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Revista Diacrítica

versão impressa ISSN 0807-8967

Diacrítica vol.26 no.3 Braga  2012

 

Os pas(sos) em Pessoa

The pas in Pessoa

Rui Gonçalves Miranda*

*CEHUM , Universidade do Minho, Braga, Portugal/ The University of Nottingham, Reino Unido. Projeto de pós-doutoramento financiado pela Fundação para a Ciência e Tecnologia (SFRH/BPD/71245/2010)

ruifgm@sapo.pt

 

RESUMO

Este artigo visa usar a noção de pas(sos), uma extrapolação a partir da meditação de Maurice Blanchot sobre o pas, como um ponto de entrada e articulação para a análise da escrita em diversas instâncias no texto pessoano. Procura, deste modo, abordar as condições de (im)possibilidade de diferentes estruturas poéticas (graus de poesia lírica, escala/escada de despersonalização) que nele tomam lugar.

Assim sendo, busca traçar diversos passos e pausas, passagens e suspensões, encarando o texto literário como uma performance e não como um ponto de passagem para significados ou presenças além do texto. Encara assim a escrita como um processo negativo e diferencial em que as prometidas presenças (poeta dramático, Chevalier de Pas) necessariamente não passam para lá (das formas, da materialidade) do texto, são já e sempre escrita.

Os diversos pas(sos) ilustram assim o movimento do e no texto, que avança enfatizando o carácter aporético da escrita, o seu excesso e irredutibilidade de sentido, invariavelmente e diversamente outro.

Palavras-chave: Fernando Pessoa; pas; Maurice Blanchot; Jacques Derrida; textualidade; poesia.

 

ABSTRACT

This article extrapolates from Maurice Blanchot’s meditation on the pas (step/not) and aims to use such notion as a point of entry and articulation for the analysis of the writing in several instances of Pessoa’s text. It attempts to address the conditions of (im)possibility of different poetic structures (degrees of lyric poetry, scale/ladder of depersonalization) which are rendered in the text.

It attempts to trace several steps and pauses, crossings and suspensions, while viewing the literary text as a performance and not as a mere point of passage for meanings or presences beyond the text. Writing is thus understood as a differential and negative process in which the promised presences (dramatic poet, Chevalier de Pas) necessarily do not go beyond (forms, the materiality) of the text, in which they are always already writing.

The several pas (step/not) illustrate thusly the movement of and within the text, which advances by emphasizing writing’s aporetical feature, its excess and irreducibility of meaning, ever other.

Keywords:FernandoPessoa; pas; Maurice Blanchot; Jacques Derrida; textuality; poetry.

 

Su obra es un paso hacia lo desconocido. Una pasión.

Octavio Paz

David Mourão-Ferreira (1988)justifica o título do seu volume de ensaios dedicado à obra de Fernando Pessoa, Nos Passos de Pessoa, com a multiplicidade dos “passos” na totalidade da obra, que obriga igualmente o crítico, como consequência, a optar por uma variedade de “passos” nas tentativas de abordagem.

É inevitável perceber o quão determinantes são as questões implícitas nesta afirmação, relativas ao texto enquanto performance.[1] A implícita proposta de seguir a diversidade dos passos pessoanos na procura de um sentido último por detrás de cada movimento é preocupante na medida em que se assume a possibilidade de retraçar os “passos” do texto até uma explicação (metafísica, psicológica, etc) que passe além do texto, que torne o texto simplesmente parafraseável. Se, por outro lado, entendermos a textualidade como o “constant and radical dialectical play of the difference(s) between text and context” (McGuirk, 2007: 137), o texto crítico funciona como um suplemento no sentido derrideano, encontrando-se inscrito simultaneamente antes e depois, imbricado nesse movimento textual negativo e diferencial, “the constant tracing and supplementing (or another version) of that textuality” (Ibidem).

Este artigo visa analisar diferentes passos na explicação do fenómeno da heteronímia ou do processo poético que repetem uma mesma instabilidade e tensão, embora dissimulada, que é detectável já na própria escrita e no interior de poemas e dos textos como uma dificuldade transponível apenas performativamente. Procura assim não ir além mas sim através das estruturas de diferença, abordando antes a estruturalidade das diferenças, percebendo que entre um passo e um outro, como o texto pessoano nos indica, há um singularidade performativa que é irreduzível e não pode ser circunscrita.

Ao pé
Deconstruction, on the contrary, stresses that meaning is context bound - a function of relations within or between texts - but that context itself is boundless: there will always be new contextual possibilities that can be adduced, so that the one thing we cannot do is to set limits.
Jonathan Culler

O poema “Isto”, publicado em abril de 1933, é visto como um desdobramento de“Autopsicografia” (1931), [2] tendo recebido, no entanto, menos atenção que este, talvez até pela aparente contradição entre os primeiros versos de “Autopsicografia” e “Isto” (Seabra, 1974: 149). O poema, de fato, retoma a questão do fingimento, com a formulação de eles vs eu (eles “Dizem”; eu “escrevo”).

Isto

Dizem que finjo ou minto

Tudo o que escrevo. Não.

Eu simplesmente sinto

Com a imaginação.

Não uso o coração.

