SciELO - Scientific Electronic Library Online

 
vol.26 número3Surras, pisas e coças: práticas familiares de criar pessoas em Canto do Buriti, Piauí, Brasil1921: crise, etnografia e profecia índice de autoresíndice de assuntosPesquisa de artigos
Home Pagelista alfabética de periódicos  

Serviços Personalizados

Journal

Artigo

Indicadores

Links relacionados

  • Não possue artigos similaresSimilares em SciELO

Compartilhar


Etnográfica

versão impressa ISSN 0873-6561

Etnográfica vol.26 no.3 Lisboa dez. 2022  Epub 30-Jan-2023

https://doi.org/10.4000/etnografica.12517 

Artigo Original

As idas e vindas da “justiça”: as mães e os dilemas da intimação em ações de reconhecimento de paternidade

Comings and goings of “justice”: mothers and the dilemmas of subpoenaing in paternity lawsuits

Ranna Mirthes Correa1  , Contextualização, análise formal, investigação, Metodologia, visualização, Redação do Rascunho original, Redação - Revisão e edição
http://orcid.org/0000-0002-4128-6610

1Programa de pós-graduação em Antropologia Social, Universidade Federal do Rio Grande do Sul (PPGAS/UFRGS), Brasil, rannamsc@gmail.com


Resumo

O objetivo deste texto é discutir a partir da prática do Núcleo de Promoção à Filiação e Paternidade (NPF - Alagoas, Brasil), a percepção das mulheres mães sobre a atuação do judiciário nos casos de reconhecimento de paternidade e inclusão do nome paterno no registro civil. Esta etnografia vislumbra tanto os entraves jurídicos do reconhecimento de paternidade quanto a assimetria da garantia de direitos e do acesso à justiça. O acesso à percepção das mães sobre a participação da figura paterna no cotidiano da família evidencia a mobilização de percepções específicas sobre o reconhecimento do parentesco e de outras possíveis formas de relações familiares.

Palavras-chave: mães; justiça; paternidade; família; neoconservadorismo; Brasil

Abstract

Based on the Center for Promotion of Filiation and Paternity (NPF)’s work, this text aims to explore mother’s perceptions about judicial acts in paternity lawsuits and cases for paternal name inclusion in the civil registry. This ethnographic work reflects on both the judicial obstacles of paternity recognition and the asymmetries of guarantee of rights. Accessing mothers’ perceptions about the participation of the father figure in the family’s daily life showed the mobilization of specific insights on the recognition of kinship and different possible forms of family relationships.

Keywords: mothers; justice; paternity; family; neoconservatism; Brazil

A sala de espera

A sala 10 era o destino. Ainda no térreo era possível ver muitas mulheres e muitas crianças. Bebês de colo, crianças correndo, crianças brincando. Pela porta de vidro que separava o corredor do interior da sala, o colorido dos brinquedos chamava a atenção. Pequenas cadeiras azuis indicavam também a espera dos pequenos. Carrinhos e bonecas, no chão, justificavam a caixa aberta, logo no canto. O vidro escondia o som interior do ambiente ao mesmo tempo que separava o ar frio e condicionado do calor de um dia de sol intenso na cidade.

Por vezes, um silêncio perturbador e, por outras, uma confusão de vozes. Adultos e crianças conversam, simultaneamente. Quantas mais crianças chegavam, mais as pessoas tinham motivo para conversar. As filhas e os filhos viraram colegas de brincadeira e as mães, na sala de espera, sentiram que algo as unia: suas histórias. “É a primeira vez? É DNA? Ou resultado de DNA?” As perguntas ecoavam pelas paredes. Elas seriam atendidas por ordem de chegada e por isso teriam de aguardar juntas. O fato de estarem todas em um mesmo ambiente se delineava como convite para compartilhar vivências e conhecer histórias.

Josi, Maria e Dete estavam sentadas lado a lado.1 Não demorava para que elas se interessassem pelas histórias umas das outras, e também pela minha. “Você também foi intimada?” Sem dúvida, foi a pergunta que mais ouvi ao dividir a sala com elas. Sob a pergunta de qual era o número de senha na fila de espera, elas ensaiavam uma conversa. Juntas, temiam a demora e reclamavam se perderiam a tarde toda ali. Sob a espera, a famosa “carta da juíza” também virava assunto. Era só uma questão de tempo para que começassem a falar dos seus casos, de como foram parar ali, e de seus “homens-problema”. A notícia de que “a justiça iria intimar as mães” rapidamente se espalhava entre conhecidas, vizinhas, amigas e colegas de trabalho. Muitas delas comentavam que chegaram até lá antes mesmo de terem recebido a intimação. Também falavam de seus filhos e, sempre com o celular em mãos, se juntavam para ver as fotos das crianças. Era rápida e surpreendente a identificação de uma com a outra, quando se tratava de falar mal dos pais de seus filhos, fosse lá por qual motivo fosse. E as famílias, claro, dificilmente ficavam de fora.

Entre o balcão de atendimento e a porta de entrada existia um espaço conhecido pelas funcionárias e pelos usuários como sala de espera. Mesmo não correspondendo ao imaginário do que seria uma sala, aquele local, com apenas três cadeiras e uma caixa de brinquedos para as crianças, constituía o espaço onde as mães, ao aguardarem atendimento, interagiam e conversavam sobre seus casos e suas histórias de vida. Retomo a sala de espera para dar início a esse texto não somente por ser o espaço oportuno de socialização entre elas, mas também por ter sido o lugar onde por quatro meses 2 tive contato diariamente com as mães envolvidas nos processos de investigação de paternidade para regularização do registro civil, e a análise aqui apresentada parte da minha pesquisa de mestrado.3

A minha resposta para a pergunta “você também foi intimada?” nem sempre deixava as pessoas surpresas, mas era um bom começo para uma conversa sobre a intimação. É justamente sobre a famosa carta da juíza e sobre os seus efeitos e dilemas para essas mulheres que trata este texto.

