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Faces de Eva. Estudos sobre a Mulher

versão impressa ISSN 0874-6885

Faces de Eva. Estudos sobre a Mulher  no.49 Lisboa jun. 2023  Epub 31-Jul-2023

https://doi.org/10.34619/y6yv-2icm 

Dossiê: Escrever Salva?

“Aquilo não é literatura”: Leituras à margem em À Flor do Tempo de Ilse Losa

“That is not literature”: Marginal readings in À Flor do Tempo by Ilse Losa

i Université Paris Nanterre, UFR de Langues et Cultures Étrangères, Études Romanes - Centre de Recherches sur le Monde Lusophone (CRILUS), 92001 Nanterre Cedex, France. E-mail: g_cordeiro@sapo.pt


Resumo

Este artigo propõe uma releitura de algumas crónicas de Ilse Losa, analisando o modo como convocam o universo literário da própria autora, implicando também uma rede de outras leituras, que surgem de forma marginal no espaço textual da crónica, em si mesmo situado nas margens do cânone.

Palavras-chave: Losa; crónica; circularidade; cânone literário; memória traumática

Abstract

This article proposes a re-reading of some chronicles by Ilse Losa, in order to access how the call upon the literary universe of the author and imply a network of other readings, which appear in a marginal way in the textual space of the chronicle, itself situated on the margins of the canon.

Keywords: Losa; chronicle; circularity; literary canon; traumatic memory

Figura excepcional a vários títulos na literatura portuguesa, Ilse Losa instala-se em Portugal em 1934, fugindo à perseguição anti-semita desencadeada pela ascensão de Hitler. Ao adoptar o português como língua de criação literária1, Losa inscreve de forma pioneira a temática da Shoah e da diáspora judaica na literatura portuguesa. Através da sua obra, os leitores portugueses puderam tomar contacto com uma visão feminina da experiência do nazismo alemão, dos desafios de reconstrução da Alemanha do pós-guerra e do papel de Portugal como país de asilo, sobretudo num tempo em que a censura do Estado Novo restringia a circulação de informação vinda do exterior.2 Esta sua condição leva-nos a situar Losa num panorama literário que tem no Holocausto o seu paradigma constitutivo e que questiona, segundo António Sousa Ribeiro, “as possibilidades e os limites da reconstrução da identidade no quadro de uma memória pós-traumática” (Ribeiro, 2010). Agraciada com o grande prémio da Gulbenkian de literatura infantil (em 1981 e 1984), a celebridade de Ilse Losa junto do público português ficou durante muito tempo a dever-se à sua profícua produção no âmbito da literatura infanto-juvenil, que tendeu a eclipsar outras vertentes do seu vasto universo literário, estruturado pela experiência do exílio3, pela memória traumática e pelo desejo de um impossível regresso ao passado.

É certo que o reconhecimento da autora em função da sua produção literária infanto-juvenil de algum modo deixou na sombra outras dimensões de um percurso de mais de cinquenta anos de vida literária, que inclui também a poesia, o romance, a novela, o conto, a literatura de viagens e a crónica. No entanto, o lugar periférico que Losa ocupa no cânone da literatura portuguesa pode também ficar a dever-se à correspondência temática entre a sua produção literária e factos consabidos da sua biografia, o que durante muito tempo terá encorajado a crítica a concentrar-se na detecção de biografemas reconhecíveis a partir das coincidências com o perfil e o percurso das personagens das suas narrativas: a origem judaico-alemã, a infância tranquila na Alemanha, a fuga da Alemanha nazi, o destino do refugiado em Portugal durante o Estado Novo. A chave biográfica recorrentemente utilizada para a leitura da sua obra romanesca e contística vai assim, na verdade, mantendo-a cativa de grelhas interpretativas que se esgotam no domínio da referencialidade. Com propriedade se poderia convocar, a este título, alguma produção cronística da autora reunida em À Flor do Tempo (1997) ou as impressões de viagem aos Estados Unidos, registadas em Ida e Volta (1993): em tais textos, o contrato referencial tem aplicação obviamente válida no pacto estabelecido com o leitor, convidando-o a uma reflexão cívica e militante perante formas de autoritarismo ou de preconceito racial observadas na sociedade do seu tempo.

