SciELO - Scientific Electronic Library Online

 
 número49Mulheres e espaços religiosos na cidade: Um caso de ‘ativismo’ no cemitério de LouresSPEAR Project: Supporting and Implementing the Gender Equality Plan in NOVA University Lisbon índice de autoresíndice de materiabúsqueda de artículos
Home Pagelista alfabética de revistas  

Servicios Personalizados

Revista

Articulo

Indicadores

Links relacionados

  • No hay articulos similaresSimilares en SciELO

Compartir


Faces de Eva. Estudos sobre a Mulher

versión impresa ISSN 0874-6885

Faces de Eva. Estudos sobre a Mulher  no.49 Lisboa jun. 2023  Epub 31-Jul-2023

https://doi.org/10.34619/694l-wnd7 

Estudos

A mulher oitocentista em Cenas de África? Romance Íntimo

i Universidade NOVA de Lisboa, Faculdade de Ciências Sociais e Humanas, Departamento de História, 1069-061 Lisboa, Portugal. E-mail: lhenriques.profissional@gmail.com


Resumo

A obra Cenas de África ? Romance Íntimo, de Pedro Félix Machado, é uma história de amor localizada nos cenários da Angola e da metrópole oitocentistas. O seu retrato da sociedade luandense inclui personagens femininas que reflectem vivências de mulheres que então habitavam a cidade. Sendo figuras burguesas, este estudo tenta perceber se tais personagens se identificam com o modelo social prescrito para as mulheres pelos valores burgueses oitocentistas. Tidas as suas capacidades por inferiores às dos homens, afirmava-se que eram especialmente dotadas para a gestão doméstica. Conclui-se que as personagens femininas aderem no geral a esse figurino.

Palavras-chave: literatura; Luanda; burguesia; século XIX; Cenas de África

Abstract

The novel Cenas de África? Romance Íntimo by Pedro Félix Machado is a love story set against the backdrop of Angola and the metropolis in the XIX century. Its portrait of Luandan society includes female characters who reflect the experiences of women who inhabited the city at the time. Being bourgeois characters, this study seeks to understand whether they identify with the social model prescribed for women by nineteenth century bourgeois values. Since their abilities were considered inferior to those of men, it was said that they were specially gifted for domestic management. It is concluded that the female characters generally adhere to this model.

Keywords: literature; Luanda; bourgeoisie; nineteenth century; Cenas de África

1. INTRODUÇÃO

Cenas de África? Romance Íntimo é um romance de Pedro Félix Machado, advogado e publicista angolano. Inicialmente publicado em folhetins na Gazeta de Portugal, jornal lisboeta do Partido Regenerador, entre 1891 e 1892, teve, em 1892, duas edições em volume, uma das quais da Livraria Férin. Num tom dramático, o romance conta essencialmente duas histórias de amor, de Gouveia/Duprat e Leonila e de Ernesto e Laura, no cenário da Angola colonial e da Lisboa metropolitana oitocentistas. A acção, situada entre a década de 1840 e o final do século, alterna com críticas ao esclavagismo, à pobreza e ignorância da sociedade luandense, à moralidade dos colonos, entre outras.

Independentemente do enredo dramático e da mensagem política da obra, o romance apresenta várias personagens que pretendem retratar alguns dos tipos que existiam na sociedade oitocentista de Luanda. Destas se destacam as personagens femininas, que representam diferentes vivências de mulheres: Engrácia, esposa mulata de um colono comerciante; Laura, jovem filha de ambos; Leonila, filha nobre de um funcionário enviado da metrópole; e Inácia, a escrava liberta que foi ama de Laura.