Tudo que sonho ou passo,

O que me falha ou finda,

É como que um terraço

Sobre outra cousa ainda.

Essa cousa é que é linda.

Por isso escrevo em meio

Do que não está ao pé,

Livre do meu enleio,

Sério do que não é.

Sentir? Sinta quem lê! (Pessoa, 2006: 262)

O poema articula-se em disjunção (“finjo ou minto”; “sonho ou passo”; “falha ou finda”) e negação (“Não”; “Não uso”; “Não está”; “Não é”), e é nesse diferimento, suspendendo-se sobre “outra cousa ainda”, nesse movimento enfatizando a negatividade, suplementado pela leitura (sinta quem lê) que se produzem não só sentidos como sentimentos.

A escrita é um corte, uma estruturação negativa e diferencial. No poema “Isto”, existe apenas sentimento na medida em que este departa de uma emoção original (“Não uso o coração”), articulada pela imaginação: “Tudo que sonho ou passo,/ O que me falha ou finda”. O que é “sentido” na imaginação (“sonhado” ou “passado”; “falhado” ou “findado”) é já escrita, o descontínuo “tudo que escrevo” que torna essas combinações possíveis. O passo nunca levará (e não está) “ao pé”. Não há passagem do sentir para o mentir porque sentir é já imaginação, estruturação, um “terraço” sobre uma prometida presença por vir e alcançar. O sonhar ou passar, falhar ou findar, implica um constante diferir, “outra cousa ainda”, por vir.

A escrita é um processo libertado da subjetividade: desligada do “meu enleio”, da estrutura do próprio, e do sentir com o coração, a escrita é libertada também do “enleio” de uma estrutura de propriedade e possessão (“meu”), já que o sentimento é uma tarefa do leitor na apreensão do uso de sensibilidade articulado no poema, no investimento em direcção a “outra cousa ainda”.

A libertação e descontextualização (“que não está ao pé”) não são características exclusivas da poesia, mas da palavra escrita em geral, na singularidade e iterabilidade (Derrida, 1982: 315)que lhe são características:

A palavra escrita é mediata, longínqua e particular. Quando escrevemos, e tanto mais e quanto melhor e mais cuidadosamente escrevemos, dirigimo-nos a quem não nos vai ouvir, que é ler, logo; a quem não está ao pé de nós; a quem poderá entender-nos e não a quem tem que entender-nos, tendo nós pois primeiro que o entender a ele. (Pessoa 1997: 56)

“Quem não está ao pé”: a libertação do “meu enleio” é o que incorpora e inscreve o leio de um leitor, antecipado já enquanto estrutura geral na escrita do poema. O leitor está fora da subjetividade, mas não está fora do texto. O poema realiza uma performance de um processo de leitura (não-mimético e não representacional) similar ao evocado por Geoffrey Bennington numa tentativa de definição da desconstrução:

Reading is not a simple process of deciphering, nor of interpreting, for Deconstruction. It is neither entirely respectful nor simply violent. “Secure production of insecurity” (Derrida). Reading is not performed by a subject set against the text as object: reading is imbricated in the text it reads. (2000: 218)

Uma meditação sobre a leitura sob a assinatura de Bernardo Soares fornece ainda outra referência intertextual, quando Soares demonstra ser incapaz de meramente se render ao sentimento quando lê:

Nunca pude ler um livro com entrega a ele; sempre, a cada passo, o comentário da inteligência ou da imaginação me estorvou a sequência da própria narrativa. No fim de minutos, quem escrevia era eu, e o que estava escrito não estava em parte alguma. (Pessoa, 2003: 372)

Na leitura do que “não está ao pé”, na passagem do escritor para o leitor, não há senão escrita “a cada passo”. Nada existe completamente além do isto: a escrita não se apaga nem se retrai de encontro a uma presença interior e anterior. “Il n’y a pas d’hors-texte” (Derrida, 1997: 158), não há nada que não seja já, em certa medida, textual(izado). “Isto” refere-se ao que não pode ser contido pela escrita, ao espaçamento (Derrida, 1997: 68)que a estrutura. A “cousa” em si pode ser articulada mas não apropriada: a “cousa” é “outra”, a beleza está no ainda.

Um “primeiro” pas

Só o primeiro passo é que custa. Mas depois do primeiro passo dado, o segundo é o primeiro depois desse. É bom reparar nisto e não dar passo nenhum... Todos custam.

Fernando Pessoa

Para além de chamar a atenção para a escrita em si, esta análise visou também ilustrar simultaneamente um movimento negativo de diferenciação e diferimento no processo de escrita: “Il y va d’un certain pas” (Derrida, 1993: 9). Tal como Irene de Ramalho Santos na sua análise à carta de 13 de Janeiro de 1935 endereçada a Adolfo Casais Monteiro, estou interessado na intraduzibilidade desta frase presente no livro Aporias, mas sobretudo na tensão (entre movimento e negação; de movimento e negação) na palavra pas, na indecidibilidade linguística do termo pas, tal como explorado por Maurice Blanchot (1992) no seu livro The step not beyond [Le pas au-delà], cuja duplicidade tentar-se-á expressar através do termo “pas(sos)”. Tendo sido alertado para esta tensão pela necessidade que um leitor francófono teve em assegurar que pas no nome Chevalier de Pas, um suposto “primeiro” e ausente heterónimo pessoano, não deveria ser percebido enquanto substantivo (“passo”), mas enquanto advérbio de negação (“não”) (Bréchon, 1997: 37), penso que um par de considerações críticas deve ser tido em conta: em primeiro lugar, como uma tal opção pode ser tomada em definitivo; em segundo lugar, por que razão a indecidibilidade de um termo deve (e por que razão se considera que pode) ser reduzida.[3]