Paternidade, lei e controvérsia

O Código Civil brasileiro de 2002 concede presunção de paternidade apenas aos filhos de pais casados. Fora da vigência do casamento, o filho pode ser reconhecido de maneira voluntária ou judicial. O reconhecimento da paternidade é um ato utilizado para declarar a filiação extramatrimonial, estabelecendo a relação entre pai e filho e firmando os efeitos jurídicos dessa relação. A relação estabelecida entre o alto número de “sub-registros” (ou registros incompletos) e o direito da criança à filiação paterna (sustentado por leis específicas) criou o contexto ideal para o desenvolvimento de diversas políticas públicas que visassem a averiguação de paternidade.

A idealização do projeto Núcleo de Promoção da Filiação e Paternidade (NPF) foi iniciativa pessoal da juíza atuante na Vara de Família da região, que sempre se mostrara preocupada com os altos índices de crianças sem o nome do pai no registro em seu estado. Assim, o Tribunal de Justiça de Alagoas prevê a criação do Programa Registro Integral e do NPF, órgão centralizador das averiguações de paternidade encaminhadas pelos oficiais dos cartórios da cidade desde 2009.

O Programa Registro Integral estabelecia que os cartórios de registro civil, ao registrarem o nascimento de crianças sem o nome do pai, preenchiam o termo de alegação de paternidade e o encaminhavam no prazo de 48 horas para dar início à averiguação no NPF, localizado na sede do Tribunal de Justiça da capital. Em posse dos dados da criança e da mãe, o NPF instaurava o processo administrativo, considerando a criança como requerente, e emitia carta intimatória para a mãe comparecer ao fórum com o intuito de “tratar de assuntos de interesse da sua/seu filha/o”.

O NPF visa desburocratizar o acesso ao direito de filiação e solucionar os casos sem a necessidade de um processo judicial, com a finalidade de dar mais celeridade aos processos. Por essa razão, o órgão funcionava em etapa de conciliação realizado por psicólogas e assistentes sociais, que integravam a equipe interdisciplinar (Correa 2019). A equipe, ao realizar nas audiências um trabalho descrito como “sensibilização sobre a importância da paternidade”, visava obter o reconhecimento da paternidade, de forma rápida e espontânea, para, se possível, evitar a realização do exame de DNA e contribuir para a presença ativa do pai junto da criança.

Tanto a falta de registro civil (certidão de nascimento) quanto a ausência da filiação paterna no documento eram comumente acionadas pelos profissionais atuantes no projeto como associadas à extrema vulnerabilidade social, e como justificativa para a falta de acesso desta parte da população a políticas públicas de assistência social em todo o Brasil. Além da certidão de nascimento, os documentos necessários para o cadastro do cidadão a essas políticas são, por exemplo, o cadastro de pessoa física e jurídica (CPF), a identidade de registro civil (RG), a carteira de trabalho ou título de eleitor, e todos são emitidos a partir da certidão de nascimento. Portanto, os dois argumentos da vulnerabilização das famílias aliados à ausência do registro civil e à ausência do nome do pai eram utilizados para justificar o investimento em ações de reconhecimento paterno Brasil afora. Mas não somente. A atuação de profissionais com formação em Psicologia, por exemplo, trazia à discussão os efeitos emocionais e psicológicos na vida e no desenvolvimento das crianças, também invocados, entre outros aspectos, para convencer mães e pais da importância da inclusão do nome paterno nos registros.

Analisando a perspectiva do legislador, Fonseca (2014) observou a frequente associação da investigação judicial da paternidade a um instrumento no combate à pobreza, dado que esta condição atinge muitas famílias chefiadas por mulheres. A autora argumenta também que, subjacente aos instrumentos legais, há uma clara adoção do modelo de “sagrada família”, formada por mãe, pai e filhos, o qual orienta tecnologias de governo que têm na ação do judiciário um de seus braços importantes (Fonseca 2014). Ao mesmo tempo, a autora demonstra como essa intervenção do sistema legal faz mais do que solucionar conflitos, criando tensões, redefinindo relações e moldando novas subjetividades.

Isto implica em problematizar a necessidade da coparentalidade e a regulação das maternidades “monoparentais” e de mulheres de setores sociais mais pobres, consideradas “desviadas”, que precisam de intervenção estatal (Correa 2021). Por essa razão, destaco a relevância de rastrear esses efeitos da intimação na vida dessas diferentes mulheres.

Nos últimos anos, têm-se acentuado no Brasil as controvérsias em torno da regulação do parentesco e das relações familiares, como arena crucial de disputas nas práticas estatais (Luna e Oliveira 2019; Carrara 2015; Vianna e Lowenkron 2017). A controvérsia está justamente no conceito de família trazido pelo projeto de Lei n.° 6583/2013, aprovado na Câmara em 2015 e aguardando votação no Senado Federal, ao criar o Estatuto da Família, que reduz a unidade familiar, objeto de proteção do Estado, a casais formados por pares sexuais opostos, excluindo outras composições possíveis - o que reflete a ascensão de um novo conservadorismo brasileiro a partir da atuação de uma direita cristã baseada na ideia de que a família convencional é a resposta para toda a ordem de disfunções sociais (Lacerda 2019). Em certo sentido, o parentesco segue vinculado à lei (ainda que não se esgote nela nem a esta se reduza), dada a centralidade dos papéis para documentar relações genealógicas e a presença de políticas públicas dirigidas à família (Marques e Leal 2018).

Neste quadro pretendo, a partir da prática do NPF, discutir a percepção das mulheres mães sobre a carta de intimação e a atuação do judiciário nos casos de reconhecimento de paternidade e inclusão do nome paterno no registro civil. Mas, antes disso, avalio ser necessário conhecer melhor essas mães.

