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Análise Social

Print version ISSN 0003-2573

Anál. Social  no.172 Lisboa Oct. 2004

 

André Freire, Marina Costa Lobo e Pedro Magalhães (orgs.), Portugal a Votos. As Eleições Legislativas de 2002 1, Lisboa, Imprensa de Ciências Sociais, 2004, 374 páginas.

 

1. Os organizadores e os autores representados utilizam os dados obtidos através do primeiro Estudo Eleitoral Nacional de Portugal de 2002 (EENP 2002) 2. Os trabalhos de campo deste estudo foram realizados pouco depois das eleições de 17 de Março de 2002.

2. Como assinalam os organizadores logo na introdução, estas eleições foram especiais pelo menos em dois aspectos: ocorreram antecipadamente e assinalaram o fim de um ciclo de governos monopartidários. O futuro dirá se as eleições de 2002 constituirão também um marco da gradual sedimentação das rotinas e das características dos sistemas de governo e de partidos, emparceirando, nesse aspecto, com as eleições legislativas de 1979, 1985 e 1987. As de 1979 sentenciaram o destino dos chamados governos de iniciativa presidencial, que não mais seriam tolerados pela dinâmica do sistema. As de 1985 marcaram o ponto de viragem em que o PS concluiu pela indesejabilidade de fazer coligações de governo à sua direita. As de 1987, através do esvaziamento do PRD, deram o certificado de maioridade ao sistema partidário português, que adquiriu desde então um grande estabilidade, apenas perturbada pela recente eclosão do Bloco de Esquerda.

As eleições de 2002 poderão marcar o fim dos governos sem base parlamentar de apoio maioritária. A demissão de António Guterres em Dezembro de 2001 parece ter sido resultado, entre outros factores, de uma convicção de irremediável bloqueio do governo de minoria, ao fim de mais de seis anos, patenteado pelo afunilamento das soluções de viabilização de instrumentos fundamentais, designadamente o Orçamento de Estado. A necessidade de recorrer a soluções de fronteira, do ponto de vista das boas práticas democráticas, foi o derradeiro sintoma do bloqueio.

O PSD e o seu líder, Durão Barroso, compreenderam isso (e não esqueceram a batalha de Sá Carneiro e de Cavaco Silva pela obtenção de governos de maioria absoluta) e não hesitaram em formar uma coligação pós-eleitoral com o CDS-PP. Parece certo que à direita do espectro político não se coloca a hipótese de governos minoritários. Saber-se-á no momento próprio se o PS, na eventualidade de vitória em eleições legislativas sem maioria absoluta, retomará o ciclo de governos de minoria, ou se fará coligações, necessariamente à esquerda, uma vez que se afiguram inviáveis outras coligações. A diversificação das hipóteses à esquerda, a atenuação das dúvidas sobre o pedigree democrático do PCP (ou sobre a sua rendição às instituições da democracia), a própria dinâmica de integração criada à direita, com absorção, inclusive, de estilos políticos e de argumentários estranhos à linha moderada tradicional do PSD, tornarão mais inviáveis os argumentos contra coligações do PS com os partidos à sua esquerda.

3. A generalidade das conclusões a que chegam os autores é inquietante do ponto de vista da qualidade da democracia portuguesa. O panorama geral pode ser resumido através de uma das conclusões propostas por Pedro Magalhães: os portugueses são geralmente democratas, insatisfeitos e desafectos. Isto é, os portugueses suportam numa altíssima percentagem o regime democrático, mas estão descontentes com o modo como funciona, com a economia e com a actuação dos governos e numa enorme percentagem desinteressam-se pela política. O conjunto de estudos reunidos neste livro poderá ser um instrumento importante para a compreensão dos fenómenos de enfraquecimento de alguns mecanismos e para a criação de soluções.