No entanto, não é o Pas que é relevante neste momento; é-o mais o movimento negativo e diferencial articulado na escrita. Tentar-se-á, deste modo, abordar não só a significância de pas, mas sobretudo abordar a tensão subjacente em diversas passagens da escrita pessoana que em pas é declinada. Num dos poemas exemplarmente mais líricos de Pessoa, “Leve, breve, suave” (15 de janeiro 1920), um “canto de ave” é inscrito como a origem negativa do texto, o que não é, que “passou” e “parou”:

Leve, breve, suave,

Um canto de ave

Sobe no ar com que principia

O dia.

Escuto, e passou…

Parece que foi só porque escutei

Que parou.

Nunca, nunca, em nada,

Raie a madrugada.

Ou ‘splenda o dia ou doire no declive

Tive

Prazer a durar

Mais do que o nada, a perda, antes de eu o ir

Gozar. (Pessoa, 2006: 140)

A origem prostética de uma presença desejada é apresentada como viável apenas através da encenação da sua própria ausência, através da estruturação da instância aporética (o “escutar”) que demonstra e utiliza a sua vacuidade no par “passar”/”parar”. O prazer não advém de “gozar”, mas advém antes da performance dos enviados negativos diferentes e diferindo (“o nada, a perda”) que estruturam a subjetividade (“eu o ir/Gozar”), colocada em palco pela ilusória presença encenada, a promessa de um tal “canto”.

O texto pára e avança ao mesmo tempo, mas fá-lo apenas através da negatividade que estrutura esse próprio movimento, apenas no porvir que uma prometida futura transcendência torna possível complementar como o suplemento do “passou”.

Ao enfatizar em seguida uma variante num poema (24 de julho de 1916) publicado postumamente, em que no primeiro verso “Pausa” surge como variante de “Passa”, pretende-se ilustrar na escrita uma tensão instalada num processo em que uma oposição binária (“passar” e “pausar”) permanece indefinida:

Alga

Passa[4] na noite calma

O silêncio da brisa…

Acontece-me à alma

Qualquer cousa imprecisa…

Uma porta entreaberta…

Um sorriso em descrença…

A[5] ânsia que não acerta

Com aquilo em que pensa.

Sombra, dúvida, elevo-a

Até quem me suponho,

E a sua voz de névoa

Roça pelo meu sonho… (Pessoa, 2006: 86)

“Passa/pausa”: como escolher? A questão é crítica, em ambos os sentidos da palavra, mas revela já uma tentativa de abordagem falhada, ou seja a do tratamento de um texto sendo (predominantemente) limitada à redução de escolhas. Particularmente no que toca à variante de um texto deixada indecidida. Se escolher é de fato uma necessidade na escrita e na leitura, tal não significa que a disseminação de sentido da escrita possa ser tomada simplesmente como a criação de espaço para confusão ou desentendimento. Pelo contrário, como vimos na análise de “Isto”, deve ser abordado como um efeito da impossibilidade de “fechar” o sentido de um texto, a salvo da disseminação que ameaça a sua própria constituição, enquanto o constitui, enquanto lhe dá lugar.

“Passa/pausa”: o problema está já e sempre lá mesmo antes de a problemática ser revelada no estado inacabado de um poema, ou de uma obra, como se pode entender nesta carta a um destinatário desconhecido:

Tenho pronto o estudo definitivo para a primeira publicação em que pensávamos. Talvez lhe parecesse longo o tempo em chegar a este «estudo», que é um mero plano. É que, meu querido Amigo, antes de dar o primeiro passo - o primeiro passo autêntico e real - é que é ocasião de hesitar, de duvidar, de voltar atrás - se assim se pode dizer de uma altura em que ainda se não andou. Depois de dar o primeiro passo, não se pode voltar atrás, e é sempre fraqueza e confusão modificar o plano que afinal não houve.

Faço estas considerações, para o caso, naturalmente inexistente, de que estranhasse eu não ter aparecido ainda com qualquer coisa de «positivo». (Pessoa, 1999a: 127)

O que se toma por nada, pela ausência da escrita, é a escrita em si. A negatividade é o que permitirá o “«positivo»”, o “hesitar”, “duvidar”, “voltar atrás”, a negatividade subjacente subscrevendo o “primeiro passo autêntico e real”. Tal indecidibilidade aparece mais nitidamente formulada num aforismo, uma reformulação de um adágio popular, que revela o carácter aporético (no sentido etimológico da palavra) estruturando qualquer perspectiva porética da vida ou da escrita: “Só o primeiro passo é que custa. Mas depois do primeiro passo dado, o segundo é o primeiro depois desse. É bom reparar nisto e não dar passo nenhum... Todos custam” (Pessoa, 2005: 52).

