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Análise Social

versión impresa ISSN 0003-2573

Anál. Social  no.204 Lisboa jul. 2012

 

A arte como contrabando: notas sobre antropofagia e política

Art as smuggling: a note on anthropophagy and politics.

 

Giordano Barbin Bertelli*

*Universidade Federal de São Carlos, Brasil. E-mail: giorbertelli@yahoo.com.br

 

Resumo

Este artigo tem por mote o contexto histórico e os procedimentos poéticos da antropofagia de Oswald de Andrade e as suas relações com o nacionalismo paulista elaborado durante a Primeira República. Discute-se a relação entre o social, o subjetivo e o literário, percorrendo-se aspetos de formulações teóricas distintas, que, longe de serem forçadas a uma síntese que resultaria incoerente, são acionadas como forma de reflexão a respeito da possibilidade de se pensar as relações entre estética e poder sem que se postule uma unilateralidade determinista da ordem social sobre a literatura e sem que se reduza a estética literária à instrumentalidade panfletário-política.

Palavras-chave: Oswald de Andrade; antropofagia; literatura; política; subjetividade.

 

Abstract

The article examines the historical context and poetic procedures of Oswald de Andrade’s Anthropophagy and its relations with nationalism from São Paulo during the First Republic. It explores the relationship between the social, the subjective, and the literary, passing through the aspects of distinctive theoretical formulae that, far from being enforced to a synthesis that would be incoherent as a result, are operated as input of reflection with regard to the possibility of thinking about the relationships between esthetics and power.

Keywords: Oswald de Andrade; anthropophagy; literature; politics; subjectivity.

 

CONSIDERAÇÕES INICIAIS

Só me interessa o que não é meu. Lei do homem. Lei do antropófago.

Oswald de Andrade, Manifesto Antropófago

 

Escrever é talvez trazer à luz esse agenciamento do inconsciente, selecionar as vozes sussurrantes, convocar as tribos e os idiomas secretos, de onde extraio algo que denomino Eu.

Deleuze e Guatarri, Mil Platôs

 

Este trabalho pretende retomar aspetos das formulações de alguns autores cuja obra se afigura relevante para a sociologia da cultura e da literatura. Buscaremos acioná-los como instrumento de articulação de questões que nos parecem pertinentes na abordagem sociológica da estética literária. Em resumo, trata-se de indagar: que relações, e de que natureza, podem estabelecer-se entre estética e poder, entre literatura e política? O universo empírico que intentamos articular para discutir tais questões circunscreve-se ao contexto de elaboração da antropofagia1 de Oswald de Andrade2, marcado pelos confrontos ­simbólicos inscritos nas transformações político-culturais que atravessam a dinâmica social da Primeira República brasileira (1889-1930). Para tanto, servir-nos-emos de certas conceitualizações de Bourdieu, Gramsci, Arendt, Rancière e Foucault. Se a formulações de questões, mais que a consecução das suas eventuais respostas, marca o momento em que o teórico e o empírico se constituem mutuamente, acreditamos que assim procedendo, poderemos situar-nos sobre um dos principais vetores da prática sociológica: a articulação teoria-empiria, isto é, a possibilidade que construtos conceituais encerram de circunscrição e articulação de universos empíricos e, reciprocamente, a capacidade destes em tensionar, deslocar e impor a reinvenção de novas categorias e conceitos.

Assim, longe de pretendermos uma síntese entre correntes teóricas distintas, o nosso objetivo é utilizar tais formulações para ativar uma problemática de investigação, apontar possíveis elucidações de categorias que lhe sejam pertinentes e, sobretudo, colocar questões que lhe confiram um maior potencial de inteligibilidade.

Com efeito, o texto a seguir toma os autores discutidos como “momentos” de problematização. Mesmo que tais momentos não logrem traçar uma sequência linear, compor uma unidade, o exercício que aqui se propõe presta-se, ao menos, ao esboço de possíveis caminhos a serem posteriormente percorridos pela nossa problematização, bem como à explicitação dos seus limites.

 

GÉNESE DE UM PROBLEMA

Para encaminhar estas questões, parece-nos pertinente evitar formulações que partam da suposição de uma absoluta exterioridade entre os seus termos. Isto é, que postulem relações extrínsecas entre a dinâmica do estético e do político, o que possibilita interpretações que acabam por fixar esquemas de hierarquias causais: a configuração de forças políticas seria a causa determinante de um estilo artístico-literário ou de uma temática presente em um ou mais autores, ou ao contrário, as visões do mundo social esteticamente construídas exerceriam uma determinação sobre o universo político, mediante a sua atuação nas conceções que os agentes deste universo elaboram de si e da sociedade. Tais vínculos causais extrínsecos podem, sem dúvida, receber diversas sustentações analíticas. Contudo, podemos objetá-las com uma ressalva, primeiramente metodológica: assim procedendo, deduzindo os traços de um a partir da dinâmica do outro, tais análises não comprometem o acesso às especificidades tanto do fenómeno estético quanto do político? E, em segundo lugar, cabe-lhes, também, uma refutação teórica. Neste ponto, a tese foucaultiana da constituição recíproca entre técnicas de poder e formas de saber como um mecanismo que preenche de densidade e consistência o que chamamos de “realidade”, isto é, pensando com Deleuze (mimeo), como dispositivo que, justamente, instaura a positividade do real, permite-nos apontar que a suposição de um primado de causalidade da política sobre a literatura, ou desta sobre aquela, implica atribuir uma substancialidade a priori à existência destes fenómeno sociais, sem a qual um não poderia “causar” o outro. Semelhante suposição resultaria numa conceção estática e monolítica tanto do político quanto do literário, impossibilitada de conceber os procedimentos de poder que articulam os jogos estéticos e os procedimentos estéticos que se inscrevem nos jogos de poder, bem como de captar o processo de construção simbólica do mundo social que emerge da interseção destes elementos.

A hipótese de Bourdieu (1996; 2005) a respeito da homologia entre os campos sociais, parece interessante na medida em que possibilita uma abordagem das relações entre o literário e o político mediante o enfoque paralelo dos universos sociais e das lógicas de poder em que tais fenómenos se constituem. Em termos gerais, Bourdieu propõe uma espécie de topologia do social, em que este é pensado enquanto um espaço em que circulam capitais de ordem diversa: económica, social e cultural. Em função da distribuição/apropriação destes últimos entre os agentes sociais, constituem-se o(s) campo(s) sociais, estruturados em posições ocupadas pelos agentes, segundo o grau de desigualdade entre o volume, o tipo e a composição dos seus respetivos capitais. Os capitais são pensados como trunfos de poder no jogo social, em torno da disputa por oportunidades de ganho material e simbólico, pelo que a estrutura dos campos consiste nas relações de força, de disputas de poder pela manutenção ou mudança da sua hierarquia interna, assim como das regras e critérios que a definem.

Em conjunção com esta formulação do espaço e dos campos sociais, encontra-se a maneira como Bourdieu (1996) concebe a constituição dos sujeitos no interior dos mesmos. Pode-se dizer que esse processo consiste na incorporação de determinadas disposições (esquemas tendenciais de ação, pensamento, perceção e apreciação) que variam, por um lado, em função da quantidade e natureza dos capitais adquiridos e, por outro, das possibilidades da sua utilização segundo a posição ocupada pelo agente num dado momento da sua trajetória social, e das relações objetivas que esta sua posição mantém com as demais. Com efeito, o habitus, conceito fundamental para o autor, como um sistema de disposições incorporadas, opera enquanto um complexo gerativo de práticas, sempre em interseção com as estruturas e posições objetivas do mundo social.

Portanto, Bourdieu postula que as disposições constitutivas do habitus são correlatas às estruturas objetivas do social, ou seja, o funcionamento de ambas tende a obedecer a uma mesma lógica, o que quer dizer que há uma certa circularidade entre o campo que produz o habitus, o qual, por sua vez, reproduz o campo. Vale observar, aqui, que não há precedência ou hierarquia causal pré-estabelecida, mas, antes, uma dinâmica permanente e simultânea de subjetivação do objetivo e objetivação do subjetivo.

