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Revista Diacrítica

versión impresa ISSN 0807-8967

Diacrítica vol.28 no.3 Braga  2014

 

VARIA

Todo lo cercano se aleja. Roberto Bolaño e Enrique Vila-Matas, da autoficção ao ‘espaço biográfico’

Todo lo cercano se aleja. Roberto Bolaño and Enrique Vila-Matas, from ‘autofiction’ to ‘biographical space’

 

Ana Paula dos Santos de Sá*

*UNICAMP/ FAPESP, Campinas-SP, Brasil.

anapss.unicamp@gmail.com

 

RESUMO

Este artigo aborda a questão das poéticas de Bolaño e de Vila-Matas no que tange à denominada ‘autoficção’. A partir de um questionamento da associação de determinados títulos dos autores a tal artifício literário, desenvolve-se uma reflexão acerca da relação da obra com seu exterior na contemporaneidade, destacando assim algumas das implicações da relação estabelecida pelo chileno e pelo catalão com o universo midiático. Para além de um olhar aos contornos da escrita híbrida desenvolvida por ambos os autores, ressaltam-se suas inscrições no que Leonor Arfuch (2010) entende por "espaço biográfico", a fim de elucidar a possível origem da crescente assimilação, por parte da crítica, de seus personagens-escritores às suas próprias figuras / biografias.

Palavras chave: Roberto Bolaño; Enrique Vila-Matas; Autoficção; Espaço biográfico.

 

ABSTRACT

This article aims to discuss Bolaño’s and Vila-Matas’ poetics concerning the concept of autofiction. Questioning the current relation of some of these authors’ titles with this narrative strategy, it develops a reflection about the relation between the novel and its exterior in contemporary times, emphasizing the implications of the relation established by each of the authors (the Chilean and the Catalan) with the media universe. In addition, through observing the outlines of their hybrid writing, it highlights their potential of using the "biographical space" (Arfuch, 2010), in order to explain one of the possible origins of the increasing assimilation, noted by some critics, of their characters to their own performances / biographies.

Keywords: Roberto Bolaño; Enrique Vila-Matas; Autofiction; Biographical space.

 

Introdução

(...) "Todo lo cercano se aleja". Goethe lo escribió refiriéndose al crepúsculo de la tarde. Todo lo cercano se aleja, es verdad, tengo que pensar que es verdad. De nuevo, respiro aliviado. Goethe me ha permitido volver a alejarme algo de Bolaño.

Enrique Vila-Matas

Roberto Bolaño nasceu em 1953, em Santiago do Chile, viveu sua adolescência no México e regressou a seu país de origem no ano do Golpe Militar (1973), com o propósito de apoiar os ideais socialistas do presidente Salvador Allende. Após ser preso devido à sua atuação junto à Unidade Popular, retornou ao México, de onde partiria definitivamente para a Espanha, em 1977. Na mesma década, antes de mudar-se para a Europa, fundara junto ao poeta Mario Santiago o Movimento Infrarrealista, um "dadá a la mexicana" segundo palavras do escritor chileno. Embora o fracasso do grupo tenha sido rapidamente assumido, ele é mantido até hoje por alguns de seus ex e recém-membros, conforme indica a web site oficial do Infrarrealismo.

Bolaño publicou seu primeiro livro, Consejos de un díscipulo de Morrison a un fanático de Joyce, em 1984, em coautoria com o espanhol A. G. Porta. Antes dessa data é possível encontrar publicações isoladas em periódicos, desde poemas e manifestos literários até artigos críticos. A parte mais significante de sua produção centra-se em seus últimos dez anos de vida, de 1993 a 2003, com destaque para Los Detectives Salvajes (1998), livro pelo qual o autor recebeu no ano seguinte à sua publicação o "Premio Internacional de Novela Rómulo Gallegos", inscrevendo-se definitivamente entre os nomes mais importantes da prosa contemporânea em língua espanhola. Desde sua morte, decorrente de um problema hepático, publicaram-se três romances póstumos, em parte inacabados, 2666 (2004), El tercer Reich (2010) e Los sinsabores del verdadero policía (2011). De acordo com pessoas próximas, Bolaño intensificou seu trabalho ao descobrir a doença, a fim de garantir a estabilidade financeira de sua família.

Nascido em Barcelona em 1948, Enrique Vila-Matas possui uma biografia consideravelmente distinta da de Bolaño. Distante dos problemas financeiros enfrentados pelo autor chileno durante toda a vida, o espanhol cursou Direito e Jornalismo, esteve na África cumprindo com o serviço militar obrigatório, e residiu fora de sua cidade natal apenas por dois anos, durante a década de 70, período em que viveu em Paris. Suas primeiras publicações foram Mujer en el espejo contemplando el paisaje (1973) e La asesina ilustrada (1977), sendo a primeira pouco comentada e não reconhecida pela crítica, e a segunda a estreia do caráter metaficcional que permearia muitos dos textos futuros do escritor. Historia abreviada de la literatura portátil (1985) é tido como seu livro de consagração, com o qual Vila-Matas ganhou grande notoriedade na América Latina. Com El viaje vertical (1999), seu único romance de vertente mais realista, Vila-Matas é também agraciado com o "Premio Internacional de Novela Rómulo Gallegos". Embora nunca tenha morado no continente americano, o autor declara ter grande afinidade com sua literatura.

Atualmente o autor mantém uma média de publicação de dois livros por ano. Entre suas produções, destacam-se Bartleby y compañía (2001), El mal de Montano (2002) e Doctor Pasavento (2005), eleitas sua "Catedral Metaliteraria" pelo editor espanhol Jorge Herralde. Seus últimos romances, como Dublinesca (2010) e Aire de Dylan (2012), indicam que Vila-Matas continua seguindo pelo mesmo caminho, mantendo o escritor, a escrita e o leitor como alicerces de seus enredos.

Um breve olhar às biografias dos autores é suficiente para se constatar que muitos episódios de suas vidas fazem-se presentes nas narrativas. A sequência de romances Estrella Distante (1996a), Los Detectives Salvajes (1998) e Amuleto (1999) traçam para o personagem Arturo Belano um caminho quase idêntico ao vivido pelo autor chileno: de suas passagens pelo México à prisão após o Golpe Militar chileno, de sua doença hepática à fundação de um movimento de poesia marginal, muito do escritor é emprestado a seu alter ego. Vila-Matas, por sua vez, distribui entre seus narradores, a maior parte deles nascidos em Barcelona, em 1948, muitas das lembranças de sua estadia em Paris, além de inseri-los frequentemente em conferências / eventos literários efetivamente ocorridos e vinculá-los a nomes de pessoas reais, como, por exemplo, a falta que o narrador de Doctor Pasavento (2005), Andrés Pasavento, declara sentir de Bolaño.

A análise mais minuciosa desse uso da realidade para compor a ficção permite notar que tais episódios pessoais, geralmente relatados em suas entrevistas, alcançam esferas ainda menos conhecidas pelos leitores, entre eles o fato de Bolaño ter sido funcionário de um camping na Espanha e de Vila-Matas ir com frequência a Portugal, bem como assumir grande afetuosidade pelo país. Na segunda parte de Los Detectives Salvajes, no depoimento da inglesa Mary Watson sobre Belano, tem-se um relato referente aos dias em que ela e seus amigos hospedaram-se no camping onde o protagonista trabalhava; já nos romances de Vila-Matas, os narradores viajam com frequência para cidades portuguesas bem conhecidas pelo escritor.

Em suma, a partir dos exemplos aqui listados, entre tantos outros possíveis, nota-se que os dois autores servem-se de traços autobiográficos para compor o perfil de seus personagens-escritores. De fato, ao retratar jovens poetas marginais com anseios vanguardistas, pertencentes à América Hispânica dos anos 70, Bolaño parece, por vezes, discorrer sobre sua própria trajetória. Vila-Matas, por outro lado, contextualizando seus enredos nos dias atuais, apresenta por meio de seus protagonistas a imagem de um escritor de condição semelhante à experimentada por ele atualmente: um autor já maduro e consagrado, dividido entre a escrita e os compromissos e deveres profissionais inerentes a ela. Entre as atuais discussões acerca desse aspecto de seus estilos literários, destacam-se os trabalhos que fazem menção à ‘autoficção’, um termo recorrente em estudos contemporâneos, em especial no que se refere à literatura em língua espanhola, mas ainda sem definição canonizada pela Teoria Literária.