O que deve ser realçado é o custo de qualquer passo, além e depois do “primeiro”, sem ir para além do “primeiro”, porque se trata sempre de uma questão de valor, quer para o poeta quer para o crítico. O passo não abole diferenças, simplesmente as dissimula como o “passo” a ser dado e ultrapassado. O que o aforismo parece demonstrar é a consciência de que não há nenhum passo (pas) que não envolva já um custo, uma negação (pas), e que estes pas(sos), afirmação e negação, não podem ser ultrapassados por um Aufhebung, uma sublimação hegeliana, como parece propor Óscar Lopes:

Naquilo em que teimo em considerar o drama de cada heterónimo, e o de todos, e em cada poema independentemente considerado, Pessoa põe, é certo, a tese e a antítese, e não a síntese lógica. Mas, no plano da expressão poética, não é efectivamente sintética, portanto dialéctica, a consciência de uma primeira negação onde ela não existia ainda? Pessoa parou, decerto, mas depois de dar um passo. Resta-nos escolher entre a exemplaridade passiva do passo dado, e a exemplaridade activa de dar o passo a seguir ao dele, quando possível; para o que devemos também compreender positivamente todo o movimento que nos dispomos a continuar. (Lopes, 1970: 249)

O crítico encontra-se perante uma encruzilhada entre pas (primeira negação ainda inexistente) e pas (ou passivo ou ativo), e embora Lopes proponha continuar dando-se “um passo em frente” e ultrapassando a dialética suspensa do texto pessoano através da recuperação da dialética anteriormente presente, tal passo activo pode também ser visto como a prova de uma paragem perante o reconhecimento que a poesia pesssoana excede e não se pode encerrar dentro de uma economia hegeliana. José Augusto Seabra, em resposta ao texto anterior, refere precisamente:

Poder-se-á, no entanto, a não ser através de uma espécie de cavalo de Tróia lógico (e dialéctico), subentender uma negação da negação como intrínseca ab initio à oposição inscrita na linguagem poética? É o que, como veremos, a poesia de Pessoa põe precisamente em causa. (Seabra, 1974: 39)

No entanto, quer a abordagem de Lopes quer a proposta de Seabra de colocar a “coincidentia oppositorum” como a forma fundamental da linguagem poética como se esta fora “fundamentalmente”, essencialmente ou substantivamente distinta não são os únicos passos a seguir. Com efeito, ambos os criticismos se escudam do seu horror perante a noção da ausência e da negatividade com agências estruturantes do poético, por via de constructos que forneçam uma espécie de alicerce crítico.

A confusão de Lopes acerca da paragem de Pessoa apenas após o primeiro passo demonstra que a sua leitura é algo insensível aos graus e passos de tal movimento. O primeiro passo não é já “autêntico”, mas encontra-se permeado de negatividade, o que o torna ao mesmo tempo possível e impossível (um passo além), como o acima mencionado aforismo faz notar. Há sempre um excesso, uma réstea, um traço que escapa a circularidade, o retorno (do próprio) a si mesmo de uma economia, ao passo que a negatividade não é sublimada. Há o simulacrum de um movimento dialético que toma lugar, não apesar de disrupções ou interrupções, mas inscrevendo-se precisamente a partir destas.

Lopes está certo ao afirmar que o primeiro passo encena e requer incompletude, mas parece não seguir o enfiamento lógico: buscando completá-lo, não indo além da lógica e do desejo incontestado pelo completo, somos levados pelo texto. Talvez uma abordagem crítica tendendo mais para a deconstrucão tal como Derrida definiu enquanto “the limit, the interruption, the destruction of the Hegelian relève wherever it operates” (1987: 40-41)seja particularmente útil nesta instância.

Assim sendo, a opção crítica passa por mas não passa do “passo”, abordando uma questão que está já em causa mesmo antes do “passo” ser inscrito, ou melhor ainda, à medida que é inscrito e que a sua pluralidade, a sua duplicidade, a negatividade em jogo e através da qual se articula não podem ser contidas.

Será melhor, então, seguindo o aforismo pessoano, não dar passo algum? É esse o custo de não haver custo? Ou será que na questão debilmente formulada enquanto escolha entre activo e passivo, entre um ou outro, é precisamente a disrupção deste binário que permite uma reformulação do parar/pausar, uma distinção que está longe de ser clara ou decisiva. Talvez tomando em conta não só mas também as figurações de um certo Chevalier de Pas, mas de vários “pas” no texto pessoano, se deva optar per nem um um nem outro, operando enquanto ativo e passivo.

Trata-se de uma tentativa de abordar o texto não através de outra estrutura ainda, mas através da sua própria estruturação, não desde fora, mas a partir do que está dentro, mesmo que exteriorizado, necessariamente já extrínseco. Dentro e fora, ativo e passivo, são efeitos da différance que deve ser dissimulada de modo a haver uma apresentação dos binários dentro/fora e ativo/passivo enquanto forças estruturantes de um suposto ou imposto “discurso” ou espaço pessoano. O que existe é pas(sos), e não a passagem (transcendental e/ou transcendentalizado) para além do texto, para um além, para “outra cousa ainda”.