Neste ponto, entretanto, cabe um pequeno parêntesis acerca do conceito de subjetividade, que parece inscrever-se em tais formulações, e das suas implicações para a análise literária. Em Bourdieu, o espaço conceitual da subjetividade parece ser revestido pela noção de habitus. Com efeito, conforme o exposto acima, isto é, de acordo com a relação de constituição recíproca que se arma entre elementos subjetivos e objetivos, tal perspetiva capta os fatores de subjetividade, que porventura atuem na elaboração literária, em função da sua correlação com as estruturas objetivas do espaço social. Nessa medida, tal modelo analítico rejeita as crenças que, a um só tempo, se sustentam e dão sustentação no e ao jogo de disputas no interior do campo literário – tal como a ideia de um génio criador, isento de determinações alheias à singularidade da sua vontade. Por outro lado, não se pode deixar de indagar se, em conjunto com o descarte, metodologicamente necessário, de tais crenças egressas da estética romântica, não se estaria obliterando a análise de fatores subjetivos que, embora não diretamente dedutíveis da objetividade do mundo social, exerçam determinado papel na elaboração estética.

Tal indagação toca, no fundo, num ponto crucial a toda a teoria sociológica, isto é, a relação, na constituição das relações e dinâmicas sociais, entre sujeito-objeto, ação-estrutura, indivíduo-sociedade. As formulações de ­Bourdieu parecem captar, predominantemente, os fatores subjetivos que acabam por se sedimentar na objetividade das estruturas sociais. As disposições subjetivas que não encontram uma atualização na margem de possibilidades dadas pelo espaço social dos campos mantêm-se, assim, fora da ênfase ­predominante da análise, “relegadas” às dimensões da subjetividade cuja eficácia social permanece inteligível.

Isso implica, para uma análise sociológica da literatura, a dificuldade de identificação e explicitação dos elementos estéticos, que possam ser portadores de traços potencialmente transgressivos ou desestabilizadores da ordem sociosimbólica, em cujo interior foram social e subjetivamente gestados. Por outras palavras, no âmbito da constituição recíproca entre o campo e o habitus, entre as estruturas de poder e as configurações da subjetividade, captam-se predominantemente os fatores subjetivos, cuja elaboração estética coincide com as solicitações simbólicas inscritas na reprodução das hierarquias sociais.

Portanto, embora substitua os vínculos de causalidade pelo processo de homologia entre a dinâmica política e a literária, as análises de Bourdieu ainda parecem atribuir um peso excessivo à sedimentação literária da dinâmica social, resultando num desequilíbrio explicativo entre esta dimensão, os fatores subjetivos e os propriamente estéticos.

Assim, encaminhar a problemática que aqui se desenha implica, em boa medida, evitar eventuais reducionismos teóricos que, a nosso ver, estão na base dos reducionismos analíticos. Diga-se de passagem, com efeito, que os estudos devotados ao modernismo de Oswald de Andrade podem ser caracterizados por uma oscilação das abordagens, segundo os fatores explicativos privilegiados por eles. Ora se enfoca, como nos estudos de Campos (1972, 2004, 2007), a dimensão estritamente estética e literária, relegando-se para segundo plano a importância dos fatores de ordem sociológica que possam ter contribuído para a sedimentação dos contornos formais e temáticos do texto. Outras vezes, como é o caso nas análises de Miceli (1979), a dinâmica social sobrepõe-se à obra, que passa a ocupar o papel de testemunho ou reflexo de uma realidade histórico-social descrita e analisada. Por outro lado, vale lembrar, o apelo unilateral aos fatores subjetivos corre o risco de aprisionar a investigação no interior do seu próprio objeto, de convertê-la na reiteração de uma certa imagem que se faz da “literatura”, historicamente tributária da estética romântica, presa, no dizer de Foucault (2001, p. 141), às “alusões – marteladas há centenas de anos – ao silêncio, ao segredo, ao indizível, às modulações do coração, enfim a todos esses prestígios da individualidade, onde, até hoje, a crítica esconde sua inconsistência”.

Nesse sentido, pensar os possíveis vínculos de adesão e de dissidência identificáveis entre a estética modernista de Oswald de Andrade e o nacionalismo paulista elaborado durante a Primeira República, implica, em alguma medida, uma sociologia da literatura que investigue a intricada relação de constituição recíproca entre o social, o subjetivo e o literário. Parece interessante arriscar a suposição de que a análise dos aspetos humorísticos e obscenos da poética oswaldiana abre uma perspetiva apta a captar a socialidade do literário e, por assim dizer, a textualidade do social. Pode-se pensar o humor e a obscenidade como procedimentos literários que, mais inequivocadamente que os demais, nos reportam fortemente à ordem social e à inserção dos sujeitos no seu interior, tomados tanto como sujeitos de interações sociais, quanto de expressões estéticas. Afirmamos isso no sentido de que tais formas de expressão põem em jogo, num mesmo gesto, tanto os códigos de ordem literária, quanto os de ordem social. Isto é, o humor e a obscenidade oswaldianos incidiam não só sobre a etiqueta do bem-escrever, como também sobre a gramática que prescrevia as interações da “boa sociedade”. Assim, o pendor oswaldiano para o escárnio, para o deboche, canalizados pelo riso ou pelo emprego de procedimentos obscenos, pode ser tomado como força simbólica que catalisou a dinâmica da sua inserção, a um tempo social e literária, numa ordem com cujos imperativos o autor teve que se haver, seja pela complacência com as solicitações simbólicas que dela lhe advinham, seja pela ridicularização das mesmas.

 

O “MOMENTO GRAMSCI”: HEGEMONIA, CULTURA E POLÍTICA

No que toca à discussão que aqui se ensaia, as formulações de Gramsci parecem interessar, sobretudo, no que se refere à sua conceção do fenómeno político nas sociedades modernas, isto é, como aponta Simionatto (mimeo), a “teoria ‘ampliada’ do Estado, indicando que o poder estatal, nesse novo contexto, não se expressa apenas através de seus aparelhos repressivos e coercitivos, mas, também, através de uma nova esfera do ser social que é a sociedade civil”. Assim, ­distinguindo e interrelacionando Estado e sociedade civil, o autor concebe a vida social como uma dinâmica de poder, e o poder não como algo que se impõe de “fora”, do Estado, à sociedade, mas sim como um fenómeno que se constitui na própria dinâmica do social: a dominação, na perspetiva gramsciana, apresenta-se como um processo que se modula ao longo da realidade social, o que incluí, entre outros, o facto de que, ainda no dizer de ­Simionatto (mimeo), “esse exercício do poder ocorre através da direção política e do consenso”.

Aqui chegamos à contribuição crucial que Gramsci oferece à nossa problematização, a saber, o facto de que a hegemonia, a dimensão da “direção política e do consenso”, pode ser pensada como uma zona de confronto entre Estado e sociedade, arena de litígio em torno do poder, na qual se acatam, se repudiam ou se transgridem os imperativos inscritos numa ordem de dominação. Como observa ainda Simionatto (mimeo), “quando Gramsci fala da hegemonia como ‘direção moral e intelectual’ afirma que essa direção também se exerce no campo das ideias e da cultura, manifestando a capacidade de conquistar o consenso e de formar uma base social”. Noutras palavras, estamos diante de um conceito que estende a compreensão do trabalho de dominação até às suas dimensões de construção coletiva do sentido da vida social, dimensão na qual se opera a constituição e adesão das subjetividades à objetividade da ordem social. Pois a hegemonia, assinala uma vez mais Simionatto (mimeo), “não significa apenas a subordinação de uma classe em relação à outra, mas a capacidade das classes na construção de uma visão de mundo”.

Nestes termos, a questão da hegemonia situa a problemática cultural no centro da análise da dinâmica política. A visão gramsciana, portanto, propicia uma inteligibilidade política dos processos culturais em cujo interior, na São Paulo do início do século XX, se gestou a construção da estética modernista de Oswald.

