e classe para a discussão de um fenômeno. Em seu artigo, Costa et al. (2015) realizaram um estudo de narrativas de memórias de vida. A coleta de dados foi realizada com 13 mulheres adultas em situação de rua, gestantes ou puérperas com filhos de até 2 anos cuja gestação tenha ocorrido nas ruas. As entrevistas foram abertas e seguiram o modelo de história oral de memórias de vida. Para análise foi utilizado o método de análise do conteúdo e feito o agrupamento em categorias semânticas com base em Minayo (2004). Como resultado, obtiveram-se 4 principais categorias: vida na rua; cuidado e gestação; projetos futuros; e rede pública de serviços. Por fim, Rios et al. (2021) apresentam uma composição fruto do resultado de duas pesquisas de abordagem cartográficas. Foram escolhidas, pelos pesquisadores, duas usuárias-guias em seus territórios e que guiaram a pesquisa. Em cada pesquisa foi produzido um diário de campo cartográfico e as usuárias - guias trouxeram análises sobre o modo de funcionamento das políticas públicas para as pessoas em situação de rua. Todas as produções da categoria “Cuidado em Saúde” surgiram de algum contato prévio dos pesquisadores com serviços da rede de atendimento às pessoas em situação de rua, principalmente, o Consultório na Rua. Eles expressam como os determinantes sociais em saúde impactam diretamente na vida dessas pessoas. É comum encontrar nessas produções os relatos de violências sofridas, desde a visão estigmatizada (“violentos”, “drogados”, “sujos”), violência física (por pares e por parte do Estado - polícia), nesse contexto as mulheres e pessoas trans são, especificamente, atravessadas pelas violências de gênero, por exemplo, estupros; exposição a fenômenos climáticos e uso de substâncias psicoativas - recreativo, abusivo e como forma de defesa as intérpretes das ruas. Além disso, os textos refletem a importância do Sistema Único de Saúde para o atendimento e cuidado na saúde dessa população. Entretanto, apresentam as inúmeras dificuldades relatadas para o acesso a esses serviços. Foi possível encontrar nos artigos relatos de maus tratos nos serviços, por parte dos profissionais de saúde. Além das burocracias que impedem o acesso como, por exemplo, a exigência do comprovante de residência.