Leitores das obras dos dois autores não demoram a perceber o principal ponto que aproxima suas poéticas: a metaliteratura. Tanto o chileno quanto o catalão utilizam a literatura como alicerce para suas histórias, destacando-a como fio condutor, tema e / ou personagem. No que concerne a este artigo, entende-se a autoficção como uma das perspectivas possíveis para se estudar essa literatura sobre literatura, uma perspectiva caracterizada, sobretudo, pelo estudo do papel do personagem-escritor. Nesse sentido, observar em que medida os textos de Bolaño e Vila-Matas aproximam-se ou afastam-se de alguns dos conceitos de autoficção propostos até o momento abre caminho a um melhor entendimento do lugar ocupado pela figura do escritor em suas obras, bem como do cunho autobiográfico que é associado a seus perfis.

Conforme se busca esclarecer neste trabalho, e com base em uma revisão crítica de parte dos subsídios teóricos disponíveis, a leitura aqui desenvolvida distancia-se de tal vertente crítica por não interpretar os vestígios autobiográficos que perpassam os romances de Bolaño e Vila-Matas como indicadores de uma nova estratégia narrativa, no caso, a autoficção, e sim como mais um entre outros elementos de suas estéticas. Emprestando de Enrique Vila-Matas a metáfora que define sua relação com a literatura de Bolaño, este artigo busca ressaltar que o tom pessoal de seus romances frente às teorias acerca da autoficção parece ecoar a frase de Goethe, tornando-se outro exemplo de que "todo lo cercano se aleja".

Sobre o ‘retorno do Autor’

The Romantic "author", as originating and original source of meaning may well be dead, as Roland Barthes argued years ago, but his position – one of discursive authority – remains, and increasingly is the focus of much contemporary literature and also much theoretical debate. (...) In today’s metafiction, the artist reappears, not as a God-like Romantic creator –, but as the inscribed maker of a social product that has the potential to participate in social change through its reader. (...) No longer to believe in the manipulating "author" as a person is to restore the wholeness as the act of the énonciation: the "author" becomes a position to be filled, a role to be inferred, by the reader reading the text. (Hutcheon, 1991a: xv-xvi)

A recorrente presença do personagem-escritor nas narrativas contemporâneas tem levantado reflexões sobre o que seria um possível "retorno do Autor", reavivando assim discussões acerca do papel e do lugar da entidade narrativa, do nome de assinatura na capa do livro, da imagem pública do escritor, etc.

Em seu famoso ensaio de 1967, "A morte do Autor", Barthes defende fundamentalmente que "o nascimento do leitor tem de pagar-se com a morte do Autor" (Barthes, 1988: 70). Em sua concepção, "o escritor moderno nasce ao mesmo tempo em que o seu texto" (Idem, 68), de modo que, com o fim do "império do Autor", desde Mallarmé, sua figura não mais serviria de explicação ou assumiria a função de origem da obra. Trata-se, linguisticamente, do emergir de um sujeito da enunciação em detrimento do reconhecimento da pessoa do autor (Idem, 67). Foucault, por outro lado, com "O que é um autor?" (1969), chama a atenção para a "função autor", alegando que o nome do autor, não sendo "exatamente um nome próprio como os outros" (Foucault, 2006: 273) – visto que "mais do que uma indicação equivale a uma descrição" (Idem, 272) –, é dotado de uma função discursiva. Segundo sua visão, não se trata de resgatar sua figura como a origem do texto, mas de aceitá-la como um complemento do discurso, uma vez que "o anonimato literário não é suportável para nós" (Idem, 276). Conforme sugere a citação de Hutcheon, a hipótese de um "retorno do Autor" através das/nas ficções contemporâneas não aponta para a recuperação do autor como um deus, possuidor de todo o significado, mas parece fundamentar-se tanto no reforço do caráter performativo da escrita já assinalado por Barthes, quanto em um constante jogo com as diferentes instâncias da "função autor" defendida por Foucault. Como resultado desse fenômeno, multiplica-se na atualidade um tipo de romance (híbrido) que aposta simultaneamente em estratégias que obscureçam os contornos e limites da voz narrativa, fragmentando-a, e em elementos que a associem ao seu maior referente externo, a pessoa do autor.

Tomando como exemplo o conto "Borges y yo", escrito pelo escrito argentino homônimo em 1960, é possível notar o emprego de uma estratégia fundada precisamente em um jogo em torno dessa condição por vezes paradoxal da voz narrativa na literatura contemporânea. A oposição de um "eu" narrador a um "outro" chamado Borges apresenta uma voz narrativa que "nasce", fazendo uso do termo de Barthes, junto com o texto, ao mesmo tempo em que se observa uma referência à bagagem extratextual que o nome Borges carrega consigo, visto que, segundo Foucault, o nome de um autor "manifesta a ocorrência de um certo conjunto de discursos, e refere-se ao status desse discurso no interior de uma sociedade e de uma cultura" (Foucault, 2006: 273). O excerto abaixo torna evidente que, longe de uma menção gratuita, o "Borges" descrito sugere uma referência à imagem pública / mítica do escritor argentino, a uma imagem construída / encenada que o aproxima da figura do ator; trata-se do escritor que está nos dicionários em contraste ao escritor que é apenas o "eu" de um texto, o "eu" simplesmente escritor:

Al otro, a Borges, es a quien le ocurren las cosas. Yo camino por Buenos Aires y me demoro, acaso ya mecánicamente, para mirar el arco de un zaguán y la puerta cancel; de Borges tengo noticias por el correo y veo su nombre en una terna de profesores o en un diccionario biográfico. Me gustan los relojes de arena, los mapas, la tipografía del siglo XVIII, las etimologías, el sabor del café y la prosa de Stevenson; el otro comparte esas preferencias, pero de un modo vanidoso que las convierte en atributos de un actor. Sería exagerado afirmar que nuestra relación es hostil; yo vivo, yo me dejo vivir, para que Borges pueda tramar su literatura y esa literatura me justifica (Borges, 1996: 186). [sublinhado meu]

Entre as diversas leituras possíveis, o texto de Borges revela certo diálogo com o conceito de ‘performance’ atualmente associado a narrativas que jogam com a figura autoral na contemporaneidade. Segundo Klinger (2008), a própria concepção de autoficção relacionar-se-ia a uma forma de escrita de si como performance, no sentido artístico do termo, por meio da qual observa-se a construção (de caráter teatralizado) da imagem do autor dentro do próprio texto. De acordo com essa concepção, em textos autoficcionais o autor (vida, referência externa, imagem pública) e o personagem-escritor (texto) constroem-se simultaneamente, independentemente de uma imagem prévia que possa existir com relação a esse sujeito (Klinger, 2008: 20). Assim como o ator e seu personagem formam no palco um sujeito duplo, também autor e personagem-escritor iserem-se em um work in progress, cabendo ao leitor "assistir ao vivo ao processo de escrita" (Idem, 26).

Delinear os pontos de contato entre a escrita borgeana e o que hoje é intitulado autoficção demandaria uma pesquisa que excede os objetivos deste trabalho. Dito isso, e considerando os fins dessa breve introdução, o que deve ser ressaltado em relação a trabalhos como os de Klinger (2008) é a atenção e importância dispensadas à reflexão sobre o espaço que essas novas formas da já conhecida "estrategia borgeana de desorientar" (Speranza, 2001: 101) – formas estas muitas vezes interpretadas como resultado de um "desejo narcisista de falar de si" (Klinger, 2008: 13) –, vem, significativamente, alcançando nos dias de hoje. Ainda no que tange aos trabalhos desenvolvidos recentemente no Brasil, também se destacam as ideias de Azevedo (2008) e Viegas (2007), as quais, em diálogo com Klinger, defendem que debates sobre a dupla híbrida autobiografia-ficção na atualidade, sejam eles voltados especificamente a esse "retorno do Autor" na literatura contemporânea, sejam sobre narrativas performáticas, autoficcionais ou de outra ordem, não podem desconsiderar o papel da cultura midiática na construção da imagem ou do mito do escritor nos dias de hoje. Segundo suas concepções, a autoficção, por exemplo, seria um tipo textual em diálogo com o "narcisismo de uma sociedade midiática" (Azevedo, 2008: 32), decorrente de certa "obsessão contemporânea pela presença" (Viegas, 2007: 18).