A passagem do Brasil imperial ao Brasil republicano assinalou também a progressiva transferência da hegemonia política nacional, deslocada da antiga capital imperial e então capital republicana, o Rio de Janeiro, para a cada vez mais influente São Paulo, em plena expansão urbana e económica.

Este movimento não se reduziu a uma mera substituição de elites dirigentes ou deslocamento geográfico do centro político. Em consonância com estes aspetos, a mudança mais importante diz respeito a toda uma movimentação simbólica de reelaboração da nacionalidade. A prosperidade gerada pela expansão da lavoura cafeeira, o crescimento urbano e a progressiva industrialização de São Paulo, davam margem a toda uma elaboração de acento épico que, mediante a ritualização da figura do bandeirante3, operava a exaltação das proezas e virtudes da “pátria paulista”, espaço simbólico para o qual letrados e políticos reivindicavam a condição de vanguarda e polo norteador da nacionalidade. Entretanto, estes mesmos processos que despertavam os brios dos círculos cultivados das elites paulistanas, colaboravam também para o sobressalto dos seus receios: uma sociedade recém egressa da escravidão, tributária da precária inserção social dos ex-escravos e dos seus descendentes, somava as suas distorções e desigualdades irresolutas a novos focos de conflito, ligados à crescente presença de uma população adventícia, cindida entre “carcamanos” novos-ricos e um crescente operariado das novas indústrias. À condição social precária e à mobilização política destes últimos, expressa em tintas anarco-socialistas, vinha-se conjugar a não menos ameaçadora agitação da orla de “desocupados”, “prostitutas”, “contraventores” e “desordeiros” de toda a ordem, que figuravam nos relatórios policiais.

Somadas ao espaço social conflituoso de São Paulo, as pressões advindas dos grupos dirigentes dos demais estados, impunham às pretensões hegemónicas das elites paulistas o desafio de que a sua elaboração político-cultural da nacionalidade deveria responder ao duplo imperativo de neutralizar as demandas políticas e identitárias que nasciam no topo da hierarquia da sociedade, ligadas aos grupos afastados do esquema oligárquico federal, assim como a configuração de identidades contra-hegemónicas que pulsavam nos modos de vida e repertórios culturais dos grupos subalternos.

Já em 1920, tais perspetivas estariam presentes no pensamento de ­letrados e políticos paulistas, articuladas no slogan do “assimilamos ou seremos assimilados”, de Pinto Pereira, como imperativo de manutenção da hegemonia da “alta cultura” e da ordem sociosimbólica correlata, o que se desdobraria no ideário da Reação Nacionalista de Sampaio Dória: “Os brasileiros estão ameaçados a passar, por imprudência, de senhores da terra a colonos dos estrangeiros, que vencem. […] A reação nacionalista será, pois, necessariamente, uma reação da cultura pela supremacia do nacional” (apud Sevcenko, 1992, p. 246).

O espaço e a dinâmica culturais configuravam-se, portanto, como um território estratégico em que estavam em jogo os embates e conflitos que punham em litígio a constituição da nova ordem social republicana.

Esta mesma problemática, a da diversificação sociocultural do estado de São Paulo, intensificada pela imigração ligada à expansão da economia do café e da industrialização, marca profundamente a atividade poética de Oswald de Andrade (1966, p. 97): “Japoneses/ Turcos/ Miguéis/ Os hotéis parecem roupas alugadas/ Negros como num compêndio de história pátria/ Mas que sujeito loiro”. Intitulado Guararapes, referência a uma das inúmeras cidades que surgem no interior do estado de São Paulo em decorrência da expansão da lavoura de café, o poema extrapola para o interior do Estado a “temerária” paisagem étnico-racial da capital. A composição opera fragmentações tanto ao nível semântico, com a origem dos personagens sendo designada ora pela nacionalidade, ora pelo nome próprio e ora por marcadores étnico-raciais, quanto sintático, com o último verso introduzindo uma dicção exclamativa, que corta abrutamente a linha até então descritiva. No conjunto, tais procedimentos resultam na afirmação poética da heterogeneidade ética e cultural do estado, positivando os mesmos aspetos considerados negativos pela Reação Nacionalista. Contudo, no mesmo passo, o enquadramento fragmentário ­compartimenta as respetivas singularidades, minimiza a sua ameaça, como se as confinasse, cada uma, no “seu lugar”. É exemplar, neste sentido, a alocação da presença negra: negros como num compêndio de história pátria, figuram como resquícios obsoletos, no melhor dos casos, museologizados. Entretanto, o tratamento aí dispensado ao grupo étnico que compunha a maioria da população brasileira, contrasta com uma das passagens programáticas de Oswald (1972 [1924], p. 204): “Uma sugestão de Blaise Cendrars: Tendes as locomotivas cheias, ides partir. Um negro gira a manivela do desvio rotativo em que estais. O menor descuido vos fará partir na direção oposta a vosso destino”. Note-se que é justamente a figura marginalizada por excelência, descendente de escravos, um negro, no anonimato do artigo indefinido, que ocupa a centralidade da ação. A sua aparição apresenta o caráter da intromissão inadvertida, evento irruptivo que transtorna a previsibilidade das coisas, redefine os possíveis. Parece que a literatura oswaldiana não deixou de praticar certos “descuidos”, por cujas brechas irrompem os elementos “nocivos” à boa ordem social e ­poética.

Portanto, considerando o esforço de construção identitária de um “Brasil consensual”, forjado sob a ótica paulista, paulicêntrico, na expressão de Bertelli (2009), tais figurações oswaldianas da “pátria paulista” levam-nos à interrogação da medida em que o modernismo paulista esteve vinculado ao novo nacionalismo ligado à emergência de São Paulo como polo dinâmico da economia e ponto hegemónico da política nacional, tomando a produção modernista de Oswald de Andrade na sua inserção nas redes de relações de força que se estendiam no espaço social de São Paulo e cujos fios eram (re)tecidos na trama de construção da nacionalidade, investigando, assim, as dimensões de consenso e as possibilidades de dissenso que a literatura oswaldiana introduziu no interior da “máquina escriturária” da nação.

 

O “MOMENTO HANNAH ARENDT”: ESPAÇO PÚBLICO, RISO E OBSCENIDADE

Posto que aventamos a hipótese de que o riso e a obscenidade são traços da estética oswaldiana que constituem vias de acesso à dinâmica de mútua constituição entre o social, o subjetivo e o literário, dinâmica cuja apreensão nos possibilitaria uma análise mais articulada e menos reducionista das relações entre literatura e política, cumpre, antes de mais, encaminhar uma conceituação destes termos tão polissémicos quanto equívocos.

Embora possamos chegar, mediante um aprofundamento analítico, a marcar as suas diferenças respetivas, o riso e o obsceno parecem guardar entre si íntimas afinidades. A sua proximidade talvez se evidencie se os considerarmos não como meras manifestações do “cómico”, do “grotesco”, do “impudente” ou do “lascivo”. Isto, aliás, seria dar por explicação justamente o que deve ser explicado. Devemos, antes, perguntar o que dispara estas manifestações enquanto tais, o que constitui a possibilidade da aparição de algo cujos atributos são confinados a tais categorias vazadas em registos que mesclam o moral e o percetível, o comportamental e o estético.

