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Etnográfica

versão impressa ISSN 0873-6561

Etnográfica v.12 n.1 Lisboa maio 2008

 

Maria José Fazenda

Dança Teatral – Ideias, Experiências, Acções

Oeiras, Celta, 2007, 202 páginas.

 

O Livro de Maria José Fazenda, Dança Teatral – Ideias, Experiências, Acções, resulta de um trabalho de investigação desenvolvido no âmbito da sua dissertação de doutoramento, o que  constitui um primeiro atributo positivo desta obra. Sabemos que, muitas vezes, é com suspeita que se recebem este tipo de livros. Tal se deve, com certeza, à pouca expectativa que entre nós geram as teses de doutoramento e outras, seja porque os temas da academia – nas ciências sociais – pouca pertinência costumam ter em relação à realidade da criação e produção artísticas contemporâneas, seja pelo jargão académico, mais conforme às penumbras das salas sombrias das universidades, seja ainda pela menos-valia do seu conteúdo supostamente investigativo. Esta  tese que agora aparece com o título Dança Teatral – Ideias, Experiências, Acções é a negação de tudo isto: a sua linguagem é clara e precisa, a escrita é solar e o trabalho resulta de facto de uma investigação com resultados.

Foquemo-nos um pouco mais nesta última característica para realçarmos a importância que esta obra terá para a ­antropologia e para a dança. Na verdade, a sua importância decorre do facto de estarmos perante uma prova, no sentido filosófico e epistemológico que o termo encerra.  ­Citemos, a este propósito, uma obra de Fernando Gil, cujo título é Provas,eque, coincidentemente, resulta de uma lição de filosofia  onde sobre a natureza da prova. Diz o filósofo que esta “comporta uma vertente objectiva (os procedimentos de facto, por exemplo os dispositivos experimentais) e uma vertente subjectiva (o grau do assentimento, ‘a crença’ que aqueles procedimentos são susceptíveis de provocar), a qual se desdobra em problemas próprios”.[1] Ora, ao confrontarmos o trabalho da Maria José Fazenda ao longo destas 202 páginas, é este guião da prova que surge como um índice substantivo. A verdade objectiva está presente no trabalho de investigação, experimentação de hipóteses e confronto com outras teses, e a vertente subjectiva está presente na crença na dança teatral como uma dança que é uma actividade, em que os principais intervenientes – bailarinos e coreógrafos – usam o corpo para estabelecer modelos de interacção (domínio das vivências sociais) e dar visibilidade a ideias, a valores e a símbolos (domínio das expe­riências culturais).[2]

Como acontece com qualquer prova, o seu enunciado final tem tendência a constituir-se em enunciado com vista à conversão pela argumentação do maior número de receptores, até atingir um auditório ­universal conforme as teses de Chaïm Pereleman sobre retórica e argumentação.  Simultânea­mente, constitui-se como um corpus cuja estabilidade o eleva à categoria de compêndio.

Dança Teatral – Ideias, Experiências, Acções estabilizará para os próximos tempos um conjunto de valores e de prerrogativas das quais eu gostaria de destacar três. A primeira é a estabilização de um conjunto de conceitos operatórios para o universo dos falantes da língua portuguesa, realizada a partir do cruzamento da antropolgia com a terminologia e com a coreografia. Com ela, podemos agora usar, sem inibição, conceitos como dança teatral, dança social, dança ritual, peça, coreografia, projecto, ballet, performance, dramaturgia, vocabulário e alguns outros mais. A estabilização epocal destes conceitos é  essencial  para o ensino da dança, para a coreografia e para a crítica e constitui-se como um dos grandes contributos desta obra. Um segundo aspecto que destaco é o esclarecimento sem reservas da distinção entre a dança teatral e a dança social, em que a primeira é um universo  de representações culturais explícitas e de auto--reflexividade e, a segunda, a dança social, é o lugar em que as emoções, as identidades e os valores se actualizam e o sentido da comunicação e de grupo se experienciam. Para quem distingue as práticas culturais entre as que são de entretenimento e as que – supostamente – o não são, Maria José Fazenda sustenta, a meu ver,  que ambas podem entreter, existindo uma inversão de hierarquia desta prioridade.

O terceiro aspecto, que decorre do privilégio de a autora conseguir reunir duas dimensões da prática de dança – foi professora de técnica de dança clássica, bailarina e crítica e é há muito antropóloga –, tem a ver com a demonstração da necessidade de recusar apenas a dimensão impressionista na recepção de um qualquer espectáculo de dança teatral, porque esta é, enquanto prática cultural, complexa, com códigos com práticas de incorporação, muito mais do que um acto de um corpo ou corpos espontâneos ou agindo naturalmente.

A análise do percurso criativo de três coreógrafos exemplificativos da dança teatral contemporânea – Merce Cunningham, Bill T. Jones e Francisco Camacho – ocupa uma parte substancial desta obra. Nela, a autora ousou sair do campo da antropolgia para o da história da dança e o dos estudos culturais, resultando numa avaliação multidisciplinar particularmente rica da explicitação das obras destes coreógrafos. Num universo de centenas de nomes passíveis de serem estudados e explicitados, a escolha destes três era um risco. Mas, exactamente por causa da abordagem multidisciplinar, o resultado é uma história de três coreógrafos de ruptura, fundamentais para se entender  a relação da história da dança  com a  história cultural ocidental do século XX. Porque não foi por acaso, devemos enunciar brevemente os critérios que a  autora escolheu para seleccionar estes três coreógrafos: por serem criadores de gerações diferentes, permitindo assim entender as rupturas, as influências, as transposições – se as havia – de linguagens e de técnicas de uns para os outros; por terem concepções diferentes da dança e dos processos criativos; e, finalmente, porque pelas suas diferenças, estes três coreógrafos permitem à autora abordagens metodológicas diversas, cada uma das quais adaptável ao objecto de estudo.

