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Ex aequo

versão impressa ISSN 0874-5560

Ex aequo  no.46 Lisboa dez. 2022

https://doi.org/10.22355/exaequo.2022.46.05 

Article

“O PROBLEMA DO GêNERO” NA POLíTICA EDUCATIVA: DOS MARCOS INTERNACIONAIS AO QUADRO ATUAL DO BRASIL§

“The Gender Problem” in Educational Policy: From international guidelines to the current framework in Brazil

“El problema del género” en la política educativa: de los lineamientos internacionales al marco actual en Brasil

*Escola Normal Superior da Universidade do Estado do Amazonas, 69050-010 Manaus, Brasil. Endereço postal: Av. Djalma Batista, 3578 - Flores - CEP 69050-010 Manaus, Brasil. Endereço eletrônico:


Resumo

Este artigo incide sobre a questão do gênero na política educativa e tem por objetivo analisar a forma como as conceptualizações de gênero estão presentes, ao nível macro, em instrumentos de política para a educação escolar no Brasil e nos marcos de orientação internacionais. Trata-se de uma abordagem feminista que propõe um olhar crítico sobre o discurso da política pública de educação. A análise dá conta de que a igualdade de gênero, em contexto nacional e internacional, se depara com entraves macroestruturais que ainda privilegiam a educação escolar numa perspectiva masculinista e pró mercado capitalista.

Palavras-chave Gênero; sensibilidade de gênero; política educativa; Brasil; crítica feminista.

Abstract

This article focuses on the issue of gender in educational policy, and aims to analyze how conceptualizations of gender are present, at the macro level, in policy instruments for school education in Brazil and in international guidelines. It is a feminist approach that proposes a critical look at the discourse of public education policy. The analysis shows that gender equality, in both national and international contexts, faces macro-structural obstacles that privilege a masculinist and procapitalist perspective in school education.

Keywords Gender; gender sensitivity; educational policy; Brazil; feminist criticism.

Resumen

Este artículo incide en la cuestión del género en la política educativa y tiene como objetivo analizar cómo las conceptualizaciones de género están presentes, a nivel macro, en los instrumentos de política para la educación escolar en Brasil y en los lineamientos internacionales. Es un enfoque feminista que propone una mirada crítica al discurso de la política pública educativa. El análisis muestra que la igualdad de género, en el contexto nacional e internacional, enfrenta obstáculos macroestructurales que aún privilegian la educación escolar en una perspectiva masculinista y procapitalista.

Palabras clave Género; sensibilidad de género; política educativa; Brasil; critica feminista.

Introdução

Este artigo aborda a questão do gênero na política educativa numa perspectiva macro da política pública. A partir do panorama recente da política educativa brasileira, se propõe analisar a forma como as conceptualizações de gênero estão presentes em instrumentos de política para a educação escolar. A perspectiva macro da política é justificada pela influência internacional quanto às orientações ao contexto nacional, posto que o sistema internacional global e o sistema nacional têm uma relação de interação na produção de políticas (Rua 2013).

Submete-se um conjunto de documentos a uma análise discursiva e de viés crítico feminista (Bacchi e Goodwin 2016) no modo como apresentam as questões de gênero na educação. Especificamente, considero o recorte temporal das últimas duas décadas devido à emergência de instrumentos internacionais como Educação para Todos (UNESCO 2001), Agenda 2030 (ONU 2015), Estratégia de Montevidéu (CEPAL 2017), bem como as recentes mudanças na política educativa do Brasil com o novo Plano Nacional de Educação (2014/2024) e a Base Nacional Comum Curricular (2017/2018). A política pública como texto e discurso é mediada por diferentes sujeitos e contextos e, em uma abordagem atenta para as suas formas discursivas, é possível evidenciar o modo como produções de verdade e conhecimento servem ao exercício do poder (Ball 1993).

A análise do nível macro da política de educação a partir daqueles documentos tem por objetivo compreender os discursos em relação ao gênero na educação para problematizar seus pressupostos e representações. Analisar as conceptualizações do gênero implica tomar em conta processos instáveis da política nos quais os instrumentos de orientação internacional e do Brasil guardam proximidades e distanciamentos.

Para atingir o objetivo em tela, emprego a metodologia “What’s the Problem Represented to be?” (WPR) (Bacchi 1999; 2009; Bacchi e Goodwin 2016) na análise documental (Rocha e Deusdará 2005), que parte do pressuposto de que os documentos são passíveis de problematizações. A abordagem WPR de políticas incide numa análise teórica e metodológica crítica do modo como se olha para as políticas e o que se compreende a partir delas. Essa perspectiva implica o questionamento da forma como o “problema” da política pública é representado, bem como o que é deixado de fora. Como procedimento metodológico, três aspectos iniciais são utilizados para a análise dos documentos: a) a natureza de um problema social se constitui em sua descrição; b) aquilo a que temos acesso são afirmações contestáveis sobre a existência e a natureza dos problemas sociais; c) representações implícitas de problemas em propostas de políticas existentes são o ponto de partida para perguntar o que não é problematizado. Utilizo esses aspectos num processo de reinterpretação para combiná-las em quatro níveis de desdobramentos para a análise: o da pergunta; o da representação; o da problematização1 e, a partir daí, identifico um tipo de abordagem no texto da política que foi classificado em três categorias: “gênero neutro”, “favorável à mulher” e “sensível ao gênero” (Forde 2014; Sinnes e Løken 2014).