De entre as crónicas que Ilse Losa publicou desde os anos 1940 na imprensa portuguesa, cinquenta e uma foram reunidas em 1997 no volume À Flor do Tempo, cujo título inclui a designação temática de crónicas, convocando assim explicitamente esta tipologia textual. No posfácio ao volume, Américo Oliveira Santos evoca o estatuto da crónica como género de “contornos indefiníveis” (Santos, 1997, p. 133), cujo sentido se indeterminou progressivamente desde a Idade Média até aos nossos dias, transitando do campo da historiografia para o da periferia da literatura, mantendo ainda assim uma relação de valor referencial com o tempo histórico que veio, no entanto, a abrir-se ao domínio da ficcionalização. O caso do título À Flor do Tempo é particularmente explícito no que diz respeito à enunciação literária da temporalidade, associada à dimensão narrativa da crónica: tal aspecto é de algum modo sugerido no título do livro, na medida em que a palavra “tempo” surge acompanhada da expressão “à flor de”, recuperando desta forma o lastro heraclitiano de uma filosofia do tempo irrepetível, formulada nos termos do binómio tempo-rio que consubstancia uma certa representação da temporalidade no pensamento ocidental. A expressão “à flor de” não deixa também de remeter para uma temporalidade percepcionada “à flor da” pele, implicando a sensibilidade do sujeito como componente fundamental de uma escrita sobre o mundo. No que diz respeito ao volume da antologia de crónicas publicado em 1997, deve assinalar-se que o princípio cronológico que preside à lógica intrínseca do género da crónica perde ali a sua legibilidade estruturante, uma vez que a datação dos textos desaparece nesta edição: a sucessão de textos vai assim contribuindo para a criação de um presente contínuo, ancorado na figura do sujeito, que guia o leitor dentro do texto e assume a autoria destas crónicas. Deste modo, ganham particular destaque neste volume os temas relativos à biografia de Ilse Losa, como sejam o acolhimento na cidade do Porto e o contacto com a cultura portuguesa, as origens alemãs e a experiência do nazismo, entre outras reflexões pontuadas de referências à arte e à literatura. Estamos perante um registo textual efectivamente marcado por uma hibridez genológica que, como sublinha Ana Prata a propósito do género da crónica, oscila “constantemente entre vários tipos de discurso: entre história e literatura, entre jornalismo e literatura, e entre ensaio, poesia e conto” (Prata, 2010, p. 26).

Entre as crónicas publicadas em À Flor do Tempo, encontramos textos que revelam ter uma particular incidência na forma como iluminam a matéria textual produzida por Ilse Losa, que indirectamente ali deixa entrever princípios actuantes na esfera da sua prática oficinal. Dois desses breves textos são dedicados à escritora Irene Lisboa, que Ilse Losa considerava “o melhor estilista da língua portuguesa” (Losa, 1997, p. 117): o primeiro intitula-se “Irene Lisboa” e o segundo “Relendo Solidão”. Ao revisitar as memórias tanto do primeiro encontro de ambas, como da correspondência trocada, Ilse Losa dá conta da profunda admiração que nutre por Irene Lisboa, enaltecendo nela um conhecimento “da vida pela experiência”, a ponto de dar ao leitor a impressão de que nos seus textos “é a própria vida que nos fala” (Losa, 1997, p. 117). Na homenagem que por meio destas crónicas lhe presta, Ilse Losa apresenta Irene Lisboa como uma excepcional “intérprete da vida”, lamentando que esta não seja recipiente de um reconhecimento mais amplo e consensual, como mereceria uma escritora da sua estatura. Esta decepção é evocada por Losa, ao citar a expressão do desânimo manifestado por Irene Lisboa: “Comigo os editores não fazem fortuna”, ou ainda, “Os meus livros apodrecem nas prateleiras dos editores (…). Estou-me nas tintas para essa fama póstuma que me prometem. Porque é que não me lêem agora? Agora!” (Losa, 1997, p. 119). Ilse Losa interroga as razões para este desencontro entre a autora e o público, atribuindo-as, por um lado, ao tamanho reduzido do público leitor num país com a dimensão de Portugal e, por outro, à natureza mesma da sua escrita e do seu estilo “teimosamente pessoais” (Losa, 1997, p. 118), que não admitiam concessões ao gosto desse público que lhe escapa. Entre as críticas dirigidas aos textos de Irene Lisboa, e que de algum modo explicariam a grande solidão da escritora, aponta-se ainda a sua pretensa simplicidade, nos antípodas de uma determinada ideia de literatura entendida sobretudo como prática obscura e inacessível, que levaria alguns a dizer de modo depreciativo “Aquilo também sei fazer, aquilo não é literatura” (Losa, 1997, p. 118). A resposta que Losa endereça aos críticos da escritora, “Pois que tentem escrever como Irene Lisboa”, parece-me a vários títulos reveladora, sendo que talvez o mais interessante seja o modo como condensa um princípio de legibilidade aplicável à sua própria escrita como cronista - escrever como Irene Lisboa. Na última conversa que teriam tido antes do desaparecimento de Irene Lisboa, Ilse Losa deixa ainda registo do conselho que dela recebeu: “Tem que escrever isso, assim mesmo sem pôr nem tirar” (Losa, 1997, p. 119). Esta segunda crónica, que assinala o desaparecimento da amiga e escritora que tanto admira, coincide com uma espécie de passagem de testemunho literário, que passa também pela transmissão de um exemplo de conceito de literatura aberto à dimensão cívica e interventiva da mulher na sociedade portuguesa, de contornos particularmente complexos à época - como demonstra Ana Paula Ferreira, em “A Literatura feminina nos anos quarenta: uma história de exclusão” (2002).