Isabela

Isabela estava acompanhada de seu irmão, Tiago, e de suas duas filhas: Milena, a mais velha, já com 16 anos, e Cora, a mais nova, de um ano e meio. O processo era referente ao reconhecimento de Cora. Isabela estava muito bem vestida, com maquiagem e cabelos impecáveis que sugeriam uma aparência tensa por estar à espera de uma audiência, e ao mesmo tempo reservada. Mesmo de longe consegui fazer essa leitura a partir de suas linhas de expressões bem marcadas na sua pele clara, e antes que eu pudesse tentar qualquer aproximação uma das assistentes sociais já estava com o seu processo em mãos e, após ter perguntado se todas as partes estavam presentes, convidou-a para entrar. Permaneci na espera e decidi falar com ela no final da audiência. Isabela me confidenciou veementemente que se recusava a autorizar a filha para realizar o exame de DNA e dizia para mim que não era obrigada já que era o provável pai que tinha dúvida, e não ela. Ainda indignada, comentou:

“Na primeira vez que estive aqui, ele tinha concordado em reconhecer a filha espontaneamente. E quando já está tudo pronto, a sua mãe que é advogada o instruiu de pedir o DNA para poder registrar, e tivemos que remarcar para hoje. Só que hoje eu fui firme lá dentro e disse que não queria fazer o exame. A moça lá dentro até chamou a chefe para tentar me convencer e [eu] disse que, se insistissem, eu iria processá-lo por danos morais, por ele estar duvidando da minha integridade e dizendo que eu me envolvi com outra pessoa além dele. Isso eu não posso aceitar. Elas insistiram, mas eu fui firme. Quando perguntaram se ele conhecia a criança, eu corri aqui fora p’ra pegar a menina. Assim que ele viu a menina, ele falou: ‘Doutora, pode preparar os papéis’, e resolveu reconhecer sem fazer o exame.” [Isabela, em relato de caderno de campo registrado no dia 5 de outubro de 2015]

Isabela já se casou novamente e Cora já chamava o seu atual marido de pai. O pai biológico da filha não a conhecia porque quando Isabela estava com três meses de gravidez, ele disse não ser mais o pai da criança e passou a ameaçá-la de morte. Logo em seguida, ela, com medo, registrou uma ocorrência. Por essa razão, assim que chegou, Isabela solicitou para que fossem atendidos separadamente, em virtude da medida protetiva que o proíbe de estabelecer qualquer contato com ela, conforme orientação do seu advogado. O pedido de Isabela, todavia, não foi atendido, com o argumento de se tratar de um processo que prioriza a garantia de direito da criança. Mesmo contrariada, foram atendidos juntos. De volta à sala de espera, conversamos:

“É a segunda vez que estou no fórum. Fui intimada, mas eu nunca quis vir. Quando apareci pela primeira vez, já saí daqui com a intimação e levei p’ra ele. Sempre tive muita relutância de vir, apesar de achar importante p’ra minha filha saber quem é o seu pai e, principalmente, porque ela pode sentir falta mais tarde. Só que agora tudo vai mudar na vida dela porque eu vou ter que explicar p’ra minha filha que ela tem dois pais, porque ela já chama meu marido de pai. Ele disse estar satisfeito em visitá-la uma vez por mês. Que tipo de pai aceita ver a filha uma vez por mês? Eu acho muito difícil ele cumprir com isso, mas vamos só ver. O pai é importante na família e na vida da criança, desde que ele só venha a acrescentar coisas boas e ajudar no desenvolvimento da criança. Quando eles estão presentes na vida das crianças só para atrapalhar, é melhor que nem tenham contato e fiquem onde estão.” [Isabela, em relato de caderno de campo registrado no dia 5 de outubro de 2015]

Larissa

Matheus era um menino de dois anos, ruivo, muito ativo e esperto, que corria no corredor do lado de fora do vidro da sala. Sua mãe corria sempre de um lado para o outro para não o perder de vista. Larissa era o seu nome. Ela era uma moça magra de estatura pequena, seus cabelos eram loiros e sua pele clara, assim como o seu filho, e aparentava ser bem comunicativa. Sem desgrudar os olhos do enérgico menino, começamos uma conversa falando sobre sua chegada até o NPF. Em seguida, revelou como foi receber uma intimação da justiça na porta da sua casa e na frente dos seus clientes.

Com uma ligeira indignação tomando conta da sua voz, Larissa declarou que havia achado estranho porque nunca fez nada de errado para que a justiça a procurasse na sua casa. Prosseguiu relatando que todos se perguntaram, naquele momento, o que poderia ser aquela intimação e por que ela a receberia. Logo em seguida, ela entrou em contato com o pai e disse que os dois deveriam comparecer ao NPF para regularizar o registro. Naquela ocasião, ele havia imaginado que ela tinha colocado o caso na justiça. Larissa, tão agitada quanto o seu filho e extremamente falante, disparou:

“Já é bem a 15.ª vez que eu venho aqui e ele nunca compareceu. A justiça tem que tomar as medidas cabíveis para que possa resolver essa situação de uma vez por todas, mas ele não pode ficar impune a essa situação. Ele está fugindo porque ele nunca quis e sabe que o filho é dele. Se ele tivesse dúvida, pelos menos ele apareceria p’ra pedir o DNA, e nem isso ele fez, ele só faz fugir.” [Larissa, em relato de caderno de campo registrado no dia 13 de outubro de 2015]

Era inevitável que conversássemos sobre o registro e, sempre atenta, escutei a fala de Larissa:

“Quando ele crescer e perguntar sobre o pai, eu vou dizer que ele não tem pai, tendo um? Eu não posso dizer isso a ele. Eu vou dizer o quê? Que o pai dele não quis ele e não quis registrar? Olha, como é que ele não vai se sentir sabendo que o pai não quis saber dele? Pelo menos ele tendo o nome do pai, vai saber que tem um. E ainda tem a escola que mais cedo ou mais tarde vai exigir, não é mesmo? Ele não é filho de chocadeira. A justiça vai ter que arrumar um jeito de ajeitar essa situação, porque ele está desobedecendo uma ordem da justiça. E é certo ele fazer isso? Do mesmo jeito que não está certo eu vir aqui todas as vezes e ele nunca comparecer. Quando eu entrar, eu vou falar tudo para a juíza, que eu tô cansada de sempre vir e nunca resolver nada. Por que não vão atrás dele também? E ele ainda está me ameaçando, dizendo que o que eu estou fazendo é caso de polícia, de ficar ligando p’ra ele dizendo que ele tem que vir para cá. E eu que preciso de polícia? Eu sei que só eu sou o suficiente p’ra ele, até mesmo porque o pai nunca quis saber do filho e eu tenho mensagens do Whatsapp que podem comprovar.” [Larissa, em relato de caderno de campo registrado no dia 13 de outubro de 2015]

Logo Larissa foi chamada e aguardei o seu retorno do lado de fora. Ao explicar a situação para a psicóloga, tanto a mãe quanto a irmã do pai de seu filho foram intimadas para comparecer no mês seguinte, já que ele se recusava a comparecer. Larissa contou que a profissional a alertou que, caso ninguém comparecesse, a defensoria pública assumiria o caso para iniciar uma investigação de paternidade, informando, inclusive, que ele poderá ser preso. Ela estava contente em não sair de lá sem nenhuma resposta. Apesar de reclamar de ter de voltar ali mais uma vez, ao menos seria para resolver a situação e, principalmente, teria a certeza de que ele seria intimado da mesma forma que ela foi.