Situando o contexto: síntese das questões de gênero na política educativa do Brasil

A entrada das questões de gênero na política de educação do Brasil é muito recente e contrasta com outros espaços de reivindicação feminista no âmbito do trabalho e saúde, por exemplo. Na década de 1990, caracterizada pelas reformas educacionais influenciadas pelos organismos internacionais (UNESCO, Banco Mundial, dentre outras) e em torno da conferência mundial de Jomtien, o tema da educação das mulheres entra na agenda nacional e internacional atrelada ao discurso do combate às desigualdades sociais e erradicação da pobreza. As questões de gênero, contudo, na política de educação não foram tão expressivas. Em síntese, o Estado não via problemas de desigualdade de gênero na educação porque a considerava uma situação sanada na sociedade brasileira com base no facto de as mulheres apresentarem indicadores próximos aos dos homens quanto ao acesso à educação escolar. O caráter das políticas de educação no que diz respeito às questões de gênero as torna um aspecto subsumido à “noção geral dos direitos e valores” (Vianna e Unbehaum 2006, 409).

A partir dos anos 2000, o Plano Nacional de Educação (PNE) não apresentou ênfase na necessidade de uma atenção especial desde uma perspectiva de gênero. O PNE (2001/2010) contemplava algumas diretrizes internacionais sem preocupação com a temática. Somente a partir do governo Lula da Silva, e prosseguindo no governo Dilma Rousseff, com a Secretaria de Políticas para as Mulheres (SPM) e a Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização e Diversidade, é que emerge uma atenção mais específica e problematizadora numa perspectiva de gênero para a educação. Os Planos Nacionais de Política para as Mulheres contemplaram um capítulo específico para a educação (Rosemberg 2013; Vianna e Unbehaum 2006). Um dos destaques nesse processo foi a criação do Programa Mulher e Ciência - parceria Secretaria Especial de Políticas para as Mulheres (SPM), Ministério da Educação (MEC), Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), Fundo de Desenvolvimento das Nações Unidas para a Mulher (UNIFEM) -, que instituiu o prêmio “Construindo a igualdade de gênero” com a realização de concurso de redações e trabalhos científicos para promover a reflexão de estudantes do ensino médio à pós-graduação sobre as questões de gênero. A incorporação efetiva da perspectiva de gênero, das questões raciais, diversidade sexual e direitos humanos na educação formal através da formação de docentes da educação básica com o Programa Diversidade na Escola ocorreu em parceria com as Universidades. Ainda no âmbito do Ministério da Educação, foi instituído o Comitê de Gênero, de caráter consultivo, em 2015. O referido comitê, contudo, não teve muito tempo de atuação, e foi extinto juntamente com outros comitês, conselhos, fóruns, etc., pelo decreto presidencial Nº 9.759 de 11 de abril de 2019. As recentes mudanças nas políticas públicas, e em especial na educação, ocorreram com a crise política no país a partir do ano de 2013 com as manifestações estudantis. Devido ao crescimento dos protestos, outras pautas políticas pegaram carona no movimento, de maneira que há uma multiplicidade de leituras possíveis sobre o momento que ficou conhecido como “jornadas de junho”. Contrário a essa expressão, pelo seu não caráter de insurreição, Singer (2013, 34) afirma que “setores de classe média de centro e de direita intuíram que havia ali uma oportunidade para expressar um mal-estar difuso com a situação do país”.

Mascaro (2018) faz uma leitura marxista do contexto da crise brasileira como resultante de duas crises das formas sociais: a econômica mundial, pontuando a crise financeira de 2008, que atravessa a política nacional, e a jurídica. A crise iniciada nos Estados Unidos, causada pela bolha imobiliária decorrente dos empréstimos bancários, engendrou uma crise da forma política pelos Estados, na medida em que cobrou soluções de alto custo aos governos e mesmo à democracia. A acumulação de grandes corporações capitalistas encontrou no Brasil uma oportunidade de conquista de mercado; a barreira a superar eram os obstáculos parciais do governo petista frente ao modelo privatista e neoliberal. O direito é então reclamado pela crise. A forma de subjetividade jurídica, tanto como causante e pretensamente resolutiva da crise, confluiu contraditoriamente na gestão do impeachment de Dilma Rousseff, sem existência e comprovação de crime, e na sequência de acontecimentos até à chegada da extrema direita ao poder.

Diferentemente, a explicação do contexto da crise na leitura de Souza (2019) parte do conceito de patrimonialismo de Weber no modo como é utilizado pelo pensamento social brasileiro em autores como Sérgio Buarque de Holanda e Raymundo Faoro. Embora a noção de patrimonialismo seja complexa, sucintamente diz respeito a uma variação do tipo de dominação tradicional que se caracteriza pela existência de um quadro administrativo (idem, 221). Para o autor, o uso descontextualizado e mesmo equivocado desse conceito criou uma ideia-força em que o Estado é visto desde ‘sempre’ como poroso à corrupção, portanto, a corrupção é apenas da política. Tal visão confunde as esferas pública e privada como se apenas o Estado fosse detentor de interesses, e com isso se constrói a ideia de que a elite poderosa está no Estado, sem nunca falar da elite real que está no mercado. Essa narrativa espraiada pela grande mídia mobilizou a sociedade, especialmente a classe média, contra o Estado através de um discurso moralista da corrupção escondendo de facto interesses econômicos em torno do que foi a Operação Lava Jato2.

As abordagens dos referidos autores são mais complexas e aprofundadas, interessando aqui apenas pontuar alguns aspectos macroestruturais que contextualizam a instabilidade no país, não como um mero fenômeno social, mas sim como insistente processo instável de rupturas e rearranjos pró-mercado no qual situo as questões de gênero na educação formal.