Neste estudo, pretende-se estabelecer a correspondência entre o modelo de conduta prescrito pelos valores burgueses para as mulheres no século XIX e a caracterização das personagens femininas da obra Cenas de África ? Romance Íntimo, verificando a adequação do dito paradigma às mulheres do romance. Tal correspondência tem cabimento numa obra literária cuja acção se situa em Angola porque, por um lado, as figuras retratadas vivem em zona de colonização portuguesa (Luanda) e pertencem a famílias de modelo europeu, onde, por exemplo, não entra a poligamia, frequente na época, segundo o testemunho do jornalista Alfredo Troni (Dias, 1998, p. 511); por outro, são personagens da burguesia, em cujas vidas, tendo em conta a descrição do narrador, os valores europeus e burgueses parecem predominar: Leonila é uma mulher europeia, casada três vezes com homens europeus e socialmente importantes; Engrácia não é casada, mas parece ser a única companheira de Andrade, formando com ele e com Laura uma família de modelo burguês. Não se estuda o caso de Inácia, uma vez que se trata de uma escrava ou antes uma liberta (Machado, 2004, p. 101), que habita “em uma cubata, no musseque (quinta) da Sr.ª Engrácia” (Machado, 2004, p. 103). Para economia de espaço, não se estudam ainda os casos de Lourença e de Hellen, personagens secundárias também exemplares de situações femininas oitocentistas, mas identificáveis nas demais.

Neste texto, não se abordam, assim, os modelos familiares existentes em Luanda no século XIX, mas apenas o modelo burguês europeu e os seus valores, sem desvios fundamentais influenciados por tradições autóctones, dado que é esse o paradigma entre as personagens femininas do Romance Íntimo. De facto, tendo publicado em Lisboa e dirigindo-se a um público mormente metropolitano, Pedro Machado não terá talvez querido fazer um romance demasiado exótico, sendo por isso escassos os elementos culturais especificamente africanos/angolanos e as personagens facilmente reconhecíveis pelos leitores.1

Este estudo está dividido em quatro partes. Após uma breve biografia do autor, Pedro Félix Machado, falar-se-á do padrão de comportamento estabelecido para as mulheres no século XIX. Em seguida, identificar-se-á a opinião do narrador do romance acerca das mulheres em geral. Por fim, analisar-se-á a caracterização das personagens femininas, verificando de que forma se ajustam ao referido padrão ou modelo feminino oitocentista. A conclusão sintetiza os resultados do estudo.

2. O AUTOR E O ROMANCE

Sabe-se pouco sobre Pedro Félix Machado, apesar da sua importância na história da literatura angolana.2 Era filho de um comerciante açoriano estabelecido em Luanda e de uma senhora luandense e nasceu nessa cidade entre Julho e Agosto de 1853.3 Terá feito estudos pré-universitários em Portugal e estudou Direito, aparentemente não em Coimbra mas possivelmente no Brasil, onde o pai tinha relações comerciais. Fez a sua carreira profissional em Angola, entre Luanda e Benguela, tendo sido advogado provisionário.4 Exerceu igualmente alguns cargos na burocracia do Estado, que decerto lhe permitiram a observação de alguns dos problemas sociais angolanos: foi, por exemplo, curador dos presos pobres da comarca de Luanda entre 1887 e 1888 e delegado interino do Ministério Público (pelo menos, em 1893). Foi também professor na Escola Principal de Luanda. Pedro Machado esteve pelo menos quatro vezes em Portugal, entre cerca de 1870 e 1892.

Ao longo de duas décadas, Pedro Machado colaborou em diferentes periódicos angolanos, nomeadamente no Cruzeiro do Sul, no Futuro de Angola, no Pharol do Povo, n’O Polícia Africano e n’A Semana (aqui como editor, director e redactor), tendo feito parte de uma destemida e brilhante geração de publicistas angolanos muito cultos, interventivos e sem medo das polémicas com as autoridades coloniais e metropolitanas, que teve no jornalista José de Fontes Pereira talvez o melhor paradigma (Freudenthal, 2001, pp. 423-426).

Foi também num jornal, desta vez metropolitano, que Pedro Machado, numa das viagens que fez a Portugal, publicou o seu único romance conhecido: entre 28 de Julho de 1891 e 3 de Junho de 1892, saiu em folhetim na Gazeta de Portugal a obra Cenas de África ? Romance Íntimo. Em 1892, o romance teve duas edições, uma delas da Livraria Férin, que também lhe publicou no mesmo ano uma colectânea de poesia, Sorrisos e Desalentos, e dois monólogos.

Cenas de África era o título conjunto de três obras. Na altura da publicação do Romance Íntimo, as outras duas achavam-se em preparação e estão por ora perdidas. Apesar de o planeamento deste trabalho remeter para a ideia de retratar uma galeria de tipos e, portanto, para obra da escola realista, o Romance Íntimo evidencia heterogeneidade de influências. Os episódios dramáticos situam-no num romantismo tardio, mas a crítica dos vícios da sociedade angolana e dos seus tipos é uma abordagem realista/naturalista.

