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Etnográfica

versão impressa ISSN 0873-6561

Etnográfica vol.26 no.3 Lisboa dez. 2022  Epub 30-Jan-2023

https://doi.org/10.4000/etnografica.12602 

Recensão

Maria Emanuel Albergaria, Margarida Medeiros e João Leal, Laudalino da Ponte Pacheco, 1963-1975,. Ponta Delgada, Araucária, 2021, 183 pp., ISBN: 978-989-54914-1-4

Rodrigo Lacerda1  , Concetualização, curadoria dos dados, análise formal, investigação, metodologia, redação do rascunho original, redação - revisão e edição
http://orcid.org/0000-0002-6297-4682

1CRIA - UNOVA FCSH, Portugal, rodrigolacerda@me.com


O livro é constituído por cerca de 150 fotografias do fotógrafo micaelense Laudalino da Ponte Pacheco realizadas entre os anos de 1963 e 1975. Como MacDougall (1997: 276) escreveu, “anthropology has had no lack of interest in the visual; its problem has always been what to do with it”. O dilema torna-se ainda mais complexo quando a fotografia é olhada poliedricamente através do seu “valor etnográfico, antropológico, sociológico, visual e artístico” (Albergaria 2021: 20), suscitando a indagação adicional se será possível aceder a uma das perspetivas sem usar pelo menos parte de outra.

Além das imagens, o livro inclui um texto de enquadramento biográfico, histórico e sociológico de Maria Emanuel Albergaria, que possui uma vasta experiência nas áreas da educação, património e artes, em particular no contexto açoriano, e dois ensaios de autores académicos que, a partir dos olhares formados pelas suas disciplinas e percursos profissionais, refletem sobre aquele espólio único: Margarida Medeiros, professora na Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa e especialista em teoria e história da fotografia; e João Leal, professor catedrático na mesma faculdade e antropólogo com um extenso trabalho sobre as festas do Espírito Santo nos Açores e na diáspora. A organização da obra também contou com a valiosa contribuição de Blanca Martín-Calero, da Araucária Edições, um projeto que tem vindo a desbravar novos terrenos naquele arquipélago.

Laudalino da Ponte Pacheco (1921-1998) nasceu e viveu na ilha de São Miguel, nos Açores. Filho de classes baixas, estudou até à quarta classe. Começou a trabalhar muito novo na fábrica de tabaco da Maia e lá ficou durante 51 anos, apesar de não poder realizar certos trabalhos devido a uma debilidade física numa das pernas. Laudalino compensou essa limitação através do seu interesse, criatividade e dom para a tecnologia e engenhocas e por meio do seu espírito empreendedor (tinha uma carpintaria em casa onde produzia mobiliário e brinquedos; foi vendedor de rádios enquanto representante da Philips; e era ainda distribuidor de jornais regionais e de tabaco).

Nos anos 1950, recebeu uma câmara fotográfica do irmão mais novo que emigrara para o Canadá. Começou a fotografar e não mais parou, legando um espólio de 155 mil fotografias e alguns filmes. A obra foi depositada pela família, em 2018, na Santa Casa da Misericórdia do Divino Espírito Santo da Maia, que adquiriu o material e contratou uma técnica com as competências necessárias para a sua digitalização e tratamento arquivístico. A qualidade do pequeno conjunto de fotografias selecionadas para o livro, assim como a cuidadosa e primorosa edição deste, deixa-nos sedentos de mergulhar naquele vasto mar imagético.

Albergaria (2021: 36-37) argumenta que este legado é constituído por

“documentos riquíssimos para a compreensão do território antropológico, sociológico e histórico da ilha de São Miguel, transformando a macronarrativa vigente em micronarrativas úteis para a compreensão e reflexão sobre um povo, as suas singularidades, as vicissitudes e os desafios a que foi sujeito; compõem matéria para entender o presente e melhor programar o futuro.”

De facto, apesar de os primeiros registos de Laudalino terem sido retratos para passaportes e bilhetes de identidade, rapidamente expandiu o seu olhar para a vida da comunidade, revelando a importância da fotografia como atividade económica, mas também enquanto arte social, conforme Medeiros salienta através do trabalho de Bourdieu (1965). Entre outros enfoques, as imagens incluem matanças do porco, procissões, romarias, velórios, partidas de emigrantes ou visitas destes nas festas de verão em que apresentavam e presenteavam novos fatos, penteados ou brinquedos para crianças. Como sublinha Leal (2021: 127), estas fotografias demonstram uma “distribuição desigual entre tradição e modernidade” que, contudo, talvez por causa das especificidades do medium se apresenta mais como uma justaposição do que como uma fricção daquela dualidade.

Além do emergente transnacionalismo, Leal foca ainda o seu olhar etnográfico em dois cenários: a família (incluindo a alta taxa de natalidade, mas também a elevada mortalidade infantil que se entrevê), e a matança do porco. Em relação a este enquadramento, Leal (2021: 123) reconhece nas imagens a divisão sexual do trabalho e como este evento era uma afirmação de estatuto dentro da comunidade e, por isso, um catalisador de “reiteração de laços sociais baseados no parentesco e na vizinhança”. Medeiros (2021: 42) também não resiste pontualmente a uma visão antropológica, ainda que mais geral, ao afirmar que “o ciclo da vida e da morte, desde o parto ao velório e ao funeral, passando pelo casamento, aniversários e outras festividades cíclicas, parece ser o fio condutor mais estridente em todo o seu trabalho”.