Com a crise política, o impacto da presença da perspectiva de gênero nas políticas educacionais foi um dos aspectos mais evidentes da mudança nos rumos da política no país. O atual Plano Nacional de Educação, aprovado em 2014 (vigência até 2024), sofreu um rotundo retrocesso ao ser polemizado em torno da manipulação do discurso da “ideologia de gênero”, o que foi acompanhado por vários planos ao nível estadual e municipal de diferentes regiões do país, e, do mesmo modo, com a aprovação da Base Nacional Comum Curricular em 2017/2018, com a retirada das questões de gênero do currículo escolar.

Com o governo Bolsonaro (2019-2022), a derrocada das questões de gênero na política de educação ocorre, inclusive, com a afirmação de intervenções nos livros didáticos e perseguições a docentes3. A descontinuidade de todas as políticas educativas com perspectiva de gênero não tem representado apenas uma mudança na gestão governamental atual, mas sim a verdadeira orientação de governo que é contrária à igualdade, aos direitos humanos e sociais, e da educação sensível ao gênero.

As conceptualizações do gênero e uma crítica necessária à desigualdade na educação escolar

O Plano Nacional de Educação (PNE - Lei nº 13.005/2014) e a Base Nacional Comum Curricular (BNCC), aprovada em 2017/2018, avançaram numa perspectiva contrária a um movimento favorável à presença das questões de gênero na educação como noutras políticas nacionais.4 Isto demonstra que a política educativa brasileira avançou de maneira negativa em relação aos compromissos internacionais dos quais o país é signatário na Organização da Nações Unidas (ONU), descontinuando assim a sua postura em prol da igualdade de gênero face aos compromissos Educação para Todos: O compromisso de Dakar (2000), Educação 2030: Declaração de Incheon (2015), A Agenda 2030 para o desenvolvimento sustentável (2015) e ainda o instrumento Estratégia de Montevidéu para a implementação da Agenda Regional de Gênero no âmbito do desenvolvimento sustentável até 2030 (2017).

A partir da categoria “gênero neutro”, que torna insignificantes quaisquer disposições em relação ao gênero na educação, duas questões são colocadas em análise. Uma primeira problematização diz respeito à subjetivação do corpo, um corpo supostamente neutro e forjado subjetiva e materialmente para um ideal de “cidadão e trabalhador”5. Uma segunda problematização faz referência ao aspecto de um efeito de proximidade que a prática discursiva da expressão “erradicação de todas as formas de discriminação” (PNE 2014) constrói para as questões de gênero, pois mescla um universo de experiências de discriminação, exclusão, estigmatização e violências, como se todas as formas pudessem ser consideradas equivalentes. O mesmo pressuposto está presente nos planos de educação, onde, de maneira análoga, se afirma a prática discursiva “sem preconceito de qualquer natureza” (BNCC 2017).

A não consideração das distintas experiências das relações de gênero demonstra que as expressões “todas” e “qualquer forma” legitimam realmente todos os tipos de preconceito - discriminação, exclusão, estigmatização e violências. Em última instância, o “gênero neutro” não quer tornar o gênero invisível, como à primeira vista pode se supor, mas o contrário, porque “o gênero” em tal perspectiva implica uma “verdade” que produz o que é ser “mulher/feminino” e o que é ser “homem/masculino”.

A política de educação que supõe uma abordagem de “gênero neutro” busca evitar a problematização das desigualdades educacionais, não apenas em relação ao gênero, mas também quanto às questões étnico-raciais e sexuais. A discriminação sem sujeito discriminado não aponta para nenhum prognóstico em concreto da desigualdade educacional. Por outro lado, colocar o foco do problema na discriminação ou no preconceito direciona a atenção para o indivíduo e, assim, individualiza a capacidade de reação como força coletiva a quaisquer adversidades, como contra as barreiras que encontram na trajetória educacional. Focar o problema de gênero na discriminação e nos preconceitos ignora os processos de subjetivação e de controle dos corpos educados que a instituição escolar produz. E não nomear e situar os sujeitos discriminados em práticas discursivas como “diversidade de indivíduos” e “sem preconceitos de qualquer natureza” esvazia a singularidade/especificidade humana.

O PNE e a BNCC contrastam, assim, com a perspectiva do instrumento de política da ONUBR em comprometimento com a Agenda 2030, que desenvolveu um glossário dos termos do Objetivo de Desenvolvimento Sustentável (ODS-5) considerando as especificidades do país, em que se afirma: “o gênero é parte do contexto sociocultural mais amplo e junto com raça e etnia, ao menos no Brasil, conformam componentes de desigualdades estruturantes, onde mulheres e população negra apresentam os piores indicadores socioeconômicos” (ONU 2016, 1: 17).

Nos textos da 1.ª e 2.ª versões da BNCC estava presente a consideração em relação ao gênero, classe e a “raça”. No que respeita ao direito à educação, a 1.ª versão (16/09/2015) afirmava entre os seus objetivos:

desenvolver, aperfeiçoar, reconhecer e valorizar suas próprias qualidades, prezar e cultivar o convívio afetivo e social, fazer-se respeitar e promover o respeito ao outro, para que sejam apreciadas sem discriminação por etnia, origem, idade, gênero, condição física ou social, convicções ou credos. (Brasil 2015, 7)