4. O mote de Pedro Magalhães é eloquentemente comprovado ao longo do livro.

Assim, pode perceber-se que:

a) Os partidos portugueses do centro do espectro político-partidário são, no essencial, partidos catch all (Richard Gunther sustenta mesmo que sempre o foram). A generalidade dos autores que se pronunciam sobre o tema assinala o desenraizamento social e religioso do PSD e do PS e acentua a enorme volatilidade do voto nestes dois partidos;

b) Vários autores concluem que o PS e o PSD são uma espécie de irmãos siameses. Por exemplo, Carlos Jalali, Linda Veiga e Francisco Veiga e outros sublinham a dificuldade de escolha entre eles devido à semelhança dos seus programas e dos seus objectivos;

c) Como nota André Freire, Portugal é um país à esquerda nos chamados temas da velha esquerda e da velha direita; mas, diversamente, somos um país à direita no que toca aos temas da nova política (imigração, protecção ambiental, etc.);

d) Esbatidas as clivagens sociais e religiosas tradicionais, aquilo que determina o voto é o autoposicionamento do eleitor na escala esquerda/direita e a avaliação dos candidatos ou dos líderes dos partidos, ficando os factores económicos (de natureza conjuntural) logo a seguir. Sobre os dois primeiros factores transparece, todavia, uma divergência entre André Freire e Marina Costa Lobo: o primeiro parece considerar a avaliação dos candidatos o factor determinante na decisão de voto, enquanto Marina Costa Lobo sustenta que a ideologia continua a ser o factor mais importante, não obstante o factor da identificação estar a diminuir em Portugal. Embora esta divergência possa ter uma justificação de natureza metodológica, trata-se de uma aspecto a aprofundar;

e) Os chamados temas pós-materialistas têm um reduzido impacto na tendência do voto;

f) Os líderes dos principais partidos não se destacam em popularidade dos líderes dos partidos mais pequenos, como assinala Marina Costa Lobo;

g) Os jovens votam pouco, assustadoramente pouco. Os jovens distanciam-se das eleições numa percentagem superior à média. José Miguel Viegas e Sérgio Faria mostram que 47% das pessoas do escalão etário entre os 18 e os 29 anos se abstêm. Estes indicadores situam-se bastante acima da média dos países que nos são mais próximos;

h) Mas a abstenção tem outras motivações. Os mesmos autores concluem que outro factor determinante do elevado grau de abstenção é o desinteresse pela política. Manuel Villaverde Cabral chega a idêntica conclusão: em Portugal há um interesse muito mitigado pelos assuntos políticos e pela gestão política do país;

i) Manuel Villaverde Cabral mostra ainda que entre nós há um défice de confiança generalizado em relação aos outros cidadãos. Num leque de 32 países estudados, Portugal está nos lugares mais recuados no que diz respeito ao número de pessoas que declaram que se pode ter confiança na maior parte das outras pessoas. A desconfiança não é só em relação aos políticos e aos partidos. Existe de modo geral em relação ao outro;

j) Em contrapartida, porventura com alguma surpresa, observa- se também que a média das pessoas está mais satisfeita do que frustrada com a representação política que é protagonizada pelos líderes partidários e pelos partidos políticos. Manuel Villaverde Cabral aponta, no entanto, várias limitações a esta conclusão e sublinha que a ideia de crise de representação não é posta em causa por esta conclusão;

k) Em Portugal não há desigualdades significativas de género em termos de participação eleitoral e de outras formas convencionais de participação política, mas Michel Baum e Ana Espírito Santo destacam as pronunciadas desigualdades de género nas formas de participação não convencionais;

l) Em Portugal há uma síndroma atitudinal e comportamental caracterizada pelo divórcio entre eleitores e eleitos e por uma delegação de poder politicamente passiva, desinformada e desinteressada por parte dos cidadãos nos políticos (Pedro Magalhães). Uma das consequências desta síndroma é que o descontentamento com a forma como o regime democrático funciona não gerou até agora qualquer sobressalto democrático de cidadãos activamente empenhados em melhorarem a vida colectiva. O que prevalece é a passividade e a falta de informação política. Pedro Magalhães sugere que a «negligência» política pode ser, afinal, o traço mais marcante da cultura política portuguesa.

5. Pode dizer-se que este quadro pouco lisonjeiro nem constitui surpresa nem é exclusivo de Portugal. Isso é verdade. Mas o facto de estes sintomas serem comuns à maioria das democracias industrializadas, não se restringindo a Portugal, só significa que o problema é vultoso. Por outro lado, tem de se reconhecer que, se é verdade que os fenómenos não são exclusivos de Portugal, a dimensão que atingem entre nós é excepcional. Há um problema grave que talvez não se resolva com reformas nominais ou legislativas do sistema político, mas que implica uma vincada evolução da forma de fazer política e do comportamento cívico dos cidadãos (as duas em conjunto e não apenas uma reforma dos «políticos »...).