Neste particular, cumpre observar o nosso afastamento em relação a certas conceções correntes sobre o riso e o obsceno. O célebre trabalho de Bakhtin (1993) sobre Rabelais, por exemplo, conceitua o riso como movimento de rebaixamento do “nobre”, “erudito” e “oficial”, pretensamente “acabado” e “perfeito”, ao nível do “quotidiano”, “popular” e “contra-oficial”, característico do universo sociosimbólico dos grupos subalternos, regido pelo princípio estético da materialidade e corporeidade, onde as coisas, os seres e o mundo por eles habitado, aparecem permanentemente envolvidos no processo vital de constante “inacabamento” e “renovação”. Sendo assim, o pensador russo postula, por um lado, o a priori de pares binários que conformam as dinâmicas socioculturais e, por outro, a correspondência entre estes pares e os conteúdos culturais dos grupos nelas envolvidos. Ora, o que serve de evidência e ponto de partida a Bakhtin é o que compõe, justamente, os elementos que aqui problematizamos e pretendemos captar no movimento mesmo da sua construção. Algo semelhante se passa com a noção de obsceno, ou, mais rigorosamente, com a sua habitual identificação com as noções de erotismo e pornografia. Se concordamos com Frappier-Mazur (1999, p. 220) que “a representação escrita de cenas e imagens eróticas pode ser considerada obscena mesmo sem quaisquer palavras grosseiras”, pela mesma razão devemos discordar que “a pornografia e o obsceno se sobrepõe largamente” (ibidem). Na nossa perspetiva, a esfera do obsceno ultrapassa em muito a dos conteúdos e práticas da sexualidade, embora, por vezes, a atravesse. Isto é, a pornografia e o erotismo – conceitos de definição e distinção controversas – seriam, a nosso ver, um caso particular, uma modulação específica do obsceno: nem toda a obscenidade é erótica ou pornográfica e tão-pouco o erotismo ou a pornografia guardam, necessariamente, a potência política do obsceno. Vejamos o poema As meninas da gare (Andrade, 1966, p. 72): “Eram três ou quatro môças bem môças e bem gentis/Com cabelos mui pretos pelas espáduas/E suas vergonhas tão altas e tão saradinhas/Que de nós as muito bem olharmos/Não tínhamos nenhuma vergonha”. Trata-se da apropriação de um trecho da Carta em que Pero Vaz Caminha informa à Coroa portuguesa sobre a descoberta das terras que viriam a compor o Brasil. Note-se que Oswald elide justamente a nota realística4 que, na Carta, o escrivão interpunha entre o adjetivo saradinhas e a justificativa que de nós… Com efeito, na Carta, a ausência da vergonha parece ligada não à supressão do pudor da castidade cristã, a uma afirmação desembaraçada do erotismo, mas à presença de uma outra estética corporal, em que o escrivão não reconhecia as codificações do erótico, dadas, por assim dizer, na significação genital convencionada na sua cultura de origem. Tal supressão intensifica a duplicação semântica, presente na Carta e mantida pelo poema, entre as vergonhas, revestimento simbólico de sentido moral da anatomia feminina, e a vergonha, sentimento moral da castidade cristã. Delineia-se um circuito que se fecha entre aquele que observa e enuncia e aqueles que são observados e enunciados. No trânsito de um ao outro, reside um desvio de sentido: o que no observado é enunciado em termos enviesados de reprovação, as vergonhas, converte-se, no observador, em cancelamento do automatismo da reação moralmente prescrita, isto é, a supressão da vergonha. Oswald diria que, se o catolicismo europeu vestiu o índio, a nudez do índio despiu o europeu.5 Isto é, o poema opera ironicamente o desnudamento do português, a descoberta o descobre de traços centrais da sua cultura. Assim, o potencial crítico do poema não decorre do sensualismo visual da cena, levemente erótico. O que dispara a sua contundência obscena não são os atributos anatómicos das meninas, ou o desembaraço de quem os observa, mas o deslocamento cognitivo das categorias que enformam a própria observação, correlato ao próprio deslocamento de papéis entre descobridor e descoberta.

Nesse sentido, o conceito de mundo, em Hannah Arendt (2008), abre terreno para pensarmos o riso e o obsceno do ponto de vista não dos conteúdos semânticos passíveis de lhes serem atribuídos, mas sim do ponto de vista de uma forma de aparição específica. Para Arendt (2008, p. 19), “o mundo – a saber, a coisa que surge entre as pessoas e na qual tudo o que os indivíduos trazem inatamente consigo pode se tornar visível e audível”, constitui, com efeito, um espaço de visibilidade e discursividade, um inter-esse que separa e une os homens e que constitui a possibilidade de toda a relação de uns com os outros. Este mundo, por sua vez, é imprescindível para a constituição do espaço público, que, ainda com Arendt (idem, p. 18), “é constituído pela ação conjunta e a seguir se preenche, de acordo consigo mesmo, com os acontecimentos e estórias que se desenvolvem em história”. Enquanto espaços de discurso, visão e ação, mundo e espaço público podem ser pensados, por assim dizer, como um solo ontológico da experiência socialmente compartilhada, um espaço cujo facto da co-habitação entre fala e visão, entre ambas e a ação, preenche de realidade a experiência dos homens uns com os outros, dos homens uns dos outros, enquanto seres falantes, videntes e agentes.

Assim, tanto o riso quanto o obsceno podem ser pensados como formas de agir e perceber na medida em que os tomarmos sob o ponto de vista da sua relação com este espaço de experiência da perceção e da ação, considerado como uma espécie de fundo em que tais figuras se recortam e evidenciam. Caberia, nesse sentido, determinar a modalidade, a modulação desta relação, que faz com que tais figuras apareçam enquanto obscenidade ou riso. A própria Hannah Arendt (idem, pp. 15-16), referindo-se a Lessing, considera que “o tipo de riso de Lessing em Minna von Barnhelm tenta realizar a reconciliação com o mundo. Tal riso ajuda a pessoa a encontrar um lugar no mundo, mas ironicamente, isto é, sem vender a alma a ele”. Reconciliação e realocação, desvinculados contudo de uma adesão irrestrita ao mundo com que se reconcilia e em que se realoca: eis o riso como uma forma de relação com mundo. Aqui ele aparece como ação/discurso, o ato de rir, de ironizar aspetos do mundo, que dispara a aparição de aspetos do mundo que são reduzidos ao risível, ao ironizável. Assim, o riso como tensão instalada no intervalo entre o acolhimento e a ressalva para com uma ordenação do mundo.

Do mesmo ponto de vista, o obsceno pode ser pensado, tal como o riso, como ação/discurso/perceção que confronta o mundo. Portanto, a própria etimologia do termo, obsceno como “fora de cena”, oferece-nos uma pista e simultaneamente impõe-nos a sua “correção”. Mais do que algo relegado à exterioridade da cena, cuja aparição estaria condicionada às meras remissões da metonímia ou da perífrase, o obsceno requer ser pensado como uma espécie de “saturação da cena”, decorrente tanto da intromissão inoportuna de elementos previamente deportados, quanto de deslocamentos interiores que suspendem as fronteiras das suas esferas internas de circulação simbólica. Em ambos os casos, trata-se de exorbitar, no plano da visibilidade, da discursividade e da ação, os limites que acondicionam o conteúdo e o continente, que circunscrevem o pertinente e o alheio.

Cumpre, portanto, pensar o potencial político do riso e da obscenidade nos termos das suas relações com mundo e o espaço público. Neste particular, algumas das formulações de Jacques Rancière parecem-nos extremamente úteis. Referimo-nos à sua noção de partilha do sensível, que, em certo sentido, desdobra os conceitos de mundo e de espaço público de Arendt. Como aponta Rancière (2005, p. 15):

 

Denomino partilha do sensível o sistema de evidências sensíveis que revela ao mesmo tempo, a existência de um comum e dos recortes que nele definem lugares e suas partes respectivas. Uma partilha do sensível fixa, portanto, ao mesmo tempo, um comum partilhado e partes exclusivas. Essa repartição das partes e dos lugares se funda numa partilha de espaços, tempos e tipos de atividade que determina propriamente a maneira como um comum se presta à participação e como uns e outros tomam parte nessa partilha.

 

Assim, na medida em que aponta a simultaneidade da delimitação do comum e da circunscrição de partes exclusivas no seu interior, o autor criva os conceitos arendtianos com relações de força que atravessam a constituição do mundo da política e configuram as dimensões da visibilidade, do discurso e da ação, isto é, o procedimento estético em que a política opera e a operação política contida nos procedimentos estéticos. Com efeito, o tomar parte, o participar da política, é um processo que se apresenta, ao mesmo tempo, como produto e produtor de um “regime do sensível”, o qual, segundo pensamos, pode ser concebido como uma rede de remissão recíproca entre lugares, tempos e atividades, que regula o grau de legitimidade de diferentes pretensões/pertencimento ao político. Assim, parece tratar-se de uma espécie de “gramática normativa”, inscrita, justamente, nas “evidências sensíveis”, a partir das quais, mediante afinidades, simpatias e repulsas simbólicas, se prescrevem, se admitem e se repelem as diversas ­possibilidades de ação e do discurso no plano político.