A 2.ª versão da BNCC (3/5/2016) incluía nas unidades curriculares, desde a educação infantil, aprendizagens também em relação ao gênero e à sexualidade. A BNCC que foi aprovada em 2017, contudo, prefere recorrer à dimensão ampla da noção “diversidade humana” que afronta a complexidade dessa diversidade como sujeitos que tem gênero, "raça", classe social, porque esta dimensão é social, política e econômica. As disputas em torno da versão final do documento demonstraram isso ao se polarizarem entre a retirada e a permanência de expressões como “identidade de gênero e orientação sexual”. Na 2.ª versão da BNCC (3/5/2016), na componente de biologia, por exemplo, o texto deixava clara a importância de se compreender a dimensão social e biológica da diversidade humana:

Nas questões relacionadas à determinação genética do sexo é importante ponderar a diversidade presente em todos os domínios de seres vivos. Porém, é importante também o destaque para a espécie humana, mostrando que as ideias sobre sexo e gênero também são construções sociais e que a normalidade é um conceito relativo. (Brasil 2016, 603)

A mudança discursiva na última versão da BNCC (2017), com a apropriação da noção de diversidade, oculta as contradições e conflitos que envolvem as questões de gênero, classe social e “raça”/etnia. Dessa maneira, a BNCC consegue propor um currículo que se apresenta como supostamente abrangente por afirmar, com forte repetição, a oposição à discriminação e ao preconceito e o respeito pelas diferenças, mas, ao mesmo tempo, não apresenta um currículo para de facto fortalecer a sua prática na escola.

Os silêncios na BNCC apontam para o/a estudante como sujeito não palpável, sendo apenas um conceito esvaziado de realidade concreta, e a proposta de currículo6 não é problematizadora, limitando-se a um tipo de currículo explícito com base nos conteúdos propostos com o discurso do desenvolvimento de competências. O curriculum omisso silencia de facto o/a estudante como sujeito social ao impor a norma dominante da educação escolar como instituição para a preparação de indivíduos que “só” precisariam de competências e não do exercício crítico delas.

A crítica pós-estruturalista ajuda a perceber o efeito discursivo que a política quer dar ao parecer apresentar uma renovação da educação, mas limita-se a uma noção de “sujeito de muitas competências” que se ajusta aos interesses mercadológicos. As mudanças discursivas entre as duas primeiras versões e a última versão que foi homologada demonstram, assim, que a política pode retroceder em direitos ao esvaziar os conceitos e não os direcionar para a realidade social.

A despolitização da política quanto à sua tecnização (Ball 2011) é efeito de práticas neoliberais que fazem emergir com força na educação o discurso em defesa do desenvolvimento das competências. O discurso do novo gerencialismo é um dos eixos que orienta uma noção de “otimização da qualidade educativa” (Tello e Mainardes 2014), o que atinge o modo organizacional das escolas desmantelando o modelo profissional-burocrático em direção ao de regimes empresariais mercadológicos (Ball 2006, 13). O foco sobre as pessoas estipula o sucesso pela competição para que seja o esforço pessoal a alcançar a produção de qualidade e de uma “excelência” delas mesmas (Ball 2006).

As políticas de educação no Brasil acompanham desde os anos de 1990 o discurso gerencialista. Tello e Mainardes (2014) o observam nas orientações dos documentos do Banco Mundial e do Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID) para a educação secundária na América Latina. A CEPAL também fomenta a recomendação nessas bases, com mais participação do setor privado para a educação na região. Os discursos dos organismos internacionais e da iniciativa privada adentram as escolas públicas como tecnologias de educação e, ao serem defendidos pela própria escola pública, tornam a “eficácia uma tecnologia de normalização” (Ball 2011, 86).

Assim, pressupostos que focalizam o preconceito/discriminação como uma barreira à liberdade competitiva em geral e o disciplinamento para o mercado laboral querem nos fazer olhar para uma desigualdade apenas como um desequilíbrio de acesso à educação escolar. Uma vez conquistado o acesso à educação, os indivíduos, supostamente, exercitam a livre concorrência a partir de seus próprios esforços e interesses de chegar mais preparados para entrar no mercado de trabalho. Essa perspectiva ignora que o acesso não é uma conquista igualitária para todas as pessoas, bem como as trajetórias educacionais não são simplesmente equivalentes e/ou iguais, pois são marcadas por processos de subjetivação.

O instrumento “Educação para Todos” (EPT) ressalta a questão do acesso, mas no mínimo é contraditório quanto a outros aspectos nos quais a questão econômica é preponderante, como o da garantia da educação escolar nos interesses de grupos econômicos. Muito claramente, o EPT defende o desenvolvimento de uma educação para o crescimento econômico capitalista ao apontar a prioridade do financiamento privado: “Recursos financeiros novos, de preferência sob a forma de subsídios e doações, devem, portanto, ser mobilizados pelas agências financeiras bilaterais e multilaterais, entre elas o Banco Mundial e bancos regionais de desenvolvimento, assim como o setor privado” (UNESCO 2001, 8).