Não se sabe quando Pedro Machado faleceu, mas apenas que já não era vivo em Outubro de 1907, data em que o Angolense iniciou a republicação do Romance Íntimo.

3. O MODELO FEMININO BURGUÊS NO SÉCULO XIX

Na vida política, económica e social, a sociedade europeia do século XIX conheceu o predomínio dos valores da burguesia, classe social levada ao poder pela revolução industrial e pelas revoluções políticas. Segundo tais valores, a base da sociedade e do Estado era a família de modelo burguês, espaço privado idealizado, onde todos os sujeitos tinham as suas funções definidas e onde se educavam os futuros cidadãos. Neste sentido, “os espaços públicos e as funções produtivas” eram atribuídos aos homens e, inversamente, eram atribuídos às mulheres “os espaços privados e a reprodução” (Vaquinhas, 2011, p. 20; v. também Pinto, 2000, p. 48, e Gildea, 2013, p. 330).5 Os homens, através dos seus rendimentos ou empregos, eram o sustento das suas famílias, que, aliás, dirigiam. No plano político, era exclusivamente masculino o direito de participação no poder enquanto eleitor ou eleito (apesar de as normas censitárias limitarem até a participação masculina), sendo também os homens os dirigentes políticos dos Estados (Hobsbawm, 1990, pp. 251-252).

No século XIX, era corrente a convicção de que as mulheres eram pessoas mais emocionais do que racionais, mais frágeis e menos inteligentes do que os homens e essencialmente com “predisposição para a maternidade” (Vaquinhas, 2011, p. 22). No âmbito desta representação, as mulheres tinham natural vocação para a organização da vida doméstica, para a educação das crianças, para a obediência e para a benévola resignação face aos reveses. Exceptuando os conhecimentos essenciais à realização dessa vocação e relacionados com a gestão da casa familiar, uma preenchida instrução feminina não era desejável, sendo mesmo censurada.

A desigualdade entre homens e mulheres não era nova. “(Nos séculos XVII e XVIII, o discurso normativo) Incutiu a ideia da maldade e perigo inerentes à mulher - mensagem dirigida aos homens - e incutiu a imagem da sua inferioridade - mensagem dirigida aos dois sexos” (Lopes, 1989, p. 17). Na mentalidade de então, “a mulher ideal deve ser assexuada, passiva, recolhida, silenciosa, obediente, conformada, trabalhadora e modesta” (Lopes, 1989, p. 21). A alteração e relativa libertação nos hábitos femininos na segunda metade do século XVIII teve uma reacção conservadora de censura, apesar da aceitação de alguns dos novos e menos reservados comportamentos (Lopes, 1989, pp. 66 ss., 165-194). Assim, o figurino feminino afeiçoado segundo os valores burgueses oitocentistas continuava, no século XIX, a diferenciação e a submissão dos séculos anteriores. “A novidade reside na forma como um discurso científico, esboçado no contexto racional e positivista do século passado (XIX), servirá para fundamentar uma construção ideológica que condiciona a subordinação das mulheres” (Vaquinhas, 2011, p. 22). Segundo a Ciência oitocentista, com antecedentes em teorias médicas do século XVIII (Godineau, 1997, pp. 312 ss.), a mulher apresentava, no seu organismo, particularidades não verificadas nos homens, de que derivava “uma fisiologia patológica”, sendo, consequentemente, um “ser a proteger” (Vaquinhas, 2011, p. 22). Tratava-se de adornar preconceitos com termos científicos, atribuindo-se-lhes verosimilhança (Vaquinhas, 2011, p. 21). A desigualdade entre homens e mulheres estava também consagrada na lei. A autoridade familiar (como a autoridade no Estado) pertencia ao homem, sendo a mulher sua protegida e subordinada, quer enquanto esposa, quer enquanto filha (Vaquinhas, 2011, p. 24). Consequentemente, as mulheres eram afastadas de vários sectores da vida corrente, nomeadamente da participação política, podendo a mulher casada, encarada como “uma menor”, celebrar alguns negócios jurídicos apenas com autorização do marido (Braga & Braga, 2002, p. 522; Gildea, 2013, p. 330; Vaquinhas, 2011, pp. 21 e 24).

