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Análise Social

versão impressa ISSN 0003-2573

Anál. Social  no.238 Lisboa mar. 2021  Epub 31-Mar-2021

https://doi.org/10.31447/as00032573.2021238.06 

Dossiê

O descrédito atribuído às entidades sindicais por jornalistas de São Paulo.

The discredit attributed to the trade union entities by journalists from São Paulo

1 Departamento de Comunicações e Artes, Universidade de São Paulo. Av. Prof. Lúcio Martins Rodrigues, 443 - CEP 05508-020 Butantã, São Paulo SP, Brasil, thales.lelo@gmail.com


Resumo

Num cenário de reestruturações produtivas no mundo do trabalho dos jornalistas no Brasil, este artigo pretende averiguar indicadores de engajamento sindical da categoria e analisar criticamente a desconfiança deste setor em relação a mecanismos de ação coletiva. Por meio de investigação empírica com comunicadores que atuavam no Estado de São Paulo entre dezembro de 2015 e janeiro de 2017, os resultados indicam uma acentuada crise de representatividade das entidades sindicais, desinteresse dos profissionais por quaisquer formas de manifestação coordenada e ajustamento pragmático às imposições das organizações de media. Argumenta-se que este quadro é influenciado por reconfigurações no movimento sindical brasileiro.

Palavras-chave: jornalismo; trabalho; sindicalismo; capitalismo

Abstract

In a scenario of productive restructurings in the world of work of journalists in Brazil, this article seeks to ascertain indicators of union engagement in the category and critically analyze the distrust of this sector with the mechanisms of collective action. Through empirical research with communicators working in the State of São Paulo between December 2015 and January 2017, the results show an accentuated crisis of representativeness of union organizations, disinterest with any form of coordinated manifestation, and a pragmatic adjustment to the impositions of media organizations. It is argued that this situation is influenced by reconfigurations in the Brazilian union movement.

Keywords: journalism; work; unionism; capitalism

Introdução

No Brasil, as recentes transformações no mundo do trabalho dos jornalistas são frequentemente reportadas na imprensa por meio das ondas de demissão em massa (também alcunhadas de “passaralhos” pelo grupo profissional1), que paulatinamente ocorrem nas redações de meios de comunicação de grande e médio porte. A título de exemplo, em junho de 2013 a agência de jornalismo investigativo Pública lançou uma série de reportagens sobre o fenómeno2, discorrendo sobre as suas consequências negativas para as condições laborais no setor, como a extensão das jornadas, a aglutinação de funções, a flexibilização de contratos e o incumprimento de leis tde trabalho e acordos coletivos da categoria. Mais recentemente, uma sondagem empreendida pelo projeto de jornalismo de dados Volt Data Lab, que contabilizava demissões de repórteres registadas em sites dirigidos ao público especializado (como o Portal da Imprensa, o Portal dos Jornalistas e o Comunique-se)3, constatou que pelo menos 1836 jornalistas foram demitidos entre os anos de 2012 e 2017 no Brasil.4 Só em 2016 teriam sido efetuadas 236 exonerações, sendo pelo menos 120 delas em canais de imprensa do Estado de São Paulo.

A tendência confirma-se também numa verificação dos dados do Cadastro Geral de Empregados e Desempregados (CAGED) do extinto Ministério do Trabalho (MTB) para o período de 2010 a 20145: neste setor ocupacional, as admissões decresceram ao mesmo tempo que as demissões se elevaram exponencialmente: ao final do ano de 2014, por exemplo, foram totalizadas 3254 admissões e 3297 dispensas, produzindo um saldo negativo de 57 vagas encerradas no mercado. Há que levar em consideração, todavia, uma distorção positiva dos dados, já que as admissões registadas referem-se a empresas de media e não são específicas de jornalistas em redações.

Diante deste quadro de reestruturações nas empresas de media no Brasil, há uma ausência de estudos dedicados a elucidar as formas de mobilização pública dos comunicadores em face de transformações que provocam efeitos deletérios nas suas condições de trabalho. Em específico, salienta-se o descompasso entre a literatura sobre o movimento sindical no Brasil (Alves, 2000, 2002; Antunes, 1991) e os estudos de cariz sociológico sobre o mundo do trabalho dos comunicadores. O presente artigo justifica-se pelo interesse em preencher esta lacuna, discutindo, com base em dados provenientes de um questionário aplicado a 238 jornalistas e em análise de um extrato de 15 entrevistas semiestruturadas realizadas com profissionais com passagem em jornalismo online6, o grau de engajamento sindical destes trabalhadores e a sua confiança em organismos de representação coletiva - organismos estes que, em tese, poderiam oferecer oportunidades de resistência diante das ondas de demissão em massa. No próximo tópico é empreendida uma revisão de literatura que contextualiza as reestruturações no mundo do trabalho no Brasil e as suas incidências no movimento sindical, contemplando também o surgimento do Sindicato dos Jornalistas Profissionais no Estado de São Paulo (SJSP) e o seu posicionamento em outros momentos históricos. Na sequência, são apresentados os procedimentos metodológicos empregados para a recolha dos dados e os resultados são analisados criticamente. No tópico dedicado à discussão, argumenta-se que o ceticismo que os jornalistas atribuem às entidades sindicais pode ser entendido tanto como consequência de um ajustamento pragmático destes profissionais à lógica financista das empresas em que atuam, bem como indicativo de desapreço por um sindicalismo de vertente negocial.

Revisão de literatura

A sociologia do jornalismo vem-se dedicando nos últimos anos a discutir as reestruturações no mundo do trabalho dos comunicadores. Não obstante os estudos clássicos tenham evitado discorrer sobre o campo do ponto de vista do trabalho, privilegiando identificar os critérios de filtragem empregados pelos profissionais para definir quais os acontecimentos aptos a receber cobertura noticiosa (Gans, 1979; Tuchman, 1973; White, 1999), além de mapear as práticas de socialização na cultura jornalística (Breed, 1955; Traquina, 2005) e os processos de progressiva formalização do setor (Ruellan, 1992), há atualmente uma profusão louvável, embora ainda não tão expressiva, de pesquisas dedicadas a compreender as mutações no mercado (a exemplo das ondas de demissão coletiva) e as suas incidências na atividade laboral.