Contudo, como a citação de MacDougall no início indicia e Medeiros (2021: 45) relembra no seu texto, “apesar da inscrição do real na imagem ser incontestável […], a ideia da ‘câmara como historiador’ traz problemas de classificação e organização das imagens, precisamente devido ao seu conteúdo potencialmente, e paradoxalmente, excessivo e vago”. Nesse sentido, as fotografias são virtualmente infinitas, tanto no seu mar interior, como na curadoria da relação entre elas e na relação destas com outras imagens e imaginários exteriores. É esta teia de relações que compele Medeiros (2021: 43) a afirmar que “aquilo que nos fica na memória, como Gestalt ou forma global, não é um conjunto de imagens de pessoas, bem feitos ou curiosos, mas um autêntico mergulho na vida quotidiana dos seus ‘modelos’ ”.

Medeiros lança outras questões que inquietam o olhar: qual era o estilo de Laudalino ou a cultura visual que formava o seu foco? A autora afirma que “nas imagens de Laudalino não conseguimos encontrar um ‘rótulo’ claro e definido, o que provoca sentimentos paradoxais” (Medeiros 2021: 43), mas ao mesmo tempo advoga que “há nelas um olhar. Um olhar por vezes muito desconcertante” (ibidem: 45, itálico no original). Naturalmente, a nossa cultura visual projeta e relaciona algumas fotografias com outras culturas visuais que, muito provavelmente, Laudalino desconhecia. Medeiros menciona os retratos de Richard Avedon, as famosas imagens documentais da depressão americana dos anos 1930 ou as fotografias de Michel Giacometti. A autora acaba por ressaltar uma “dimensão sobretudo psicológica” (ibidem: 46), corporalizada, mais do que representada, nos momentos de alegria e tristeza, na luta pela vida, nos quotidianos socializantes, mais ou menos rituais, e que demonstram “uma espécie de compulsão, de paixão pela captura e transformação em imagem de tudo o que lhe interessa à sua volta. Como se a vida se processasse toda aí, nessas imagens, e o fotógrafo não pudesse separar as duas” (ibidem: 46).

O meu olhar pela breve seleção de imagens é atraído por aspetos complementares. O que me trespassa é um cuidado com o humano no pró-fílmico, isto é, uma atenção estética e ética para incluir os corpos completos e com espaço de respiração dentro do enquadramento, ainda que sem se perderem neste. As raras exceções são principalmente aqueles casos que imaginamos terem sido realizados para passaportes e bilhetes de identidade. De resto, não há cortes ou distribuição desequilibrada e, por isso, instável de pessoas. Estas estão no centro, originado um ponto de fuga no interior do quadro que, como um dedo indexical, mostra sem despojo o que é importante. Humanos e também alguns não humanos, dado que cães, gatos, cabras, galinhas e porcos fazem por vezes parte do retrato de família, frequentemente com grande destaque. Como antropólogos, é de realçar aquilo que podemos aprender com a sua técnica em termos de composição enquanto forma de relação com as pessoas.

Além disso, não se trata apenas de uma questão de olhar. A obra de Laudalino indicia uma preocupação com a encenação ou, mais concretamente, com a mise-en-scène, que é, contudo, simultaneamente enformada por uma elevada originalidade e capacidade de improvisação que desconstrói a ideia de retrato e se confunde com um instante de reportagem. São em grande parte etnoficções, já que toda a fotografia é uma pose e todo o ritual é uma reconstrução performativa. Demonstram a potência do falso (Deleuze 2015[1985]), não enquanto antónimo do verdadeiro, mas como um falso que expressa uma verdade.

Folhear este livro cuidadosa e reiteradamente é um convite para habitar por alguns momentos este lugar e este tempo de Laudalino e de São Miguel com as suas gentes e paisagens. Decerto, muito ficou por ver. Este mar de imagens clama a continuação da sua vida através do mergulho de múltiplos olhares futuros.

Bibliografia

ALBERGARIA, Maria Emanuel, 2021, “O fotógrafo da Maia” in Maria Emanuel Albergaria, Margarida Medeiros e João Leal, Laudalino da Ponte Pacheco, 1963-1975. Ponta Delgada: Araucária, 19-37. [ Links ]

BOURDIEU, Pierre, 1965, Un art moyen: essai sur les usages sociaux de la photographie. Paris: Les Editions de Minuit. [ Links ]

DELEUZE, Gilles, 2015 [1985], A Imagem-Tempo: Cinema 2. Lisboa: Documenta. [ Links ]

LEAL, João, 2021, “Os Açores dos anos 1960: as fotografias de Laudalino em contexto”, in Maria Emanuel Albergaria, Margarida Medeiros e João Leal, Laudalino da Ponte Pacheco, 1963-1975 . Ponta Delgada: Araucária , 121-127. [ Links ]

MACDOUGALL, David, 1997, “The visual in anthropology”, in Marcus Banks e Howard Morphy (orgs.), Rethinking Visual Anthropology. New Haven, CT: Yale University Press, 276-295. [ Links ]

MEDEIROS, Margarida, 2021, “Continua a viver - imagens de um quotidiano açoriano (1963-1975)”, in Maria Emanuel Albergaria, Margarida Medeiros e João Leal, Laudalino da Ponte Pacheco, 1963-1975 . Ponta Delgada: Araucária , 41-46. [ Links ]

Recebido: 21 de Julho de 2022; Aceito: 03 de Outubro de 2022

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