Um pas em frente

To sum up: there is no 'relation' between poetry and drama. All poetry tends towards drama, and all drama towards poetry.

T. S. Eliot

Passo agora a responder à sua pergunta sobre os heterónimos.

Fernando Pessoa

Se a questão dos pas(sos) levará inevitavelmente a focar a inquietante intraduzibilidade de Chevalier de Pas, esta discussão não se prenderá com o tomar de Chevalier de Pas enquanto um primeiro heterónimo ou um primeiro fenómeno de desdobramento. Pelo contrário, irá abordar este movimento de indecidibilidade, pas(sos), se se pode chamar movimento a um gesto tão negativo, enquanto aquilo que tem, entre outras coisas, como efeito a representação de Chevalier de Pas enquanto o primeiro “heterónimo” na carta a Adolfo Casais Monteiro (13 janeiro 1935).

Seria um faux pas ignorar a textualidade e o valor da carta enquanto texto literário, como reconheceu inclusivamente Adolfo Casais Monteiro na primeira publicação deste no número 49 da Presença (Silva, 2004: 392-93). Mais do que uma questão de testemunho e testamento, a carta deve ser analisada enquanto performance literária, em que Chevalier de Pas e as outras figuras aparecem sobretudo enquanto evocação de um passamento: “Começo por aqueles que morreram, e de alguns dos quais já me não lembro – os que jazem perdidos no passado remoto da minha infância quase esquecida” (Pessoa, 1999a: 341). Neste processo de luto por aqueles a quem José Gil chama “heterónimos não literários” (s.d.: 133),[6] é estabelecido um alicerce prostético para além da inteligência, para além da literatura e da escrita, para além do texto. O Fernando Pessoa que comunica com o outro via uma relação postal literária presupostamente avant-la-lettre (nomeadamente, sobre a génese dos heterónimos) encontra-se já textualizado como o locus orgânico e psicológico pré-heteronímia, pré-idade adulta e pré-literatura. Chevalier de Pas é um pas-au-delà, em toda a sua indecidibilidade, já uma performance, um escritor ao mesmo tempo que escrita. A duplicação e alteridade, a indecidibilidade, não está presente no nome, o nome não significa duplicação e alteridade. Antes a inscreve, tornando-a assim visível e acessível.

Não é o espaço de Chevalier de Pas enquanto primeiro heterónimo, e suposta importância metafísica ou transcendental de tal nome, [7] mas antes os passos, quer na escrita quer na leitura, que produzem Chevalier de Pas como um precursor de heteronímia. Chevalier de Pas é significativo só e já enquanto produto textual.

O pas no pas é não só uma questão de pluralidade como também de indecidibilidade e consequente estranhamento, como já mencionada redução de sentido de Bréchon faz notar, quando o pas necessariamente implica negação e movimento simultaneamente, como Ramalho Santos aponta nas suas traduções como “Knight of Naught” e “Forward and Wayward knight” (Santos, 2003: 8-9). É no jogo entre os dúplices sentidos, e não numa mera equivalência ou ambiguidade, entre irredutibilidade e excesso, que os sentidos são produzidos.

Importa assim notar que a questão dos pas(ssos), de fronteiras, graus e degraus, é intrínseca à textualidade da escrita pessoana. É uma questão na linguagem e da linguagem com as consequentes e inegáveis implicações filosóficas, sociais e políticas, e não o contrário:

Vem uma voz pela bruma,

Vem pela bruma a falar.

Não me diz coisa nenhuma.

Sei ouvi-la sem escutar.

É a voz antiga e perdida

Que diz sempre ao coração

Que não é nada esta vida

Que todo o esforço é em vão.

Naufraga em ser todo intuito.

Morre em passar todo passo.

O que queremos é muito,

O que obtemos só chega.

Chega e vê que há somente

No cais aonde amarramos

A ausência de toda a gente

E a chegada que lhes damos.

E assim, inúteis do acaso,

Senhores do nada ser,

Cantamos o nosso caso,

Poetas, ao entardecer. (Pessoa, 2006: 288)

Neste poema de 6 April 1934 é aquilo que se perde, o que morre (“Morre em passar todo passo”), o “nada ser”, o que permite o canto dos poetas (“o nosso caso”). A morte, neste como noutros poemas, na carta enquanto documento literário ou nos vários prefácios, é uma questão que aparece invariavelmente ligada à escrita. O carácter aporético da escrita, a disrupção de identidade, não tem de esperar pela chegada (ficcionada) de um cavaleiro andante, neste caso, Chevalier de Pas, mas antes, passa já além de e transgride limites, enfatizando negatividade antes que qualquer subjetividade possa ser e seja efectivamente (re)presentável.

Trata-se, assim, também mas não unicamente ou exclusivamente, de um “sacrificing of identity” para a chegada do “totally other – lyric poetry” (Santos, 2003: 9), pois a escrita gera a (im)possibilidade de identidade(s). É precisamente ao abordar os simultâneos passos e negação que estruturam mais uma difícil passagem, a aporia de um poeta escrevendo diversamente, que se coordenam quer uma necessidade quer uma impossibilidade nos seguintes escritos relativos ao “poeta dramático” e aos “graus da poesia lírica”: a) a irredutibilidade da poesia a um género pré-configurado incapaz no entanto de abandonar os termos nos quais se configuram os conceitos; b) a impossibilidade de escrever uma poesia dramática que não tenha a forma de um drama, de colocar personagens poéticos e dramáticos fora de um enredo e de um drama. A questão que se coloca em ambas é a dos pas(sos) no e além do texto.