No Brasil, algumas investigações dedicaram-se às tecnologias que teriam viabilizado a convergência multimédia nas redações, acarretando a diminuição dos postos de trabalho e a aglutinação de funções (Mick, 2015; Pereira e Adghirni, 2011; Renault, 2013); outras discorreram sobre o encurtamento dos tempos de produção dos jornais e a extensão das jornadas devido à introdução da cultura do “tempo real”, que pauta a produção noticiosa em muitos veículos digitais (Adghirni, 2012; Moretzsohn, 2002; Renault e Cataldo, 2015); há ainda pesquisas voltadas para o rastreio das mudanças nas rotinas produtivas decorrentes da entronização de métricas de acesso em jornais digitais - que quantificam o público consumidor para o mercado de anunciantes, privilegiando uma mentalidade estritamente financista, em detrimento da responsabilidade editorial (Fígaro, 2013; Moretzsohn, 2014); por fim, há uma seara de incursões preocupadas em discutir a disseminação de contratos flexíveis em empresas de media, o incumprimento da legislação laboral e a composição de um “exército de reserva” na área (Fígaro, Lima e Grohmann, 2013; Lima, 2012; Mick e Lima, 2013). Contudo, até ao presente momento, esta literatura pouco se dedicou à contextualização da conjuntura sociohistórica que viabilizou as referidas reestruturações. Outrossim, são também parcos os estudos dedicados a compreender as relações entre a crescente precarização no mundo do trabalho dos jornalistas e os graus de engajamento da categoria com entidades de representação coletiva (à exceção do artigo de Samuel Lima e Jacques Mick, 2013).

Em algumas pesquisas (Fonseca, 2006; Grisci e Rodrigues, 2007), as tendências supramencionadas são tematizadas sob o pano de fundo das mutações no processo de acumulação capitalista e de espoliação do trabalho. Para Luc Boltanski e Éve Chiapello (2009), a disposição voluntária dos indivíduos à servidão neste sistema só foi possível graças a formações ideológicas que viabilizaram, em distintos momentos históricos, a exploração laboral. No final do século XIX, a emergência do capitalismo teria instaurado uma nova relação moral entre os homens e seu trabalho, fundada no princípio da vocação. A entrega conscienciosa aos ritmos laborais fatigantes era aportada pelo objetivo maior de constituir um mundo duradouro sob os auspícios da ciência, da técnica e do progresso industrial. Entre os anos de 1930 e 1960, abre-se uma senda nessa caracterização inaugural do sistema com vista ao desenvolvimento da produção em massa, racionalizada e planificada no longo prazo. Ao capitalismo essencialmente familiar sucede um capitalismo de empresas baseado em burocratização e na especialização dos trabalhadores. Todavia, Boltanski e Chiapello (2009) assinalam que, dos anos de 1970 em diante, estremecem-se os sustentáculos do capitalismo planificado: as corporações ramificam as suas instalações pelo globo, a produção flexibiliza-se e diversifica-se em função do consumo por segmentos, e a massificação das categorias profissionais é substituída por um ideal de autonomia de verniz neoliberal.

Neste período, as críticas de movimentos sociais ao modelo de produção taylorizado7 foram incorporadas pelo sistema como um indicativo de oposição a um capitalismo social regulado pelo Estado (tido como obsoleto e coercitivo). As garantias oferecidas pelo direito do trabalho, conquistadas no decorrer de décadas de lutas sindicais, foram então fragilizadas, abrindo caminho para uma “ideologia” do capital que “louvava as virtudes da mobilidade e da adaptabilidade” (Boltanski e Chiapello, 2009, pp. 235). Consolida-se, no processo, um sistema gestionário de roupagem funcionalista, que se robustece a partir das próprias críticas tecidas contra ele, apresentando-se como o resultado de uma deliberação consensual ajustada às exigências da época por “autonomia” e “liberdade” - que possibilitam aos dominantes manterem inalteradas as assimetrias sociais.

Todavia, os deslocamentos macroestruturais ocorridos no hemisfério Norte diferem daqueles que tiveram lugar na América Latina, uma vez que os movimentos sindicais da região nunca lograram o mesmo sucesso na consolidação de um capitalismo social regulado pelo Estado (Leite, 2009). É só nos anos de 1970 que o Brasil adere, pari passu a um processo de expansão industrial, às estratégias de rotinização da produção baseadas num forte espírito autoritário (Leite, 2005). Contudo, a difusão do modelo disciplinar de gerenciamento no país não implicou maior especialização e garantias legais atribuídas ao trabalhador: altas taxas de rotatividade nas corporações e franca adoção de mão-de-obra não qualificada eram práticas corriqueiras no período.

Não obstante, na viragem dos anos de 1980, o sindicalismo brasileiro vivenciou um período de profunda efervescência, com uma explosão de greves nas mais diversas categorias assalariadas no país, com protagonismo dos operários industriais que aderiram a um “sindicalismo de confronto” - tendo como principal expoente as graves metalúrgicas do ABC entre os anos de 1978 e 1980 (Alves, 2000; Antunes e da Silva, 2015). Fundado em 1937, o Sindicato dos Jornalistas Profissionais no Estado de São Paulo (SJSP) esteve presente, no período de histórico que compreende os anos de 1960 e 1980, em diversas ações coletivas que obtiveram maciço apoio dos comunicadores, a exemplo de greves visando a conquista do piso salarial para a categoria (1961) e a reinvindicação de igualdade salarial pelas mulheres jornalistas (1979).8