Sumarizando o estudo de Maria José Fazenda sobre estes três coreógrafos, na leitura que deles faço, permito-me afirmar que o entendimento que fica para a história da dança é o seguinte: Merce Cunningham actualiza a democracia formal da dança, bem como as suas funções,  ao desieraquizar os estatutos dos bailarinos no interior da companhia, ao descentrar os lugares de representação no palco, seguindo o preceito de Einstein de “Não há pontos fixos no espaço”, ao utlizar para muitas obras a metodologia da escolha e da composição aleatória, ou decorrente da interpretação dos hexagramas Hi Ching e, finalmente, ao recorrer, de forma inovadora como metodologia,  à parceria e à ligação com outras artes – música, vídeo, artes plásticas – e outros criadores, sobretudo, John Cage, Charles Atlas e Robert Rauchenberg. Na história da dança que a autora realiza nesta obra, Merce Cunnigham aparece como o clássico fundador, a rectaguarda da dança contemporânea ocidental do século XX. É justo e prova-o.

Bill T. Jones, por sua vez,  aparece nesta narrativa como o coreógrafo portador da utopia social, provavelmente o último. Para estudar a obra deste criador Maria José Fazenda envereda – à boa maneira dos estudos culturais –  pelo estudo da sua biografia. Uma biografia política e social, de um afro--americano portador de HIV, abordando a sua relação com os textos da literatura negra, com a história da escravatura e do movimento anti-esclavagista, sublinhando a importância da emoção e do domínio do afectivo, explícitos nas suas criações. Por último, estuda os textos de Jones, curtas narrativas, espécie de aforismos que constituem a moldura deste investimento utópico para o mundo – como ele gostaria que fosse – através da arte e, em particular,  da dança. Vale, a este propósito, citar um dos mais belos e pertinentes textos alguma vez escrito por um coréografo sobre a utopia: “Uma das coisas que agora mais me interessa é a noção de ‘nós’. O que é que signi­fica ser uma pessoa que foi rebelde, que algumas vezes também se sentiu insegura e zangada com a sociedade e que agora tenta encontrar uma forma de afirmar um ‘nós’ que não é sentimental, que não é fascista, mas que possa cruzar-se com aquilo que fazemos: poesia, beleza e, também tristeza. [...] Talvez seja apenas nas artes que consigo realmente encontrar a política que procuro: uma visão de poesia, mas que não é ligeira, é tenaz, forte. É a isto que me refiro quando falo do ‘nós’. Quase desisti de pensar no mundo, mas agora voltei a agarrá-lo e procuro reflecti-lo tal como gostaria de o ver”.[3]

Temos assim uma clara assunção política da arte da dança teatral, que permitiu à autora convocar para os capítulos relacionados com este coreógrafo a moldura social e artística da década de 1960, em Nova Iorque, e o trabalho pioneiro dos bailarinos, coreógrafos e artistas relacionados com a Judson Church. Desta maneira, a moldura ou, para ser antropolgicamente preciso, o contexto, permite compreender a expressão de Maria José Fazenda  quando afirma que, para Bill T. Jones, “a experiência da vida é o coração da própria arte” e entendê-la na sequência de uma explicitação do percurso criador do coreógrafo, afirmação contrária a qualquer opinião sem argumentação a priori.

A investigação sobre o contexto reforça--se também no caso de estudo – assim o devemos chamar – do coreógrafo ­português Francisco Camacho, o último coreógrafo seleccionado pela autora de entre um conjunto de coreógrafos do movimento criado no final da década de 80, a que se convencionou chamar nova dança portuguesa. A sua escolha é justificada porque este coreógrafo representa, por um lado, aquelas que são as características deste movimento – ruptura com o Ballet Gulbenkian, ruptura com os modos de produção das companhias de reportório, ruptura de linguagens, ruptura de técnicas de formação – e, por outro lado, é um coreógrafo-bailarino que descontrói, de um modo mais intuitivo que programático, uma certa mitologia nacionalista personificada em figuras da história de Portugal descritas geralmente através de narrativas míticas. Para tratar e explicitar a origem da especificidade de Francisco Camacho, a diferença das diferenças, para citar Boaventura de Sousa Santos, a autora convoca todo o contexto da produção da dança em Portugal, os agentes – o ACARTE, o Expresso, o pioneirismo da Paula Massano –  e a sua própria expe­riência como bailarina. Fá-lo utlizando duas das obras de referência deste criador – O Rei no Exílio (1991) e Nossa Senhora das Flores (1992) –, concluindo que esta especificidade se traduz na forma de combinação e recombinação como este autor cria o património legado de acordo com as suas decisões e interesses, a sua história pessoal, a sua experiência e a especificidade do contexto em que desenvolve o seu trabalho.

E assim se conclui esta prova com mérito e com credibilidade, por força da inteligibilidade da demonstração feita. É desejável que o mesmo tipo de investi­ga­ção e demonstração se faça para a dança depois destes artistas.

António Pinto Ribeiro

 

[1] Cf. Gil, Fernando – Provas. Lisboa, INCM, 1986, p. 11.

[2] Cf. Fazenda, Maria José – Dança Teatral – Ideias, Experiências, Acções. Lisboa, Celta, 2007, p. 1.

[3] Idem, p. 148.

 

 

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