6. Não podendo esta recensão incidir sobre todos os temas versados, concentrar-me-ei em dois: o da volatilidade eleitoral e o dos partidos políticos.

Richard Gunther conclui o seu estudo notando que a volatilidade interbloco em Portugal tem atingido níveis mais elevados do que em qualquer outro sistema partidário europeu. Não se verificando um enraizamento partidário em clivagens sociais e religiosas (com excepção do Partido Comunista), estão ausentes os principais estabilizadores do voto em determinados partidos e estão criadas as condições para um alto grau de instabilidade e incerteza de tal voto. Por isso, os eleitorados dos dois maiores partidos portugueses, o PS e o PSD, estão entre os partidos da Europa onde as clivagens de classe e de religião menos contribuem para explicar o voto. Isto torna ainda mais complexa a tarefa dos estados maiores desses partidos de definição das estratégias eleitorais: para se fixar uma estratégia de sucesso tem de se saber o que constitui sucesso e qual a melhor via de atingir esse sucesso, sendo certo que não bastará assegurar o núcleo duro dos eleitores do partido, uma vez que esse núcleo é relativamente reduzido.

Como se ganham então eleições em Portugal? Basta evitar a abstenção dos habituais votantes do partido e conseguir que os que se abstiveram no último acto eleitoral votem no próximo acto? Ou tem de se conseguir que haja transferência directa de voto, de votantes de outro partido?

Possivelmente, a resposta correcta é que a vitória eleitoral de um partido depende da conjugação desses dois factores: maximização do «nosso» eleitorado, impedimento da abstenção dos «nossos» eleitores, aumento da abstenção dos eleitores «deles»; transferência directa para «nós» de votos do eleitorado «flutuante» que tenha votado «neles» na última eleição.

Mas qual destes dois factores é mais decisivo? Richard Gunther sustenta — e procura demonstrar — que em 2002 o PSD ganhou sobretudo devido à transferência de voto de eleitores do PS para partidos à sua direita. Esta conclusão parece bem fundada, mas merecia ser aprofundada. Além disso, coloca-se a questão: será sempre assim em todas as eleições, ou esta teve, também nesse aspecto, contornos especiais?

7. O estudo também nos dá preciosas indicações sobre a relação entre os partidos políticos portugueses e os eleitores, chegando em alguns casos a contributos relevantes para a própria classificação dos partidos. Relevaremos alguns aspectos e deixamos algumas dúvidas.

O PCP continua a ser classificado como um partido de massas clássico. É uma qualificação que hoje merece as mais sérias reservas.

Sobre o Bloco de Esquerda, o partido com representação parlamentar menos estudado (devido à sua juventude), o trabalho de André Freire permite algumas ilações. Aparentemente existe uma discrepância entre aquilo que o partido sustenta e as inclinações dos seus eleitores.

Deve ter-se em conta que a base da amostra é pequena e pode ter alguma margem de distorção, mas parece poder inferir-se que os eleitores do BE estão à direita do CDS e do PSD no que diz respeito à intervenção do Estado nos serviços sociais e na economia. Contudo, é público e notório que a intervenção pública do partido quanto à dimensão da intervenção do Estado não andará muito afastada da de outros partidos da esquerda (particularmente o PCP).

Por outro lado, embora os eleitores do BE se mostrem mais sensíveis do que os eleitores dos outros partidos aos temas pós-materialistas, não se pode dizer que haja uma notória diferenciação entre eles. Isto é, os eleitores do BE são apenas ligeiramente mais pós-materialistas do que os restantes eleitores. Ora, o Bloco tem procurado aparecer como o principal advogado desses temas.

Daqui se pode concluir que o voto no Bloco, que tem crescido, não está essencialmente ligado à adesão a programa político distintivo do BE, antes sendo explicado por outras circunstâncias. A escassa produção científica sobre este partido não permite ainda compreender o que motiva o voto no Bloco de Esquerda, sendo, contudo, muito provável que se trate sobretudo de um voto de protesto.