Contudo, o “sindicalismo de confronto” dos anos de 1980 entrou em declínio no país em decorrência de reestruturações produtivas que culminaram com uma fragmentação da classe trabalhadora no Brasil (Alves, 2002; Antunes e da Silva, 2015). Este processo inicia-se no findar da ditatura militar (entre 1984 e 1985) sob a prerrogativa da retoma do crescimento económico e da modernização das tecnologias no mundo do trabalho, inaugurando um modelo “just in time taylorizado” (Leite, 2005). Já na década de 1990, “as empresas passaram a concentrar os seus esforços nas estratégias organizacionais, bem como na adoção de novas formas de gestão do trabalho mais compatíveis com as necessidades de flexibilização da produção” (Leite, 2005, p. 9). Este novo modelo gerencial caracteriza-se pela empresa enxuta e pela externalização de operações, “com a consequente terceirização de parcelas da atividade produtiva e do trabalho, geralmente acompanhado pela precarização dos contratos e das condições de trabalho” (Leite e Salas, 2014, p. 87).9

Conforme José Krein (2013), as reestruturações ocorridas no Brasil na “década neoliberal” materializam-se no mundo do trabalho por meio da supressão de benefícios e direitos advindos da legislação e das normas coletivas (conquistadas pelo “sindicalismo de confronto” das décadas de 1970 e 1980), permitindo maior flexibilidade nas jornadas laborais por meio de bancos de horas, da implementação de turnos ininterruptos de revezamento, de escalas de trabalho múltiplas e da extensão das horas extras, para além da regulamentação legal, reduzindo progressivamente a distinção necessária entre “tempo social” e “tempo de trabalho”. A esse panorama inquietante, somam-se os meios adotados pelas empresas para estimularem um acréscimo na produção, ameaçando com demissões aqueles que não conseguissem cumprir determinada meta e estimulando a concorrência nas relações trabalhistas.

Os efeitos das reformulações nos princípios gestionários das organizações no Brasil são também salientes nas empresas de comunicação, conforme Fábio Pereira e Zélia Adghirni (2011) e Cláudia Lima (2012) já detalharam em oportunidades distintas. Todavia, a sua repercussão no engajamento sindical foi escassamente debatida, sendo um “ponto cego” na sociologia do jornalismo brasileiro.

Procedimentos metodológicos

Dada a escassez de investigações no Brasil sobre os indicadores de sindicalização dos jornalistas com vista a um gradativo processo de reestruturação nas corporações de media, esta pesquisa insere-se numa agenda exploratória. Conforme refere Gil (2002), as pesquisas exploratórias permitem uma diversidade de métodos de coleta e análise de dados que viabilizam uma aproximação ao mesmo tempo rigorosa e versátil do fenómeno empírico que se busca compreender. Neste sentido, recorremos a uma miríade de técnicas de investigação propícias à resolução dos objetivos de pesquisa supracitados, estratégia esta correntemente adotada em estudos referentes ao mundo do trabalho dos jornalistas (Fígaro, 2014; Pereira, 2014).

O recorte geográfico delineado privilegiou a experiência dos profissionais que atuam no Estado de São Paulo, compondo um “estudo de caso”, no sentido proposto por Robert Yin (1994). Tal demarcação do corpus justifica-se a partir dos resultados de uma investigação empírica abrangente desenvolvida por Mick e Lima (2013) acerca da estruturação do mercado de trabalho dos comunicadores no Brasil nos últimos anos. Segundo dados desta pesquisa, entre 1980 e 2011, São Paulo concentrou mais de 36% dos registos profissionais distribuídos a jornalistas em todo o Brasil, o que sinaliza uma presença mais volumosa de trabalhadores da área nesta região do país.

Tendo em vista este panorama, por meio da plataforma virtual Survio10 foi elaborado, como primeira estratégia de coleta de dados, um questionário intitulado “Perfil dos jornalistas profissionais do Estado de São Paulo”, composto por questões objetivas referentes ao perfil sócioprofissional dos entrevistados e às suas condições de trabalho e saúde. O survey comparou os resultados obtidos com aqueles oriundos de investigações precedentes empreendidas no decurso dos últimos 20 anos, seja com corpus similares (Herscovitz, 2000; Fígaro, Lima e Grohmann, 2013) ou com recortes geográficos diversos (Mick e Lima, 2013).

O período total de aplicação do questionário foi de 10 meses (entre 11 de novembro de 2015 a 24 de setembro de 2016) e os respondentes foram identificados por rastreamento em redes sociais (como o Linkedin e o Facebook) e por meio de parcerias com instituições que possuem listas de emails que agregam comunicadores (a exemplo da Federação Nacional dos Jornalistas (FENAJ) e do Sindicato dos Jornalistas Profissionais no Estado de São Paulo (SJSP). Ao findar a coleta de dados, foram obtidas 260 respostas, mas deste total 22 fichas tiveram que ser descartadas por não se enquadrarem no escopo da investigação (maioritariamente jornalistas oriundos de outros Estados da Federação), restando 238 contribuições válidas.

Numa apreciação panorâmica do perfil dos respondentes deste questionário, reforçam-se tendências já detetadas noutras investigações de mesmo escopo (Fígaro, 2013; Mick e Lima, 2013): no mundo do trabalho dos jornalistas atualmente há um predomínio de mulheres jovens (entre 19 e 30 anos), solteiras, sem dependentes e com ensino superior completo. Dos 238 colaboradores desta etapa da investigação, 153 identificavam-se como sendo do género feminino (64% do total); 46% (ou 110 participantes) encontravam-se na faixa de 19 a 30 anos11; mais da metade (precisamente 56,3%) afirmou ser solteiro12; 71% informaram não ter dependentes e 94% do total referiu ter formação superior.

As razões para esse perfil hegemónico são variadas, e vão desde a abertura do mercado de trabalho às mulheres, com consequente aumento de sua participação em diferentes setores da economia, especialmente em setores precarizados (Leite, 2005); às “ondas de demissões” de jornalistas mais experientes numa gama de meios de comunicação; a maior inclinação dos jovens a suportarem jornadas exaustivas em condições de trabalho flexíveis (Fígaro, 2013; Lima, 2012); além da própria dificuldade entre os profissionais de harmonizarem as suas rotinas produtivas a outras esferas de suas vidas, como a social e familiar (Heloani, 2005; Fígaro, 2013).