Apesar de durante muito tempo se ter valorizado a ignorância feminina, a partir da segunda metade do século XIX começou-se a defender a instrução das mulheres, também em resultado das suas reivindicações. A vocação para a gestão doméstica, conquanto natural, não seria apenas instintiva e por isso carecia de conhecimentos para se realizar competentemente. Pense-se por exemplo na preocupação social com a educação dos filhos, nada menos que os futuros cidadãos. A especificidade das funções femininas na família implicava especialização do conhecimento e, consequentemente, do ensino. As instruções primária, secundária e técnica/profissional femininas da Europa tenderam, portanto, a ter os seus próprios programas, devidamente adequados à posição da mulher na família e na sociedade (Pinto, 2000, pp. 40-46; Vaquinhas, 2011, pp. 28-32). A delimitação do ensino mais avançado para as mulheres a funções específicas denota um receio de excesso de conhecimento, que poderia resultar num desejo de emancipação e “o início da subversão da ordem social e uma nova distribuição das funções sociais” (Vaquinhas, 2011, p. 44).

Independentemente do progresso na área da instrução, as reivindicações das mulheres europeias por maior igualdade e nomeadamente por direitos cívicos foram, no virar do século XIX para o XX, um dos grandes movimentos colectivos, ao lado do movimento operário e do dos autóctones europeizados das colónias (Gildea, 2013, pp. 330-335; Westad, 2018, pp. 22-23).

4. AS MULHERES EM CENAS DE ÁFRICA

Do final do século XIX (1891-1892), época em que as referidas convicções burguesas vigoravam, data o romance Cenas de África? Romance Íntimo. Embora a acção não se situe no momento da publicação (no presente do autor), não sai do século XIX, tendo lugar essencialmente em 1869 (primeira parte) e 1846-1849 (quase toda a segunda parte).6

No seu retrato das vidas quotidianas das mulheres, o narrador partilha dos preconceitos do século XIX relativos aos sexos. Porém, o Romance Íntimo não deixou de registar a vida muito limitada permitida às mulheres, embora mais por fazer parte do retrato da época do que por militância do narrador em defesa da igualdade.

Do conjunto das passagens em que o narrador se refere às mulheres em geral deduz-se que são frágeis, passivas, falsas, podendo ser também vingativas.

No início da obra, o narrador afirma que “o homem compraz-se sempre em ser o protector e o mestre da mulher amada”. E continua: “A condição do homem é ser forte, e lisonjeia-lhe a vaidade assegurar-se dessa prerrogativa, utilizando-a na redenção ou apoio de um ente cuja poesia consiste em ser inerme e fraco” (Machado, 2004, p. 39).

Noutra cena, Andrade, homem grosseiro, de maneiras ásperas, fica inexplicavelmente (para si próprio) subjugado perante Duprat, médico com um estranho magnetismo pessoal, ao mesmo tempo gentil e firme. Após uma conversa com este, Andrade dorme mal, tem pesadelos e no dia seguinte sente-se “febril e triste” (Machado, 2004, p. 90). Na perspectiva de Andrade, tal submissão seria algo feminino, indigno de um homem: “Depois, erguia-se num retesamento enérgico, dizendo-se a si mesmo: Então que diavo sou eu: sou um home ou sou uma mulher?” (Machado, 2004, p. 90).

Numa conversa sobre o casamento, Duprat, associando a passividade à mulher, diz a Ernesto que “O homem tem de ser forte, activo, enérgico para o amor; a mulher não se deixa escolher e pode até ser feliz, deixando-se amar apenas” (Machado, 2004, p. 57). Adiante, reflectindo a aversão à mulher culta, afirma: “Da mulher que não tem educação, mas que é dedicada e sincera, pode-se mais facilmente conseguir fazer uma boa esposa do que daquelas que muito educadas sabem o que deviam ignorar…” (Machado, 2004, p. 58). Da mesma conversa se deduz que o casamento, associado à casa e à esposa e face ao espaço público masculino e competitivo, deve ser um lugar de descanso para o homem, abrigo da sua vida pública (Hobsbawm, 2010, pp. 362-363; Vaquinhas, 2011, pp. 19-21, 35-37; Pinto, 2000, p. 48). O destino dos homens solteiros seria pouco favorável porque “a enxerga do hospital” a que vão ter em idosos é um espaço público hostil e impessoal (Machado, 2004, pp. 56-60).