Não deixa de ser digno de nota que, tanto na asserção “Aquilo não é literatura” como em “Tem que escrever isso”, a prática da escrita literária seja expressivamente designada por recurso aos demonstrativos “isso” e “aquilo”, reveladores de uma indefinição nominativa que se adequa de algum modo à tipologia textual da crónica ou de uma actividade literária cronística. Não obstante as relações de referencialidade para com a matéria do quotidiano, o espaço da crónica de Ilse Losa é pontuado de constantes reflexões sobre o literário, convocando o universo da própria autora e implicando em permanência uma rede de leituras (que vão além de Irene Lisboa). Tais leituras surgem muitas vezes de modo marginal (com a função de nota de rodapé, epígrafe, aparte, citação ou alusão), no âmbito do espaço textual da crónica, que é em si mesmo situado nas margens do cânone, constituindo também por isso mesmo um território privilegiado para pensar os laços entre o escrito e o vivido, o cruzamento entre o plano ficcional e o plano empírico.

Uma componente importante de muitas destas crónicas é precisamente a implicação de um saber literário que incorpora leituras, citações, referências, por meio das quais se estabelece um diálogo entre a crónica e outros textos, que vão surgindo à margem ou nos espaços intersticiais dessa outra margem textual que a crónica já é. O bloco textual mais representativo deste aspecto da obra de Losa encontra-se entre as crónicas 45 a 50, onde se acumulam referências a figuras proeminentes da literatura portuguesa como Irene Lisboa, Eugénio de Andrade, Sophia de Mello Breyner e Ruben A., ou ainda, em registo provocativo de uma certa visão patriarcal do mundo, às figuras masculinas de Eça de Queirós, Camilo Castelo Branco e Ramalho Ortigão. Entre a grande diversidade dos temas tratados nas crónicas de Ilse Losa, segundo uma catalogação proposta por Rosa Churcher Clarke (2022), encontramos o retrato do Porto dos anos 1930 e de mulheres exiladas devido à perseguição nazi (crónicas 8-11), a pobreza das mulheres das classes trabalhadoras (crónicas 12-16), a mendicidade infantil (crónicas 19-20), os homens emigrantes (crónicas 27, 34), episódios traumáticos da infância (crónicas 22-25), textos sobre o quotidiano (crónicas 39-40), rememorações do passado (crónicas 17, 26, 28), referências a aspectos específicos da cultura portuguesa ou da cultura alemã (crónicas 27, 32, 34), relação entre tradição e modernidade (crónicas 37, 43, 47, 50), crítica ao atavismo social do Porto e à burocracia portuguesa (crónicas 3-5, 15, 20, 36, 38-39). Alguns textos surgem como resposta a textos crónicos publicados na imprensa por figuras como João Gaspar Simões, Arnaldo Saraiva ou Carlos Tê.