Compondo o corpus desta investigação, o segundo método de coleta de dados foi a realização de entrevistas semiestruturadas com indivíduos que tivessem participado do questionário “Perfil dos jornalistas profissionais do Estado de São Paulo” e se tivesssem oferecido para colaborar na etapa de entrevistas (informando seu email para contacto) ou indicado interlocutores que se enquadrassem nos parâmetros geográficos do estudo.13 Entre 11 de abril e 12 de setembro de 2016 foram realizadas 15 entrevistas com comunicadores com passagens em alguns dos principais media do país com sede no Estado de São Paulo. Para esta etapa, foi elaborado um roteiro composto por cinco subgrupos de indagações (totalizando 20 questões) no ímpeto de compreender a inserção do participante no mercado jornalístico. Uma das interrogações, que será matéria de análise no tópico seguinte, indagava explicitamente acerca da relação dos interlocutores com as entidades sindicais e se consideravam tais associações representativas da categoria. As conversas aconteceram via Skype e foram gravadas para posterior transcrição e codificação dos temas comuns presentes nelas.

Resultados

Numa primeira avaliação dos resultados do survey “Perfil dos jornalistas profissionais do Estado de São Paulo” atesta-se um diminuto índice de sindicalização entre os respondentes da pesquisa: conforme ilustrado no gráfico a seguir, dos 238 participantes somente 21% se disseram sindicalizados, contra 79% não associados.14

Os dados obtidos estão em afinação com os resultados de outras investigações que se debruçaram sobre o mesmo setor ocupacional: na pesquisa mais abrangente empreendida em cenário brasileiro, Lima e Mick (2013) avaliaram as taxas de sindicalização a partir de um survey com 4216 jornalistas espalhados por todas as regiões do país. Os resultados assinalaram que somente 25,2% dos respondentes eram filiados a sindicatos, contra 74,8% sem quaisquer vínculos a entidades dessa natureza (40,6% só no Estado de São Paulo). Os autores ainda frisam uma inclinação para a sindicalização por parte dos profissionais pertencentes a grupos etários mais velhos e com maior tempo de permanência na categoria (a minoria no setor atualmente, que concentra um volume expressivo de jornalistas de até 30 anos).

Fonte: Autor. Dados da pesquisa “Perfil dos jornalistas profissionais do Estado de São Paulo”.

FIGURA 1 Vínculo com o sindicato 

Fonte: Autor. Dados da pesquisa “Perfil dos jornalistas profissionais do Estado de São Paulo”.

FIGURA 2 Vínculo com o sindicato (por idade) 

Distintamente das conclusões de Lima e Mick (2013), no presente survey não houve variação crescente nas taxas de sindicalização por segmentação etária: os indicadores permanecem reduzidos entre as faixas dos 19 aos 50 anos (média de 18% de sindicalizados), com variação positiva somente no recorte entre os 51 e os 70 anos (onde 43% dos respondentes afirmaram possuir vínculos sindicais).

Estes indicadores reduzidos de sindicalização também transparecem de modo acentuado na etapa de entrevistas semiestruturadas: todos os 15 participantes que compuseram o corpus de análise responderam de forma veementemente negativa quando indagados sobre a representatividade do Sindicato dos Jornalistas Profissionais no Estado de São Paulo (SJSP) para a categoria, com relatos que variavam desde um certo desinteresse pelas atividades sindicais (oito casos), passando pelo receio de serem dispensados da empresa em que atuavam em caso de filiação à entidade (cinco casos), até denúncias de relações promíscuas entre o sindicato, as empresas de comunicação e os grupos políticos (cinco casos).15

À partida, impressionam pela sua expressividade e recorrência, o número de depoimentos de profissionais que alegam, por razões diversas, um completo afastamento das atividades sindicais. Num plano mais elementar, alguns jornalistas consideram um absurdo terem de pagar compulsoriamente a taxa de contribuição sindical, enquanto outros se assumem não sindicalizados pelo facto de avaliarem que a instituição não lhes oferece como contrapartida uma reposição salarial efetiva (tendo por referência a inflação acumulada do ano anterior). A repórter Ana16, a título de exemplo, relata ter-se mantido associada para receber informações periódicas sobre cursos de especialização, anúncios de oportunidade de emprego e para efetuar consultas quando possuía dúvidas sobre os seus direitos laborais. Frisa ter tido as suas demandas contempladas pela entidade, até que optou pela desfiliação em decorrência de um reajuste de 10% na taxa de contribuição mensal ao sindicato

Mas eu achei aquilo um desaforo, por que eu falei: ‘vocês nunca conseguiram um reajuste do nosso salário de 10% em todo esse tempo que eu tô aqui em São Paulo. Na maioria das vezes os reajustes que vocês conseguiam para o salário da nossa categoria eram abaixo da inflação, e aí vocês me vêm com um reajuste praticamente igual à inflação do ano passado (porque a inflação do ano passado foi de 10,7%)?’ Eu achei aquilo um desaforo [Depoimento extraído de entrevista concedida ao pesquisador em 19-04-2016].

Uma segunda vertente sobre as razões para o desinteresse em relação ao engajamento sindical passa exatamente pelo oposto: que o Sindicato dos Jornalistas Profissionais no Estado de São Paulo (SJSP) só se ocuparia com questões de ordem financeira (como pagamento de dissídio salarial) e homologação de demissões, esquecendo-se de fomentar a organização coletiva da categoria (promovendo campanhas de estímulo à sindicalização e debates públicos sobre os futuros da profissão). Nas palavras da editora de conteúdo Tereza (que relata ter tido um laço profícuo com o Sindicato no decurso de sua formação académica) essa problematização é explicitada:

Parece que o Sindicato às vezes fica, pras pessoas, uma coisa restrita ao momento da demissão e ao momento da cobrança pelo dissídio. Eu também acho que isso não é saudável, acho que a categoria tem que ser mais do que isso. A gente tem que se entender mais como uma comunidade de pessoas que têm interesses em comum ou mesmo interesses diferentes, mas que podem se complementar, podem ter uma atuação colaborativa, que às vezes não acontece nas redações, onde tá todo mundo muito individualizado, e o Sindicato talvez pudesse ser um espaço para essa atuação ser mais conjunta, né? E menos cada um ali no seu bloquinho apertado, cada vez mais apertado, né, no seu quadradinho sufocante, e sim juntar todo mundo pra pensar o que é que a gente quer para o jornalismo na nossa região, na nossa cidade, no nosso Estado, ou na nossa área [Depoimento extraído de entrevista concedida ao pesquisador em 06-09-2016].