A noção de “poeta dramático” é avançada por Pessoa como a “chave” para a explicação dos seus escritos na carta a João Gaspar Simões de 11 de dezembro de 1931, uma estrutura além da textura e da textualidade da forma. Embora comece por ser definido como a característica do poeta e do dramaturgo nos escritos, o “poeta dramático” é em última instância apresentado como a chave para a personalidadde, o oikos do poeta, o ponto central da “minha personalidade como artista”; e continua com a gradação até que atinge a construção de uma emoção numa “pessoa inexistente”, sentindo “verdadeiramente” o que o “puramente eu” se esqueceu de sentir (Pessoa, 1999a: 255-56). Como diria Umberto Eco, a subjetividade está, de fato, nos advérbios: o poeta “essencialmente” dramático, “essencialmente”, porque, de forma algo paradoxal, não pode abandonar totalmente a forma. Como se verá em seguida, a poesia lírica será dramática sem assumir forma dramática nem implicitamente nem explicitamente dado que as concepções de lirismo, drama e poesia não são senão formais.

Ao invés de simplesmente aceitar o valor proposto na noção de “poeta dramático”, tentar-se-á antes abordar as estruturas que tornam esta conceptualização possível, os vários pas(sos) que levam (com mais ou menos desvios e interrupções) até ela. Não podemos simplesmente, como sugerido por Óscar Lopes, dar o passo seguinte, um passo único inscrevendo a teleologia de um percurso (neste caso, o hegeliano) como se o crítico soubesse de antemão onde o texto o vai levar, seja qualquer texto, qualquer texto em si, ou estes textos.

Naquele que é suposto ser o quinto dos degraus da poesia lírica, que se encontram dispostas por uma gradação de intelecto e imaginação num texto anterior, de 1930 (Pessoa, 1973: 67-69), e se tornam continuamente mais raros, que encontramos os degraus de “despersonalização” e a suposição de um último passo, um precisamente além (mas irá além?) da “poesia dramática, propriamente dita” (Idem, 68). Trata-se de poetas líricos, embora “dramaticamente”. Os escritos de Shakespeare e alguns de Browning corresponderiam a esta categoria. Contudo, é o “ainda um passo” (Idem, 69) que nos interessa aqui:

Suponhamos, porém, que o poeta, evitando sempre a poesia dramática, externamente tal, avança ainda um passo na escada da despersonalização. Certos estados de alma, pensados e não sentidos, sentidos imaginativamente e por isso vividos, tenderão a definir para ele uma pessoa fictícia que os sentisse sinceramente (…). (Ibidem)

Trata-se de um passo ensaiado para além da forma, para além do binário pensar/sentir, até um sentir imaginativamente, para além de um próprio, na estrutura de uma “pessoa fictícia”.

De novo nos pas(sos) da “escala de despersonalização, ou seja de imaginação” (Pessoa, 2007: 150), que introduzirá os escritos de Caeiro e de outras personae, Pessoa começa por abordar a divisão aristoteliana da poesia em “lírica, elegíaca, épica e dramática” (Ibidem), contestando esta classificação simplista, e propondo em seu lugar uma gradação do lírico até ao dramático, dividida em graus de poesia lírica:

O primeiro grau da poesia lírica é aquele em que o poeta, concentrado no seu sentimento, exprime esse sentimento. Se ele, porém, for uma criatura de sentimentos variáveis e vários, exprimirá como que uma multiplicidade de personagens, unificadas somente pelo temperamento e o estilo. Um passo mais, na escala poética, e temos o poeta que é uma criatura de sentimentos vários e fictícios, mais imaginativo que sentimental, e vivendo cada estado de alma antes pela inteligência que pela emoção. Este poeta exprimir-se-á como uma multiplicidade de personagens, unificadas, não já pelo temperamento e o estilo, pois que o temperamento está substituído pela imaginação, e o sentimento pela inteligência, mas tão-somente pelo simples estilo. Outro passo na mesma escala de despersonalização, ou seja de imaginação, e temos o poeta que em cada um dos seus estados mentais vários se integra de tal modo que de todo se despersonaliza, de sorte que, vivendo analiticamente esse estado de alma, faz dele como que a expressão de um outro personagem, e, sendo assim, o mesmo estilo tende a variar. Dê-se o passo final, e teremos um poeta que seja vários poetas, um poeta dramático escrevendo em poesia lírica. Cada grupo de estados de alma mais aproximados insensivelmente se tornará uma personagem, com estilo próprio, com sentimentos porventura diferentes, até opostos, aos típicos do poeta na sua pessoa viva. E assim se terá levado a poesia lírica – ou qualquer forma literária análoga em sua substância à poesia lírica – até à poesia dramática, sem todavia se lhe dar a forma de drama, nem explícita nem implicitamente. (Ibidem)

O “passo final” nunca é demasiado final: a incompletude do futuro imperfeito e perfeito (“teremos”; “terá levado”) faz pouco mais do que acentuar o aspecto modal estruturando quer a finalidade quer a finitude do passo: “Dê-se”; “Suponhamos”. De novo a evocação de um constructo para sentir mediatamente: “um poeta que seja”. O passo final é mais “ainda um passo”: “le pas-au-delà”… texto? Ou o pas au-delà no texto:

The pas does not simply negate such a possibility [of completion and closure], but puts into question the possibility of negation necessary for the closure to be accomplished. How can this pas ever produce closure if it sets up a limit to be crossed even in prohibiting its crossing?