Rebeca

Rebeca, mãe de Igor, era muito comunicativa e passava a maior parte do tempo tentando evitar que o filho quebrasse a porta de vidro e saísse correndo pelos corredores, demonstrando aparente constrangimento. Apesar de já estar ciente do resultado do exame de DNA, ela estava no fórum apenas para mostrar o filho para o pai, que já havia sido condenado a 22 anos de prisão. Ao se aproximar do balcão, a psicóloga comentou que, na verdade, não sabia o que Rebeca estava fazendo ali porque ela já sabia o resultado do exame. A profissional estava com o processo em mãos e estava ligando para a carceragem do fórum para que os agentes penitenciários trouxessem o detento. Devido ao tempo que foi condenado a ficar preso, Rebeca nos contou que ele não queria que o filho fosse visitá-lo na prisão. Rebeca claramente não concordava com o posicionamento dele por julgar importante o filho ter algum contato com o pai, pois poderia gerar futuramente uma revolta. Ainda de olho em Igor, que insistia em bater na porta de vidro, ela desabafou:

“Eu sei que é um ambiente impróprio para crianças, mas é um direito do meu filho. Ele foi condenado a 22 anos, e mesmo que ele não fique todo esse tempo preso, são muitos anos para o meu filho simplesmente não ter nenhum contato com o pai. Quando será que ele vai sair? Estou aqui porque pode ser a primeira e última vez que ele veja o filho. Nunca se sabe. Ele me perguntou porque eu tinha colocado ele na justiça e ainda disse assim: ‘Será que já não basta a minha situação Rebeca?’ Eu ainda tive que explicar que não coloquei ele na justiça e recebi a carta de intimação.” [Rebeca, em relato de caderno de campo registrado no dia 2 de setembro de 2015]

Rebeca não queria que a história de seu filho mais velho, de 18 anos, se repetisse com Igor: ele não tinha o nome do pai em seus documentos e também não queria nem saber dele porque achava que o sobrenome do pai não iria mudar a ausência dele. Todo esse relato se deu após Rebeca já ter saído da sala de audiência e, do lado de fora, depois de ter finalmente apresentado seu filho ao pai, aguardava o final da audiência. Ao sair, algemado e acompanhado dos agentes penitenciários, o pai, mesmo de longe, deu conselhos a Rebeca para que ela não deixasse nada de ruim acontecer com seus filhos, porque ele já era um exemplo do que acontecia com gente que fazia coisa errada.

“Eu não tive outra opção”: o dilema da intimação

Os casos de Isabela, Larissa e Rebeca e de muitas outras mulheres revelam tanto a indignação das mães quanto a construção de um sentimento de vergonha relativo à intimação, que as fazia sentirem-se responsabilizadas por algo que acreditavam não depender unicamente delas, que nunca teriam feito nada de errado que justificasse uma intimação judicial. Mas havia, além das intimações, também demandas espontâneas por parte das mães junto do NPF para iniciar a averiguação de paternidade. Muitas comentavam que procuraram o núcleo antes mesmo de receberem a intimação, por já terem ouvido rumores de que “a justiça iria intimar as mães”.

A discussão em torno da “famosa carta da juíza” revelava que, no momento da realização de registro sem o nome do pai, as mães já ficavam esperando pela intimação. Quando era possível obter maior aceitação dessas mães, elas relatavam que não se importaram com a intimação e que iriam procurar a justiça para solucionar o registro do filho, independentemente de terem ou não recebido a carta, por mais que também entendessem que a responsabilidade do registro incompleto não poderia ficar concentrada exclusivamente nelas. A intimação era percebida como mais uma ferramenta que iria obrigar o pai (algo que elas enquanto mães não conseguiriam fazer, independente do motivo), do mesmo modo que a convocou para comparecer e, posteriormente, para alterar o registro da criança. Assim, os sentimentos evocados nas mulheres pela intimação judicial ora se apresentavam associados a elementos de negação e indignação, ora à aceitação, não viabilizando, por conseguinte, que pudéssemos estabelecer interpretações homogêneas sobre a visão das mães no que tange à intimação.

Os casos que costumavam envolver maiores tensões, quando as havia, eram referentes às cartas de intimação e ao encaminhamento realizado pelas escolas,4 em casos de crianças mais velhas registradas antes de 2009 (ano da criação do NPF), que já tinham uma convivência com outros homens, apesar de não terem vínculo biológico.

É imprescindível considerar que as mulheres retratadas nesse texto vivem num contexto marcado por intensas desigualdades de gênero, raça, classe e geração, e seguem atravessadas por diversos marcadores sociais que se relacionam entre si. Isabela, como uma mulher branca de classe média que teve a possibilidade de receber instruções de um advogado, constrói percepções sobre a intimação diferentes das de Larissa, que apesar de também ser uma mulher branca, tem uma vivência diferente por morar em uma das periferias da cidade, e que percebia que a presença de um oficial de justiça na porta de sua casa e também do seu trabalho (ela era manicure e atendia em sua residência) poderia afastar as suas clientes. Sendo que para Rebeca, diante da inevitável intimação do companheiro que já estava preso, não havia outra alternativa a não ser comparecer e permitir o encontro entre o filho e o pai.