Alinhada com estas críticas, uma segunda profissional, a analista de media sociais Elenira (com substancial atuação política em movimentos sociais) também questiona a capacidade de o sindicato promover a mobilização da categoria (a qual, também em seus termos, é historicamente desunida):

Tem um grupo muito pequeno de jornalistas sindicalizados que tentam de alguma forma organizar a categoria, mas a categoria também não corresponde, e aí eu não sei te dizer se é porque não confiam nessa diretoria que tá aí, e se mudasse, e se fosse uma direção mais combativa, se passariam a participar mais das atividades do Sindicato [Depoimento extraído de entrevista concedida ao pesquisador em 29-06-2016].

Por fim, uma terceira jornalista, Alice, é mais incisiva ao formular suas críticas e responsabiliza exclusivamente o sindicato pela desmobilização dos profissionais do setor: “o sindicato é o lugar que só recebe contribuição sindical. Porque eles não se unem. É o sindicato mais desunido que eu conheço” (Depoimento extraído de entrevista concedida ao pesquisador em 29-06-2016).

No segundo eixo de críticas à suposta não representatividade do Sindicato dos Jornalistas Profissionais no Estado de São Paulo (SJSP) - abarcando comunicadores apartados de relações sindicais por receio de demissão pelas empresas em que atuavam - os depoimentos concedidos pelos entrevistados indicam que em determinado momento das suas trajetórias até se sentiram motivados a acionarem o sindicato para relatarem casos de desrespeito aos direitos laborais que vivenciaram em empresas de comunicação, mas que foram desmobilizados de seguirem adiante, seja por colegas de trabalho, seja por falta de confiança na entidade. Também paira um receio generalizado de que qualquer mobilização coletiva pudesse acarretar novas demissões (já que o “exército de reserva” de jornalistas desempregados pode facilmente repor eventuais dispensas). Segundo Aline, repórter com passagem por empresas de grande porte no setor: “Em São Paulo seria impossível pensar uma mobilização do tipo: ‘hoje vamos fazer greve’. Isto é impensável, ninguém faria isso. Por quê? Porque todo mundo tem medo de ser demitido, e depois sabe que não vai conseguir outro emprego” (Depoimento extraído de entrevista concedida ao pesquisador em 13-04-2016).

Já no terceiro bloco de respostas despontam denúncias de articulação promíscua entre a entidade, corporações mediáticas e/ou grupos políticos. Aline (editora de conteúdo web), por exemplo, queixa-se de que o sindicato, na sua perspectiva, estaria muito mais preocupado em tecer articulações com outras instituições de mesma espécie (como a Central Única dos Trabalhadores, CUT) do que em apoiar as reivindicações de jornalistas (que se veem, por sua vez, desprovidos de capacidade de mobilização). Para o designer David, a própria ausência de manifestação do sindicato em face dos processos de reestruturação que acometem a categoria seria decorrente de um estreitamento dos laços entre corporações de media e a entidade:

Eles não lutam pra melhoria alguma (…) Essas demissões em massa acontecem, essas coisas todas acontecem, e você não escuta um suspiro dos caras, um comunicado dos caras, uma movimentação. Então assim, pra mim, eles estão totalmente do lado das empresas, eles são uma nulidade [Depoimento extraído de entrevista concedida ao pesquisador em 11-04-2016].

Uma terceira colaboradora desta etapa da investigação, a repórter ­Márcia, ainda formula uma denúncia mais específica ao sindicato, alegando que, durante o seu processo de exoneração (um “passaralho” que atingiu diversos profissionais da redação em que atuava), os representantes da instituição na ocasião estiveram alinhados com o departamento de Recursos Humanos: “Então, na verdade, a relação que a empresa tem com o sindicato é muito promíscua, assim, sabe? É uma relação que mistura relação pessoal com relação profissional, foi uma coisa horrível, uma coisa nojenta de ver” (Depoimento extraído de entrevista concedida ao pesquisador em 13 de abril de 2016).

Menos do que tomar tais denúncias como acusações incontestáveis de uma suposta articulação insidiosa entre o Sindicato dos Jornalistas Profissionais no Estado de São Paulo (SJSP) e o patronato (já que a matéria aqui não incide sobre a veracidade das delações), o que a miríade difusa de críticas à capacidade representativa da entidade revela numa camada mais profunda é uma falta de estímulo à ação coletiva, algo que emerge em boa parcela das respostas à indagação sobre a representatividade do sindicato. Ainda que em tons variados, percebe-se uma ressonância entre as considerações feitas pelos participantes desta etapa de entrevistas e os resultados da investigação de Lima e Mick (2013), que assinalavam que quase um terço dos jornalistas (29,9%) recusava a identificação com qualquer posicionamento ideológico, evidenciando diminuta sensibilidade para questões sociais. Salpicam depoimentos que correlacionam a apatia ao engajamento sindical à desunião presente na categoria e à ausência de reconhecimento enquanto classe trabalhadora.