Na última crónica do volume, intitulada “E depois... E depois”, Ilse Losa oferece uma representação auto-reflexiva do seu próprio trabalho como cronista, ao encerrar de um ponto de vista macroestrutural esta antologia de crónicas, colocando-a sob o signo do advérbio de tempo ali repetido. Evocando a figura do escritor dinamarquês Hans Christian Andersen, Losa rememora a história de um pinheiro de Natal deitado ao lixo que, depois de ter sido arrancado à floresta maternal e esgotado o seu propósito natalício, ali se exprime como sujeito de enunciação animado pela figura da prosopopeia: “(Andersen) nos quis fazer lembrar a fugacidade dos acontecimentos, o efémero dos momentos belos, das utopias e da própria vida. / Mas tais considerações só nos vêm à mente depois da festa ter acabado” (Losa, 1997, p. 132). Rosa Churcher Clarke (2022) assinala, nesta passagem, a ressonância paralela do próprio trauma biográfico de Ilse Losa, transparecendo na sua produção ficcional sob a forma do salgueiro da infância, e de uma experiência de desterritorialização e aculturação vivida pela autora. Creio, no entanto, que o texto é sobretudo significativo pelo seu alcance metaliterário, pelo modo como formula afinal a possibilidade que a literatura, e a crónica muito em particular, tem de dar uma segunda vida à matéria da vida, originária do plano empírico e biográfico. Conjugando efemeridade e reflexão retrospectiva a partir do presente, o género da crónica trabalha como a própria matéria do tempo, sendo capaz de captar a memória do tempo passado, dela extraindo um discurso doador de sentido a uma temporalidade escoada no plano do vivido e discursivamente transformada no “depois” da escrita e no “depois” da leitura.

Na crónica “A quinta e os livros”, encontramos um dispositivo recorrente na obra de Ilse Losa que materializa a relação do texto com a substância do tempo. Refiro-me ao recurso a objectos investidos de um sentido que permite aceder a memórias longínquas do sujeito e que projectam o seu leitor num universo de coordenadas espácio-temporais outras. No caso em apreço, o texto menciona o modo como a leitura ocasional de um livro de Sophia surte o efeito de remeter o sujeito da escrita para o tempo em que era apenas um sujeito de leitura. Pela referência ao livro de Sophia, o passado torna-se objecto de um processo de espacialização que coincide com o lugar mítico da Quinta dos Andresen, assim se estabelecendo como um correlativo-objectivo da “eterna nostalgia da infância, de tudo o que havia e já não há” (Losa, 1997, p. 128). Este mecanismo de transferência afectiva pela activação das memórias que são investidas em objectos e em lugares é particularmente representativo dos dispositivos que permitem a Ilse Losa construir a possibilidade de um regresso ao passado, de preencher a lacuna traumática da perda. Funcionando como brecha discursiva, o livro actua como elemento de ligação entre um passado pleno e um presente marcado pela escassez ou pelo vazio, oferecendo-se como lugar de trânsito entre dois tempos, uma forma espaço movente que situa de algum modo o sujeito e lhe permite operar a inscrição possível nessa experiência intersticial que vai da escrita à leitura e dessa forma se presentifica no corpo do texto.

Como nota Américo Oliveira Santos, é “à literatura que Ilse constantemente regressa nestas crónicas” (Santos, 1997, p. 136). Tal mecanismo está longe de ser exclusivo das crónicas, sendo igualmente possível encontrar uma ideia de circulação e de procura do retorno entre os contos e a produção romanesca de Ilse Losa, narrativamente construídas com base em técnicas compositivas assentes na analepse, na sobreposição de temporalidades, na transfiguração dos espaços, nos dispositivos de focalização da consciência, na elaboração discursiva do devaneio onírico ou ainda no recurso frequente aos verbos do campo semântico da memória (lembrar, esquecer, recordar, reconhecer). A esta lista poderíamos também acrescentar a figuração de motivos associados a uma ideia de circularidade, como o relógio e outros, que encontramos em contos como “A chávena”, “O colar vermelho”, “O círculo mágico” ou “Os botões de punho”. Destaco entre eles o conto intitulado “Eterno retorno”, que se coloca declaradamente no território da intertextualidade, por meio de uma viagem de regresso ao passado e à precedente ficção autoral de Losa, visitando nomeadamente o seu primeiro romance. Quando a protagonista de O Mundo em que Vivi encontra no espaço do conto “Eterno retorno” a sua avó, que ali também regressa apesar de já falecida no romance, esta coloca-a perante o mistério da experiência transformada em discurso: “Não escrevas mais histórias, ouviste? São inventadas, não dizem a verdade. Só a vida diz a verdade. Aprende a saber da vida” (Losa, 1991, p. 64). De algum modo ecoa aqui a injunção que explica a importância que a referencialidade temporal adquire na obra de Ilse Losa, em diálogo com a vida, oferecendo um contraponto à frase colhida na conversa com Irene Lisboa: entre a negação da vida (aquilo não é verdade) e a negação da ficção (aquilo não é literatura), o género da crónica parece oferecer um compromisso bastante para a superação do impasse.