Situando-se no âmbito dessas discussões, e partindo da hipótese de que o personagem-escritor surja como o principal elemento desencadeador de tais reflexões, este artigo busca, para além do questionamento do lugar das poéticas de Roberto Bolaño e Enrique Vila-Matas frente à autoficção, pensar as implicações da relação do chileno e do catalão com o universo midiático, a fim de explorar os possíveis ponto de contato entre obra e exterior na contemporaneidade.

Da auto?cção ao ‘espaço biográ?co’

A palavra autoficção surge pela primeira vez no romance Fils, publicado em 1977 pelo escritor francês Serge Doubrovsky, em resposta a uma janela deixada em branco por Philippe Lejeune em Le pacte autobiographique, de 1973; na tabela esboçada pelo teórico, desconsiderava-se a possibilidade de coincidência entre o nome do autor e o nome do personagem dentro de um romance, haja vista tratar-se de uma ocorrência exclusiva à autobiografia. Fils surge nesse momento como um afrontamento a essa restrição de ordem estética, ao atribuir ao narrador-personagem o mesmo nome presente na capa do livro, Serge Doubrovsky.

Ainda que muitos tenham sido os escritos de Lejeune sobre a repercussão de seu texto, e apesar das novas formulações que a autoficção vem ganhando na atualidade, defende-se neste trabalho que a relevância do nome próprio enquanto origem de tal discussão não deva ser esquecida – Lejeune assume em Le pacte... a possibilidade de a relação de identidade entre o autor, o narrador e o personagem estabelecer-se de forma implícita na autobiografia, mas insiste, a todo o momento, na relevância de uma identificação explícita, garantida pela repetição do nome do autor.

No que concerne aos atuais estudos acerca da autoficção, vale frisar que a crítica é unânime em afastá-la do "pacto referencial" ao qual a autobiografia estaria, segundo Lejeune (1973), sujeita, isentando-a do que o francês denomina "prova de verificação". Como bem esclarece Manuel Alberca (2007), a autoficção seria um tipo textual regido por "la verdad de las ficciones", uma verdade "de orden y coherencia estéticas", diferentemente do gênero autobiográfico, que pode chegar até mesmo a uma vertente jurídica, consequente de seu compromisso com a verdade (Alberca, 2007: 285). Segundo a tese postulada pelo pesquisador espanhol, verifica-se nesse tipo texto um "pacto ambíguo" consequente de sua particularidade de não pertencer nem ao pacto romanesco nem ao pacto autobiográfico, mas precisamente à tensão fronteiriça entre esses dois espaços narrativos. Com isso, Alberca não nega o estatuto ficcional da autoficção reivindicado já em Doubrovsky, de modo que a referida ambiguidade associa-se, sobretudo, a uma confusão em torno da figura e do papel do narrador e não da estrutura narrativa:

la propuesta y la práctica autoficcional (...) se fundamentan de manera más o menos consciente en confundir persona y personaje o en hacer de la propia persona un personaje, insinuando, de manera confusa y contradictoria, que ese personaje es y no es el autor. (Idem, 32)

Embora seja indiscutível a qualidade da revisão teórica que Alberca oferece em El pacto ambíguo. De la novela autobiográfica a la autoficción (2007), o qual se revela uma produtiva leitura para aqueles que pretendam entender melhor o caminho percorrido pelos diferentes tipos e gêneros de escritas de si nas narrativas em língua espanhola, alguns dos exemplos de textos autoficcionais listados pelo pesquisador dão margem a questionamentos, sobretudo ao deixarem em segundo plano a presença do nome do autor. Sua sugestão e definição de um pacto exclusivo à autoficção, o "pacto ambíguo", que a afaste não apenas do "pacto autobiográfico", como prevê a maior parte da crítica atualmente, mas também de um pacto exclusivamente romanesco, contrariando aqueles que a entendem simplesmente como um romance entre tantos possíveis, demonstra o rigor de seu estudo e tem o mérito de chamar a atenção para a necessidade de se observar as singularidades desse artifício. Porém, ao mesmo tempo em que o "pacto ambíguo" surge como uma inovadora e relevante perspectiva teórica, romances como os de Bolaño e Vila-Matas citados ao longo de sua análise – especificamente Estrella Distante (1996a), Los Detectives Salvajes (1998), El mal de Montano (2002) e Doctor Pasavento (2005) – enfraquecem sua abordagem, por não se configurarem enredos necessariamente determinados pela ambiguidade, ainda que esta assuma seu lugar em passagens determinadas.

Além das ocorrências (de cunho autobiográfico) citadas no início desta seção, outras estratégias observadas nos romances de Bolaño e Vila-Matas explicam a interpretação de seus textos como autoficcionais, encaixando--se nos parâmetros descritos por Alberca. Em relação a Estrella Distante (1996a), destaca-se a nota introdutória assinada por Bolaño, por meio da qual se institui um narrador dúbio no livro: Arturo Belano (seu alter ego e personagem recorrente de seus textos) / o próprio escritor chileno. De acordo com a nota, e dado que o romance origina-se do último capítulo do livro de Bolaño que o antecede, La literatura nazi en America (1996b), Belano não ficara satisfeito com o texto anterior do autor – um texto cuja história fora narrada pelo personagem a Bolaño –, o que deu início à escrita de Estrella Distante:

(...) Arturo deseaba una historia más larga (...). Así pues, nos encerramos durante un mes y medio en mi casa de Blanes y con el último capítulo en mano y al dictado de sus sueños y pesadillas compusimos la novela que el lector tiene ahora ante sí. Mi función se redujo a preparar bebidas, consultar algunos libros, y discutir, con él y con el fantasma cada día más vivo de Pierre Menard, la validez de muchos párrafos repetidos. (Bolaño, 1996a: 11)

A partir de uma clara menção a Borges, Bolaño coloca-se na condição de ouvinte, mas não transfere totalmente a autoria do livro a seu alter ego, quase que descrevendo uma obra feita a quatro mãos. Vale destacar que o chileno opta por apresentar o personagem como Arturo B. ao invés de Arturo Belano – depois, faz menção apenas ao primeiro nome, Arturo, como consta no trecho acima transcrito –, causando no leitor uma impressão comparável à experimentada por um leitor de Franz Kafka ao se deparar com um de seus personagens "K.".

De acordo com a leitura aqui desenvolvida, em ambos os casos, tanto em Bolaño, quanto em Kafka, a familiaridade percebida pelo leitor nos nomes dos personagens não é considerada suficiente para se levantar dúvidas quanto ao estatuto ficcional das obras, nem indica um pacto de leitura particular, ainda que seja difícil um leitor ficar indiferente à provocação dos autores. Porém, sob a luz de Manuel Alberca, mais do que uma provocação, a grafia do nome do narrador, ora com um sobrenome de mesma inicial do autor factual (B.), ora com um sobrenome homofônico (Belano / Bolaño), se somada ao prólogo redigido por Bolaño e aos vestígios autobiográficos anteriormente citados, funciona como um alerta inicial de leitura do caráter autoficcional do texto que o leitor está prestes a descobrir. A partir desses argumentos, pode-se inferir que a presença de Los Detectives Salvajes (1998) no inventário autoficcional de Alberca, uma inclusão não explicada pelo pesquisador, é justificada pelos mesmos pressupostos, haja vista a reaparição e o papel do personagem Arturo Belano nesse romance, bem como os traços autobiográficos que Bolaño novamente lhe empresta – nesse contexto, traços referentes aos anos em que viveu no México, na companhia do poeta cofundador do Infrarrealismo, Mario Santiago.