Na observação das audiências de conciliação, foi possível conhecer o caso de Júlia. Depois de se recusar a comparecer ao NPF pela terceira vez seguida, Júlia finalmente apareceu. Só que, desta vez, acompanhada de José, apresentado como o “suposto pai”.5 Sua postura calada durante todo o atendimento, bem como o fato de ela ter ficado quatro anos sem comparecer às intimações, despertou o estranhamento em Fernanda, a assistente social responsável pela audiência naquela manhã. A desconfiança da profissional a levou a solicitar a realização do exame de DNA, o que fez com que Júlia, antecipando o resultado negativo, revelasse a verdadeira identidade do homem que a acompanhava.

Sua decisão em pedir para que o padrinho da criança reconhecesse legalmente seu filho foi consequência das diversas intimações que ela recebeu e ignorou. Sua postura já indicava a falta de interesse em regularizar o registro da criança. O seu silêncio durante todo o atendimento refletiu sua insatisfação com aquela situação e com o processo em si. Ignorar as intimações recebidas foi a forma que Júlia encontrou para sinalizar desacordo quanto ao contato entre seu filho e alguém que lhe sugeriu o aborto. Com o comprimido em mãos, Julia decidiu cortar relações com o ex-companheiro e criar a criança sozinha, sem informá-lo sobre a gravidez.

Em outra tarde conheci Camila. A jovem expressou descontentamento em ter de comparecer ao NPF. Só estava ali por ter sido obrigada e, se dependesse dela, a situação ficaria do jeito que estava. Comentava sempre que não achava justo ter de fazer tudo sozinha por seus filhos e, mesmo assim, ser chamada para comparecer ao NPF pela falta do nome do pai, como se esse fosse um dos assuntos mais importantes na vida das crianças. Camila desabafou na sala de espera que ela sempre se esforçou muito para trabalhar e sustentar seus filhos, e a expressão “Isso é um absurdo” aparecia em sua fala por acreditar que se “matava” para trabalhar e oferecer tudo à filha (e aos outros filhos) e temia que, ao crescer(em), só valorizasse(m) a figura paterna.

Pareceu-me que o fato de ter sido intimada sem ter manifestado interesse em regularizar o registro do filho era percebido por Camila como uma ausência de reconhecimento - e uma negação - da sua capacidade de ser responsável e de cuidar dos filhos na ausência do pai. O fato de os seus dois primeiros filhos terem o registro completo com o nome do pai e, mesmo assim, não terem nenhum contato com o seu genitor contribuiu para a sua descrença no registro como documento capaz de estabelecer uma relação mais próxima entre pai e filho. No caso de Júlia, a esquiva em comparecer ao NPF estava ligada à recusa em aceitar a presença daquele homem na sua vida e na de seu filho depois da falta de apoio e sugestão do aborto.

A carta de intimação às mães despertava, em muitos casos, sentimentos de obrigação e indignação, pelo fato de as mães acreditarem que os pais também deveriam ser convocados, assim como elas foram, com vistas a não fugir das suas responsabilidades com seus filhos. Essa percepção de algumas mães se associava, com frequência, à ideia de que seria interessante a “justiça” também tomar medidas cabíveis e coercivas para resolver essa situação e evitar que os genitores continuassem fugindo do comparecimento. Nesse sentido, o sentimento de indignação remetia a uma noção de necessidade de justiça, configurando-se como uma demanda por parte das mulheres por um tratamento equânime.6 Isto apesar de o processo de reconhecimento de paternidade ter de se iniciar pela intimação materna, a partir das informações disponíveis daquelas crianças nos cartórios.

O entendimento assimétrico da intimação judicial relatado pelas mulheres que conheci também estava ligado às suas visões de que apenas a intimação, em alguns casos, não seria o suficiente para convencer o ex-companheiro a comparecer no tribunal, e a “carta da juíza” teria assim efeitos morais diferentes entre os genitores. Para muitas delas, receber a intimação era o suficiente para se sentirem excessivamente responsabilizadas pelo não registro, enquanto para alguns “supostos pais” era necessária a intimação de outras mulheres da família, como mãe ou atuais companheiras.

Ao sair do atendimento, Larissa afirmou que a justiça finalmente estaria agindo como deveria e tomando as “medidas cabíveis”, porque as profissionais haviam garantido que até intimariam a mãe do ex-companheiro para que ele comparecesse. Considerava que ele devia não apenas ser igualmente intimado, mas também obrigado a comparecer, se necessário sob prisão. De facto, uma vez que o homem escolhia não comparecer ao fórum, não havia nenhuma sanção ou punição para a sua atitude e as cartas de intimação continuavam a ser enviadas para os endereços das mães.

Já na situação de Isabela, o pai de seu filho, uma vez informado sobre a existência do processo referente à investigação de paternidade, também entendeu que a iniciativa de levar o caso ao fórum foi dela. Tais narrativas permitem pensar que a expressão “colocar na justiça” denota a clássica análise de DaMatta (1979) a respeito da representação da lei, no contexto brasileiro, como “a letra fria e dura” (punição), e não como garantia de direitos.

A esse respeito, a conversa no corredor com Rose e Judite era elucidativa:7

“Eu mesma já pensei em desistir várias vezes, em deixar p’ra lá, mas a justiça não deixa, ela vai atrás da gente. Ela liga, vai atrás e também vai até na casa da gente para saber por que a gente não veio.” [Rose, em relato de caderno de campo registrado no dia 13 de outubro de 2015]

O pai do filho de Rose estava no fórum no início da tarde. Entretanto, quando ela finalmente foi chamada para a audiência, percebeu que ele tinha ido embora. Revoltada com a atitude dele, ela mencionou tê-lo visto sair, mas não foi atrás dele por imaginar que ele iria apenas fazer um lanche na porta do fórum. Instruída pelas profissionais a esperar, caso ele resolvesse voltar, Rose ainda aguardou sem sucesso o seu retorno até ao final da tarde. Essa narrativa, assim como a de Larissa, nos remete a pensar que essas mulheres percebem a recusa dos pais em esperar pelo atendimento como um sinal de desinteresse em também participar da vida dos filhos.