The step beyond is never completed, or, if it is completed, is never beyond. (Nelson, 1992: xvii)

A estruturação do texto está já integrada integrada na obra, e ela própria não é imune nem à ficcionalização nem à performatividade poético-literária que esta encerra, levando à dissimulação de estrutura, de forma, da obra exterior (pre-facio) perante uma prometida presença.

A forma é precisamente não apenas a questão, mas o que é colocado em questão: le pas au delà… forma? Se as estruturas e os construtos prometem um abandono (o não de um drama, quer na sua forma explícita ou implícita) através da presença por vir (“um poeta”, “uma pessoa fictícia”), a estruturação não pode ser abandonada. Na aporia, a prometida passagem de escalas e graus, permitindo os passos na direção de um telos não são um meio, mas já uma performance. Passar o limite articula uma negação e afirmação simultânea, um pas (no sentido dúplice que se lhe reconhece) d’hors-texte.

Outra cousa ainda

Tudo isto se passa em casas, em janelas que dão para paisagens realmente visíveis.

Fernando Pessoa

The first step is the hardest - says the popular adage. But in dramaturgy the reverse is true: the last step is the hardest.

Arthur Schopenhauer

Os diversos pas(sos) no e do texto pessoanonão podem ser entendidos simplesmente como origem ou telos de negatividade ou paradoxo, mas como um performance exemplar da irredutibilidade e do excesso na escrita, do texto enquanto performance que constrói e descontrói do mesmo passo (parafraseando José Augusto Seabra) as estruturas que prometem limitá-lo e contê-lo (presença, drama, eu, isto).

O leitor crítico não tem necessariamente de seguir um passo, de dar o passo seguinte, ou de simplesmente não dar passo algum. O leitor não pode senão, do mesmo passo, seguir o passo do texto, embora enfatizando a negatividade que lhe é subjacente e estruturante, lembrando que a escrita estrutura tais oposições, não é produto destas. Esta leitura visa não apenas ir além dos binários e constructos, mas através deles abordar a estruturalidade das estruturas (Derrida, 1990: 278-80), notando que na origem está já, e que a origem é já diferença. Na origem do texto está já a textualidade.

Isto alerta o leitor quer para o que o texto é quer para o que o texto faz, para os pas(sos) de cada espaço e de cada passar. Antes de descrever um “instinto dramático” em 1931 (sentir dramaticamente, havia já um “escrito dramaticamente” (Pessoa, 1999b: 143), como é descrito na carta a Armando Côrtes-Rodrigues de 19 de janeiro de 1915. A progressiva assimilação dos produtos textuais como enviados dos sentimentos do eu na carta a Adolfo Casais Monteiro leva a uma dissimulação da dissimulação, à apresentação da escrita como mimesthai de um verdadeiro sentimento origindo no próprio, ou de outro próprio, subordinando a escrita ao que se vem a passar:

Criei, então, uma coterie inexistente. Fixei aquilo tudo em moldes de realidade. Graduei as influências, conheci as amizades, ouvi, dentro de mim, as discussões e as divergências de critérios, e em tudo isto me parece que fui eu, criador de tudo, o menos que ali houve. Parece que tudo se passou independentemente de mim. E parece que assim ainda se passa. (Pessoa, 1999a: 343)

Assim, o que se passa (que é também uma difícil passagem, aqui dissimulada) é já encenada dentro de um próprio. Mas o passo para além do texto é um passo que dobra (em ambos os sentidos da palavra) o texto, numa “propriedade” prostética, uma economia de representação. “Finjo? Não finjo. Se quisesse fingir, para que escreveria isto? Estas coisas passaram-se, garanto”(Pessoa, 2007: 148). Esta frase do rascunho do prefácio geral para Aspectos (mais tarde, Ficções do Interlúdio) é ilustrativa de um movimento que é já, de certo modo, estranhamento familiar no poema “Isto”: “Dizem que finjo ou minto/ Tudo o que escrevo. Não”. Isto ecoa e explora o prazer inerente à mimesis, tal como apontado por Derrida (1982: 239), em que o “duplo”, o “mimesthai”, é não a coisa em si, mas a promessa da sua (re)apropriação, lembrando-nos no entanto que o espaçamento da escrita torna impossível um simples retorno ao “próprio”, apenas a promessa de “outra cousa ainda”.

