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Análise Social

versão impressa ISSN 0003-2573

Anál. Social  no.247 Lisboa jun. 2023  Epub 30-Jun-2023

https://doi.org/10.31447/as00032573.2023247.12 

Recensão

Recensão “A Afirmação Negra e a Questão Colonial”

1. IHC, NOVA FCSH » Av. de Berna, 26 - 1050-099 Lisboa, Portugal. diogo.mainselduarte@gmail.com

Domingues, Mário. (ensaio e seleção de José Luís Garcia), A Afirmação Negra e a Questão Colonial - Textos, 1919-1928. ,, Lisboa: ,, Tinta-da-china, ,, 2022. ,, 318 ppp. . ISBN, ISBN: 9789896716554.


Corria o ano de 1921 quando Mário Domingues deixava a promessa de “fustigar […] os representantes da civilização com os [s]eus espinhos agudos” e de ser “a eterna mancha inestética a estragar o conjunto belo deste jardim perfumado” (p. 100). O motivo era um texto publicado no jornal Pátria que afirmava que “o jardineiro descuidado deixara medrar ortigas no formoso jardim” e que, por isso, era altura de “acautelar a beleza das pétalas” (p. 98). Na aparentemente inofensiva descrição botânica, o autor desse texto procurava defender a segregação racial e alertar para os perigos trazidos pela presença dos negros (as ortigas) entre os brancos (as flores) na sociedade portuguesa (o jardim). Quando esse artigo foi escrito, Mário Domingues, nascido em São Tomé e Príncipe, tinha por trás um caminho de mais de um ano, com uma estadia na prisão pelo meio, a elevar a sua voz nas páginas do diário A Batalha contra muitas das iniquidades que marcavam a sociedade portuguesa. Além disso, desde o início da sua colaboração com esse jornal, iniciada em 1919, quando tinha 20 anos, Mário Domingues fez questão de denunciar, com uma clareza e mordacidade inauditas, o racismo e a violência do colonialismo português. Pelo seu protagonismo crescente, pela cor negra da sua pele e por representar o que de mais ameaçador implicava a afirmação de uma consciência negra no panorama nacional, Domingues era, certamente, uma das “ortigas” que preocupava o autor do artigo da Pátria.

Em A Afirmação Negra e a Questão Colonial - Textos, 1919-1928 reúnem-se cerca de seis dezenas de artigos escritos por Mário Domingues, todos eles dedicados à “questão negra e colonial” e publicados entre 1919 e 1928 na imprensa portuguesa, principalmente no jornal A Batalha, um dos três diários de maior tiragem no país. O livro beneficia grandemente de um longo e elucidativo ensaio dedicado à vida e obra de Mário Domingues, escrito pelo responsável pela seleção dos textos que o compõem, José Luís Garcia. Para além de expor a relevância e originalidade de Domingues no seu tempo, Garcia demonstra como o interesse por esta figura praticamente desconhecida vai muito para lá dos nove anos que balizam a coletânea e da sua intervenção na questão negra e colonial.