A primeira grande questão que se pode levantar sobre uma possível interpretação de Estrella Distante (1996a) e Los Detectives Salvajes (1998) como sendo textos autoficcionais surge da identidade e do papel assumidos pelos narradores nos dois livros. Diferentemente de El mal de Montano (2002) e Doctor Pasavento (2005), de Enrique Vila-Matas, ambos diários de personagens-escritores, em Bolaño os escritores-protagonistas não assumem o papel de narradores, sendo, portanto, apresentados por outros personagens-escritores. Em síntese, observa-se que, contrariamente à premissa autoficcional de identificação entre autor, narrador e personagem aceita por Alberca, Arturo Belano assume em Estrella Distante (1996a) o papel de um narrador observador (e investigador) responsável por traçar a biografia/ descrever a trajetória do real protagonista da trama, o misterioso poeta-assasino Carlos Wieder, aviador a serviço dos militares nos anos do Golpe Militar chileno. Tudo o que o leitor descobre acerca do narrador, de traços de sua personalidade a episódios pessoais, está sempre associado a histórias em torno da relação de Belano com Wieder, e não a um falar de si autobiográfico. Considerando-se que nessa obra a biografia do personagem de maior identificação com o autor factual fica em segundo plano, seria possível atribuir-lhe um "pacto ambíguo", conforme sugere Alberca? Tendo em vista que a aproximação entre ficção e autobiografia dá-se de forma sutil, caberia falar em uma "vacilação interpretativa" por parte do leitor?

Também em Los Detectives Salvajes (1998) os papéis de narrador e de protagonista são atribuídos a personagens distintos, cabendo a Arturo Belano, agora no México de 1975 e 1976, assumir o segundo deles, encenando, juntamente a seu fiel companheiro Ulises Lima, a busca pela poetisa mexicana desaparecida Cesárea Tinajero. Tanto os registros do diário do jovem Garcia Madero, que compõe a primeira e a terceira (e última) parte do romance, quanto os depoimentos dos diferentes personagens inseridos na segunda seção do livro tornam duplo o mistério do enredo, já que Belano e Ulises apresentam-se tão misteriosos quanto o paradeiro e o destino da poetisa por eles procurada. Em síntese, e fazendo uso das palavras da pesquisadora María Alejandra Gutiérrez Tovar, é possível afirmar que há insistentemente em Bolaño "el enigma de un escritor que debe ser develado por otros" (Gutiérrez Tovar, 2011: 269).

Com base nesse aspecto, observa-se que o tom policial de seus textos funda-se, com frequência, na dissociação entre escritor-narrador e escritor-protagonista, de modo que a ausência da voz do segundo legitime a busca/investigação empreendida pelo primeiro; em outras palavras, tem-se o personagem-escritor como uma peça fundamental para a construção do mistério. Ao encontro das conclusões da Tese de Gutiérrez Tovar a respeito desses "autores secretos" (Idem, 102), entende-se nesta pesquisa que, embora em certa medida ausentes, "no hay una ausencia total, porque al presentarse al autor como un enigma de alguna manera se demuestra su presencia, aunque paradójicamente se haga desde la ausencia" (Ibidem). Cabe destacar que nos romances do chileno descobrir o paradeiro desses poetas confunde-se com a própria descoberta da literatura. Por meio de Carlos Wieder, o leitor acompanha a descoberta de uma literatura de sofisticação perversa, da expressão da arte como barbárie; nela, ética e estética estabelecem uma relação conflituosa, que acaba dividindo o narrador--investigador entre uma valoração artística dos atos-poéticos de Wieder e um julgamento ético de sua postura política. Em Cesárea Tinajero observa-se a personificação da utopia vanguardista, sendo sua busca uma concomitante procura pelas aproximações entre arte e vida.

A partir dessas considerações, conclui-se que a falta de coincidência entre voz narrativa e escritor-protagonista, juntamente com a apresentação do perfil de Arturo Belano em meio à busca da enigmática poeta Tinajero levantam dúvidas quanto à suficiência da presença do alter ego de Bolaño, ainda que portador de todas as referências autobiográficas citadas anteriormente, para se instituir (e se manter) uma leitura ambígua das obras. Até mesmo os relatos que de certa forma constroem uma biografia mínima de Arturo Belano e Ulises Lima na segunda parte de Los Detectives Salvajes não se limitam à descrição e ao julgamento de suas personalidades, ou seja, não ficam restritos a suas histórias pessoais, mas funcionam, sobretudo, como ampliador do romance. A partir de menções a acontecimentos anteriores e posteriores à morte de Tinajero, fato este que encerra o alcance do diário de Garcia Madero, o capítulo caminha em direção ao retrato de uma geração ao explorar a origem e os desdobramentos do Real Visceralismo.

Em Enrique Vila-Matas discutir o princípio de identidade que norteia a autoficção torna-se mais delicado, uma vez que o autor faz da busca e/ ou fragmentação identitária o tema central de seus enredos. Ao incluir El mal de Montano (2002) e Doctor Pasavento (2005) em sua lista de textos autoficcionais, diários narrados respectivamente pelos personagens-escritores Rosario Girondo e Andrés Pasavento, Manuel Alberca justifica-se preponderantemente com base no que reconhece como uma ambiguidade construída a nível textual, haja vista os escritores-protagonistas possuírem nomes sem nenhuma similaridade ao do autor, impedindo que a ambiguidade ocorra a nível paratextual, isto é, explicitamente.

Em El mal de Montano o nome do narrador não chega a ser informado ao leitor, já que "Rosario Girondo" é assumido pelo protagonista como um pseudônimo, ou um "matrónimo" (Vila-Matas, 2002: 125), por se tratar do empréstimo do nome de sua mãe. Somado a isso, a identidade atribuída a esse personagem no primeiro capítulo, momento em que o narrador se apresenta como crítico literário e pai de um escritor enfermo chamado Montano, é posteriormente desmentida – Girondo explica que a história exposta no primeiro capítulo correspondia a um livro de sua autoria, uma ficção, "la nouvelle en la que se entrelazan la ficción con mi vida real" (Idem, 106) –, momento em que o pseudônimo passa a ser assumido. Na interpretação de Alberca (2007: 138), o fato de o Eu do narrador e protagonista ser apresentado como um espaço vazio nesse romance garante, junto aos dados autobiográficos de Vila-Matas e discussões explícitas sobre o tema do duplo, a identificação entre narrador, personagem e autor, exemplificando o que o pesquisador entende por "anonimato sugestivo". Com base nisso, afirma-se que El mal de Montano desenvolve com clareza muitos aspectos comuns a textos autoficcionais, como o fato de o "eu" típico desse tipo de narrativa oscilar "entre la carencia de una identidad propia y la necesidad de auto-invención" (Alberca, 2007: 213). Vale citar que, colaborando com a argumentação de Alberca, o texto que integra a contracapa de El mal de Montano apresenta o romance da seguinte forma: "entre el diario íntimo y la novela, el viaje sentimental, la autoficción y el ensayo, El mal de Montano nos propone el triunfo de la literatura" (sublinhado meu).

Fascinado pelo escritor suíço Robert Walser, que passara seus últimos dias de vida em um manicômio, e desejoso por desaparecer, por fugir da condição de escritor de sucesso, o personagem-escritor, protagonista e narrador de Doctor Pasavento, extrapola o desdobramento de identidade já presente em El mal de Montano para adotar um comportamento à beira da esquizofrenia: do reconhecido escritor catalão Andrés Pasavento, o personagem, inspirado pela história de seu "héroe moral", Walser, passa a inventar para si distintas identidades de médicos psiquiatras: de escritor para Dr. Pasavento, seguido de Doctor Ingravallo, o qual se transforma, no decorrer da história, em uma espécie de superego do narrador, e por fim, Doctor Pynchon (inspirado no escritor Thomas Pynchon).

Em meio a tantas personalidades associadas à figura do narrador-protagonista de Doctor Pasavento (2005), é notória a dificuldade em se identificar um pacto autoficcional com base na reincidência do nome autor. Diferentemente de sua leitura de El mal de Montano, Alberca não associa a Doctor Pasavento a ideia de um "anonimato sugestivo", pois neste romance o nome do narrador, Andrés Pasavento, é imediatamente fornecido, e não ocultado por um alter ego como o faz Vila-Matas no primeiro romance. Porém, considerando as distintas identidades que seu narrador assume ao longo da narrativa, Alberca explica que, assim como na maioria dos relatos autoficcionais, há em Doctor Pasavento o retrato de um sujeito contraditório, "un tipo de héroe que hace ostentación de su fragmentación y vulnerabilidad" (Alberca, 2007: 279).