Nesse sentido, a abjeção da obscenidade reside no inconveniente político-simbólico acionado sempre que os signos insistem em extraviar-se dos seus circuitos, as coisas e os lugares não cessam de se repelir, os sujeitos teimam em esquivar-se das suas posições. O obsceno como a deriva dos co-pertencimentos que armam uma partilha do sensível, que estabilizam uma cena.

Analogamente, tanto a dimensão de abstenção ou conivência, quanto a de ofensa contidas na comicidade e na ironia do riso, podem ser tomadas na sua relação com a “gramática normativa” do político. Tratar-se-ia, num primeiro momento, de uma suspensão das suas regras, da sua desnaturalização, que, num segundo momento, seriam recolocadas pela ridicularização da sua inobservância (o riso como advertência de regulação), ou, num sentido diverso, subvertidas pela ironização dos seus princípios, explicitando, justamente, o caráter artificioso da partilha, a “inevidência” das evidências sensíveis, reabrindo-as, assim, à possibilidade de novas invenções do político.

No contexto considerado, as mudanças sociais que atravessavam por todos os lados a sociedade paulista arrastavam consigo antigos referenciais, deslocando as fronteiras que demarcavam identidades e posições. No momento mesmo em que letrados e políticos paulistas fabulavam o elogio e exaltação das prodigalidades de São Paulo, as mesmas forças que compunham os temas da sua celebração colaboravam também para a relativa corrosão da ordem simbólica de cuja construção se investiram. Dessa forma, traçavam-se no espaço social as novas linhas nas quais simultaneamente se ia inscrevendo o texto da paulistanidade/nacionalidade. Dito mais precisamente, esboçavam-se linhas de contornos ainda indefinidos, pois que controversas eram as versões dos próprios textos a preenchê-las, as disputas em torno do léxico e sintaxe sociais a lhes conferir forma e matéria, e, por fim, as tramas, tecidas no equilíbrio precário dos confrontamentos.

No poema Biblioteca Nacional, a conflitualidade simbólica gerada em tais processos comparece, uma vez mais, no interior da elaboração ­estética de Oswald de Andrade (1966, p. 115): “A criança Abandonada/ O doutor ­Coppelius/ Vamos com Ele/ Senhorita Primavera/ Código Civil Brasileiro/ A arte de ganhar no bicho/ O Orador Popular/ O Pólo em Chamas”. O procedimento paródico e irónico, com o seu efeito de suspensão da “evidência” de um sentido único e inequívoco, conduz-nos para além da constatação de que a peça pode ser lida como exemplo da destreza de Oswald em compor, nas palavras de Campos (1972, p. xix), “penetrantes ideogramas lírico-satíricos da realidade nacional e das condições alienadas em que ela se manifesta”, levando-nos a assinalar a ambivalência do efeito cómico deflagrado pela enunciação dos títulos de livros dispostos na estante, em cuja sequência linear, entre as sugestões de respeitabilidade erudita e oficialesca do Código Civil Brasileiro e de prescrições retóricas de O Orador Popular, é maliciosa e sorrateiramente introduzida A arte de ganhar no bicho (o único grafado com minúsculas), cuja hipotética publicação em livro, já vale por si só um gesto de sátira corrosiva. É quase inevitável a perceção da gargalhada oswaldiana irrompendo nas entrelinhas destes versos, comprazendo-se em promover, inadvertidamente, a intromissão, no seio do templo da cultura oficial, do contraste entre o pedantismo da cultura afetada e livresca das elites de bacharéis e a ludicidade irreverente das pequenas contravenções populares. Entretanto, é igualmente inevitável apontar a possibilidade de o riso oswaldiano se ter nutrido da energia de possíveis efeitos catárticos, oriundos da sua inserção numa lógica cultural com cujos imperativos políticos o autor, enquanto pretendente a uma posição consolidada de escritor, se impeliu a transigir com certa complacência. Assim, se o humor poético de Oswald deflagra o estranhamento face à naturalização dos lugares sociais da cultura, suspendendo a hierarquização simbólica entre os seus universos e as pretensões ao monopólio da legitimidade cultural, incluindo aí uma alfinetada irónica nos círculos que o acolheram – e portanto em si mesmo – não deixou de funcionar, pelo que encerra de meias-palavras, como expediente gracioso de reiteração dos vínculos simbólicos tecidos no interior destes mesmos círculos de sociabilidade.

Devemos observar que o efeito de suspensão das “evidências” que configuram a “gramática social” reguladora da legitimidade cultural, no caso as obras “dignas” de figurarem na Biblioteca Nacional, isto é, o efeito cómico, para falarmos com Saliba (2000, p. 26), de “desfamiliarização” do familiar, provém, justamente, da desestabilização das fronteiras que tal gramaticalidade traçava entre os grupos e repertórios socioculturais hegemónicos e subalternos. Isto é, o humor oswaldiano parece fundar-se, primordialmente, na potência do ­obsceno em baralhar as co-pertinências socialmente instituídas entre os ­signos, os sujeitos e as posições sociais.

Portanto, a antropofagia opera mediante uma espécie de contrabando estético-cultural, mobilizando elementos heterogéneos “saqueados” dos mais diversos repertórios e procedendo à sua intromissão no interior de universos culturais nos quais, a princípio, são estranhos, desautorizados e, muitas vezes, inoportunos. Daí, em grande parte, o riso e a obscenidade do antropófago Oswald. Cabe, com efeito, pensar as figurações do riso e da obscenidade acionadas pela estética oswaldiana como formas de tensionamento do espaço político. Captar a medida em que o “contrabando” oswaldiano agencia os potenciais políticos da dinâmica social em que se insere, a medida em que pacifica a conflitualidade do riso e da obscenidade em reconciliação ou a potencializa em subversão, leva-nos a uma breve discussão sobre poder e espaço social.

 

O “MOMENTO FOUCAULT”: A ONTOLOGIA DO PODER

Em certo sentido, podemos dizer que Foucault radicaliza a visão gramsciniana que apontamos acima, acerca da dinâmica social como uma dinâmica de poder. Como aponta o filósofo francês (2005, p. 22):

 

O poder é a guerra, é a guerra continuada por outros meios. E, neste momento, inver­teríamos a proposição de Clausewitz e diríamos que a política é a guerra continuada por outros meios. […] as relações de poder, tais como funcionam numa sociedade como a nossa, têm essencialmente como ponto de ancoragem uma certa relação de força estabelecida em dado momento, historicamente precisável, na guerra e pela guerra. E, se e verdade que o poder político pára a guerra, faz reinar ou tenta fazer reinar uma paz na sociedade civil, não é de modo algum para suspender os efeitos da guerra ou para neutralizar o desequilíbrio que se manifestou na batalha final da guerra. O poder político, nessa hipótese, teria como função reinserir perpetuamente essa relação de força, mediante uma espécie de guerra silenciosa e de reinseri-la nas instituições, nas desigualdades econômicas, na linguagem, até nos corpos de uns e de outros. Seria pois, o primeiro sentido a dar a esta inversão do aforismo de Clausewitz: “a política é a guerra continuada por outros meios” isto é, a política é a sanção e a recondução do desequilíbrio das forças manifestado na guerra.

 

Embora possamos extrair de tais formulações uma conceção do social que, tal como em Gramsci, considera as relações sociais como dinâmicas de poder, estamos distantes do primado que o pensador italiano concede ao Estado e à sociedade civil, como entidades substanciais entre as quais se instala o poder. O materialismo – se assim se pode dizer – gramsciniano assenta sobre o primado ontológico da dialética sujeito-objeto, o que transparece, entre outras formulações, na conceção que Gramsci (1977, p. 1244, [apud Simionatto, mimeo]), elabora da política como catarse:

 

Pode-se empregar o termo catarse para indicar a passagem do meramente econômico (ou egoístico-passional) para o momento ético-político, ou seja, a elaboração superior da estrutura em superestrutura na consciência dos homens. Isso significa, também, a passagem do “objetivo ao subjetivo”. A estrutura, a força exterior que esmaga o homem, que o assimila a si, que o torna passivo, transforma-se em meio de liberdade, em instrumento para criar uma nova forma ético-política, em origem de novas iniciativas.

