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Análise Social

versão impressa ISSN 0003-2573

Anál. Social  n.187 Lisboa abr. 2008

 

Marta Pedro Varanda, La réorganisation du commerce d'un centre ville: résistance et obstacles à l'action collective, Paris, L'Harmattan, 2005, 254 páginas.

 

Este livro, publicado na colecção «Villes et enterprises», dirigida por Alain Bourdin e Jean Remy para a L'Harmattan, corresponde a uma versão revista para edição em livro dos resultados do trabalho conducente à elaboração da dissertação de doutoramento em Sociologia da autora, apresentada em 2003 na Universidade de Lille1 sob o título «Le probléme de l'action collective entre petits patrons: le cas des commerçants dans un centre-ville».

Trata-se, portanto, de uma obra de fundo, centrada na análise da questão da acção colectiva, designadamente na resposta dos pequenos comerciantes do centro das áreas urbanas (o «centro-cidade» para a autora) aos desafios de reorganização do mercado a que estão sujeitos. Esta análise é efectuada focando em particular duas situações concretas perante as quais são colocados os comerciantes do centro histórico e comercial de um centro urbano de média dimensão português (da região de Lisboa e Vale do Tejo): um projecto de urbanismo comercial desenvolvido com base num programa governamental financiado por fundos estruturais comunitários; a institucionalização da abertura do comércio local aos sábados à tarde por iniciativa de uma associação empresarial local.

Tendo-se revelado a participação dos comerciantes a ambas estas iniciativas bastante débil, não obstante os incentivos económicos, a autora tenta interpretar esta incapacidade de coordenação com base numa análise aprofundada do seu contexto de acção, mostrando que a minoria de comerciantes mais envolvida na acção colectiva é formada por aqueles mais socialmente encastrados, na linha da argumentação da sociologia económica que defende a influência das relações sociais entre actores nos resultados da acção económica.

Note-se que, no entanto, partindo de uma perspectiva teórica e conceptual centrada essencialmente no campo da sociologia económica, a autora enfrenta um objecto de estudo e uma realidade empírica para os quais mobiliza diversos contributos disciplinares, conceptuais e empíricos, em particular nos campos da economia e da geografia.

A obra está organizada em três partes distintas: (i) a delimitação do quadro teórico utilizado; (ii) a explicitação dos principais aspectos contextuais relativos seja às dinâmicas do comércio em geral, seja ao quadro de acção concreto dos comerciantes no centro-cidade analisado; (iii) a análise e discussão dos resultados obtidos.

Na primeira parte, como se explicita no próprio título, é esboçado o quadro teórico que enquadra a pesquisa. Com base numa perspectiva inicial centrada no indivíduo, são discutidas ao longo do capítulo 1 as questões associadas à construção social das relações económicas, partindo da noção de encastramento social, com particular relevo para as interdependências sociais entre os actores económicos na (re)organização dos mercados. São exploradas as complexidades inerentes ao estudo da coordenação da acção, muito associadas à débil compreensão dos mecanismos meso que ligam a acção individual e colectiva, defendendo a autora a necessidade de uma abordagem estruturalista alargada para estudar este tipo de fenómenos, combinando a análise estruturalista com uma análise cultural e tendo em conta o indivíduo enquanto unidade de análise, assumindo que este tem uma racionalidade contextual, estando confrontado com um conjunto de constrangimentos e oportunidades, mas também uma margem de manobra significativa que lhe permite agir de forma estratégica.

No capítulo 2 passa-se do nível do indivíduo ao do sistema, discutindo a importância desse contexto alargado (e da sua transformação…) no condicionamento das estratégias económicas e sociais dos actores. São debatidas as dificuldades sentidas no plano concreto pelas entidades para implementar e operacionalizar as mudanças (tendo presentes as realidades do Estado ou das associações comerciais, importantes para o estudo de caso efectuado), bem como os aspectos associados à sua difusão, sendo salientada a importância dos factores individuais (ou das minorias, por exemplo) para acelerar ou retardar os processos de mudança e na adopção de novas regras colectivas.