Em sua percepção, "el objetivo de hacerse invisible tras la propia identidad es una de las metas de Vila-Matas en sus relatos" (Idem, 206); dito de outra forma, para Alberca o uso de diferentes "máscaras" num mesmo personagem, ou esse "haz de yos en movimiento" (Idem, 207), afirma-se como uma eficaz estratégia para o autor esconder-se por detrás da própria identidade – "en la autoficción la identidad del yo narrativo y su autor resultan tan transparentes que podría pasar desapercebido, pues nada mejor que esconderse tras la propria identidad que, al hacerse explícita, resulta impenetrable" (Idem, 205).

En fin, el héroe de la autoficción es un acabado ejemplo del neonarcisismo posmoderno que hace de la fragmentación y la falta de unidad del sujeto un motivo contradictorio de estímulo al autoconocimiento y de necesidad de construirse un mito personal, un suplemento de ficción o viático que le ayude a transitar por el desierto del ser. Son personajes que cuanto más interés muestran en conocerse, cuanto más saben de si mismos, más frágiles y vulnerables se sienten. (Alberca, 2007: 281)

Contra-argumentando a análise de Manuel Alberca, inclusive com menções explícitas a seu livro, o também espanhol José María Pozuelo Yvancos (2010) observa mais uma peculiar "figuración del yo" nos livros Vila-Matas do que um pacto autoficcional. Insistindo na rememoração do contexto de origem do neologismo, Pozuelo Yvancos adverte que o princípio de identidade nominal fora decisivo na resposta de Doubrovsky ao "pacto autobiográfico" lejeuneano e que fadar a presença de uma voz pessoal à autoficção é desconsiderar as múltiplas possibilidades dessa "figuración del yo":

(...) este origen que sigue vinculando la autoficción a la identidad real biográfica coincidente entre personaje y autor (que es la constante inevitable sostenida en la definición de la categoría), ha permanecido como fondo implícito que ha hecho entender la crítica que la representación del yo personal es asimilable a poseer un fondo autobiográfico o, dicho de otro modo, que el problema de la figuración del yo se resuelve principalmente en la relación entre el texto y la vida (que es solamente una de las posibilidades que la novela ha experimentado desde que existe). (...) tal presunción y énfasis en la correlación una relación texto-vida, ha reducido notablemente el panorama de posibilidades de representación de un yo figurado de carácter personal, que no tiene por qué coincidir con la autoficción, ni siquiera cuando se establece como personal, puesto que la figuración de un yo personal puede adoptar formas de representación distintas a la referencialidad biográfica o existencial, aunque adopte retóricamente algunos de los protocolos de ésta (por semejanzas o asimilaciones que pueden hacerse de la presencia del autor) (Pozuelo Yvancos, 2010: 22).

Diferentemente da autoficção, o "eu" presente em Vila-Matas – e também nas narrativas do espanhol Javier Marías, outro escritor analisado em Figuraciones del yo en la narrativa (2010) – é, segundo Pozuelo Yvancos, mistificado de forma consciente pelo autor (Idem, 29). Ainda que um tom pessoal seja reconhecido, há nesses textos um "yo figurado" que ironiza a própria distancia entre autor e narrador. Para o pesquisador espanhol, a única identidade reconhecível nos textos vilamatianos é a identidade literária (Idem, 140) que o autor construiu para si mesmo através de seus personagens, e não sua identidade factual. Nesse ponto, resume-se o eixo da argumentação de Pozuelo Yvancos contra leituras que relacionem VilaMatas a autoficção: em sua visão, a porosidade das fronteiras genéricas característica dos enredos do catalão inclina-se mais para um contato com os gêneros ensaísticos do que para com a autobiografia; em suma, defende-se a presença de uma voz familiar vinda de um "eu ensaístico" em detrimento do reconhecimento da identidade do autor propriamente dita – "de manera que figuraciones presentes en novelas o cuentos han sido adelantadas en artículos, conferencias y ensayos, existiendo un trasvase continuo entre una parcela de su producción literaria y la otra" (Idem, 144).

Expandido os apontamentos de Pozuelo Yvancos acerca de Vila-Matas para o universo literário de Bolaño, pode-se afirmar que a voz reflexiva definida pelo pesquisador perpassa grande parte da obra de ambos. Trata-se de uma voz "que comúnmente conocemos asociada al ensayo", mas que é concedida pelos autores aos seus personagens (Pozuelo Yvancos, 2010: 30); "que le pertenece y no le pertenece al autor, o le pertenece de una forma diferente a la referencial. Le pertenece como voz figurada" (Ibidem). As recorrentes referências a Robert Musil e Robert Walser, em Vila-Matas, e a Enrique Lihn e Nicanor Parra, de um lado, e a Pablo Neruda e Octavio Paz, de outro, em Bolaño – apenas para citar alguns dos principais nomes –, instigam o leitor a perceber em suas narrativas um discurso literário marcado por certa linearidade, que transforma suas obras em uma espécie de autobiografia literária dessa voz figurada ("que pertence e não pertence ao autor").

Em El Mal de Montano (2002) a origem da paralisia literária experimentada pelo narrador no começo do romance é por ele interpretada como um "castigo" decorrente do tema de seu último livro. Com uma notória referência ao romance anteriormente publicado por Vila-Matas, Bartleby y compañía (2001), espécie de catálogo que reúne referências a escritores que deixaram precocemente de escrever, o personagem suspeita que "estuviera recibiendo un castigo por haber escrito sobre los que dejan de escribir" (Vila-Matas, 2001: 109). Assim como em Estrella Distante (1996a) de Bolaño, a citação de Vila-Matas dá margem à suspeita de uma dualidade narrativa, contudo, é preciso ressaltar que se trata de exemplos fundamentalmente ligados a outro recurso comum de suas poéticas: a intertextualidade. Ou seja, verifica-se mais a formação de uma rede intertextual que rememora a voz narrativa / a figura do narrador de outros textos do que uma explícita referência à figura do autor.

No prólogo de Estrella Distante anteriormente comentado, a grafia alternativa do nome de Arturo Belano, Arturo B., sugere ao leitor um vínculo entre o alter ego de seus romances e o protagonista de muitos contos do autor, o misterioso personagem "B." – entre os contos destacam-se "Una aventura literaria" e "Llamadas telefónicas", publicados em Llamadas telefónicas (1997), e "Últimos atardeceres en la tierra", "Días de 1978" e "Vagabundo en Francia y Bélgica", de Putas asesinas (2001). Com base nessa reincidência, uma leitura comparativa-investigativa dos textos de Bolaño permitiria interpretar o conjunto de sua obra como uma biografia fragmentária de tal personagem. Estratégias como esta constroem um ar familiar ao leitor e dão margem para que o autor elabore uma voz narrativa própria (Pozuelo Yvancos, 2010: 143). No que se refere à perspectiva adotada neste trabalho, considera-se que determinadas perspectivas teóricas latino-americanas recentes, como as da argentina Florencia Garramuño, descrevem de forma mais satisfatória essas poéticas do que o conceito de autoficção. A rede intertextual aqui destacada é prevista, por exemplo, como característica comum à literatura formada a partir dos "restos do real" descrita por Garramuño, que interpreta tais "repetições, retornos, releituras e reescritas" como uma manifestação do "questionamento do conceito moderno de originalidade" (Garramuño, 2012: 229). Para a pesquisadora, em análise da obra de Juan José Saer, mas em referência a ocorrências igualmente comuns a Vila-Matas e Bolaño, em especial ao segundo, essa repetição de personagens e/ou "ampliações e condensações dos tempos narrativos" não apenas conecta as obras, "mas, sobretudo, fazem com que um romance reescreva o outro, dado que a informação desconhecida sobre os personagens num deles, que outro romance repõe, funciona corrigindo – de modo gramático às vezes – a intriga e seu significado" (Idem, 103).