Alguns entrevistados apontam uma tendência entre os jornalistas para circunscreverem as suas reinvindicações e demandas a desabafos pontuais com os colegas durante o expediente, sem conduzir a qualquer tipo de mobilização. Nesta linha, Márcia alega: “E os colegas não se unem assim, sabe? Se unem assim, nas reclamaçõezinhas de café, de almoço, ‘ai meu Deus como é uma merda isso aqui’ ” (Depoimento extraído de entrevista concedida ao pesquisador em 13-04-2016). As motivações para essa conduta seriam uma desunião preponderante na categoria, como a própria entrevistada conclui ao relatar o receio dos seus colegas em acionarem mecanismos legais para combaterem as situações de desrespeito aos direitos laborais que sofreram numa grande corporação mediática:

Ninguém se unia lá. Cada um por si e Deus por todos e ‘ah, não vou brigar com a empresa, porque a empresa é um peixe muito grande’, e ninguém fazia nada. Tanto que depois eu pensei em entrar com ação, mas eu falei: ‘o quê? Vou perder, vou me desgastar, tipo, aí não, foda-se: cada um vai ter o que merece e eu quero ter a minha vida e a minha paz. [Depoimento extraído de entrevista concedida ao pesquisador em 13-04-2016]

Dentre os profissionais entrevistados, sobressaem também elucubrações sobre certa ambivalência na conduta dos comunicadores, que manifestariam sensibilidade para os problemas sociais enquanto naturalizariam o cenário de precariedades que acomete a sua própria categoria - algo que transparece nas palavras da repórter Priscila:

A categoria nossa nunca foi famosa por ser sindicalizada, tanto que é assim: a gente faz um monte de notícia falando que todo mundo tá trabalhando demais, que as empresas tão explorando todo mundo, mas a gente é explorado mais do que muitos e a gente tá lá [Depoimento extraído de entrevista concedida ao pesquisador em 05-05-2016].

Emerge então a seguinte interrogação: quais as “estratégias defensivas” (Dejours, 2007), que possibilitariam aos comunicadores eufemizarem a sua compreensão das injustiças que permeiam o seu campo profissional? Para uma das entrevistadas (Ana), o principal mecanismo em ação nesse âmbito seria uma perceção irrealista que os jornalistas partilham entre si que os impede de se reconhecerem como integrantes de uma classe trabalhadora passível de organização sindical (algo que justificaria o próprio distanciamento dos profissionais dos órgãos de representação coletiva).

Segundo a entrevistada,

é muito difícil você representar uma categoria quando essa categoria não se reconhece, né? É muito difícil. Porque é aquilo que eu falei: o jornalista se identifica mais com o patrão do que com seu colega de trabalho. Então, eu entendo a dificuldade de mobilização do sindicato. [Depoimento extraído de entrevista concedida ao pesquisador em 19-04-2016]

A seguir, este nítido desapreço dos jornalistas por formas de ação coletiva, mesmo diante das sucessivas ondas de demissão e de precarização da imprensa paulista, será tratado sob a perspectiva dos deslocamentos da práxis sindical no Brasil e das incidências das reestruturações produtivas na cultura organizacional dos media.

Discussão

Após esta digressão pelos índices de sindicalização dos comunicadores do Estado de São Paulo e pelos argumentos empregados pelos interlocutores deste estudo para justificarem o seu afastamento de entidades tradicionais de representação coletiva, é pertinente tecer inferências sobre as razões que estariam a inviabilizar os jornalistas de reivindicarem melhorias das suas condições de trabalho. A atuação combativa do Sindicato dos Jornalistas Profissionais no Estado de São Paulo (SJSP) no período de 1960 a 1980 (que coincide com a ebulição do “sindicalismo de confronto” no Brasil) permite concluir que o distanciamento percebido entre a entidade e os seus representados decorre de transformações recentes na cultura sindical. Este processo condiz, em certa medida, com a crise no sindicalismo no Brasil ocorrida na “década neoliberal” (1990-2000), caracterizada não só pela queda na “taxa de sindicalização, mas principalmente pela diminuição da eficácia da ação sindical” (Alves, 2002,p. 89).

A crise neste campo propiciou o surgimento de um sindicalismo de caráter negocial, “onde o confronto cedia espaço para as parcerias, negociações e incentivo aos pactos sindicais” (Antunes e da Silva, 2015, p. 511). Esta reconfiguração alterou não só o perfil das lideranças dessas entidades, mas também as práticas adotadas até então. Além da conversão dos dirigentes em gestores, este período também deslocou o ideário da ação sindical de um discurso de classe para um discurso cidadão (Antunes e da Silva, 2015). Tal desarticulação da práxis combativa presente nas décadas de 1970 e 1980 em prol de uma postura mais pragmática gerou, como efeito colateral, uma verticalização da estrutura sindical (Alves, 2002) que explica, em certo sentido, o distanciamento entre as entidades e os seus associados de base. Esta conjuntura sociohistórica manifesta-se, por certo, no descontentamento expresso pelos entrevistados quando repreendem a circunscrição das atividades do sindicato a campanhas discretas de reposição salarial, informes e consultoria jurídica, em detrimento de uma postura mais aguerrida ante as investidas de precarização laboral conduzidas pelas corporações de media. As negociações com outras lideranças sindicais e com representantes dos veículos de imprensa também são apreendidas pelos jornalistas como um menosprezo pelos interesses da categoria e como sintoma de patologia nas relações entre a entidade e o empresariado.

Todavia, isto não significa que os comunicadores que concederam entrevistas para este estudo sejam saudosos do “sindicalismo de classe” de outrora.17 O facto de acentuarem a histórica desunião da categoria nos seus depoimentos e a individualização das queixas às condições de trabalho nas redações sinaliza uma quebra no estímulo ao engajamento coletivo que não se resume ao desapreço pelo sindicato. A justificação para este quadro de apatia, exemplarmente destacado pela repórter Ana no tópico precedente18, seria encontrada no suposto estreitamento dos laços dos jornalistas com o patronato, que teria consolidado na categoria uma visão de mundo distorcida, responsável por levá-la a reproduzir servilmente a ideologia dominante.