3.3 Gestão Pública da Política

Esta categoria aglutinou artigos que versavam sobre a análise política dos projetos voltados para a população em situação de rua. A intersetorialidade é um tema recorrente nas análises empreendidas sobre os projetos e programas destinados à população em situação de rua. Os arranjos institucionais entre diferentes setores governamentais, contando com o apoio da sociedade civil e de organizações não governamentais, pode ser determinante para o sucesso ou não desses programas. A pesquisa de Canato e Bichir (2021) visou analisar as estratégias de cooperação e coordenação entre diferentes atores sociais e organizações para construção e avaliação de projetos e programas para população em situação de rua. Para tanto, desenvolveu seu estudo com base na análise política de dois programas ofertados para a população em situação de rua da prefeitura de São Paulo: Boracea e De Braços Abertos. As autoras destacaram a relevância das relações formais e informais, assim como a participação de atores estatais e não estatais para garantir legitimidade política e autoridade a estes projetos. Nesse contexto, descreveram a importância das ações e dinâmicas políticas na tomada de decisões que vão desde a implementação até o dia-a-dia, tendo um peso decisivo na institucionalização. Dentre as decisões, destaca-se a “horizontalidade” nas relações entre os setores governamentais, que apesar de não haver uma hierarquização formal, há diversos mecanismos de controle dentro das instituições que dificultam a consolidação da intersetorialidade. Compartilhando dessa perspectiva, a pesquisa de Borysow et al. (2017) mapeou e analisou as unidades móveis para pessoas em situação de rua no Brasil, em Portugal e nos Estados Unidos. Além de explorar e apresentar as principais convergências e divergências entre os serviços de assistência à saúde nesses três países, os pesquisadores apontaram o maior sucesso das ações desenvolvidas nos EUA devido à maior capacidade de articulação intersetorial dos serviços. O que demonstra uma necessidade de avanço nas discussões e organizações institucionais do Brasil para progressão a implementação plena da intersetorialidade. Com esta mesma ótica, o estudo documental desenvolvido por Medeiros e Cavalcanti (2018) analisou o Consultório na Rua visando identificar as principais barreiras e aspectos facilitadores da sua implementação a partir dos municípios que aderiram e também aqueles que não aderiram a proposta. De acordo com os autores, a cooperação entre os diversos atores (especialmente na fase de execução da política), a quantidade suficiente de equipes capacitadas e a qualidade de formação dos profissionais, bem como a existência prévia de uma rede de serviços organizada voltada para a PSR, além do financiamento federal são decisivos na adesão dos municípios para implementação dos Consultórios na Rua. Quanto às escolhas metodológicas, todos os estudos empreenderam análises documentais, sendo que Canato e Bichir (2021), e Medeiros e Cavalcanti (2018) realizaram também entrevistas. A pesquisa de Borysow et al. (2017) é classificado como um estudo múltiplo de casos que tem a comparação como recurso analítico, tendo como objetivo compreender semelhanças e diferenças das unidades móveis que buscam melhorar o acesso e a continuidade dos cuidados em saúde de pessoas em situação de rua entre três países (Portugal, Estados Unidos e Brasil). Nessa direção, a revisão bibliográfica e documental incluiu leis, portarias governamentais e cartilhas do setor saúde, dentre outros que servem como parâmetros e baliza para esses serviços. Na análise comparada, os autores utiliaram três categorias: contexto (demográfico, socioeconômico e epidemiológico), sistema de serviços (acesso, cobertura, organização, gestão e financiamento) e as unidades móveis especificamente (concepção, modelo de atenção e financiamento). O estudo de Canato e Bichir (2021) utiliza a estratégia analítico-metodológica baseada na revisão da literatura pertinente e análise de documentos, legislações e normativas acerca do processo de implementação dos dois programas selecionados (Boracea e De Braços Abertos), além de entrevistas em profundidade com os gestores e implementadores usando, neste último caso, da metodologia da análise de redes sociais (ARS). Foram realizadas 40 entrevistas semiestruturadas contemplando assim os dois programas. O objetivo da realização dessas entrevistas foi mapear a rede total de cada projeto, e não apenas redes egocentradas em atores relevantes. Os autores analisaram os dados, estatística e graficamente - por meio de sociogramas - com o auxílio do software Gephi. Por fim, a pesquisa de Medeiros e Cavalcanti (2018) tem uma abordagem qualiquantitativa de caráter exploratório descritivo, utilizando os seguintes métodos: análise documental, entrevistas semiestruturadas e aplicação de questionários. Os autores utilizaram a análise de conteúdo tanto para análise documental, em que usaram documentos oficiais do Ministério da Saúde (MS),quanto nas entrevistas realizadas com gestores federais. No caso dos questionários aplicados junto aos gestores de municípios que aderiram ou não ao Consultório na Rua (CR), as respostas passaram por análise exploratória de dados. Foram realizadas entrevistas semiestruturadas com os quatro técnicos do MS para identificar as principais ações de apoio do MS, bem como descrever a evolução do processo de implementação do CR. No que tange os questionários, utilizou-se o FormSUS para compreender as escolhas dos gestores locais, seja pela adesão ou não do programa. Considerando a importância desse tipo de dispositivo terapêutico para o atendimento integral e principalmente acessibilidade da PSR, esse tipo de estudo torna-se imprescindível para o sucesso de programas voltados para população de rua, sobretudo, com o objetivo de desenhar as ações e projetos que vêm sendo pensadas e implementadas e quais as lacunas necessárias a serem preenchidas.

4.Considerações Finais

Esse estudo teve como objetivo mapear e analisar as publicações acerca dos programas e projetos voltados para a população em situação de rua buscando identificar a natureza e o caráter teórico metodológico desses estudos. Para tanto, uma revisão sistemática de literatura foi fundamental para responder à questão norteadora. Esse tipo de pesquisa é bastante útil principalmente na área da saúde por serem utilizadas como ponto de partida para o desenvolvimento de práticas clínicas, programas e políticas públicas. Os trabalhos analisados foram agrupados em três principais categorias: assistência social, cuidado em saúde e gestão pública da política, e ficou destacada a preocupação com a reinserção social, o enfrentamento dos problemas de saúde dessa população e, principalmente, o esforço de alguns autores em ressaltar a necessidade de elaboração de políticas intersetoriais que promovam a saúde e qualidade de vida desse grupo vulnerável. A maioria dos estudos apontou ter utilizado estratégias de pesquisa qualitativa, tais como: entrevistas narrativas, memórias de vida e relato de experiência. Este estudo serviu, portanto, para revelar a escassez de trabalhos sobre essa temática, podendo ser esse fato apontado como limitação dessa pesquisa. Por outro lado, os resultados servem para enfatizar a necessidade de se pensar políticas públicas intersetoriais que não se restrinjam a ações assistencialistas, já que essas ações enfatizam apenas as causas individuais, abstendo-se da luta em prol de redução das desigualdades sociais.

5.Referências

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Recebido: 01 de Fevereiro de 2022; Aceito: 01 de Abril de 2022

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