Por outro lado, a recusa de muitas delas em realizar o registro dos filhos com o nome do pai, seguido pela recusa em aceitar a obrigatoriedade em regularizar o registro da criança, comumente refletia seu desacordo no convívio do pai com a criança/adolescente pós-registro. O desejo de não reconhecer o vínculo entre suas vidas, a partir da alteração do documento do filho, em alguns casos era motivado por situações que envolviam ameaças de morte, agressões físicas e psicológicas, bem como vigência de medidas protetivas em razão de ameaças (Isabela), incentivo a prática do aborto (Júlia), constrangimentos sociais e pressões familiares.

À regularização do registro, assim como à inclusão do sobrenome paterno no nome da criança, sucede a definição da pensão alimentícia e a definição da guarda compartilhada obrigatória, de acordo com a vigência da Lei n.º 13.058/2014, que deve ser vista como regra e determina que o tempo de convívio com os filhos deve ser dividido de forma equilibrada entre pai e mãe, reservando a guarda unilateral para casos específicos em que a guarda partilhada possa causar danos à criança. É imprescindível refletir sobre as possíveis implicações da obrigatoriedade do estabelecimento do novo registro, da guarda compartilhada e da convivência entre os sujeitos, para a vida dessas mães e dessas crianças, sobretudo em casos marcados por relacionamentos violentos entre pais e mães.

Recupero neste momento Josi, uma das três mulheres da sala de espera, ao nos contar que, apesar do incentivo do projeto para a regularização do registro pelo pai biológico, seu filho já reconhecia o tio dela como pai. Isabela já estava casada com outro homem e Cora, sua filha, já o chamava de pai. Isabela se preocupava em ter de avisar a ela sobre a existência dos seus dois pais: um de registro e o outro de criação. Isabela sempre relutou em comparecer ao NPF, mesmo compreendendo a importância de a filha saber quem era o seu pai, especialmente por preocupar-se com a falta que isso poderia fazer mais adiante.

Independentemente do vínculo biológico nas diversas formas de organizações familiares nas quais essas crianças estavam inseridas, a ideia em torno da paternidade era construída, também, por quem ajudava na criação e estava presente no dia a dia da criança. A ideia de paternidade registral, comprovada a partir de laços consanguíneos, não representava, necessariamente, a “paternidade” na vida cotidiana daquelas famílias.

“Mãe eu sei que ele tem”: família em questão

A preocupação das mulheres com o início do reconhecimento de paternidade através da intimação, além de estar ligada ao constrangimento de comparecer ao NPF e esperar mais uma vez pelo pai que nunca comparece, também reflete o cotidiano da família. “Mãe eu sei que ele tem” é o desfecho da fala de Larissa, por entender o desinteresse do pai em registrar o filho como reflexo do desinteresse em participar da criação e convivência com a criança. Larissa tem a autoria da expressão, mas a mesma poderia ser facilmente ouvida da boca de muitas outras mães.

Ao refletir sobre a concepção de um projeto moderno para a família, sobre o processo de construção de sujeitos de direitos e sobre as relações horizontalizadas de poder no contexto familiar, considero que esses aspectos não garantem a percepção de equidade no contexto analisado. Pelo contrário, as mães, também “sujeitos de direitos” na família, comumente se sentiam desrespeitadas por não terem tido os seus interesses levados em consideração. Simião (2016), refletindo sobre dilemas semelhantes no processo de transposição da modernidade em Timor-Leste, já lembrava que nem sempre um princípio igualitário, fundado na ideologia individualista, é suficiente para construir soluções de conflitos percebidas como equânimes. Fonseca (1995) destaca em sua clássica etnografia no contexto gaúcho - região Sul do Brasil - como, nessas extensas famílias das classes populares, os cuidados cotidianos dos filhos não se centralizavam exclusivamente nos pais, tendo os avós como figuras centrais na responsabilidade pelos filhos. Logo, a tensão existente entre o modelo de família nuclear (relação entre pai, mãe e filho biológico) e o complexo relacional trazido pelas famílias ao processo (sogras, mães, atuais companheiras, vizinhança: sujeitos que se inserem, de algum modo, na vida das crianças), não deve ser desconsiderada.

Os estudos de parentesco e família, tão caros para a Antropologia, sofreram algumas reconsiderações após movimentos críticos à sua concepção a partir dos anos de 1980. Nesse contexto, estudos ligados a novas formas de conjugalidades, outras noções de família e novas formas reprodutivas se tornaram mais frequentes, permitindo que autores como Weston (1997), Collier e Yanagisako (1987) e Carsten (2004) afirmassem que, para compreender as relações de parentesco, necessitamos transcender as relações consanguíneas, além de considerar concepções nativas de consanguinidade, parentesco e outras que se fazem pertinentes a depender do contexto de análise. Ao discutir que a biologia não constitui base imutável para o estabelecimento das relações, Carsten (2004) também destaca que a distinção entre o biológico e o social é central para a análise da cultura local de relatedness.8 Tais laços de proximidade são formados pela procriação, mas também pelos atos de cuidar e viver conjuntamente, sendo eles capazes de diluir relações baseadas no parentesco e de criar parentesco onde não exista (Carsten 2004). Do mesmo modo, nos casos aqui analisados, a convivência cotidiana, a confiança, a criação e atenção também fazem família, dispensando, desde a perspectiva de muitas mães, a atestação paternal concedida pelo Estado por meio da consanguinidade.

Ao considerarmos o estabelecimento de novas relações familiares nesse contexto, nem sempre tais relações envolvem, em primeiro plano, o pai registral, podendo figurar avós e tios como personagens cruciais na vida dessas crianças. Mesmo sendo a visão do Estado, representada pela figura do NPF, restrita aos sujeitos pai, mãe e filhos como constituição familiar, a realidade dessas crianças era um contexto marcado majoritariamente por mulheres, em que, independentemente do registro, a ausência de uma figura masculina ainda era uma realidade.9

A presença das assistentes sociais e psicólogas nos atendimentos do NPF tinha como objetivo principal a inclusão do nome paterno no registro civil, mas não somente. A partir da técnica de “sensibilização para a importância da paternidade”, as profissionais tentavam convencer tanto as mães como os pais da importância do convívio e participação contínua do pai no dia a dia dos filhos. A intenção era acionar a regularização do registro como mola propulsora para a criação de vínculos e de amor entre pai e filho. Apesar disso, as relações familiares estabelecidas no cotidiano dessas famílias normalmente passavam por diferentes atores, majoritariamente outras mulheres, enquanto a figura paterna persistia ausente.