Apesar de os depoimentos não sinalizarem, necessariamente, esta direção (uma vez que as relações dos entrevistados com os seus superiores são frequentemente tensas dadas as demissões recorrentes no setor), a adesão pragmática à cultura organizacional das redações é uma chave explicativa para a apatia no mundo do trabalho dos jornalistas, que segue as reconfigurações no “espírito” do capitalismo (Boltanski e Chiapello, 2009). Tais reconfigurações, por sua vez, são responsáveis pelo declínio da ação sindical no Brasil dos anos de 1990 em diante. No modelo gerencial dominante, a busca pelo reconhecimento no mundo do trabalho, que deveria levar, quando bem sucedida, à conquista progressiva da autorrealização do sujeito, estaria a ser apropriada nocivamente pelo sistema para suscitar uma submissão voluntária a tarefas e obrigações despropositadas, produzindo indivíduos dependentes do reconhecimento das organizações que os espoliam (Honneth, 2006). Conforme Honneth (2006,p. 146), essa espécie ideológica de reconhecimento (no sentido negativo do termo)19, conduziria o operador a “promover uma nova relação consigo mesmo que motiva a aceitação voluntária de cargas de trabalho consideravelmente modificadas”. Na sequência, ele arremata,

a flexibilização e a desregulação do trabalho que acompanham a mudança estrutural neoliberal do capitalismo, exigem competências de auto mercantilização produtiva que precisamente podem ser geradas produtivamente mediante a qualificação reconhecedora como “empresário da força de trabalho” [Honneth, 2006, p. 146].

Esta linha de raciocínio não nos permite argumentar que os jornalistas fabulam inconscientemente uma posição dominante (sintonizada com o patronato) que em verdade não possuem - em prejuízo da identidade ocupacional baseada num ethos próprio que os liga a uma “comunidade interpretativa” (Traquina, 2005). Outrossim, os depoimentos dos entrevistados apontam antes para uma naturalização de situações de desrespeito aos direitos laborais sofridas por uma categoria que não se identifica com a entidade que poderia representá-la coletivamente. Sob este “espírito neoliberal”, as jornadas extenuantes (com sobrecarga de atividades e acúmulo de funções), os contratos flexíveis, a remuneração insuficiente e as ondas de demissão são apreendidas pelos comunicadores como ingredientes de uma inexorável realidade reforçada na sua robustez entre reclamações divididas nos horários de café e um descontentamento vivenciado no íntimo (contribuindo para um ajustamento pragmático à cultura das empresas, ao invés de uma identificação com o empresariado de media).

Em outros termos: num contexto de diminuta adesão à representação sindical, os dispositivos de ação coletiva e de reivindicação por melhorias nas condições laborais passam a ser visualizados pelos jornalistas como riscos à permanência na empresa ou como organismos desprovidos de eficácia, uma vez que não oferecem, na visão deles, os subsídios necessários para o enfrentamento dos abusos cometidos pelos conglomerados de media. A fragmentação do grupo profissional, seja pela desarticulação coletiva, seja pela alta rotatividade nas redações, ou ainda pela precarização dos contratos de trabalho, motiva um reconhecimento exíguo dos profissionais enquanto categoria, limitado, como os depoimentos desta pesquisa permitem entrever, às queixas ­partilhadas em intervalos do expediente. A normalização das injustiças sofridas conduz, então, os jornalistas a assumirem, com certa dose de condescendência, a imutabilidade da estrutura organizacional vigente.

As inferências tecidas a partir deste estudo permitem-no constatar que o desapreço pelo Sindicato dos Jornalistas Profissionais no Estado de São Paulo (SJSP) é consentâneo com uma tendência maior de crise do sindicalismo brasileiro de caráter negocial. Esta conjuntura sociohistórica ilumina a perceção predominantemente negativa dos participantes deste estudo acerca da entidade sindical, apreendida como instituição ineficiente, mas também o seu descaso pela ação coletiva, apreendida como atalho para uma demissão certa. Não obstante, a consequência deste desapreço pela representação coletiva fomenta no mundo do trabalho dos jornalistas um círculo vicioso, no qual a decomposição dos mecanismos de vinculação laboral descomplexifica o desvanecimento de outras vias de estruturação do grupo profissional e de conformação de um ethos comum de práticas e princípios. A consequência é a aceleração da dissolução dos laços, que produzem um mundo comum de jornalistas-trabalhadores, dispersos em redações fragmentadas ou pior, em home offices, nos quais a identificação com a profissão se pode restringir à conclusão da tarefa em curso.

Conclusão

Este artigo procurou preencher uma lacuna na sociologia do jornalismo no Brasil acerca das razões para o desengajamento coletivo dos comunicadores ante as crescentes ondas de precarização no setor. O estudo indica a importância de tratar a questão sob o pano de fundo das reestruturações produtivas no mundo do trabalho no Brasil e das suas inflexões no movimento sindical. Mesmo os estudos que mencionaram diminutas taxas de sindicalização entre os comunicadores (Lima e Mick, 2013) teceram inferências limitadas a partir dos dados coletados. Consideramos que as reconfigurações na praxis sindical brasileira, que assumiu na virada neoliberal dos anos de 1990 uma feição negocial (Antunes e da Silva, 2015), explicam, em certa medida, tanto o atual desapreço dos jornalistas pelo Sindicato dos Jornalistas Profissionais no Estado de São Paulo (SJSP), mas também o seu cepticismo diante de quaisquer respostas coletivas (enquanto categoria) às condições laborais precárias experimentadas nas redações dos media.

É importante ponderar que a apatia detetada nos depoimentos dos entrevistados não nos deve conduzir a um diagnóstico fatalista das mutações no campo jornalístico, como se as novas estratégias de gestão nas empresas fossem simplesmente impingidas a um grupo atomizado, desprovido de qualquer agência. Ainda que sejam esparsas, e muito menos frequentes do que o alarmante cenário exigiria, salpicam na imprensa notícias sobre mobilizações coletivas de jornalistas, organizadas ou não pelo Sindicato dos Jornalistas Profissionais no Estado de São Paulo (SJSP), contra demissões ocorridas em meios de comunicação ou contra o incumprimento no pagamento de direitos laborais aos profissionais com CLT, a exemplo das mobilizações de cerca de 30 jornalistas na sede da Folha de São Paulo em 8 de maio de 201520 e de outros 50 às portas da Globo São Paulo em 15 de dezembro de 201621; da declaração de estado de greve pelos repórteres da Rede Anhanguera de Comunicação (RAC) (em 5 de abril de 201622 e 1 de julho de 201623) e do Diário de S. Paulo (em 19 de julho de 201624); além da carta redigida pelos jornalistas da Rádio CBN e divulgada publicamente a 5 de dezembro de 2016, exigindo uma escala de folga mais “humana” e adequada à saúde mental e física dos funcionários.25 Muito embora estes textos não nos permitam refutar o argumento de que há uma forte desmobilização na categoria, ao menos acenam para o fato de que, a despeito deste quadro, há sim reações coletivas pontuais em face do arbítrio das grandes corporações.