Um mecanismo semelhante pode ser identificado na crónica intitulada “Ao Eugénio”, em que os poemas memorizados durante a infância vêm a ser mobilizados pelas experiências de leitura subsequentes, nomeadamente na idade adulta. É o que acontece ao sujeito desta crónica, quando lê o poema “Canção Infantil” do livro de poesia Pureza: “Era um amieiro / depois uma azenha / E junto um ribeiro. / Tudo tão aberto! / Que devia fazer? / Meti tudo no bolso / Para os não perder” (Losa, 1997, p. 121). A escolha da passagem poética em apreço, e do seu registo nesta crónica, não resulta de uma coincidência, mas de uma opção autoral devidamente ponderada. A memória dessa leitura em língua portuguesa passa a abrigar uma outra memória de um passado alemão, que ali se vê acolhida, mas que também se transforma por meio da experiência de leitura, apresentando-se agora codificada nos recursos linguísticos de um outro imaginário cultural. O trabalho literário que pressupõe a escrita e a leitura configura, pois, uma espécie de “bolso” capaz de conservar um espaço mental, onde ainda existe o mundo em que viveu a protagonista do primeiro romance de Ilse Losa, habitado pela memória do seu salgueiro, do seu ribeiro e da sua azenha, mas onde se aglomeram elementos heteróclitos da bagagem do sujeito. Mesmo quando a língua portuguesa permite a adopção de uma nova identidade, na verdade esta nunca perde o seu carácter diaspórico, sendo que este passa a afirmar-se precisamente por via dessa metamorfose.

Se À Flor do Tempo oferece ao leitor um mapa da evolução da escrita de Ilse Losa ao longo dos seus cinquenta anos de vida literária, o volume deixa também entrever uma biografia intelectual que reflecte a sua progressiva integração na sociedade portuguesa da segunda metade do século XX. A sua condição a vários títulos descentrada, como mulher e como estrangeira, encontra eco na hibridez e na periferia do género discursivo da crónica no sistema literário. Parece-me que a devida integração do trabalho cronístico no percurso autoral de Ilse Losa pode, na verdade, constituir uma forma de superação do reducionismo a uma dimensão meramente didáctica ou documental a que a obra da autora tem sido submetida. Outras formas de resgatar a sua obra poderão eventualmente passar pelo reconhecimento das suas afinidades com certos aspectos do sistema literário português: é o caso da literatura de migração de inspiração neo-realista, de língua portuguesa (como a de Ferreira de Castro, Alves Redol ou José Rodrigues Miguéis), como propõe Vítor Viçoso (2011, pp. 257-268). A obra de Losa pode, com vantagem, ser também considerada no âmbito da literatura do holocausto, no seio da qual inaugura em português uma reflexão que excede as fronteiras nacionais e sublinha o papel do testemunho na construção de uma memória da ruptura civilizacional irreparável. Tem ainda a particularidade de imprimir à captação desse tempo um olhar feminino, revelando a experiência partilhada da opressão sofrida pela mulher tanto em Portugal como na Alemanha, como sublinha Karina Marques num dos mais relevantes contributos para os estudos losianos:

L’œuvre losienne accueille ces expériences féminines de la douleur donnant voix aux femmes en tant que protagonistes de la grande Histoire de la Shoah, créant ainsi un réseau de sororité entre les personnages aussi bien dans des récits où l’action se passe en Allemagne nazie que dans ceux se déroulant au Portugal sous le régime patriarcal salazariste. (Marques, 2021, para. 3)