A título de síntese, e recorrendo a um dos romances aqui analisados como exemplo, faz-se válida a pergunta: quantos leitores de Estrella Distante relacionariam, sem um aviso prévio, a prisão do narrador Arturo Belano a um fato vivenciado pelo autor do livro, decorrente de sua postura política no contexto do Golpe Militar? Tanto a veracidade do ocorrido quanto uma dúvida em relação a esta são irrelevantes na leitura dessa obra, pois o pacto de leitura estabelecido entre Bolaño e seu leitor é genuinamente ficcional. Em outras palavras, é preciso ter-se em conta que os leitores não necessariamente conhecem a biografia dos autores, salvo suas nacionalidades e faixas etárias. Logo, sem a explícita informação de que autor e narrador possam dividir dados pessoais comuns, o pacto de leitura autoficcional não é atestado. Conclui-se, portanto, que, enquanto o "pacto autobiográfico" assegura a "certeza" quanto ao que é lido, o pacto autoficcional, pautado na reincidência do nome próprio, asseguraria a certeza da dúvida.

Por outro lado, ao se considerar o cenário (social, econômico e cultural) da literatura contemporânea, é preciso reconhecer que o advento da internet, somado a certa espetacularização associada à indústria editorial nos dias de hoje, aproximou o escritor de seu público, não sendo raras as ocasiões em que este conhece em detalhes a vida e personalidade de determinado autor. Barthes já criticara em "A morte do autor" (1967) a exacerbada importância conferida à "pessoa" do autor, de modo que junto ao anúncio de sua "morte", pretendido por seu ensaio, vê-se a admissão de que a figura do escritor ainda reinava "nos manuais de história literária, nas biografias de escritores, nas entrevistas dos periódicos, e na própria consciência dos literatos, ciosos por juntar, graças ao seu diário intimo, a pessoa e a obra" (Barthes, 1988: 66). Trata-se de um fenômeno não apenas igualmente válido para a atualidade, mas que desde a década de 70 sofreu um gradual agravamento. Junto a um bom êxito de vendas, os escritores, incluindo Bolaño e Vila-Matas, deparam-se com uma proporcional participação em eventos e feiras literárias, além de diversos convites para entrevistas (para TV, jornais, revistas e internet), etc. Como bem assinala Alberca (2007: 24-25), ao deixar para trás a posição de relevância e prestígio social do século XIX, o escritor perde seu caráter heroico e passa a ter um valor mercantil, que, paradoxalmente, o coloca em evidência ao mesmo tempo em que o "democratiza", tornando-o uma figura "banal".

Reiterando o argumento inicial, pode-se afirmar que, no que diz respeito à relevância da identificação do nome do autor em textos autoficcionais, essa crescente valorização da imagem pública do escritor não traz grandes implicações, pois, o que está (ou, ao menos, deveria estar) em jogo na autoficção não são os conhecimentos prévios do leitor, mas o alerta para um protocolo específico de leitura. Os leitores podem ser dotados de diferentes graus de conhecimento da biografia dos autores, entretanto, uma vez instaurado o pacto autoficcional, essas possíveis informações perdem valor, dando protagonismo à incerteza (o que é verdadeiro passa a soar falso, o falso começar a parecer verdadeiro), não importando a constatação dos fatos.

A morte prematura de Bolaño em 2003 fez com que o autor não vivenciasse a era midiática com a mesma plenitude que Vila-Matas. É notório que a frequente relação do espanhol com a internet e os jornais tornou suas publicações de domínio público tão acessadas e requisitadas quanto seus livros. Consciente disso, Vila-Matas faz da ironia sua marca registrada para lidar com os compromissos de seu ofício, de modo que a veracidade das opiniões e relatos proferidos por meio de entrevistas, blogs etc. é posta em causa pelo leitor. Repetindo a estratégia empregada em suas ficções, o autor atribui à sua imagem pública uma biografia tão duvidosa quanto às de seus narradores, exercendo uma autoficção de mão dupla. Nesse sentido, Vila-Matas torna-se um bom exemplo de que uma eventual consciência dos leitores quanto à biografia de escritores não significa necessariamente um conhecimento da "verdadeira" vida dos autores, mas das histórias e dados pessoais que esses autores assumem /atribuem a si mesmos. Na visão de Alberca, em ressalva à (im)possibilidade do gênero autobiográfico, é necessário relembrar que em volta do conceito de "verdade" tem-se em jogo mais o crédito que o leitor dá às declarações do autor devido ao comprometimento que sua voz e/ou contexto profere, do que a garantia de uma verdade indiscutível inerente ao gênero (Alberca, 2007: 46-47).

Atenta ao atual alcance dos "gêneros biográficos midiáticos" (blogs, entrevistas, redes sociais, entre muitos outros), Leonor Arfuch (2010) faz uso do termo "espaço biográfico" para referir-se tanto a modelos biográficos clássicos quanto a gêneros discursivos atuais, muitos deles relacionados à indústria cultural; em sua opinão, trata-se de "um espaço comum de intelecção dessas diversas narrativas" (Arfuch, 2010: 37). Defendendo, em diálogo com Bakhtin, a impossibilidade de identificação entre "autor e personagem, nem mesmo na autobiografia, porque não existe coincidência entre a experiência vivencial e a ‘totalidade artística’" (Idem, 55), Arfuch contesta as formulações de Lejeune e Starobinski e justifica a importância de se pensar os gêneros biográficos na contemporaneidade a partir do conceito de "espaço biográfico" em detrimento de modelos narrativos e pactos de leitura rígidos:

Na impossibilidade de chegar a uma fórmula "clara e total", de distinguir com propriedade, para além do "pacto" (de Lejeune) explicitado, entre formas auto e "heterodiegéticas", entre, por exemplo, autobiografia, romance e romance autobiográfico, o centro das atenções se deslocará então para um espaço biográfico, onde, um tanto mais livremente, o leitor poderá integrar as diversas focalizações provenientes de um ou outro registro, o "verídico" e o ficcional, num sistema compatível de crenças. Nesse espaço, podemos acrescentar, com o treinamento de mais de dois séculos, esse leitor estará igualmente em condições de jogar os jogos do equívoco, das armadilhas, das máscaras, de decifrar os desdobramentos, essas perturbações de identidade que constituem topoi já clássicos da literatura. (Arfuch, 2010: 56)

Os apontamentos de Arfuch sobre a entrevista midiática, gênero privilegiado ao longo de sua análise, fornecem bons subsídios para o entendimento do contexto ao qual Bolaño e Vila-Matas pertencem, além de esboçar possíveis justificativas para a frequente relação de suas poéticas ao recurso autoficcional. Nas palavras da pesquisadora, "entre os territórios biográficos que a entrevista conquistou, há um privilegiado: o dos escritores (...), aos quais, paradoxalmente, se solicita um suplemento de outra voz" (Idem, 209). Em síntese, nota-se uma correlação entre perguntas de cunho profissional e íntimo que tendem à "construção compartilhada de uma narrativa pessoal" do entrevistado (Idem, 212), necessária, por sua vez, à configuração (mercadológica) da imagem pública (ou mito) do autor. Ao buscar por esta "outra voz", a entrevista hoje seria caracterizada, sobretudo, pela tentativa de se conhecer o "além da obra". Com base nesses pontos, Arfuch discorre sobre o porquê de a entrevista nada assegurar quanto à identidade do escritor, ainda que esteja atualmente imersa em um "espaço biográfico":

Como em qualquer tipo de entrevista, e por mais especializada que seja, haverá uma construção recíproca do personagem, entrevistador e entrevistado, uma apresentação muito cuidadosa de si – não em vão são compartilhados um saber sobre o poder e a significação do dizer e do mostrar –, uma previsível barreira interposta entre narração e intimidade, mesmo quando abundam anedotas (Arfuch, 2010: 217).

O caso de Bolaño e Vila-Matas serve de exemplo para muitas das observações feitas por Arfuch. A consciência de uma aproximação entre as experiências biográficas de ambos e alguns episódios de suas narrativas têm como principal fonte as declarações proferidas (ou as "narrativas pessoais construídas") em entrevistas:

¿Has formado parte de algún grupo poético semejante al «real-visceralismo» de Los detectives salvajes?