A interferência do Banco Mundial (BM) nas políticas de educação está focalizada em reformas da administração pública e do Estado com o objetivo de promover a “boa governança”7 (Borges 2003, 125). Tais reformas atingem a educação como resultado de ajustes econômicos, restrições no orçamento, maior incentivo ao setor privado e desburocratização do Estado (Moreira et al. 2020, 5). Com o governo de Michel Temer (2016-2018), a intensificação e o reconhecimento de tais medidas levaram a um grande golpe na educação pública do país, principalmente com a Emenda Constitucional (PEC) nº 241/20168. Moreira et al. (2020) analisam alguns documentos de orientação do BM para o Estado brasileiro, datados entre 2011 e 2019, e verificam a permanência de uma tendência proveniente dos anos de 1990 na qual a visão política sobre a educação básica é orientada com foco na pobreza e equidade, direcionando o ensino médio e superior para a iniciativa privada, e promovendo a redução do papel do Estado na prestação de serviços públicos. A análise de Krawczyk (2002) corrobora tal direcionamento ao constatar três dimensões de sustentabilidade das reformas que preocupam os organismos internacionais: a necessidade de construir alianças que possam dar sustentabilidade às reformas educacionais (dimensão política); o modelo de organização e gestão do sistema educacional e da escola, por meio da descentralização e da autonomia escolar (dimensão técnica); e como otimizar a eficiência dos recursos e maximizar o rendimento escolar (dimensão financeira). Essas dimensões emergem de maneira concreta em recomendações do BM, que avalia de maneira negativa as despesas públicas do Estado brasileiro afirmando que estas não se traduzem na melhoria da escola pública. Dentre as recomendações de “solução” está a diminuição de docentes concursados, pois estes são culpabilizados pela ineficiência da educação básica, bem como veem como “prova” de eficácia a gestão do setor privado para os serviços de educação (Ferreira 2020). Na análise de um recente relatório do BM sobre os gastos público do Brasil, Ferreira (2020) observa especificamente as estratégias para a educação e conclui que a proposta está voltada para o estímulo de mudanças fiscais sob o discurso de revisão da eficiência dos gastos, não considerando de maneira adequada o problema histórico do subfinanciamento da educação pública. Todos esses trabalhos apontam a falta de clareza e/ou a contradição do discurso desses organismos internacionais na defesa de melhorias na educação face às suas medidas que ampliam as desigualdades sociais.

Que educação e que equidade de gênero é possível vislumbrar como provocadoras de mudanças num esquema de manutenção da ordem econômica hegemônica? Práticas discursivas sobre a igualdade de gênero que não confrontam as contradições capitalistas não apontam para mudanças nas hierarquias de gênero e relações de poder. O que não é nenhuma surpresa, nesse caso, considerando a crítica feminista de como a “visibilidade” dada às mulheres pelo BM é de interesse para o desenvolvimento econômico (Labrecque 2010).

Nas estratégias e recomendações do BM sobre as questões de gênero no Brasil, no tocante à educação, não apenas são incentivadas parcerias com o setor privado, mas também reforçam a cobrança social e moral do papel materno como a única responsável pelo cuidado da prole: “Fornecer creches é também crucial para as mães, especialmente para aquelas que são forçadas a trabalhar. Creches financiadas com recursos públicos podem não ser uma opção viável ou necessariamente desejável, dado os problemas potenciais com a qualidade” (Pena e Correia 2003, 110).

Se observa, não apenas como os pressupostos e representações do gênero apontam para uma forma de olhar o problema, mas, ao mesmo tempo, como apontam a solução para o problema. Desse modo, no âmbito da política pública, a educação das meninas e mulheres é um meio para atingir outro objetivo, o da eliminação da pobreza. A incorporação da questão de gênero nas políticas tem alguns desdobramentos que, como apontam Marcondes, Diniz e Farah (2018, 40; cf. Farah 2004), “diz respeito à adoção de uma compreensão instrumental do objetivo de igualdade, em que esse não constitui um fim em si mesmo, mas um meio para potencializar outros objetivos estratégicos do Estado, como o desenvolvimento econômico e o combate à pobreza”.

O instrumento de política Educação para todos: O compromisso de Dakar (2000) (EPT) tem uma orientação política que dá visibilidade à educação de meninas e à equidade de gênero como um compromisso político. Contudo, deixa margem para a problematização das condições históricas e estruturais nas quais a desigualdade de gênero na educação é uma consequência e não a causa do problema nos sistemas educacionais, ao mesmo tempo que não observa os sistemas educacionais como espaços de poder que podem reforçar as desigualdades. Este é o contexto no qual cabe a crítica à categoria “favorável à mulher”, que considera que mulheres e meninas contribuam com as suas perspectivas, capacidades e valores específicos, porque é questionável o que é o “favorável” face à manutenção das estruturas hegemônicas que marginalizam e/ou excluem as mulheres.

Assim, os atuais instrumentos da política educativa no Brasil, por um lado, afastam-se de orientações internacionais mais progressistas em prol da igualdade de gênero e, por outro, alinham-se numa perspectiva da educação com uma finalidade empresarial procapitalista.

Uma consideração sobre o “sensível ao gênero” e a difícil incorporação da igualdade de gênero na educação escolar

A partir da categoria “sensível ao gênero”, as problematizações dos pressupostos com foco nos “entraves ao empoderamento” (Agenda 2030 - ONU 2015, 4) e à “autonomia e aos direitos das mulheres” (Estratégia de Montevidéu para a Agenda Regional de Gênero - CEPAL 2017, 9-10) possibilitam uma ampla discussão sobre a perspectiva do empoderamento, o que guarda relação com a crítica às reformas educacionais enquanto políticas que podem provocar mudanças na vida das mulheres ou reforçar as desigualdades de gênero.

Outro campo de problematizações é o que possibilita discutir especificamente a instituição escolar como um espaço em que há “discriminação e violência de gênero” (Declaração de Incheon) e qual o lugar que o “sensível ao gênero” ocupa em sala de aula.