Suplementar com uma leitura, neste caso, com uma inscrição pessoana (um sublinhado na sua edição de poemas de Stéphane Mallarmé) é perseguir a indicação que a escrita produz não espaços mas sim pas(sos) interpretativos, conscientes que a redução da escrita a um medium para um significado e/ou presença não é mais do que um passo em falso. Afinal, um poema, como qualquer texto, relelmbrando a lição mallarmeana, constrói-se com palavras. O décimo verso recebeu uma atenção particular de Pessoa, que o sublinhou, despertada talvez por esta meditação inspirada pelo valor (saveur=valeur?) da ausência, e da ausência consciente (“docte manque”) sendo mais apetecível do que a presença. Paphos (rimando com faux [duplamente: foice; falso]) sempre foi um passo em falso (pas faux).

Mes bouquins refermés sur le nom de Paphos,

Il m’amuse d’élire avec le seul génie

Une ruine, par mille écumes bénie

Sous l’hyacinthe, au loin, de ses jours triomphaux.

Coure le froid avec ses silences de faux,

Je n’y hululerai pas de vide nénie

Si ce très blanc ébat au ras du sol dénie

À tout site l’honneur du paysage faux.

Ma faim qui d’aucuns fruits ici ne se régale

Trouve en leur docte manque une saveur égale:

Qu’un éclate de chair humain et parfumant !

Le pied sur quelque guivre où notre amour tisonne,

Je pense plus longtemps peut-être éperdûment

À l’autre, au sein brûlé d’une antique amazone. (Mallarmé, 1998: 46-47)

“L’autre”? Como com “Isto” resta-nos a referencialidade sem referências. ‘L’autre’, uma ausência que não se encontra simplesmente ausente, ou à volta da qual são construidos sentido(s) e presença(s), mas antes uma ausência cuja aparência de presença é construida através de um reenvio e não de uma referência, num corte com a realidade. A topografia de “Paphos”, o nome Paphos, funciona deste modo como a referência a um texto construido em redor da evocação do mítico local de nascimento da ideal Afrodite no seu apagamento perante o inominável, o outro irrecuperável após o fechamento do livro.

“L’autre”, como a “outra cousa ainda”, como o “outrar-se”,[8] toma o lugar, articula e requer incompletude, como um outro do qual não há próprio. Enquanto suplemento, o que articula o texto nas suas aporias é somente os pontos de articulação do texto. Não nos restam senão os pas(sos) do texto, a textualidade que torna um/o sentido possível e impossível, não se limita simplesmente a passá-lo.

 

Referências

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Notas

[1] Como refere Derek Attridge, “[l]iterary texts, one might say, are acts of writing that call forth acts of reading: though in saying this, it is important to remain aware of the polysemy of the term act: both ‘serious’ performance and ‘staged’ performance, as a ‘proper’ doing and an improper or temporary one, as an action, a law governing actions, and a record documenting actions” (1992: 2).

[2] Robert Bréchon, por exemplo, apresenta-o como uma correcção de “Autopsicografia”, embora menos “vigoroso” na expressão da noção de fingimento. No entanto, acrescenta Bréchon que “este poema vai mais longe que o outro” (1997: 508).

[3] O efeito de Chevalier de Pas será sempre duplo, dada a ambiguidade no âmbito da língua francesa (pas= passo; pas= não) e a dificuldade em transmitir tal ambiguidade para outra língua.

[4] var. Pausa

[5] var. Uma

[6] A distinção que José Gil estabelece entre heterónimos literários e não-literários (tais como Chevalier) não aborda a textualidade de Chevalier, pressupondo que a fatual e empírica existência de Chevalier de Pas não pode ser posta em questão, e está for a do texto “heteronímico” e literário. Concedendo até que tais heterónimos ou personalidades possam ser diferenciados dos verdadeiros heterónimos literários não deixa no entanto de ser através da escrita de cartas que a comunicação entre Chevalier de Pas e “Fernando Pessoa” foi estabelecida. De forma mais óbvia em relação ao ponto em questão, é escrito que é através de cartas que tal comunicação toma lugar.

[7]A fetichização da figura de Chevalier de Pas (a nível biográfico e psicológico) levou Richard Zenith a contestar que Chevalier de Pas apenas parcialmente pode ser entendido como uma primeira “dobragem” (2007: 11). Um exemplo clássico seria a seguinte citação de Teresa Rita Lopes: “É interessante verificar que no colo da mãe não só aprendeu o português como também o francês. E talvez isso ajude a perceber como é que um dos seus primeiros desdobramentos heteronímicos – seu interlocutor de infância, segundo conta – teve um nome francês, Le Chevalier de Pas” (1983: 9).

[8] Deste modo, é impossível outrar-se a não ser que não se seja já não inteiramente “próprio” nem pode a comunicação ser transmitida a não ser que exceda o próprio. A escrita simultaneamente cria e infecta essa possibilidade: “All writing, therefore, in order to be what it is, must be able to function in the radical absence of every empirically determined addressee in general. And this absence is not a continuous modification of presence; it is a break in presence, ‘death,’ or the possibility of the ‘death’ of the addressee, inscribed in the structure of the mark (and it is at this point, I note in passing, that the value or effect of transcendentality is linked necessarily to the possibility of writing and of ‘death’ analyzed in this way)” (Derrida, 1982: 315-16).