O capítulo 3 centra-se nas dificuldades ligadas à coordenação da acção. Tendo como referência uma situação de operacionalização de acção coordenada, como a existente na reorganização de um mercado, são analisadas estas dificuldades, usualmente associadas à existência de conflitos diversos entre o interesse individual e colectivo. É destacado o papel dos constrangimentos à acção e discutido, em particular, o papel da sanção como mecanismo necessário ao processo de coordenação. Apresentam-se situações diversas e resultados de estudos empíricos onde a coordenação é obtida seja por resultado da acção de instituições externas ao sistema social em causa, seja através da sua auto-organização, situação particularmente importante para explicitar as complexidades patentes num processo de coordenação por actores autónomos, formalmente independentes e iguais (como os assumidos geralmente pela teoria económica).

Os capítulos 4 e 5 concluem o enquadramento teórico e conceptual, dedicando-se às questões específicas da mobilização dos actores e da liderança, respectivamente. É discutida a necessidade de mobilização de um número significativo de actores para concretizar o processo de reorganização do mercado, associando-se o sucesso deste processo à capacidade de mobilização, seja vista no plano dos esforços de organização a nível individual (mobilização de recursos, existência de liderança eficaz), seja no que concerne a aspectos estruturais e culturais (redes de interacção entre actores, questões identitárias). É igualmente sistematizado o papel da liderança e a sua importância no esforço de reorganização de um colectivo composto por concorrentes interdependentes. Discutem-se as origens do poder dos líderes, as suas tarefas e o seu papel na inovação, sendo o foco colocado nas consequências da falta de uma liderança forte, tendo em particular aten ção o facto de no colectivo de actores estudado existirem efectivamente actores com estatuto elevado, mas com falta de recursos ou de condições em termos do seu nível de organização para serem capazes de conduzir eficazmente a modernização do mercado respectivo…

A segunda parte da obra corresponde a uma análise detalhada do contexto em que se realiza a pesquisa e da problemática em análise. A preocupação central é com a caracterização geral do mercado estudado, com a descrição das situações concretas de acção colectiva analisadas e com a compreensão do tipo de situações que os actores deste mercado enfrentam no seu esforço de reorganização.

Esta parte inicia-se (capítulo 6) com uma caracterização do contexto mais amplo do sector do comércio e das suas tendências e transformações recentes, com particular destaque para o caso concreto português. São destacados os aspectos da concentração e suburbanização do comércio e os seus efeitos no pequeno comércio tradicionalmente instalado no centro das cidades. Analisam-se igualmente (já no capítulo 7) as estratégias de reacção dos comerciantes a esta crise do pequeno comércio, sejam estas mais individualistas ou mais colectivas, bem como as acções dos poderes públicos em defesa do pequeno comércio, notando-se igualmente os frequentes efeitos perversos destas medidas (como a substituição de pequenos comerciantes independentes tradicionais por outros nos centros das cidades, numa lógica associada aos processos de gentrificação).

Uma das estratégias privilegiadas de intervenção pública na revitalização e requalificação do pequeno comércio nos centros das cidades têm sido os programas e projectos de urbanismo comercial, juntando um conjunto diversificado de actores (comerciantes, municípios, Estado central, outros actores económicos, residentes) na reabilitação e modernização destas actividades. No capítulo 8 é enquadrado e analisado o programa governamental que em Portugal tinha sido criado com esses objectivos na altura (o PROCOM, a que, entretanto, já sucederam outras iniciativas de âmbito semelhante), o qual se traduz no contexto que enquadra a primeira situação de acção colectiva associada à reorganização do comércio do centro-cidade analisada pela autora. No capítulo 9, por seu lado, descreve-se a outra situação de reorganização de comércio analisada pela autora: a alteração dos horários de abertura dos estabelecimentos comerciais por iniciativa da associação empresarial local, passando a abrir ao sábado à tarde.

É o estudo de caso destas duas situações que ocupa os capítulos seguintes, que dão corpo à descrição do âmbito da análise empírica efectuada, após uma apresentação do contexto específico do caso estudado (o comércio num centro histórico e comercial de uma cidade média da região de Lisboa e Vale do Tejo), no capítulo 10, onde é efectuada uma breve descrição das especificidades sócio-económicas da região, do centro urbano e do comércio do seu centro-cidade e dada uma atenção especial aos actores fulcrais implicados no processo de reorganização (a câmara municipal e a associação comercial local). No capítulo 11 é apresentado o projecto de urbanismo comercial conduzido neste centro urbano, sendo descrita a sua implementação, o envolvimento dos diversos actores implicados e as suas falhas de coordenação. No capítulo 12 é analisada a decisão de abertura dos estabelecimentos aos sábados à tarde, focando-se a análise nas estratégias diversificadas adoptadas pelos comerciantes como reacção à proposta que lhes foi apresentada pela sua associação comercial.