 

O “materialismo” de Foucault, por seu turno, parece ater-se ao materialismo do próprio poder, e, mais profundamente, à própria “materialidade” como efeito das relações de poder. Para Foucault, parece não haver, em particular, Estado, sociedade civil, ou mesmo, em geral, instituições, linguagem e corpos, que precedam às relações de poder, que não existam senão na medida em que se efetivam, em que se objetivam nas e pelas relações de poder. O primado ontológico do poder, as relações de poder como produtoras de real, de subjetividades e objetividades, levam as considerações foucaultianas acerca da dominação a desviarem-se de seu suposto polo central, a soberania – a partir do qual a dominação se exerceria sobre o conjunto de sujeitos a ela submetidos – para se dirigir à problemática dos mecanismos pelos quais o poder se exerce, que circunscrevem o plano de constituição dos sujeitos e das instituições, que atrelam as disposições subjetivas daqueles à ordem objetiva destas, que produzem, numa palavra, a sujeição. Como adverte Foucault (2005, pp. 31-32):

 

E, com dominação, não quero dizer o fato maciço de “uma” dominação global de um sobre os outros, ou de um grupo sobre o outro, mas as múltiplas formas de dominação que podem se exercer no interior da sociedade: não, portanto, o rei em sua posição central, mas os súditos em suas relações recíprocas; não a soberania em seu edifício único, mas as múltiplas sujeições que ocorreram e funcionam no interior do corpo social.

 

Portanto, deste ponto de vista, o poder não é algo que se imponha, “de fora”, aos sujeitos, mas algo que, “desde dentro”, constitui sujeitos. Assim, podemos extrair da conceção de Foucault o facto de que não há sujeitos a priori. Os sujeitos são produzidos nos processos de subjetivação que, em larga medida, assumem a forma de processos de sujeição. Aqui tocamos num ponto crucial à nossa problematização, referimo-nos a um vetor de reflexão que parece atravessar a filosofia de Foucault, algo que poderíamos nomear como o tema das relações entre força e forma. Isto é, formas de subjetividade, de poder, formas institucionais e de discurso, que se inscrevem nas configurações de força que articulam um espaço social. Sendo assim, a literatura oswaldiana pode ser pensada como espaço estético co-extensivo ao espaço social assim concebido. Entre outros lances poéticos, é interessante observar, nesse sentido, o tratamento dado às comemorações do Carnaval, no dizer do próprio poeta (Andrade, 1972 [1924], p. 203), “acontecimento religioso da raça”, em dois poemas paralelos, Nossa senhora dos cordões (idem, 1966, p. 102):

 

Evoé/Protetora do Carnaval em Botafogo/Mãe do rancho vitorioso/Nas ­pugnas de Momo/Auxiliadora dos artísticos trabalhos/Do barracão/Patrona do livro de ouro/Protege nosso querido artista Pedrinho/Como o chamamos na intimidade/Para que o brilhante cortejo/Que vamos sobremeter à apreciação/Do culto povo carioca/ E da Imprensa Brasileira/Acérrima defensora da verdade e da Razão/Seja o mais luxuoso novo e original/E tenha o veredictum unânime/No grande prélio/Que dentro de poucas horas/Se travará entre as hostes aguerridas/Do Riso e da Loucura;

 

Seguido de Na avenida (idem, p. 103):

 

A banda de clarins/Anuncia com os seus clangorosos sons/A aproximação do impetuoso cortejo/A comissão de frente/Composta/De distintos cavaleiros da boa sociedade/Rigorosamente trajados/E montando fogosos corcéis/Pede licença de chapéu na mão/20 crianças representando de vespas/Constituem a guarda de honra/Da Porta-Estandarte/Que é precedida de 20 damas/Fantasiadas de pavão/Quando 40 homens do coro/Conduzindo palmas/E artisticamente fantasiados de papoulas/Abrem a alegoria/Do Palácio Floral/Entre luzes elétricas.

 

Deve-se observar que o Carnaval demarcava uma arena simbólica de confrontos entre a cultura dos grupos hegemónicos e a dos grupos subalternos. A atração que os festejos dos bairros populares exerciam sobre alguns segmentos das elites consubstanciava as recomposições de forças que atravessavam a dinâmica sociocultural da cidade (Sevcenko, 1992). É deste núcleo de tensão que parece nutrir-se o Carnaval oswaldiano. Os dois poemas defrontam o ­universo popular, referido simultaneamente na evocação da festiva santidade de uma nossa senhora dos cordões, e o universo dos grupos hegemônicos, designado na alocação solene e distinta de na avenida6. E, cumpre notar, fazem pender o equilíbrio de forças para o lado do rancho vitorioso. Este movimento é observável na diferença dos registos. No primeiro poema, mais afeito ao universo popular, exaltam-se osartísticos trabalhos do barracão, atesta-se a intimidade, no diminutivo afetuoso, com o querido artista Pedrinho, no mesmo passo em que se ironiza o culto povo carioca e a Imprensa Brasileira, acérrima defensora da Verdade e da Razão. Mas, mais importante, o poema desloca a sua enunciação para o interior do universo narrado: o brilhante cortejo que vamos sobremeter à apreciação. Ao passo que no segundo poema observa-se um relativo decréscimo de exaltação e euforia. Embora ricos na descrição visual da festa, os versos restringem-se à apresentação do cortejo, sem gestos que denotem comprometimentos, sejam apelos a padroeiros, sejam afirmações de co-participação. O poeta sai do barracão e assiste à festa na avenida, observando-a de fora, do passeio. As composições circunscrevem, assim, uma espécie de espaço de (re)subjetivação, em que o poeta, filho da elite paulistana, reagencia as suas disposições e pertencimentos, articulando-os ao regime de afetos e signos dos grupos subalternos.

É simultaneamente a este gesto que o poema convoca obscenamente os grupos subalternos para o centro da cena hegemónica, ao promover os seus agentes e manifestações à categoria de artistas e de arte. Entretanto, o registo “neutro” que deixa intocadas as manifestações da avenida – salvo um possível sarcasmo contido no deslizamento semântico de cavalheiros para cavaleiros – deixa, no mesmo passo, simbolicamente também intocadas as composições de forças e as dinâmicas de poder que articulam os próprios critérios do que se define como arte e artistas. O que mais importa, contudo, é assinalar que justamente no entrecruzamento entre tais forças que se circunscreve o ponto de (re)subjetivação de Oswald, o que se manifesta, em termos da composição, na própria bipartição do Carnaval: de um lado os barracões, de outro a avenida, compartimentados e apartados, mas não inteiramente imunes à presença daquele – o próprio poeta – que se interpõe entre ambos e abre, obscenamente, a “perigosa” possibilidade das “invasões” e dos “contágios” recíprocos.

Portanto, se o poder anima e configura corpos e linguagens, sujeitos e instituições, podemos concebê-lo como o feixe de forças em que o social, o discursivo e o subjetivo se articulam. Por outras palavras, a ontologia foucaultiana instaura uma rede de relações de forças em cuja trama conflitiva se inscrevem e ganham contornos provisórios, posto que litigiosos, as formas do social, do subjetivo e do literário. Assim, a nossa questão sobre literatura e política, assentada sobre a interseção entre dinâmica social, subjetivação e escrita literária, circunscreve a estética oswaldiana como um espaço de embate em que o social, o subjetivo e o literário se confrontam e se deslocam mutuamente. A elaboração estética configura-se, portanto, na relação de simultaneidade entre a dinâmica social que adentra, subjetiva e discursivamente, o texto, e o próprio texto literário como força discursiva que intervém na dinâmica social – relação em cujo interior o cómico e o obsceno antropófago Oswald emerge enquanto sujeito, social e subjetivamente, inclinado a escritor e, simultanea­mente, enquanto escritor que investiu a literatura da possibilidade de um espaço em que se (re)colocar como sujeito, seja na transigência, seja na dissensão com os imperativos e solicitações que a dinâmica social reservava ao homem de letras.