Posteriormente, o narrador afirma que “a mentira” é “o recurso favorito dos fracos, dos criminosos e principalmente das mulheres” (Machado, 2004, p. 65). Por fim e no mesmo sentido, a propósito de Ernesto e de Leonila, o narrador declara que esta “não podia perdoar-lhe tal injúria e, dominada por um ciúme corrosivo e feroz, concitou todos os seus esforços, toda a sua actividade, a melhor parte do seu belo talento de mulher - para arquitectar e executar a vingança” (Machado, 2004, p. 143).

Para além destas apreciações gerais, as personagens femininas do Romance Íntimo demonstram, de formas diferentes, a vida limitada permitida às mulheres no século XIX. As suas expectativas, restritas na metrópole (Vaquinhas, 2011, pp. 19-25), sê-lo-iam também nas colónias, sobretudo em relação à instrução (v. Freudenthal, 2001, pp. 399-401, para período posterior a 1869, mas semelhante ao anterior). Se na vida das mulheres do século XIX houve um conflito “entre a tradição e a modernidade, a resignação e o inconformismo, a submissão e o desejo de liberdade” (Vaquinhas, 2011, p. 20), no Romance Íntimo predominam, na mentalidade do narrador e no retrato social, a tradição, a resignação e a submissão. Apesar de o romance ter sido publicado em 1891-1892 e de ter lugar em vários anos desde 1846 até depois de 1870, o feminismo, acentuado a partir da segunda metade do século XIX, não tem aí reflexo.

Engrácia

Habitantes de um centro urbano, Luanda, as personagens Engrácia e Laura, mãe e filha, fazem parte da população crioula e burguesa da colónia. Engrácia é uma mulata que vive com o comerciante e colono branco Manuel de Andrade. Laura é a filha de ambos.

O casamento de Engrácia com Andrade ocorre em fase avançada do romance e quando estão ambos, presumivelmente, na meia-idade. Dado precisamente o casamento tardio e fazendo uma analogia com o percurso da personagem principal da novela Nga mutúri (1882), de Alfredo Troni, pressentem-se nesta união características estranhas ao modelo familiar burguês europeu. Nga Ndreza (senhora Andreza), mais tarde Nga Mutúri (senhora viúva), ascendeu de escrava a mucama e, mais tarde, herdou os bens do senhor e a casa (Troni, 1973, pp. 34 e 46). Nas palavras do Romance Íntimo, Engrácia era a “concubina” de Andrade, “companheira de trabalhos dele havia vinte anos” (Machado, 2004, p. 47), sendo, por fim, “promovida no posto de legítima esposa dele - patente em que naturalmente se reformará, por ter completado o seu tempo de serviço activo - e dedicado” (Machado, 2004, p. 55). Apesar deste percurso prévio ao casamento, Engrácia, Andrade e a filha Laura formam uma família europeia, não sendo referidas outras ligações de Andrade.

Engrácia é doméstica e analfabeta. Obedece ao companheiro/marido, mas, como era próprio de casas burguesas com alguma fortuna e criados, conserva o mando na gestão doméstica (Hobsbawm, 2010, p. 361; Pinto, 2000, p. 27): “A individualidade da N’Guna Galáxe - como na língua do país chamavam à Senhora Engrácia - era quase nula. A sua voz raramente se ouvia e ela, no entretanto, superintendia com solicitude notável no governo da casa” (Machado, 2004, p. 70). Aparentemente apagada, sobretudo tendo em conta a figura de Andrade, personagem abrangente na sua autoridade e agressividade, Engrácia assume um papel benigno, protector e conciliador, nomeadamente na moderação da violência do companheiro (Machado, 2004, pp. 65-66, 70). De facto, “sabia mitigar-lhe o desgosto com frases brandas e meigas e, nos acessos de cólera dele - que eram frequentes - tinha ela a arte de o desarmar, de o acalmar como por milagre” (Machado, 2004, p. 70). Era da mesma forma benévola, “tão maternalmente” (Machado, 2004, p. 70) que repreendia as criadas negras da casa. A sua benignidade recorda o juízo de Almeida Garrett sobre a natureza da mulher: “A fortaleza e decisão são o vigor do carácter masculino; a generosa resignação, a gentil deferência, a constância no sofrimento e nas privações são o vigor, não menos poderoso e eficaz, da índole feminina” (citado em Vaquinhas, 2011, p. 21). De facto, no fim da primeira parte do romance, Engrácia “continua a ser a mesma criatura serena e humilde que sabe sofrer resignada e ser feliz silenciosamente” (Machado, 2004, p. 155). Estas características são consentâneas com o lugar maternal e essencialmente doméstico da mulher na família burguesa oitocentista.