O artigo também procurou não se ater a uma explicação para a desvinculação dos jornalistas das suas entidades de classe como sintoma de uma inconsciência da sua inserção na estrutura produtiva enquanto força de trabalho. Antes, os relatos sinalizam um ajustamento pragmático à lógica corporativa das organizações de media, lógica esta entendida como inexorável pelos jornalistas. Com efeito, os obstáculos à composição de classe na categoria que levam a esta racionalidade pragmática decorrem também de uma tentativa para abrandar a aguda precariedade que afeta as trajetórias dos profissionais (permitindo aos repórteres perseverarem na área) num cenário de fragmentação de postos e regimes de contratação flexíveis. Mas este processo acarreta, como corolário, a suspensão de uma forma organizada de resistência, à qual os comunicadores poderiam lançar mão (assim como ocorre noutros setores ocupacionais) como meio de enfrentarem as reestruturações - robustecendo, por conseguinte, a ideologia que os mantêm inertes.

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1O jargão surgiu em 1975 após uma avalanche de demissões ocorridas no antigo Jornal do Brasil, em analogia às revoadas de pássaros que destroem tudo pelo caminho onde passam. Disponível em: http://apublica.org/2013/06/revoada-dos-passaralhos/. Acesso em 10-02-2018.

3Disponível em: http://passaralhos.voltdata.info/graficos.html. Acesso em 10-02-2018.

4Como ponderam os realizadores do levantamento, há que se levar em conta uma subnotificação da porcentagem real de jornalistas dispensados nos últimos anos, seja porque muitas das notas que compuseram o corpus de análise não discriminaram o número exato de comunicadores dispensados, ou ainda porque há elevada informalidade na área que inviabiliza contabilizar como demissão a exoneração de um profissional contratado como Pessoa Jurídica (PJ) ou terceirizado (pois não se trata de funcionário direto da empresa).

5Disponível em: http://passaralhos.voltdata.info/. Acesso em 10-02-2018.

6O presente texto é excerto de uma pesquisa mais extensa, intitulada “NOME DA PESQUISA”. Para este artigo somente uma parcela dos dados coletados foi analisada, em consonância aos objetivos da proposta.

7Fundamental pontuar que Boltanski e Chiapello (2009) tomam como referência à sua análise histórica o contexto francês, considerando as manifestações de maio de 1968 como ponto de virada no “espírito” do capitalismo.

9Leite (2005), entretanto, pondera que os modelos de gestão não são implementados de modo universal nas grandes, médias e pequenas empresas. No que concerne às condições de trabalho, a autora salienta que em diversas regiões do Brasil ainda persiste um modelo de produção repetitivo e desqualificado aos moldes tayloristas.

10Disponível em: https://www.survio.com/br/. Acesso em 11-02-2018.

11Na sequência, entre 31 e 40 anos, foram registrados 67 (ou 28%) comunicadores. No segmento de 41 a 50 anos, 33 colaboradores (ou 14% do total). 26 respondentes (ou 11% da amostra) estavam na faixa entre 51 e 60 anos, enquanto que somente 2 (1%) correspondiam ao último subgrupo, de 61 a 70 anos.

12A segunda opção mais registrada foi casado, preenchendo 28,6% do total. As demais alternativas (divorciado, união livre e viúvo) somaram juntas 15,1% do percentual.

13Esta estratégia de identificação de interlocutores é fartamente empregada nas Ciências Sociais como recurso para inserção em um campo social no qual a população a ser estudada se encontra espalhada por uma área geograficamente ampla (Duarte, 2004).

14Não obstante, apesar de menos de um quarto da amostra afirmar ter vínculo com o SJSP, os índices de sindicalização no Estado ainda são mais elevados do que a média nacional para outras categorias. Conforme dados do IBGE para 2017, as taxas médias de sindicalização de trabalhadores brasileiros são de 14,4% - e o percentual apresenta tendência de declínio gradual desde o início da série histórica, em 2012. Dados disponíveis em: https://agenciadenoticias.ibge.gov.br/agencia-sala-de-imprensa/2013-agencia-de-noticias/releases/22952-taxa-de-sindicalizacao-dos-trabalhadores-brasileiros-cai-para-14-4-a-menor-desde-2012. Acesso em 30. Abr. 2019.

15Alguns participantes expuseram mais de uma ordem de justificativas à ausência de representatividade do Sindicato em São Paulo.

16Todos os nomes dos entrevistados foram substituídos por pseudônimos de sua escolha para resguardar o sigilo das fontes.

17O “sindicalismo de classe” no Brasil teria se baseado em um discurso de crítica social intimamente ligado à luta política dos anos de 1970 e 1980. Para Antunes e da Silva (2015), seu cimento de organização coletiva seria o reconhecimento dos trabalhadores enquanto classe que vive do trabalho.

18Apesar de o depoimento desta entrevistada ser o que mais explicitamente sugere esta interpretação, outros colaboradores da pesquisa também aludiram a uma motivação ideológica para o desestímulo da categoria à ação coletiva.

19A noção de ideologia aqui é mobilizada como um mecanismo de mascaramento da realidade objetiva a qual os trabalhadores estão submetidos (Honneth, 2006).

Recebido: 30 de Abril de 2019; Aceito: 15 de Setembro de 2020

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