Tais tensões entre o modelo triádico (pai, mãe e filhos biológicos) e o contexto relacional efetivo têm reflexos sobre os desejos e as expectativas de justiça das mulheres. Apesar de o modelo de conciliação contemplar a presença do pai na vida do filho (“paternidade responsável”), essa ação acabou contribuindo para que surgisse sentimento de frustração relacionado às expectativas das mães quanto ao objetivo central do processo: o reconhecimento da paternidade. Em muitos casos, as relações no contexto familiar e, principalmente, as que envolviam os pais e seus filhos, não avançavam em consonância com os objetivos do novo documento, mesmo tendo havido o estabelecimento do novo registro da criança com a inclusão do nome e do sobrenome paterno. O abandono afetivo e emocional perdurava e isso gerava mais frustração nessas mães. Nesse aspecto, “a defesa do direito da criança” como força motriz para o desenvolvimento de projetos, como o aqui analisado, pode se constituir como forma de defesa de um modelo de família que prioriza o vínculo biológico e reproduz atos que podem ser percebidos como sendo de desconsideração à pessoa das mães (Oliveira 2008).

Entre idas e vindas

A sala de espera é a porta de entrada para o NPF e recebe diariamente uma diversidade de casos. Mesmo que atenda a demandas espontâneas das mães, muitas delas chegam pela mesma razão: a carta de intimação da juíza. Entre idas e vindas ao NPF, encontros e desencontros com os pais e parentes, o reconhecimento paterno revela os diferentes significados, e também os dilemas na vida dessas mulheres. Fonseca (2014), ao escrever como a relação do cidadão com o Estado molda subjetividades diversas, indica potencialidade da etnografia para estas análises, atenta para a vida que pulsa entre a formalidade da lei e o cotidiano dessas mulheres e famílias.

Entre as idas e vindas ao fórum, a indignação de mães como Larissa, Judite, Rebeca e Rose, aparecia na percepção de que os homens (os pais de seus filhos) deveriam ter sido intimados, assim como elas. Que eles deveriam ter sidos expostos à experiência de receber um oficial de justiça na porta de casa. Mesmo que a intimação da mãe fosse o primeiro e único contato que a justiça tinha para iniciar as ações de reconhecimento de paternidade, tais atitudes eram percebidas por elas como insulto, por perceberem o tratamento dado pela “justiça” como não equânime. A lógica das mães se sustentava no argumento de pensar que, se ela foi intimada a comparecer e constantemente era lembrada sobre a importância da sua presença, nada mais justo do que a justiça também desenvolver mecanismos para garantir que o pai se fizesse presente.

A multiplicidade de sentimentos evocados em torno da intimação também estava relacionada com o fato de muitas mães se sentirem contrariadas em terem de aceitar a regularização do registro do filho, sem que desejassem estabelecer qualquer tipo de relação com o pai. A partir da lógica de defesa do princípio jurídico de melhor interesse da criança, conforme prevê a lei, essas mulheres são expostas a constrangimentos particulares, em que a ideia de “fazer a família e o estímulo à convivência familiar” que essas instituições pregam onera em especial as mulheres.

A impossibilidade de que elas, enquanto mães, se eximam da responsabilidade com seus filhos, assim como os pais fazem, traz um peso particular, ao mesmo tempo que também molda subjetividades em torno da maternidade. Com a intensificação da busca institucional pela garantia de direitos das crianças a partir da filiação, as mulheres são as primeiras a serem expostas à letra fria da lei ao receberem a carta de intimação. Já os homens “supostos pais” ocupam a posição de “procurados”: a eles a lei só cabe caso eles sejam encontrados. Enquanto isso, seguem com suas vidas sem a ansiedade de terem contato com os filhos ou mesmo de constituir família nos termos desejados pelas instituições.

O projeto NPF e os seus esforços institucionais para o reconhecimento paterno, ao objetivarem um modelo de família nuclear, constrangem e ofendem as pessoas dessas mulheres. As idas ao NPF acabam por reproduzir uma violência para uma parte significativa das mulheres intimadas, pois é pelo incômodo prático e moral, pela percepção do tratamento desigual face aos ex-companheiros, que elas percebem essa intimação e os atos decorrentes desta. No limite, a idealização do modelo familiar, constituído da relação “pai, mãe e filhos” é promotor de indignação moral, antes de promover a convivência “familiar” entre os genitores e os filhos.

Bibliografia

CARRARA, Sérgio, 2015, “Moralidades, racionalidades e políticas sexuais no Brasil contemporâneo”, Mana - Estudos de Antropologia Social, 21 (2): 323-345. [ Links ]

CARSTEN, Janet, 2004, After Kinship. Cambridge: Cambridge University Press. [ Links ]

COLLIER, Jane, e Sylvia YANAGISAKO, 1987, Gender and Kinship: Essays Towards a Unified Analysis. Stanford, CA: Stanford University Press. [ Links ]

CORREA, Ranna M. S., 2016, Procuram-se Pais: Um Estudo Etnográfico sobre Investigações de Paternidade para o Registro Civil. Disponível em Disponível em https://repositorio.unb.br/handle/10482/20968 (última consulta em outubro de 2022). [ Links ]

CORREA, Ranna M. S., 2019, “Paternidade responsável começa pelo registro: a discussão da promoção da filiação e paternidade em Maceió, Alagoas”, in Carla Costa Teixeira, Andrea Souza Lobo e Luiz Eduardo Abreu (orgs.), Etnografias das Instituições, Práticas de Poder e Dinâmicas Estatais. Rio de Janeiro e Brasília: Editora E-papers / ABA publicações, 91-116. [ Links ]

CORREA, Ranna M. S., 2021, “A verdade dividida: a des(confiança) e o jogo de sensibilidades na busca pela filiação paterna”, Cuadernos de Antropología Social, 53: 103-118. [ Links ]