A discussão teórica sobre o empoderamento é ampla e complexa. Na literatura clássica e no pensamento social brasileiro, a abordagem focada sobre o patrimonialismo - na concepção weberiana - envolve a relação público e privado, o que remete ao processo da dominação masculina e a sujeição da mulher. A ênfase dessa análise percebe no sistema familiar o lugar da regulação política e econômica que incide sobre o patrimônio e a sexualidade feminina sob a dominação do patriarca. Aguiar (1997, 172), em análise sobre o patriarcalismo como sistema de poder, dialoga com a abordagem weberiana para uma crítica feminista onde observa a ausência explicativa das relações de poder entre mulheres e homens “que repartem entre si esta autoridade sobre os demais membros do grupo doméstico”. A autora destaca que a consideração da “dimensão de conflito e resistências femininas” enriqueceria a literatura clássica e do pensamento social brasileiro sobre a questão da dominação masculina (Aguiar 1997, 188).

Foucault é particularmente interessante para as análises feministas das relações de poder e implicações sobre o empoderamento feminino. O poder deve ser considerado “como uma rede produtiva que atravessa todo o corpo social muito mais do que uma instância negativa que tem por função reprimir” (Foucault 1989, 9). Sua análise não está centrada em uma instituição e o seu entendimento de poder como “relação de força” deu apoio às discussões sobre “o pessoal é político”, a “internalização da ideologia patriarcal pelas mulheres” e sobre a “criação de ‘corpos domesticados’ femininos” (Sardenberg 2018, 19), em que a noção de resistência se torna significativa em diversas abordagens.

A complexidade em torno desse conceito ampliou as práticas discursivas e concorrentes de como as políticas de gênero avançariam ou teriam bloqueado nesse processo. Na Plataforma de Pequim (ONU 1995, 149), a compreensão conceitual exige mudanças estruturais ao nível da política e da sociedade ao afirmar que: “O empoderamento da mulher (...) consiste em realçar a importância de que a mulher adquira o controle sobre o seu desenvolvimento, devendo o governo e a sociedade criar as condições para tanto e apoiá-la nesse processo”. E a ONU Brasil, no glossário dos termos do Objetivo de Desenvolvimento Sustentável (ODS-5), acrescenta a seguinte continuação: “de forma a lhes garantir a possibilidade de realizarem todo o seu potencial na sociedade e a construírem suas vidas de acordo com suas próprias aspirações” (ONU 2016, s.p.).

A Agenda 2030, em tal alinhamento conceptual, apresenta dois objetivos muito significativos no âmbito das orientações das políticas internacionais e nacionais, quais sejam, o objetivo 4 - “Assegurar a educação inclusiva e equitativa e de qualidade, e promover oportunidades de aprendizagem ao longo da vida para todos” - e o objetivo 5 - “Alcançar a igualdade de gênero e empoderar todas as mulheres e meninas”. Alinhada com esse instrumento, a Estratégia de Montevidéu (CEPAL 2017, 9) apresenta três categorias que orientam as políticas públicas para o contexto da América Latina e Caribe, dentre elas, “as dimensões críticas para a igualdade de gênero e a autonomia das mulheres tematizadas em direitos”, categoria na qual se encontra alguma atenção mais específica para a educação dos direitos sexuais e reprodutivos. É sintomático que a Estratégia de Montevidéu considere a educação para a igualdade de gênero com a especificidade de uma “educação sexual integral” (CEPAL 2017, 10). A dificuldade em torno do debate recente das políticas de educação sobre as questões de gênero na escola passou principalmente pela dimensão de temas como sexualidade, identidade sexual, aborto, dentre outros, nesse âmbito de discussão. Apesar dessas questões figurarem como recentes nas atuais reformas educacionais, como as do Brasil, a presença histórica da igreja católica e de igrejas evangélicas nos rumos da política educativa é desde sempre um fator de desequilíbrio junto com os setores mais conservadores quando se trata das temáticas de gênero e sexualidade.

Nos documentos da política em análise, autonomia e empoderamento são pressupostos convergentes na categoria “sensível ao gênero” e implicam que as políticas de educação apontem ações concretas na escola. Há um conjunto de fatores que devem ser levados em consideração onde a instituição escolar e as relações de gênero ao nível micro estão envolvidas. Do mesmo modo, é necessário situar a política econômica e o papel da governança estatal, portanto, das relações macroestruturais. Nesse contexto, se torna importante evidenciar como o empoderamento é instrumentalizado quando a política de educação se torna cada vez menos uma política social, e cada vez mais um negócio para empresários da educação.

Morley (1995) analisa o modo como o conceito de empoderamento foi usurpado pela política da Nova Direita9 e o tornou uma estratégia do discurso do gerencialismo dos serviços públicos com impactos na educação. Para a autora, a transferência de micro práticas para a mudança macrossocial permanece uma problemática no discurso do empoderamento. O seu questionamento é: o empoderamento é para que finalidade? (Morley 1995, 2). A crítica da autora aponta um entendimento de visões concorrentes e pouco teorizadas sobre o conceito, sendo “para alguns, um exercício cognitivo, com o objetivo de promover benefícios psicológicos; para outros, o objetivo é sociopolítico, com implicações materiais e mudanças na realidade social. Muitas vezes é reduzido a um behaviorismo simplista, buscando uma mudança pessoal descontextualizada socialmente” (idem, 2)10. Ao se apropriar desse conceito, a Nova Direita também pode ter como meta a transformação social, mas com uma base de valor que concentra a atenção na agência individual e não nas estruturas sociais, defendendo assim a autossuficiência e ignorando formações sociais como classe, gênero e “raça”/etnia. Morley (1995, 3) aprofunda mais a crítica e afirma que esse empoderamento, que parece libertador, é um discurso normalizador ou ainda parte da ideologia de que os poderosos são os que carregam o fardo social e econômico dos menos poderosos.