O que equivale a dizer, matizando a interrogação de “momentos” acima, que, se é possível pensar, com Bertelli e Pellegrini (2009), a parte que coube ao modernismo oswaldiano na construção de uma nacionalidade paulicêntrica, deve-se também atentar para as dimensões da sua literatura que, de um modo ou de outro, solapavam a arquitetura da nação plasmada sob a ótica paulista. Isto é, considerar o próprio modernismo oswaldiano como elaboração que se teceu, subjetiva e socialmente, nas linhas de força que atravessavam o espaço social paulistano, na medida mesma que com elas se entreteceu enquanto uma linha literária em confronto, em luta ou em colaboração, com as demais.

Nesse sentido, as formulações de Foucault são igualmente úteis na deteção da lógica que presidiu à canalização das forças do espaço social para o interior da estética oswaldiana. Vejamos o que nos propôs Oswald de Andrade (1972 [1924], p. 207):

 

Temos a base dupla e presente – a floresta e a escola. A raça crédula e dualista e a geometria, a álgebra e a química logo depois da mamadeira e do chá de erva-doce. Um misto de “dorme nenê que bicho vem pega” e de equações. […] Obuses de elevadores, cubos de arranha-céu e a sábia preguiça solar. A reza. O Carnaval. A energia íntima. O sabiá. A hospitalidade um pouco sensual, amorosa. A saudade dos pajés e os campos de aviação militar.

 

Mais que mistura entre repertórios e linguagens distintas, a devoração antropofágica, enquanto poética dos fluxos e deslocamentos culturais, tendia à revogação dos contornos que delimitavam identidades e universos culturais, que traçavam as fronteiras hierárquicas entre o erudito e o popular, o hegemónico e o subalterno. Como se observa em Relicário: “No baile da Corte/Foi o Conde d’Eu quem disse/Pra Dona Benvinda/Que farinha do Suruí/Pinga de Parati/Fumo de Baependi/É comê bebê pitá e caí” (Andrade, 1966, p. 86).

O intercurso entre o conde, devidamente particularizado, dirigindo-se a uma genérica “dona”, pronome típico do tratamento popular, arma a interação entre ambos de modo a transparecer um tom amigável, que faz supor uma sociabilidade modulada pela conciliação, em que as partes interagem apoiadas num consenso. Leitura esta que pode ser reforçada pelo conde, posição de enunciação erudita/hegemónica, vinculado ao enunciado revestido, no conteúdo e na expressão, de caráter popular/subalterno: comê bebê pitá e caí.

Entretanto, esta leitura de caráter descritivo pode assumir novos contornos, se atentarmos nos termos e nas lógicas socioculturais que a cena agencia. É neste ponto que a noção de genealogia intervém:

 

A genealogia seria, pois, relativamente ao projeto de uma inserção dos saberes na hierarquia do poder próprio da ciência, uma espécie de empreendimento para dessujeitar os saberes históricos e torna-los livres, isto é, capazes de oposição e de luta contra a coerção de um discurso teórico unitário, formal e científico. A reativação dos saberes locais, “menores”, talvez dissesse Deleuze – contra a hierarquização científica do conhecimento e seus efeitos de poder intrínsecos, esse é o projeto dessas genealogias em desordem e picadinhas. Eu diria em duas palavras o seguinte: a arqueologia seria o método próprio da análise das ­discursividades locais, e a genealogia, a tática que faz intervir, a partir dessas discursividades locais assim descritas, os saberes dessujeitados que daí se desprendem [Foucault, 2005, pp. 15-16].

 

Assim, a noção de genealogia pode orientar a análise dos procedimentos de “saque” e “contrabando” estético-cultural que a poética antropofágica mobilizava intra e entre universos sociais. Com efeito, tais considerações de Foucault sugerem-nos a interrogar a estética oswaldiana enquanto construção que se erigiu mediante a seleção e reaproveitamento poético de “ingredientes” culturais que fervilhavam no bojo dos conflitos socioculturais do espaço social e, na mesma medida, a interrogar os efeitos estético-políticos desta inserção de “saberes” culturais diversos na hierarquia da “literatura”. Nos termos de ­Foucault (2005, p. 11), trata-se de investigar o potencial antropofágico de insurreição dos saberes sujeitados:

 

[…] por saber sujeitado […] quero designar, em suma, conteúdos históricos que foram sepultados, mascarados em coerências funcionais ou em sistematizações formais. […] apenas os conteúdos históricos podem permitir descobrir a clivagem dos enfrentamentos e das lutas que as ordenações funcionais ou as organizações sistemáticas tiveram como objetivo, justamente, mascarar. Portanto, os saberes sujeitados são blocos de saberes históricos que estavam presentes e disfarçados no interior dos conjuntos funcionais e sistemáticos […].

 

Operacionalizadas nos termos que propomos, as considerações de ­Foucault apontam para o facto de que toda a ordem, todo o regime discursivo e de poder que definem uma gramática do social, das subjetividades e da literatura, se situa sobre o terreno movediço da “clivagem dos enfrentamentos e das lutas”. Portanto, no âmbito das relações que o modernismo oswaldiano teceu, por um lado, com o nacionalismo bandeirante paulista e, por outro, com os repertórios e lógicas culturais dos grupos subalternos, cumpre averiguar a medida de pacificação ou de intensificação de conflitos operada pela estética antropofágica, mediante a identificação do grau de desarticulação da potência do popular através da sua filtragem pelo erudito ou da subversão do erudito através da sua desmontagem pelo popular. Isto é, mediante a análise da equação antropofágica destes elementos: Oswald submete os ingredientes populares/subalternos à ordenação da lógica cultural do universo erudito/hegemónico ou, ao contrário, submete os ingredientes eruditos/hegemónicos à lógica cultural do universo popular/subalterno? Ou, ainda, oscila entre estes dois equacionamentos?

Visto desta ótica, o arranjo da cena de Relicário agencia literariamente o ponto nevrálgico da conflitualidade implicada na diversificação sociocultural de São Paulo, na medida em que a circunscreve no confronto entre o hegemónico e o subalterno, o erudito e popular. A simples possibilidade de interação entre o conde e dona Benvinda desconjunta os pertencimentos e legitimidades de toda uma ordem social. A aparente placidez dos versos repousa, assim, sobre a truculência de amplos deslocamentos e realocações entre sujeitos e posições, que, numa sociedade altamente hierarquizada, como a brasileira, encerram um alto grau de obscenidade. A lógica sociocultural da sociabilidade de corte é antropofagicamente contagiada pelos termos “contrabandeados” do repertório popular, a pinga, a farinha, o fumo, que, longe de serem assimilados, acabam por rearticular as interações, as condutas e a linguagem: comê, bebê, pitá, caí. Donde o riso que se insinua entre os versos, advindo do caráter inadvertido do processo, em que o popular ironicamente confere forma e conteúdo à sociabilidade das elites.

Eis algumas das questões imprescindíveis à identificação dos procedimentos políticos inscritos na estética antropofágica. Tomá-las como parâmetro talvez possibilite explicitar os princípios que presidiram, estética e ­politicamente, à fundação da “República Pau-Brasil”, como figuração assumida pela “descoberta do Brasil”, missão e façanha que os escritores e artistas de 22 se auto-imputaram. Sobretudo se pensarmos que a proclamada fundação ­modernista da nacionalidade implicou, em larga medida, o elogio estético e cultural do popular “rude” e “iletrado” na pátria do beletrismo elitista e afrancesado.