DAMATTA, Roberto, 1979, “Sabe com quem está falando? Um ensaio sobre a distinção entre indivíduo e pessoa no Brasil”, Carnavais, Malandros e Heróis: Para Uma Sociologia do Dilema Brasileiro. Rio de Janeiro: Editora Rocco,139-193. [ Links ]

FONSECA, Cláudia, 1995, Caminhos da Adoção. São Paulo: Cortez. [ Links ]

FONSECA, Cláudia, 2014, Parentesco, Tecnologia e Lei na Era do DNA. Rio de Janeiro: Eduerj. [ Links ]

LACERDA, Marina B., 2019, O Novo Conservadorismo Brasileiro. Porto Alegre: Zouk. [ Links ]

LUNA, Naara, e Leandro OLIVEIRA, 2019, “Apresentação dossiê - parentesco, família e diversidade: controvérsias públicas e perspectivas etnográficas”, Sexualidad, Salud y Sociedad (Rio de Janeiro) [online], 33: 200-206 Disponível em Disponível em https://doi.org/10.1590/1984-6487.sess.2019.33.11.a (última consulta em outubro de 2022). [ Links ]

MARQUES, Ana Claudia, e Natacha S. LEAL, 2018, “Introdução: alquimias do parentesco”, in Ana Claudia Duarte Rocha e Natacha Leal (orgs.), Alquimias do Parentesco: Casas, Gentes, Papéis, Territórios. Rio de Janeiro: Gramma / Terceiro Nome. [ Links ]

OLIVEIRA, Luís R. Cardoso de, 1989, Fairness and Communication in Small Claims Courts. Ann Arbor: Harvard University, University Microfilms International, tese de doutorado. [ Links ]

OLIVEIRA, Luís R. Cardoso de, 1996, “Entre o justo e o solidário: os dilemas dos direitos de cidadania no Brasil e nos EUA”, in Roberto Cardoso de Oliveira e Luís Roberto Cardoso de Oliveira (orgs.), Ensaios Antropológicos sobre Moral e Ética. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro. [ Links ]

OLIVEIRA, Luís R. Cardoso de, 2008, “Existe violência sem agressão moral?”, Revista Brasileira de Ciências Sociais - RBCS, 23 (67): 135-146. Disponível em Disponível em https://www.scielo.br/pdf/rbcsoc/v23n67/10.pdf (última consulta em outubro de 2022) [ Links ]

SIMIÃO, Daniel S., 2016, As Donas da Palavra: Gênero, Justiça e a Invenção da Violência Doméstica em Timor-Leste. Brasília: Editora Universidade de Brasília. [ Links ]

VIANNA, Adriana, e Laura LOWENKRON, 2017, “O duplo fazer do gênero e do Estado: interconexões, materialidades e linguagens”, Cadernos Pagu, 51. Disponível em Disponível em https://doi.org/10.1590/18094449201700510001 (última consulta em outubro de 2022). [ Links ]

WESTON, Kath, 1997, Families We Choose: Lesbian, Gays, Kinship. Nova Iorque: Columbia University Press. [ Links ]

1 Todos os nomes das mães e das crianças são fictícios.

2Além das conversas informais com as mães na sala de espera do NPF, a metodologia utilizada incluiu a observação da rotina de trabalho de cartório e de audiências de conciliação, a realização e análise de entrevistas, e a análise do material de campanha e divulgação de atuação do NPF.

3A análise aqui apresentada parte da minha pesquisa de mestrado. A dissertação de mestrado, intitulada Procuram-se Pais: Um Estudo Etnográfico sobre Investigações de Paternidade para o Registro Civil, foi defendida em 2016 pelo programa de pós-graduação em Antropologia Social do Departamento de Antropologia da Universidade de Brasília (PPGAS/DAN) (Correa 2016). O trabalho discute, a partir de estudo etnográfico do NPF, as percepções das profissionais e das mães sobre os sentidos do registro civil e as noções relativas a paternidade e família. Disponível em https://repositorio.unb.br/handle/10482/20968 (última consulta em outubro de 2022).

4Desde 2009, o NPF tem realizado ações em escolas e presídios através de palestras de conscientização sobre a importância do registro civil. A direção das escolas do município organizava uma lista com os nomes das crianças que tinham apenas o nome da mãe no registro e encaminhava para o NPF.

5“Suposto pai” é a forma como as profissionais do NPF se referiam aos homens indicados nos processos pelas mulheres como prováveis pais até que o reconhecimento fosse formalizado, seja de forma espontânea seja pela realização do exame de DNA.

6 Oliveira (1989, 1996) já constatara percepção semelhante na experiência judicial em pesquisa nos tribunais de pequenas causas em Cambridge. O autor aponta que apesar de o processo de mediação preocupar-se com questões de equidade entre as partes, estas não percebem o tratamento que recebem como justo, na medida em que a mediação tende a privilegiar uma visão mais voltada para a satisfação dos interesses dos litigantes em suas situações atuais, do que na avaliação dos direitos eventualmente agredidos ao longo do conflito ou da disputa.

7Judite e Rose não foram previamente apresentadas nesse texto como os demais casos. Destaco o seu comentário a respeito da intimação, para compor a análise, porque elas estavam na sala nesse dia ao lado de Larissa e expressaram suas opiniões. Ao contrário das outras mães, elas só aparecem nessa parte do texto.

8Apesar de não existir tradução literal ou exata para o conceito, relatedness está ligado à noção de “ser relacionado a”, “ser/estar relacionado”, “relacionalidade” ou “conectividade”.

9A força jurídica expressiva da regulamentação do vínculo socioafetivo merece atenção. Nesse contexto, a Corregedoria Nacional de Justiça editou em 14 de novembro de 2017, dois anos após a realização da pesquisa, o provimento n.º 63 estabelecendo regras para o procedimento do registro extrajudicial da filiação socioafetiva, estipulando, entre outras matérias, a autorização do reconhecimento voluntário de paternidade ou maternidade socioafetiva de pessoa de qualquer idade perante os oficiais de registro civil.

Recebido: 08 de Janeiro de 2021; Revisado: 07 de Maio de 2022; Aceito: 02 de Agosto de 2022

Creative Commons License Este é um artigo publicado em acesso aberto sob uma licença Creative Commons