É plausível problematizar, nesse sentido, que o entendimento de empoderamento nos documentos de política internacionais consideram de maneira muito próxima tais pressupostos, uma vez que a interferência de grandes grupos de interesses econômicos nos rumos da política de educação não aponta para propostas de mudanças globais, mas sim de adaptações globais. Os discursos fazem referência a questões pertinentes da desigualdade de gênero, mas paradoxalmente estão afirmando um modelo de educação que se ajuste cada vez melhor ao modelo de produção da política neoliberal.

A efetivação da igualdade de gênero e o empoderamento das mulheres e meninas dará uma contribuição essencial para o progresso em todos os objetivos e metas. Alcançar o potencial humano e do desenvolvimento sustentável não é possível se para metade da humanidade continuam a ser negados seus plenos direitos humanos e oportunidades. Mulheres e meninas devem gozar de igualdade de acesso à educação de qualidade, recursos econômicos e participação política, bem como a igualdade de oportunidades com os homens e meninos em termos de emprego, liderança e tomada de decisões em todos os níveis. (ONU 2015, 8-9)

O excerto acima da Agenda 2030 é abrangente e denota uma mudança discursiva para com o gênero, mas dentro do modelo político e econômico já existente, o que também se poderia ler como um treinamento das mulheres para o mercado. As reformas educacionais que consideram o empoderamento feminino precisam ser provocadas em seus pressupostos e representações do problema no que tange ao gênero, se quisermos perceber que proposta de transformação social está em causa. O espaço para a mudança na vida das mulheres, construído por práticas discursivas e heterogêneas de empoderamento na e pela educação, deixa dúvidas do quanto é palpável uma sensibilidade ao gênero dentro da perspectiva de autonomia, autossuficiência, autogerenciamento dos indivíduos sem considerar as contradições das relações macropolíticas e da necessidade de se aproximar mais dos processos de subjetivação nos contextos escolares.

O caráter neoliberal de instrumentos internacionais como o Educação para Todos (EPT), a Agenda 2030, entre outros, limita o alcance de uma perspectiva transformadora, uma vez que atrela a educação aos esquemas de interesse do capital. Os conceitos presentes nesses documentos devem ser “examinados com base nas políticas globais definidas pelos organismos internacionais para os países pobres (BIRD, PNUD, BID, UNESCO, UNICEF)” (Libâneo 2012, 18). Tais políticas limitam a aprendizagem a uma visão instrumental do conhecimento para atender a necessidades mínimas e instrumentalizam as políticas sociais com objetivos econômicos (idem, 19ss.). E se a educação é, desse modo, uma finalidade para o mercado, como a igualdade de gênero é construída por uma educação “sensível ao gênero” que prescinde da sensibilidade de uma educação humanística como um meio para o desenvolvimento humano?

A elaboração dos marcos internacionais não problematiza as relações econômicas desiguais e o jogo de interesses entre os países. É preciso tocar na incômoda discussão das reformas capitalistas e no modo como produzem as decisões políticas provenientes de um campo predominantemente classista, branco e masculino. Nesse contexto, o questionamento das práticas discursivas do “sensível ao gênero” ao nível dos marcos políticos, como o da Agenda 2030 e os das Conferências de Educação, aponta para uma contradição enunciativa. Essa contradição está na maneira como suas orientações apontam para uma espécie de hierarquia horizontal, no sentido de afirmar uma noção de “iguais, mas separados/as”. Isto se reflete no facto de que a educação formal não leva necessariamente as mulheres aos mesmos resultados que os homens, o que aponta para a existência de muitos outros fatores que não são considerados como problemas, porque a desigualdade de gênero na educação perpassa um conjunto complexo de questões que a política tenta simplificar.

Falta adentrar efetivamente o mundo da educação escolar, a Estratégia de Montevidéu, especificamente, que parece um instrumento abrangente na abordagem para as políticas públicas para as mulheres em áreas sociais, políticas e econômicas. Contudo, a educação escolar não tem destaque nenhum nesse documento e nada que seja referente a desigualdade de gênero na educação. Isso é sintomático das demandas na região, como apontado acima sobre as reformas educacionais em matéria de gênero na América Latina. O instrumento da Estratégia de Montevidéu identifica a educação como um dos setores da economia em que o nó estrutural da divisão sexual do trabalho precisa ser transformado, mas não tem nenhum desdobramento específico para chamar a atenção para o contexto escolar sob nenhum aspecto. Das 74 medidas de orientação para políticas de direitos das mulheres, nenhuma considera a educação escolar.

Já o instrumento Educação 2030: Declaração de Incheon aponta para aprendizagens sensíveis ao gênero, considerando a formação de docentes e o ambiente da escola:

Reconhecemos a importância da igualdade de gênero para alcançar o direito à educação para todos. Dessa forma, estamos empenhados em apoiar políticas, planejamentos e ambientes de aprendizagem sensíveis ao gênero; em incorporar questões de gênero na formação de professores e no currículo; e em eliminar das escolas a discriminação e a violência de gênero. (UNESCO 2016, 2)

O excerto acima apresenta o discurso do reconhecimento, o que é positivo, mas falta avançar na sua concretização. Repensar a dimensão institucional da educação exige que ela seja objeto/objetivo de transformação social, porque a escolarização é um processo de genderização, racialização, etc. A presença do discurso sensível ao gênero nos marcos internacionais, portanto, não vislumbrou ainda uma perspectiva feminista crítica da educação, e não o fará enquanto estiver apontando para o progresso capitalista e não para as mulheres como sujeitos históricos.