Os textos de Domingues são divididos em quatro partes, correspondendo as três primeiras a diferentes períodos cronológicos (1919-1921, 1922 e 1924-1925, respetivamente) e a última a um critério temático que reúne textos publicados durante todo o período compreendido. Na primeira, “Pela emancipação dos negros”, a denúncia de manifestações de racismo na sociedade portuguesa e norte-americana articula-se com a crítica ao colonialismo. Correspondem aos primeiros textos de Mário Domingues, e neles vemos o negro emergir como sujeito político e agente da sua própria emancipação. A segunda parte, “Um preto que resiste a todos os portugueses”, desenvolve a relação entre colonialismo e racismo e, tomando como mote um episódio racista ocorrido em Lisboa, serve para introduzir uma “história da colonização portuguesa” que pretende contar “a história desse preto admirável que, através dos séculos, ‘tem resistido a todos os portugueses’” (p. 138). O mandato de Norton de Matos, enquanto Alto-Comissário da Província de Angola, é o alvo dileto de boa parte desses textos, que expõem a sua conivência com a violência racial verificada em Angola. Nas suas linhas são relatados casos de segregação, censura, trabalho forçado, saques a aldeias, homicídios e violações que atingiam a população negra, não só em Angola, mas também nas restantes colónias portuguesas em África. Domingues procura demonstrar que “a abolição da escravatura não passa duma autêntica mentira” (p. 212) e, pela primeira vez, apresenta mais desenvolvidamente o seu “ideal da independência”. A terceira parte visa “A Angola do Alto-Comissário Rego Chaves” e expõe a relação umbilical entre a classe política, a alta finança nacional e o colonialismo português em África. Finalmente, na última parte, “Pan-Africanismo Cultural”, Domingues leva a luta para o terreno da cultura, destacando, por exemplo, a presença negra na literatura (René Maran), na dança (Louis Douglas) e no teatro (Florence Mills) para sublinhar a importância desses contributos para a afirmação negra, em comunhão com a centralidade que os anarquistas concediam à arte e à cultura como fatores de emancipação.

São múltiplas as razões que justificam a publicação destes textos “injustamente esquecidos”. Uma delas, que se destaca desde cedo, prende-se com a atualidade que mantêm muitas das posições de Domingues. Como assinala e justifica José Luís Garcia, estamos perante “a voz mais audível [do período] na esfera pública portuguesa contra o racismo, pela emancipação dos negros e de oposição cívica e moral ao colonialismo português” (p. 46). Num contexto como o atual, em que se intensificam os debates sobre o racismo e sobre o passado colonial - cujo balanço, por fazer, ainda esbarra frequentemente em tabus e mitos -, ler Domingues enriquece e põe em xeque muitas das premissas que guiam estas discussões. A publicação deste livro não será certamente estranha a esse interesse e atualidade extra-académicos.

Essa atualidade não se deve somente ao facto de revelar a persistência e o enraizamento secular de alguns preconceitos. Deve-se muito à originalidade e à sofisticação do pensamento de Domingues, nomeadamente quanto à forma como desenvolve a importância de uma “consciência rácica”, conectando-a à condição de outros sujeitos, como o operariado, e às desigualdades sociais e económicas que estes enfrentavam - que Mário Domingues conhecia bem, enquanto militante libertário e redator d’A Batalha, o órgão oficial da Confederação Geral do Trabalho -, sem deixar de sublinhar as especificidades do sujeito racializado. Se, para Domingues, a liberdade “só a poderão alcançar os próprios negros” (p. 154), e a ação “dev[ia] partir dos interessados, dos negros, dos escravos” (p. 213), unidos pela “consciência rácica”, era também sua convicção que a questão social, que mobilizava o operariado na Europa, era indissociável da “questão da raça negra”. Nas suas palavras, “os negros […] são, como os trabalhadores, vítimas da tirania política e da iniquidade económica do capitalismo” (p. 128), e, como tal, “só os trabalhadores de todas as cores e de todas as raças, estreitamente unidos, podem destruir o inimigo comum - a burguesia negra, amarela, branca ou vermelha” (p. 105). A forma como relaciona diferentes formas de opressão, aproxima-se, assim, quase um século antes, de alguns dos termos que caracterizam discussões contemporâneas, nomeadamente no campo da teoria da interseccionalidade.