 

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Evidentemente, os “momentos” deste texto dificilmente se prestam a uma síntese final. Entretanto, pode-se divisar uma linha que, ainda que ténue, estenda o fio da meada das problematizações que articulamos. Bourdieu marca um ponto de partida consistente, tanto com os ganhos teóricos presentes na sua conceção do espaço social como campos de força regidos por homologias, quanto com as suas eventuais deficiências na apreensão da dinâmica de subjetivação. Os três “momentos” subsequentes desdobram-se daí. Gramsci reafirma o caráter de relações de poder das dinâmicas socioculturais, sem atrelar, entretanto, a adesão ou a dissidência à internalização/exteriorização das estruturas objetivas do espaço social. Arendt e Rancière permitem especificar as relações de força do social de modo mais apropriado a uma “sociologia política da estética literária”, além de elucidarem a politicidade do riso e do obsceno, categorias pertinentes à nossa problematização. Por fim, Foucault leva as relações de força às suas últimas consequências ontológicas, permitindo enfocar o literário como elemento constituído pelas – e simultaneamente constituinte das – dinâmicas sociais, o que abre a própria escritura como território de subjetivação. Tais considerações apontam para a necessidade de se evitar uma visão substancializada do fenómeno político e do literário, assim como das dimensões sociais, estéticas e subjetivas que eles encerram.

Portanto, se o enfoque da constituição recíproca entre a dinâmica social, o processo de subjetivação e a elaboração literária é uma pré-condição para se captar o político inscrito no estético e o estético que opera no político, a discussão que vimos empreendendo leva-nos a afirmar, provisoriamente, que o elemento a ser perseguido pela análise deve ser aquele que, justamente, é o traço de ancoragem em que se dá a interseção destes termos, o vetor que os atravessa e que os articula num mecanismo de remissão recíproca, que os transforma num “dispositivo literário”.

De qualquer modo, parece certo que a antropofagia oswaldiana, para além ou aquém das interpretações ligadas à ideia de representação, pode ser tomada como a explicitação, a presentação estética dos confrontamentos político-culturais que clivavam a dinâmica de transformações em São Paulo. A obra como nó estético que se insere e se enlaça às linhas conflitivas que armam um espaço social, que delineiam as suas possibilidades subjetivas. E, podemos complementar, retomando as epígrafes destas considerações, o antropófago Oswald e a sua prática devorativa como limiar litigioso da gramaticalidade do social e da socialidade da literatura, fronteira movediça de contágios, contrabandos, deportações e repulsas entre dicções, grupos e dialetos evocados, muitas vezes à sua própria revelia, pela estética do modernista.

Como estas considerações não são um ponto de chegada, mas, no máximo, o esboço de um ponto de partida, terminemos com as perguntas que elas mesmas nos sugerem: em termos sociais e literários, o riso e a obscenidade antropofágicos não traçariam um tenso limiar entre a cumplicidade e a dissidência em relação à ordem sociosimbólica de que a estética oswaldiana era co-partícipe? Correlatamente, em termos subjetivos e identitários, não se poderia pensar o humor oswaldiano como um gesto poético que se instaura na incongruência entre os potenciais rebeldes da sua subjetividade e as solicitações simbólicas de sua identidade de homem de letras, configurada nos contornos da ordem social hegemónica? Isto é, não estaríamos diante de uma literatura situada na tensa aproximação de uma subjetividade “mal ajustada” à identidade que o autor insinua acolher, no mesmo passo em que procede à sua ridicularização? E ainda, se coube a Oswald um quinhão nos esforços de construção da paulistanidade/nacionalidade bandeirante, tal cumplicidade não seria também um via de acesso simbólico à “cultura oficial”, por meio da qual o autor traria, obscenamente, para o centro da cena hegemónica, elementos identitários e subjetivos por ela marginalizados, elementos oriundos da sua própria experiência social ou dos universos simbólicos dos grupos subalternos? Por fim, tais considerações não poderiam ser estendidas aos “arroubos obscenos” que, muito frequentemente, vinham de par com o seu escárnio? Isto é, a antropofagia não se armaria, ele mesma, da aliança entre riso e obscenidade? Pois, conforme apontamos, não há menos obscenidade no humorismo da Biblioteca Nacional que humorismo na obscenidade do baile na corte.

 

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Recebido a 14-11-2011. Aceite para publicação a 16-04-2012.

 

Notas

1 Movimento artístico-literário liderado por Oswald de Andrade entre 1928-1929, a antropofagia apropria-se simbolicamente de uma prática ritualística “primitiva” – os cerimoniais em que certas tribos “brasileiras” ingeriam os seus prisioneiros – para convertê-la em procedimento estético pelo qual pautar a relação do fazer artístico com os mais diversos repertórios culturais. Trata-se, basicamente, da apropriação e ressignificação de aspetos relevantes para a afirmação de certo padrão artístico-cultural, tido como nacional, e do descarte de elementos que escapem ou aviltem este propósito; teve como principais produtos artísticos e programáticos o Manifesto Antropófago (1928), de Oswald, a pintura de Tarsila do Amaral (1886-1973), cuja reorientação da sua fase pau-brasil (1924-1928) para a antropofágica encontra os seus mais celebrados exemplares nas telas Abaporu, Antropofagia e Urutu, trabalhos nos quais a artista afina o ideário nacionalista do grupo com soluções plástico-formais assimiladas ao cubismo e ao surrealismo europeus; e o Cobra Norato, de Raul Bopp (1898-1984), reelaboração poética de mitos brasileiro-amazónicos; além da publicação da Revista de Antropofagia, dividida em duas séries, a primeira e a segunda “dentições”. O movimento contou ainda, na sua primeira fase, correspondente à “primeira dentição”, com a colaboração de Mário de Andrade (1893-1945) e António de Alcântara Machado (1901-1935), com os quais Oswald romperia posteriormente.

2 Oswald de Andrade (1890-1954), jornalista, escritor e poeta, principal liderança, ao lado de Mário de Andrade, do Movimento Modernista (1922-1930) brasileiro. Entre as suas principais obras encontram-se: além do já citado Manifesto Antropófago, o Manifesto da Poesia Pau-Brasil (1924), os livros de poemas Pau-Brasil (1925) e o Primeiro caderno de poesia do aluno Oswald de Andrade (1927), além dos romances Memórias Sentimentais de João Miramar (1924) e Serafim Ponte Grande (1933).

3  Historicamente, trata-se dos habitantes da então vila de São Paulo de Piratininga que entre os séculos XVI-XVIII, aproximadamente, compunham expedições armadas para o interior do continente com vista à descoberta de metais preciosos, ao extermínio de comunidades de escravos fugitivos e à captura de indígenas a serem escravizados. Na passagem do século XIX ao XX, os bandeirantes e as suas expedições – bandeiras – foram convertidos em referencial simbólico da empreitada paulista de reescritura da história nacional. Visando interpretar a história do Brasil como um desdobramento da história de São Paulo, historiadores e literatos de então fabularam o bandeirante como protótipo da “paulistanidade” e como ideal a ser perseguido por toda a nação. V. Ferreira (2002) e Bertelli (2009).

4  Em Caminha (2000 [1500], p. 39, itálicos nossos), lê-se: “Ali andavam entre eles [outros nativos] três ou quatro moças, bem moças e bem gentis, com cabelos muito pretos e comprido pelas espáduas, e sua vergonhas tão altas e tão saradinhas e tão limpas das cabeleiras que de as nós muito bem olharmos não tínhamos nenhuma vergonha”.

5  Tema retrabalhado num poema posterior, cuja comicidade transparece desde a ambiguidade do título: Erro de português (Andrade, 1966, p. 161) – expressão que se usa para indicar o uso erróneo da língua e que o poema desdobra na designação de um suposto erro civilizacional: “Quando o português chegou/Debaixo duma bruta chuva/Vestiu o índio/Que pena!/Fosse uma manhã de sol/O índio tinha despido/O português”.

6   Note-se que, no contexto das reformas urbanas das principais capitais brasileiras no início do século XX, a avenida estava longe de corporificar as presunções igualitárias e impessoais da conceção liberal de espaço público. Ao contrário, a expansão urbana de então inaugurava a lógica de periferização e segregação socioespacial, dificultando aos estratos populares o acesso aos espaços centrais e “modernos”, destinados ao usufruto das camadas abastadas.

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