Laura

Algumas das características de Engrácia existem também em Laura. Filha de Andrade e de Engrácia, é apresentada como sendo uma jovem bonita, ignorante e frágil. Tendo vivido em casa dos pais, manteve-se ligada ao lar conjugal na vida de casada (Machado, 2004, p. 37). Esta personagem levanta as questões da conformação do modelo feminino oitocentista e do casamento enquanto operação patrimonial.

A fragilidade e a ignorância de Laura eram parte do ideal feminino do século XIX, aliás justificado pelas afirmações científicas da época (Braga & Braga, 2002, p. 522; Vaquinhas, 2011, pp. 21-25). Laura é, como notou Ernesto, uma “criança fraquinha” (Machado, 2004, p. 83). A fragilidade manifesta-se sobretudo após a desavença com o pai, o que a deixa doente, e vem a resolver-se com a intervenção de Duprat e com o casamento com Ernesto (que o pai não desejava). O narrador também atribui a Laura uma limitada capacidade de reflexão (Machado, 2004, pp. 41-45). Afirma que ela “não tem a inteligência suficientemente culta, o coração bastantemente educado” e que “cresceu e medrou sem a mínima direcção de sentimentos afectivos” (Machado, 2004, p. 42).

A fragilidade física e o entendimento rudimentar estão, em Laura, associados à ignorância, que, no século XIX, poderia ser uma qualidade feminina (Vaquinhas, 2011, pp. 27-28, 44-45). A instrução das mulheres foi durante muito tempo mal vista. Com efeito, “se o Ensino Primário público para o sexo feminino é implantado a partir de 1835 (…), as reformas do Ensino Secundário realizadas nas décadas de 30 e 40 foram silenciosas em relação às raparigas” (Pinto, 2000, p. 55). Mesmo a defesa do ensino feminino especificamente para servir a educação dos filhos enquanto futuros cidadãos colocava limites a um indesejado excesso de conhecimento (Pinto, 2000, pp. 44-45; Vaquinhas, 2011, pp. 27-32, 42-49).7 De facto, apesar de ter tido “mestra” (Machado, 2004, p. 70), Laura patenteia escassa instrução, quer na conversação, quer na escrita (Machado, 2004, pp. 37, 42, 49, 65). Diz o narrador: “Exactamente por causa da sua extrema ignorância, tinha ela a inconsciência de tudo o que se passava fora desse recinto acanhado que lhe limitava o horizonte: a casa do pai” (Machado, 2004, p. 37). Durante boa parte do século XIX, foi mal vista a frequência feminina da escola e censuravam-se as mulheres que não se conformavam com o modelo social estabelecido (Vaquinhas, 2011, pp. 30-32). E, de facto, para além da instrução ministrada pela “mestra”, Laura não prossegue os estudos, pois “seria vergonha ir ao colégio” (Machado, 2004, p. 70). Laura não beneficiou, portanto, da viragem da segunda metade do século XIX, em que a instrução feminina passou a ser considerada essencial, embora não como um direito, mas para a formação, nos seus filhos, dos futuros cidadãos (Pinto, 2000, pp. 29-30; Vaquinhas, 2011, p. 28). Ainda assim, Engrácia insiste no “exercitar do que estudara” (Machado, 2004, p. 70), talvez para aperfeiçoar as suas prendas de futura esposa, uma vez que a queria casar “à vontade do pai” (Machado, 2004, p. 70).