Tão ou mais importante é a sua relevância historiográfica. Domingues foi responsável por formular de modo precoce e singular a defesa inequívoca da independência das colónias em África. Logo em 1921, e de forma algo premonitória, por constituir uma ousadia rara afirmá-lo naquele período, Domingues defendia que “hoje o movimento emancipador é um facto incontestável” e que “amanhã - estamos convencidos - não haverá armas, nem exércitos, nem violências dos governos burgueses que consigam sufocar a ânsia de libertação dessa raça escravizada” (p. 120). Juntamente com os detalhados e sistemáticos relatos que, durante os anos compreendidos por esta coletânea, foi oferecendo da “obra de destruição que os portugueses, em nome da civilização, vêm executando em África” (p. 141), Domingues defendia que a tais “infâmias praticadas pelo despotismo branco […], só um ideal de independência se pode opor com eficácia” (pp. 153-154). Posições tão categóricas como esta problematizam a alegada unanimidade na sociedade portuguesa coeva em torno da questão colonial, assumida por parte da historiografia em Portugal (e que Garcia afirma persistir). Tanto mais que Domingues, apesar da sua singularidade, não era uma voz isolada no país, antecedendo-lhe, como hoje se sabe, não só movimentos de afirmação negra organizados e com imprensa própria (Varela e Pereira, 2020), como também um movimento operário e anarquista atento e crítico da “missão” colonial portuguesa desde finais do século XIX (ver, por exemplo, o caso de Emílio Costa, em Ventura, 1995) - o que coloca em causa a asserção de Garcia que situa no período republicano a emergência dessa crítica e de um “militantismo anticolonial” (p. 74).

É justamente nos termos da cultura política anarquista que Domingues desenvolve alguns dos aspetos mais originais do seu anticolonialismo, e que o diferenciam, inclusivamente, do movimento negro então ativo no país. Contrariamente a alguns dos militantes e organizações que constituíram esse movimento, Domingues manteve sempre uma postura independentista intransigente e recusou a possibilidade de a emancipação passar pela colaboração com as autoridades coloniais, promovendo, antes, uma luta assente na ação direta - “a liberdade não se concede, conquista-se. Que a conquistem os negros!” (p. 154). É também em linha com o seu anarquismo que devemos situar o seu ideal de uma confederação continental, que Domingues propunha perante a profusão de revoltas que atravessavam o continente africano e na qual via o prenúncio “duma revolução imensa que “abater[ia] o poder, não apenas dum país, mas de todas as potências coloniais” (p. 181). Em posições como esta, vislumbra-se uma outra história da emergência dos movimentos defensores da independência das colónias, assim como a possibilidade de um percurso que poderia ter sido distinto daquele que vingou e que se fez em torno da construção de identidades nacionais e de estados-nação.

Lida esta coletânea, é difícil não sentir uma certa perplexidade perante o facto de que uma obra tão rica e multifacetada como a de Mário Domingues - que, além de crítico feroz do colonialismo e do racismo, foi um escritor e tradutor profícuo, crítico de arte e uma das mentes mais ativas e originais do anarquismo português - tenha permanecido na obscuridade durante tantos anos. Não será estranho a isso que a ruptura que aqui se revela tenha vindo de uma voz racializada e ativa no movimento operário e anarquista, de realidades compostas por sujeitos cuja agencialidade tem permanecido profundamente negligenciada pela historiografia portuguesa. Há que dizer, como nota final, que nada disto é imputável a José Luís Garcia: este livro é o resultado de um percurso de investigação e, acima de tudo, de uma insistência quase militante, que dura há mais de vinte e cinco anos, em chamar a atenção para a singularidade intelectual e para a importância histórica de Mário Domingues. Um percurso, sublinhe-se, que Garcia fez de forma quase sempre solitária e à margem dos principais temas de especialização académica que marcaram a sua carreira. Tanto a seleção dos textos como, especialmente, o rico ensaio introdutório e biográfico refletem esse trabalho e, por isso, esta obra consagra, também, a dedicação de José Luís Garcia.

Referências bibliográficas

VARELA, P., PEREIRA, J. A. (2020), “As origens do movimento negro em Portugal (1911-1933): uma geração pan-africanista e antirracista”. Revista de História, 179, pp. 1-36. [ Links ]

VENTURA, A. (1995), F. (2019), Entre a República e a Acracia: O Pensamento e a Acção de Emílio Costa (1897-1914), Lisboa, Edições Colibri. [ Links ]

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