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Análise Social

versão impressa ISSN 0003-2573

Anál. Social  n.198 Lisboa  2011

 

Maria Filomena Mónica, Os Cantos. A tragédia de uma família açoriana, Lisboa, Alêtheia Editores, 2010, 430 páginas.

 

Leonor Sampaio da Silva

Universidade dos Açores

 

Respirando numa atmosfera semelhante à d’Os Maias, dos quais se distancia pela escrita historiográfica, mas com os quais partilha semelhanças que são visíveis no epílogo, no título, no enquadramento epocal e na saga familiar, o livro de Maria Filomena Mónica dá-nos a conhecer um período da história económica portuguesa marcado pela figura central de José do Canto.

Com Os Cantos, a autora regressa à biografia e ao arquipélago dos Açores. Depois de ter escrito sobre a influência da família Dabney no Faial, Maria Filomena Mónica investe na descoberta de um nome micaelense que, embora essencial no desenho da paisagem natural e edificada, no desenvolvimento económico e na ilustração pública de São Miguel, ainda é insuficientemente conhecido fora dos territórios murados do saber académico.

Nas mais de 400 páginas que compõem a narrativa cativante de Filomena Mónica põe-se em evidência a personalidade mais dinâmica de uma geração ilustre de micaelenses. Com efeito, José do Canto foi mais do que um simples produtor e exportador de laranja apaixonado por botânica. Suspeitando de que a Inglaterra estivesse a usar a fruta micaelense para abastecer mercados como a Bélgica e a Holanda, procurou dotar a ilha com os meios que permitissem colocar directamente a fruta nestes países. Conhecendo a tendência que se verificava na Europa para escassear a carne de bovino, propôs uma reforma agrícola com a finalidade de aumentar a criação de gado em substituição da produção de cereais. Foi fundador da Sociedade Promotora da Agricultura Micaelense. Lançou a ideia de se fundar uma companhia de vapores para escoamento das exportações. Concebeu um esquema de “comícios rurais” para ilustração do povo. Alargou o destino da cultura do chá para além do proveito ornamental que se retirava da planta. Deixou arborizada uma boa parte das bermas dos caminhos, das montanhas e matas micaelenses, tendo consciência da utilidade deste serviço “para os seus proprietários […] para o clima e para o país em geral” (p. 204).

Igualmente sensível ao valor do investimento cultural, dedicou grande parte do seu tempo a coleccionar obras de e sobre Camões. Gostava de actuar como mecenas junto dos intelectuais portugueses e estrangeiros. Foi sócio da Academia das Ciências. Conviveu com Lamartine, Edmond About e Léon Gautier. Correspondeu-se com o director do Kew Gardens. Possuiu uma das melhores bibliotecas particulares portuguesas do seu tempo. Privou com Ferdinand Denis, director da Biblioteca de Sainte-Geneviève. Financiou viagens e algumas publicações de António Feliciano de Castilho. Serviu de intermediário na contratação de arquitectos e engenheiros estrangeiros para obras públicas portuguesas. Interveio junto das autoridades e dos seus conterrâneos para a construção da doca de Ponta Delgada, obra essencial à modernização de São Miguel: contratou o engenheiro inglês responsável pelo projecto, tratou com o conde do Lavradio, embaixador de Portugal em Londres, as questões relativas a este assunto, diligenciou junto dos deputados açorianos em Lisboa a agilização do processo.

Sem desprezar a carne histórica de um período que acomodava inquietações sob a pele do progresso, Os Cantos mostra ainda os mundos plurais em que se moveu este gentleman farmer, desde São Miguel, onde nasceu e para onde sempre sonhava regressar, até França, onde residiu, e Inglaterra, país que visitava com frequência, incluindo os corredores do poder lisboeta, nos quais reclamava com empenho as estruturas necessárias ao desenvolvimento da ilha. Viajante incansável por uma geografia física que o levou às exposições universais de Londres e de Paris, às estufas de plantas exóticas, aos parques, portos, praças e avenidas cosmopolitas das principais capitais europeias, José do Canto pontificou ainda na geografia íntima dos afectos familiares. Preencheu estes lugares com cuidados dirigidos à família, à preparação dos filhos para um futuro íntegro e independente e à saúde de um casamento ciclicamente abalado pelas lamentações da mulher, que adoecia sempre que o marido se ausentava.

Igualmente atento às peripécias políticas, vários foram os acontecimentos que atraíram a sua atenção, tanto locais como internacionais. Da agricultura à guerra, passando pela sensibilidade paisagística com que arquitectava a construção de casas e de jardins, o livro toca na multiplicidade dos centros e das periferias que agitaram o mundo oitocentista que José do Canto conheceu. À semelhança de outros intelectuais europeus, também ele seguiu os motins nacionais suscitados pela reforma fiscal e tributária, manteve-se informado sobre a política mundial, comentou os efeitos da intensificação do dogmatismo católico, angustiou-se com o modo como a nação era conduzida.