Importa reconhecer as produtivas relações que a obra de Ilse Losa convida a estabelecer com a história portuguesa e europeia do século XX, sendo que ela conserva um importante arquivo (não factual) de uma memória histórica que o Estado Novo não preservou e que a historiografia do pós-25 de Abril só mais tarde veio a tratar, como assinala Irene Pimentel.4 Creio que é de igual modo importante ir além de uma leitura de incidência biografista da obra de Ilse Losa, que se limita à identificação de correspondências temáticas entre a sua produção literária e a transposição dos biografemas aí detectáveis.5 Afigura-se-me, no entanto, que a leitura das suas crónicas permite colocar este debate sob uma outra luz, propondo entrarmos no espaço literário (ou marginalmente literário) em que a porosidade entre mundo empírico e mundo ficcional se estabelece por excelência. O livro de crónicas À Flor do Tempo permite assim compreender Ilse Losa, a mulher e a obra, como uma escritora do seu tempo, um tempo que ganha em ser pensado a partir dos diversos lugares de enunciação periférica em que se situa a autora: o do feminino, o do exilado e o do sobrevivente, aos quais se somam a implicação da escrita no espaço periférico que corresponde ao género da crónica, que cultivou durante toda a sua vida de escritora. As suas crónicas implicam mutuamente vida e literatura, irrigando experiência de escrita e experiência de leitura, cruzando plano pessoal e plano colectivo, com vista à elaboração de uma memória intelectiva que se constrói em diálogo aberto com o mundo em todas as suas facetas. A crónica losiana configura, pois, um “ribeiro” do mundo vivido, suficientemente largo para acolher a complexidade do seu tempo e do percurso construído nessa margem que religa diferentes culturas e línguas, e que é afinal o país da literatura, não entendida de forma essencialista, mas antes desterritorializada, num mundo híbrido que encontra o seu perfeito correlativo nas crónicas de Ilse Losa e na sua ideia daquilo que não pode ser, afinal, senão literatura.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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NOTAS

1 Na qualidade de autora exófona, Ilse Losa é um caso digno de nota também pelo seu importante trabalho de tradutora em Portugal, como destaca o trabalho de investigação de Ana Isabel Marques (2015). Karina Marques considera, a respeito da adopção do português pela autora, os conceitos de matricídio e de morte psíquica como elementos fundamentais de uma escrita migrante, relativamente à construção de uma identidade literária que se forma a partir da experiência traumática vivida na Alemanha: “elle a écrit toute son œuvre dans la langue de son pays d’accueil, abandonnant l’allemand, langue de la mère et de l’ennemi à la fois” (Marques, 2021, 37).

2 Sobre a singularidade da figura de Ilse Losa em contexto português, remeto para o trabalho de Paulo Cavaco (2012), que sublinha a importância da sua obra como caso único de sobrevivente e testemunha do holocausto na literatura portuguesa, que conta com uma escassa produção neste âmbito.

3 O trabalho de Cristina Vasconcelos de Macedo (2020) situa Ilse Losa no quadro da “exilliteratur”, juntamente com autores que na década de 1930 abandonaram a Alemanha e os países por ela anexados na Segunda Guerra Mundial. Tais autores partem muitas vezes do biografema da origem judaica para ficcionalizar questões relativas à perseguição nazi, à fuga do país de origem e à procura de asilo.

4 Remeto neste ponto para a passagem em que a autora afirma que “a presença de refugiados em Portugal durante os anos 1930 e a segunda guerra mundial permanece escondida até ao final dos anos 80” (Pimentel, 2006, p. 18).

5 Notava Américo Oliveira Santos que pesa sobre a obra da autora uma valorização em função “do testemunho autêntico de vivências dilacerantes” (1991, p. 10), que tenderia a reduzir o texto literário à condição de depoimento. Paulo Macedo sublinha, por sua vez, o valor de documento como condição fundamental da denominada literatura de testemunho, em que a narrativa se torna “veículo de transmissão de um testemunho” (2012, p. 22). Ambos os argumentos actuam como modalidades que tendem a sobrepor-se ao valor literário da obra de Ilse Losa.

Recebido: 24 de Março de 2023; Aceito: 29 de Maio de 2023

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