RB: Sí, sí. El infrarrealismo. Mario Santiago, un poeta mexicano, y yo lo fundamos en México, en el año 74 o 75, ya no me acuerdo. Que es lo que está detrás del real-visceralismo de Los detectives salvajes. El infrarrealismo. Que fue un movimiento totalmente dadaísta, anarquista, y con el que nos divertimos como chinos. Editamos revistas, como Correspondencia Infra, Rimbaud, vuelve a casa, y cosas así (Bolaño apud Gras Miravet, 2000: 55).

Precisamente, a partir de la publicación de Los detectives salvajes, el lector de tus novelas suele considerar el personaje Arturo Belano como un alter ego tuyo, ¿aceptas esta lectura, consideras Arturo Belano como una de tus máscaras?

RB: En cierta forma. Es un alter ego en el sentido de que hay cosas que le pasan a él que a mí me han ocurrido. Pero en otros casos, no, por supuesto. Como cualquier alter ego. Es decir, un alter ego es lo que uno querría ser, pero también es lo que uno se ha salvado de ser. Yo me salve de ser Arturo Belano, y hubiera querido ser también en algún otro momento Arturo Belano. Por lo demás, muchísimas cosas en común. (Idem, 62).

(...) Pero te detuvieron.

RB: Me detuvieron, pero un mes y medio después (del Golpe), en el sur.

Y te ayudaron a escapar unos compañeros.

RB: Unos compañeros de liceo. Estuve detenido ocho días, aunque poco, en Italia, me preguntaron: ¿qué le pasó a usted?, ¿nos puede contar algo de su medio año en prisión? Y eso debe al malentendido de un libro en alemán donde me pusieron medio año de prisión. Al principio me ponían menos tiempo. Es el típico tango latinoamericano. En el primer libro que me editan en Alemania me ponen un mes de prisión; en el segundo, en vistas que el primero no ha vendido tanto, me suben tres meses; en el tercer libro a cuatro meses, en el cuarto libro a cinco meses y, como siga, todavía voy a estar preso (Bolaño apud Álvarez, 2005: 37-38).

Diferentemente de Bolaño, que reage com naturalidade frente a perguntas que buscam aproximar ou verificar possíveis pontos de contato entre ficção e realidade, Vila-Matas revela certo incômodo quando confrontado à mesma espécie de indagação:

(...)

VM: Ahora que lo pienso: siempre que termino una novela, las preguntas de los periodistas giran alrededor de si me ha ocurrido o no aquello que escribí.

– ¿Es muy pesado eso?

VM: Sí, casi que dejarías de escribir para no tener que contestar esa pregunta (risa). ¿Y si hubiera pasado de verdad, qué? Hay una escritora amiga de Franzen que a esa pregunta siempre dice que hay en su novela un 17 por ciento de autobiográfico. En las mías el porcentaje se eleva al 27, que es un número shandy (Vila-Matas apud Meruane, 2013: s/p).

Especificamente no que diz respeito ao conteúdo das declarações do espanhol, é provável que suas frequentes opiniões acerca do recurso autoficcional possam ter exercido, e/ou ainda exerçam, certa influência no recorrente interesse dos pesquisadores pela possível proximidade entre esta estratégia e seus romances:

– Siempre me he preguntado qué pensará Vila-Matas sobre esta forma de escritura (la autoficción). ¿La practicará de forma consciente? ¿Verá en ella una forma de futuro para la novela?

VM: Aprecio del libro de Alberca – libro irregular, repetitivo después de las líneas que dedica a mis libros – que haya sabido tener en cuenta que ya en 1992 escribía yo autoficción muy conscientemente, aunque debo confesar que en aquel entonces desconocía por completo el término autoficción. En 1992 es cuando publiqué Recuerdos inventados, libro cuyo mismo título lo dice todo. Me adelanté a muchos, que yo sepa (Vila-Matas apud Arroyo & Fernández, 2008: 201).

VM: Considero – como decía Nabokov – que la mejor parte de la biografía de un escritor no es la crónica de sus aventuras, sino la historia de su estilo. Y mi estilo ha ido evolucionando lentamente hacia lo que algunos llaman la autoficción, que es un neologismo creado por el profesor y novelista francés Serge Doubrovsky en 1977. Hasta ahí todo lo que sé sobre la autoficción. Me sonrojo de pronto. Me doy cuenta de que debo pedir perdón, pues sé algunas cosas más sobre el tema. Ya ven ustedes cómo soy. Sin apenas darme cuenta, me había puesto ya a hacer autoficción. Sí, sé algunas cosas más. Sé, por ejemplo, que la autoficción es la autobiografía bajo sospecha. Y sé también que, muchos años antes de que oyera hablar de autoficción, escribí un libro que se llamo Recuerdos inventados, donde me apropiaba de los recuerdos de otros para construirme mis recuerdos personales. Todavía hoy sigo sin saber si eso era o no autoficción. El hecho es que con el tempo aquellos recuerdos se me han vuelto totalmente verdaderos. Lo diré más claro: son mis recuerdos (Vila-Matas apud Heredia, 2007: 16-17).

Além de ter-se em conta o papel do contexto midiático na insistente associação entre autobiografia e ficção, a repetida menção de Vila-Matas a seu livro Recuerdos inventados (1994) chama a atenção para outro grande motivador de leituras que interpretam seus romances, e também os de Bolaño, como autoficções: ainda que os títulos citados ao longo deste ensaio afastem-se das premissas desse tipo textual, isso não significa que a autoficção esteja completamente ausente de suas obras. "Carnet de baile" e "Encuentro con Enrique Lihn" de Bolaño, por exemplo, respondem a todos os pressupostos da autoficção aqui discutidos: apesar de se tratarem de textos compilados na coletânea de contos Putas asesinas (2001), e não de romances, o narrador em primeira pessoa explicitamente identificado como Roberto Bolaño surge como um desestabilizador do pacto de leitura, tornando-o, como sugere a teoria de Alberca, ambíguo. O primeiro descreve a relação do narrador com a obra de Neruda, entrelaçando experiências pessoais e episódios de sua formação literária como um todo, e tendo por frase inicial "1. Mi madre nos leía a Neruda en Quilpué, en Cauquenes, en Los Ángeles" (Bolaño, 2001: 207). Nele, a identificação explícita entre autor e narrador dá-se através da menção do nome do avô do narrador, "Roberto Ávalos Martí", enquanto que no segundo conto, como o próprio título sugere, narra-se um suposto encontro entre Bolaño e Lihn:

De cualquier forma lo que quería decir es que yo a Lihn lo conocía y que no era por tanto necesaria ninguna presentación. Sin embargo los entusiastas procedían a presentarme y tanto Lihn como yo no objetábamos nada. Así que allí estábamos, en un reservado, y unas voces decían éste es Roberto Bolaño y yo tendía la mano, mi brazo se incrustaba en la oscuridad del reservado, y recibía la mano de Lihn, una mano ligeramente fría que estrechaba durante unos segundos, la mano de una persona triste, pensaba entonces, una mano y un apretón de manos que se correspondía a la perfección con el rostro que en aquel instante me miraba sin reconocerme (Bolaño, 2001: 216). [sublinhado meu]

Curiosamente, o fato de ambas as narrativas encerrarem o livro após terem sido precedidas tanto por contos em conformidade com o modelo clássico atribuído ao gênero quanto por histórias protagonizadas pelo personagem B. abre caminho à suspeita de que a disposição sequencial dos textos que formam de Putas asesinas (2001), ou seja, sua macroestrutura, não tenha sido acidentalmente definida, mas que funcione como uma preparação, gradual e consciente, do espaço autoficcional que marca o fim da obra.