Das ambições mais modestas de José do Canto (“ler um bom livro e podar umas árvores ou semear umas couves”, p. 153) às mais sofisticadas (ver colocada a toalha de mesa pertencente a Napoleão III, que adquirira em leilão ou decorar os móveis ingleses com peças da Companhia das Índias), o livro de Maria Filomena Mónica mostra-nos setenta e oito anos de uma história pessoal vertida num sistema de vasos comunicantes que ligavam a ilha ao país e à Europa. Para isso apoia-se numa vasta bibliografia publicada, que inclui artigos da imprensa, trabalhos científicos, relatos de viajantes, à qual acrescenta espólios particulares que contenham a correspondência do biografado. Acima de tudo, Filomena Mónica articula os vários tipos de escritas de modo a transmitir a dimensão do vivido. Não se limitando às largas pinceladas históricas, Os Cantos mostra-nos um quotidiano poliédrico, levando-nos a sentir as vibrações das vozes e das emoções nele contidas.

Um dos grandes méritos desta obra consiste na integração bem sucedida do material epistolar — frequentemente extenso e escrito num estilo diferente daquele a que estamos habituados — no discurso da autora. Com esta estratégia, o relato do quotidiano ganha intensidade sem sobre ele se abater a suspeita do exagero artificial. Um exemplo que ajudará a ilustrar a afirmação anterior é o do retrato de um certo universo feminino. A conhecida sensação de vacuidade que atormentava mulheres inteligentes destinadas a vidas fúteis transparece nas linhas que elas trocavam entre si e com o biografado. A par das rotinas e ocupações que caracterizavam o mundo das senhoras micaelenses, revela-se nas cartas escritas pela mulher, pela sogra e pelas irmãs de José do Canto uma insatisfação que frequentemente recebe o rótulo de “doença de nervos” e que tem em duas das mulheres mais ricas da ilha, Maria Guilhermina e sua mãe, dois casos exemplares. A sogra de José do Canto, apesar “das grandes aflições” que “interiormente sent[ia]”, não “se queixa[va] senão de nada a distrair e de todos os vestidos a agoniarem” (p. 164). Por seu turno, a mulher raramente resistia à tentação de falar da sua “triste vida” (p. 140). Uma das irmãs revela numa carta estar “acostumada a sofrer” (p. 182).

Ao lermos as cartas não só conhecemos sem mutilação as reacções aos factos, os matizes de um amor difícil, o carácter singular de um casamento e de um homem que exibia com desassombro uma paixão erótica nem sempre correspondida na medida desejada, como também contactamos com a linguagem da época. É assim que encontramos os banhos frios, ou de choque, a não se darem com algumas pessoas (e não o inverso), que os precisos e as precisões nos surpreendem num enquadramento semântico que já não nos é familiar, que alguém com poucas carnes espelha uma verbalização desusada da magreza, que ter um perigo designa uma gravidez abortada.

Arrumando a matéria que o constitui em três partes, o livro começa e termina com a referência à felicidade. Depois de, na primeira parte, nos apresentar os anos de formação de José do Canto até ao início da vida adulta e de, na segunda, já no-lo apresentar casado, no seu momento de “cativeiro” em Paris (1853-1868), onde esperava proporcionar uma educação esmerada aos filhos, dá-se o acontecimento inaugural da tragédia que figura no subtítulo do livro. “O conflito”, designação atribuída ao último capítulo da segunda parte, consistiu no desentendimento com o primogénito. As expectativas sobre este filho ruíam no momento em que se tornava claro que o rapaz nem pretendia concluir o curso nem viver em casa dos pais. Na terceira parte da obra, o regresso da família a São Miguel é ensombrado por esse desgosto, que viria a constituir a primeira de uma sucessão de perdas: o alcoolismo deste filho, a instabilidade mental do outro, a morte da mulher e a distância dos netos levariam José do Canto a escrever nos últimos anos “não sou feliz” (p. 336), depois de ter sentido que passara a vida “a endireitar coisas tortas” (p. 272).

O tema da felicidade confere, assim, circularidade ao livro, tornando pertinentes as palavras iniciais de Maria Filomena Mónica. Porém, se é verdade que, como a autora afirma, “nunca se recupera de uma infância feliz” (p. 17), porque a memória da felicidade é uma companhia espectral quando a vontade e a planificação sucumbem sob poderes cegos que as ignoram, não é menos verdadeiro que sem esta memória todas as infâncias, felizes ou não, se convertem em idades gastas. Tendo recuperado as lembranças de uma idade decorrida entre 1820 e1898, as páginas d’Os Cantos fixam, de forma acessível e elegante, a memória de papéis que narram uma vida que persiste — a doca, os jardins, as casas, a capela, a laranja, o chá, os ananases e a biblioteca de José do Canto perduram na paisagem micaelense.

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