Considerações finais

A presente análise buscou demonstrar como a atual política educativa no Brasil em relação ao gênero tem relações de distanciamento e de aproximação com as orientações de instrumentos internacionais que tocam na igualdade de gênero no contexto educacional. As mudanças no quadro atual da política brasileira apontam para uma maior evidência de uma perspectiva mercadológica da educação, na qual as questões de gênero, classe, “raça”/etnia não são privilegiadas. Se, por um lado, a defesa pela igualdade de gênero é um horizonte de alento pautado pelos organismos internacionais, por outro, a problematização dos aspectos macroestruturais das relações econômicas e que interferem nas políticas de educação nacionais é ainda um assunto espinhoso e incômodo.

Para que a desigualdade de gênero na educação seja seriamente um comprometimento nacional é preciso superar o espectro antidemocrático vigente e que sufoca a política pública em vários setores sociais. É necessário, fundamentalmente, insistir na discussão escolar em torno das relações sociais de gênero pela crítica feminista e resistir às práticas nefastas da negação da igualdade e direitos de meninas e mulheres na sociedade como um todo. Face ao contexto da história presente, portanto, se faz mister questionar sobre uma educação sensível ao gênero para alertar sobre os impactos que o atual quadro das reformas educacionais brasileira terá na escolarização das próximas gerações de mulheres e homens na sociedade.

1Os níveis de análise da metodologia WPR são orientados por um conjunto de perguntas como procedimentos da abordagem: Qual é o “problema” do gênero na política de educação? Quais são os pressupostos ou suposições subjacentes à representação do problema? Como surgiu essa representação do problema? Quais os efeitos discursivos, subjetivos, vividos, que são produzidos por essa representação? Onde estão os silêncios em relação ao gênero na política de educação? Qual o curriculum omisso? Como e onde foi difundida, disseminada e defendida a representação do problema? Como tem sido interrompida e/ou substituída?

2Conjunto de investigações federais de crimes de corrupção, gestão fraudulenta, etc., iniciadas em 2014 e finalizadas em 2021. A Operação Lava Jato desencadeou uma série de procedimentos controversos na esfera jurídica, tendo alguns dos seus efeitos arbitrários sido anulados, como o caso da prisão do ex-presidente Lula da Silva.

3A então Ministra Damares Alves, em parceria com o MEC, anunciou a criação de um site para a denúncia de docentes que abordassem questões de gênero em sala de aula. Ver notícia do Jornal Nacional da Globo (20/11/2019), disponível em https://g1.globo.com/jornal-nacional/noticia/2019/11/20/governo-cria-canal-para-denuncias-sobre-ocorrencias-em-escolas.ghtml [Consultado em 10/01/2020].

4A prerrogativa do tema de gênero na educação escolar está presente, por exemplo, em legislações como a chamada Lei Maria da Penha, que qualifica a violência contra a mulher.

5Parte-se de um dos princípios da educação na Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional, que o afirma como “exercício da cidadania e qualificação para o trabalho” (Brasil 1996, 7).

6A BNCC não se define como uma base para propor um currículo comum e sim uma base de competências para influenciar os currículos que devem ser elaborados pelas redes de ensino e instituições escolares. O conceito de currículo e o seu entendimento na BNCC têm gerado muitos debates e controvérsias. Para uma análise crítica dessa questão, ver Macedo 2018.

7O conceito de governança diz respeito “à maneira pela qual o poder é exercido na administração dos recursos econômicos e sociais do país, com vistas ao desenvolvimento” (World Bank 1992, p. 1, apudBorges 2003, 125).

8O Projeto de Emenda Constitucional Nº 241/2016 (PEC 241) foi proposto no governo Michel Temer (PMDB) e consistiu no congelamento das despesas do Governo Federal por 20 anos com os valores corrigidos pela inflação. As áreas da saúde e educação são fortemente afetadas por essa medida, porque são áreas nas quais as despesas historicamente crescem acima da inflação. As metas do Plano Nacional de Educação, por exemplo, não podem ser cumpridas, dado que requerem investimentos necessários para a realização das suas estratégias que, ao final, estão comprometidas com os limites impostos pela referida PEC.

9O termo Nova Direita - usado inicialmente para descrever as administrações de Thatcher e Reagan - se refere particularmente a mudanças na política social sustentadas pela transição dos valores das relações humanas e do bem-estar para uma economia de mercado nos serviços públicos (Morley 1995, 8).

10No original: “For some it is a cognitive exercise, with an objective of promoting psychological benefits, for others the aim is socio-political, with material implications and changes to substantive social reality. Often, it is reduced to simplistic behaviourism, seeking socially decontextualised personal change” (Morley 1995, 2).

Agradecimentos

A autora agradece à direção da Escola Normal Superior da Universidade do Estado do Amazonas, Brasil, a dispensa de serviço letivo durante os anos em que preparou a sua tese de doutoramento. Sem este apoio institucional não teria sido possível concretizar este objetivo.

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Recebido: 15 de Junho de 2021; Aceito: 03 de Novembro de 2022

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Este artigo se baseia em parte da minha tese de doutoramento em Sociologia, intitulada “Educação sensível ao gênero? Uma análise pós-estruturalista da política de educação do Brasil” (Universidade de Coimbra, Portugal, 2022).

Conflito de interesses

Declaro não ter qualquer conflito de interesses.

Priscila Freire. Doutorada em Sociologia pela Universidade de Coimbra (2022). Docente da Escola Normal Superior da Universidade do Estado do Amazonas (UEA), Manaus, Brasil. A sua tese de doutoramento incide sobre «Educação sensível ao gênero? Uma análise pós-estruturalista da política de educação do Brasil».

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