O capítulo 13 finaliza esta segunda parte com uma caracterização dos pequenos comerciantes locais, assumindo que as características sociais e relacionais do grupo são fundamentais para compreender os resultados dos esforços de reorganização, particularmente ao nível do envolvimento e participação dos comerciantes. É destacada aqui a influência do posicionamento social dos comerciantes nas suas estratégias comerciais, em particular o facto de a pertença ao universo da pequena burguesia (caracterizado por origens sociais modestas, débil educação escolar e dificuldades financeiras) condicionar fortemente as suas estratégias, nomeadamente em termos da falta de ambição e aversão ao risco e à mudança. A par deste grupo, numa realidade social heterogénea, afirma-se crescentemente outro núcleo de comerciantes, mais recentes, com atitudes mais pró-activas e dinâmicas e mais motivados pela racionalidade do lucro, estando, portanto, menos afectivamente ligados à sua independência e autonomia e mais abertos à articulação com redes de franchising ou grupos económicos, por exemplo. O confronto entre estes dois grupos gerará, portanto, novas dinâmicas no comércio do centro-cidade.

Na terceira e última parte a autora procede a uma discussão dos resultados empíricos obtidos, à luz do quadro conceptual anteriormente definido, numa perspectiva conclusiva, recorrendo à análise das redes sociais, bem como à construção de modelos multivariados com os dados recolhidos.

Após uma breve introdução (capítulo 15) explicativa da racionalidade dos actores face às duas iniciativas de reorganização de mercado apresentadas, a qual permite melhor explicitar o seu grau de adesão às mesmas, procede-se nos dois capítulos seguintes à análise dos resultados estatísticos (e ao confronto com a observação «etnográfica» da autora) respeitantes às duas situações: dos projectos de urbanismo comercial no capítulo 16 e da abertura no sábado à tarde no capítulo 17. São ainda comparadas as duas iniciativas em relação aos aspectos que parecem condicionar mais os comerciantes no que concerne à sua participação (nível de investimento financeiro e humano, grau de risco, tipo individual ou colectivo, carácter inovador, duração…).

Finalmente, no capítulo 18 são expostas e analisadas as razões do falhanço da acção colectiva. A análise dos resultados mostra que o grau de envolvimento na acção colectiva foi reduzido, não gerando uma participação generalizada dos comerciantes em qualquer das duas situações. Isto dever-se-á ao facto de esta participação e envolvimento não terem sido sustentados nem pelos investimentos relacionais necessários para permitir a acção dos mecanismos sociais da acção económica nem por lideranças eficazes (que fossem capazes de criar regras de cooperação e mecanismos de controlo que permitissem executar, se necessário, sanções contra os que infringissem as regras comuns). Esses mecanismos seriam necessários para que a acção colectiva se sobrepusesse à tradicional acção individual dos comerciantes.

O individualismo tradicional, a concorrência e o desejo de autonomia sobrepuseram-se assim ao envolvimento dos comerciantes locais numa acção coordenada, na falta da expectativa de benefícios claros provenientes dessa coordenação. Na ausência de uma liderança forte (com líderes fracos, sem grandes recursos e divididos em dois grupos), não terá sido possível impor a disciplina social necessária a essa participação e mobilização. E sem a emergência dos mecanismos sociais necessários à reorganização do mercado não será de esperar, como a autora refere, que o óptimo económico possa ser obtido…

Em suma, esta conclusão (à qual se acrescentam várias outras, parcelares, em resposta às questões de pesquisa e hipóteses de trabalho explicitadas no final da segunda parte do livro) reforça a argumentação central da autora, que constata através dos resultados obtidos que é a minoria de comerciantes mais encastrados no colectivo que se consegue mobilizar e envolver na acção colectiva, em linha com a alegação fulcral de que as relações sociais entre actores terão uma influência fundamental nos resultados da acção económica.

 

Pedro Costa

Instituto Superior de Ciências do Trabalho e da Empresa

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