Assim como Putas asesinas, Recuerdos inventados é um livro de contos, a primeira antologia pessoal do autor – a obra reúne, além de contos inéditos, textos de Nunca voy al cine (1982), Suicidios ejemplares (1991) e Hijos sin hijos (1993). Entretanto, ainda que o título funcione como uma boa metáfora para se definir, à Vila-Matas, a autoficção, são poucas as narrativas incluídas nessa coletânea que levantam dúvidas quanto ao caráter ficcional do pacto de leitura estabelecido. No que concerne à produção do espanhol, são París no se acaba nunca (2003) e Dietario voluble (2008) as publicações recorrentemente analisadas sob os preceitos da autoficção. Porém, ao contrário do que sugere o conceito de autoficção desde a menção de Doubrovsky, ou seja, um texto que se assume ficcional para então a todo o momento subverter este estatuto, tanto París... quanto Dietario... apresentam-se como relatos e posteriormente têm seu caráter de veracidade posto em prova, devido, preponderantemente, ao estilo efabulador de Vila-Matas. Eis então uma importante pergunta: qual é a linha que separa um texto fortemente híbrido das particularidades de um texto tido como autoficcional?

París no se acaba nunca é apresentado como um conjunto de relatos de episódios que marcaram o período em que Vila-Matas viveu em Paris durante sua juventude, e Dietario voluble como um livro correspondente ao conteúdo registrado no caderno de anotações pessoais do autor de 2005 a 2008. O personagem e narrador é Vila-Matas, e as porosas fronteiras entre realidade e ficção são destacadas já nas sinopses que integram as contracapas dos livros:

París no se acaba nunca es una revisión irónica de los días de aprendizaje literario del narrador en el París de los años setenta. Fundiendo magistralmente autobiografía, ficción y ensayo, nos va contando la aventura en la que se adentró cuando, en una buhardilla de París, redactó su primer libro.

Dietario voluble abarca los tres últimos años (2005-2008) del cuaderno de notas personal de Enrique Vila-Matas. Al tratarse de un diario literario que se origina en la lectura, es una obra escrita desde el centro mismo de la escritura. (...) No se aleja, además, Dietario voluble de los procedimientos literarios más habituales en Vila-Matas, donde las diferencias estilísticas entre libros de ficción y colecciones de ensayos son cada vez menos relevantes y más fieles a una feliz consigna de literatura híbrida y fragmentaria en la que los límites siempre se confunden y la realidad baila en la frontera con lo ficticio, y el ritmo borra esa frontera.

Leituras que explorem a proximidade entre essas histórias e a autoficção possuem, portanto, fundamentos, entretanto, o predominante grau de referencialidade que funda esses enredos se comparado a outras narrativas ambíguas coloca em relevo os desafios de tal abordagem analítica. Ciente de que na obra vilamatiana certa "vacilação interpretativa" por parte do leitor evela-se um lugar comum, independentemente de haver ou não resquícios autoficcionais – haja vista o hibridismo de gêneros e outros jogos com a linguagem não se configurarem apenas marcas do estilo literário do autor, mas a origem e base do mesmo –, Alba del Pozo García (2009) sugere uma interpretação menos redutora sobre a autoficção que permeia alguns livros do escritor espanhol: segundo a pesquisadora, para além de um "pacto ambíguo", nota-se em Vila-Matas um "pacto irónico", visto que "ante un narrador tan irónico, un eventual pacto de lectura en clave biográfica se desautomatiza completamente" (Del Pozo García, 2009: 93).

Considerações ?nais

Essa insistência em nos convencer da proximidade – e até identidade – entre vida e obra, em acentuar o caráter (pretensamente) testemunhal, autobiográfico ou autorreferencial de textos que não o são explicitamente, é mais uma prova da extensão do espaço biográfico contemporâneo, enquanto ancoragem obsessiva – e tranquilizadora? – numa hipotética unidade do sujeito (Arfuch, 2010: 235).

Este artigo teve como foco repensar o caráter autoficcional frequentemente atribuído aos textos de Bolaño e Vila-Matas, abrangendo tanto questões de cunho formal, quanto fatores externos ao texto, em especial a influência exercida pelo contexto midiático na construção de biografias de escritores na atualidade, bem como na recepção e leitura de suas obras.

Conforme indica a leitura aqui exposta, os vestígios autobiográficos que perpassam os personagens-escritores de Estrella Distante (1996a), Los Detectives Salvajes (1998), El mal de Montano (2002) e Doctor Pasavento (2005) não obscurecem, confundem e/ou aproximam significativamente as identidades do autor e do narrador/personagem/protagonista, não havendo, portanto, uma desestabilização do pacto de leitura inicialmente instaurado. Ao encontro dos apontamentos de Linda Hutcheon sobre os possíveis contornos de uma "poética do pós-modernismo", assume-se que a presença do nome próprio, ainda que na qualidade de um "designador rígido da realidade", "não enquadra nem nega o referente (por mais que este seja definido)", mas surge nas ficções atuais como um problematizador de "toda a atividade de referência" (Hutcheon, 1991b: 196). Nesse sentido, ao defender a coincidência entre o nome do autor e do personagem-escritor como um elemento formal fundador da autoficção, este trabalho não visa propor definições redutoras ou dotadas de um formalismo radical, mas sim dar destaque a abordagens teóricas atentas ao contexto de origem do termo, no qual a reincidência do nome do autor assume uma função específica e relevante (precisamente por instaurar a "problematização de toda a atividade de referência" mencionada por Hutcheon), e à necessidade de conceituações que caminhem rumo a uma mínima diferenciação entre a autoficção e outros textos híbridos de vertente autobiográfica.

Por fim, entende-se que o conceito de "espaço biográfico" formulado por Leonor Arfuch põe em evidência alguns dos contornos do cenário experimentado pelos dois escritores. Ao destacar certa "obsessiva apresentação ‘biográfica’ de todo tipo de relato" (Arfuch, 2010: 235) como um fenômeno da contemporaneidade, Arfuch busca observar de que modo as entrevistas, os ensaios, os romances, e, em certa medida, grande parte da fortuna crítica de escritores passaram a compartilhar um mesmo espaço, de dimensão "intertextual e interdicursiva" (Idem, 59), tornando-se todos, igualmente, fontes de dados biográficos. Bolaño e Vila-Matas, imersos nesse contexto, dada a evidente predileção de ambos por estratégias narrativas que desafiem os limites que separam realidade e ficção, ilustram muitas das consequências que este "espaço biográfico" reserva aos escritores nos dias de hoje, sendo a (por vezes) precipitada vinculação de seus romances ao recurso autoficcional apenas um exemplo entre outros possíveis.

Na análise que a pesquisadora Ana Cecilia Olmos (2011) faz dos "limites da autobiografia" na obra Mario Bellatin, por exemplo, considerando diferentes estratégias narrativas de aproximação do narrador à figura do autor, desde a presença de enunciações subjetivas que prescindem da mediação da personagem (Olmos, 2011: 14), até a ocorrência de personagens que não levam o nome do autor, mas que escreveram um livro por ele publicado (Idem, 15), vê-se, sem qualquer alusão ao termo autoficção, um destaque ao caráter ambíguo que permeia parte dos romances desse escritor:

Esse jogo de posições enunciativas transgride as condições de possibilidade do gênero autobiográfico na medida em que desestabiliza as relações de identificação entre autor, narrador e personagem, fragmenta a sequência temporal do relato de vida e prescinde da garantia de veracidade do relato. (Ibidem)

Independentemente de as estratégias de Belattin dialogarem com recentes ou futuras concepções de autoficção, trabalhos como o de Olmos atestam que as atuais discussões em torno desses textos "transgressores" tão abundantes nos dias de hoje não estão fadadas a abordar o neologismo de Doubrovsky, seja pela falta de consenso teórico ainda existente, seja pela escolha de afastar-se de definições mais restritas. A leitura integral do artigo da pesquisadora permite notar que a falta de um reconhecimento explícito entre seus apontamentos e certas correntes teóricas direcionadas ao artifício autoficcional em nada deixa a dever para o entendimento da relação entre autobiografia e ficção nos romances escolhidos, embora seu texto possa, logicamente, despertar o interesse de outros pesquisadores pela relação de Belattin com a autoficção. Ao enfatizar o lugar ocupado pelo hibridismo genérico na contemporaneidade, as formulações de Olmos juntamente a outras pesquisas de mesmo enfoque indicam que, talvez, o grande desafio a ser vencido pela autoficção seja precisamente o de classificar o que por si só constitui-se transgressor.

 

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[recebido em 8 de maio de 2013, novamente submetido e aceite para publicação em 9 de novembro de 2014]