Se assim for, a evolução deste partido pode implicar alguns reajustamentos programáticos. Se o BE passar a ter sérias possibilidades de influenciar ou integrar uma maioria governativa, a possibilidade de poder executar um programa que, aparentemente, os seus eleitores não sustentam poderá levar a algum divórcio entre partido e eleitores. Estes ver-se-ão confrontados com a mudança de implicações do seu voto, que deixará de ser essencialmente negativo, contra ou de protesto, para passar a ter uma componente positiva, a favor de uma determinada política governativa mais pós-materialista e mais intervencionista do que aquilo que aqueles mesmos eleitores parecem defender.

Quanto aos dois partidos mais centrais, a opinião dos autores representados no livro é no sentido de que têm características e vocação catch all. Carlos Jalali encontra uma explicação para isso logo na dinâmica revolucionária de 1974-1975. Desde o início, PSD e PS sustentaram, com êxito, uma perspectiva interclassista, tornada possível pela fraca consciência de classe. Por outro lado, os dois partidos aliaram-se à Igreja católica a fim de contrariarem a ameaça comunista. Nessa altura, mais do que as tradicionais clivagens sociais, o que marcou foi a escolha do regime, tendo os dois partidos defendido, nesse aspecto, posições equivalentes, em contraposição com o PCP e outros sectores à esquerda. A ideia de dois partidos siameses é corroborada por Richard Gunther e outros. O primeiro nota que alguns dos partidos do Sul da Europa, por razões várias, puderam «queimar etapas ». Os grandes partidos da Grécia, de Espanha e de Portugal não tiveram de cumprir a fase do partido de massas antes de se renderem às características definidoras da política moderna de campanha, surgindo logo como «partidos eleitoralistas modernos».

O tópico dos «irmãos siameses» é, obviamente, recorrente. Muitas vezes, como notam Linda Gonçalves da Veiga e Francisco José Veiga, há a percepção de que o eleitorado não distingue com clareza as propostas políticas dos dois partidos mais centrais. Por outro lado, sabe-se que a integração europeia conduz a que boa parte das decisões políticas já não sejam tomadas em Portugal, pelo que os programas dos dois partidos de governo não podem deixar de reflectir o diktat europeu.

Em todo o caso, parece haver algum fundamento em distinguir: o PSD parece ser mais programático do que o PS; este último limita o seu desvio catch all pela consistente implementação de políticas sociais. Se o PSD na acção política real se mostra mais inclinado a aderir a um programa que, apesar de tudo, tem uma marca ideológica liberal e deixa de fora certas (não todas) preocupações sociais, o PS, sem enjeitar o funcionamento do mercado, faz da implemetação e robustecimento de políticas sociais o seu core business.

8. Uma nota final sobre as eventuais consequências desta eventual «siamesização» dos maiores partidos portugueses. Se ela for real, o instinto de sobrevivência e a procura de sucesso eleitoral levá-los-ão porventura a procurar sublinhar aquilo em que são diferentes. Mesmo que de natureza menor, as dissemelhanças serão tendencialmente amplificadas. Ora, isto pode traduzir-se em dificuldades na celebração dos vários pactos de regime que regularmente são objecto de apelos. Mesmo que à partida haja um grande consenso de base, poderá haver a tentação de insistir nos aspectos onde se registam divergências, ainda que a sua importância relativa seja reduzida. O que deixa uma questão interessante: será que nos Estados onde o sistema partidário é composto por partidos bem diferenciados na sociedade, que não têm de investir na ostentação do dissídio, os pactos de regime são mais fáceis?

Vitalino Canas

 

1 O presente texto constitui a versão escrita e aumentada da intervenção que produzi em 8 de Junho de 2004, por ocasião da apresentação deste livro.

2 Um estudo de António Barreto, André Freire, Marina Costa Lobo e Pedro Magalhães (orgs.) (2002), Comportamento Eleitoral e Atitudes Políticas dos Portugueses — Base de Dados do Inquérito Pós-Eleitoral às Legislativas de 2002, Lisboa, ICS.

 

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