Na verdade, o território colonizado em Angola não pôde beneficiar sequer da expansão da instrução básica para ambos os sexos, já que as escolas eram escassas: em 1868, por altura da primeira parte do Romance Íntimo, havia em Angola oitocentos e treze estudantes no ensino primário, sendo as raparigas sessenta e cinco (Silva, 1969, p. 174). Os números eram muito mais exíguos que os da metrópole pela mesma época, considerados já muito insuficientes (Vaquinhas, 2011, p. 29, nota 14). A instrução foi, aliás, uma das causas mais importantes dos intelectuais crioulos de Angola (Dias, 1998, pp. 515-517; Freudenthal, 2001, pp. 416-423). Em todo o caso, enquanto alfabetizada, Laura seria uma excepção entre as mulheres angolanas.

A inclinação de Laura por Ernesto acaba por ser satisfeita com o casamento entre ambos, mas a pretensão do seu pai, Andrade, de casar bem a filha coloca a questão do casamento combinado e, portanto, enquanto meio de composição patrimonial e de elevação social.8 Note-se que o Visconde de Seabra, redactor do primeiro Código Civil português (1867), tendo aliás criado uma sistematização original, incluiu o casamento na abertura do título sobre os diferentes tipos de contrato, imediatamente antes dos contratos de sociedade, de mandato, de prestação de serviços e outros, ou seja, “no mesmo lugar dos contratos patrimoniais” (Telles, 2001, pp. 211-212, itálico do autor). Os cálculos de Andrade acerca do casamento da filha Laura, longe de se referirem a sentimentos ou inclinações pessoais, baseiam-se em interesses materiais e no prestígio social:

(Andrade) Pensava nesse momento no atrevimento do guarda-livros que lhe pedira a filha, e tentava, com as suas acanhadas faculdades imaginativas, idealizar o tipo do genro que lhe convinha. Não precisava que fosse muito rico, bastava que fosse remediado e tivesse uma posição que desse na vista. Procurava entre os grandes da terra um que estivesse nos casos, mas hesitava em determinar-se. (Machado, 2004, p. 92, itálicos do autor)

De facto, como afirma Pinto (2000): “os casamentos permaneceram, ao longo do século XIX, essencial e estrategicamente contratos de conveniência, definindo-se o ‘bom casamento’ em função de critérios como o dinheiro e a posição social” (p. 26). Assim, para Andrade, o importante é o estatuto da família, não a vontade individual. Ernesto, um modesto guarda-livros, ainda por cima jogador e conquistador, é um marido inconveniente, apesar de ser pela sua pessoa a inclinação da jovem.

Laura é, nesta sequência, uma personagem acomodada ao modelo feminino burguês oitocentista.

Leonila

Leonila é uma personagem substancialmente diferente de ambas as descritas. A sua insubmissão é uma característica excepcional entre as personagens femininas do romance.9 Leonila é também a única de origem nobre e, de longe, a mais instruída, tendo sido “educada em um colégio de Paris” até aos quinze anos de idade (Machado, 2004, p. 131). É filha de D. Nuno Galvão de Andrade Lopes de Castro e Eça Raposo, um nobre distinguido com carta de conselho e que por 1846 chegou a Angola, “especialmente enviado pelo governo da metrópole para estudar a organização do serviço da fazenda e aduana de toda a província de Angola” (Machado, 2004, p. 163).

Na primeira parte do Romance Íntimo, Leonila é uma personagem pouco amável, mas o seu retrato na juventude, no tempo do seu primeiro amor, é o de uma pessoa agradável (Machado, 2004, pp. 163-166), apesar de “orgulhosa e altiva” (Machado, 2004, p. 165).

Contrariada na sua primeira inclinação amorosa, por Gouveia/Duprat, que era “o filho adulterino de um judeu” (Machado, 2004, p. 168), Leonila é obrigada pelo pai a desposar o major Ladislau de Lencastre, “cansado, decrépito e nobre” (Machado, 2004, pp. 167 e 131), ou melhor, cansado, decrépito, mas nobre. Como no caso de Andrade e de Laura, esta personagem coloca a questão do casamento combinado, embora por razão diferente: não se trata do casamento enquanto meio de adição patrimonial e de ascensão social, mas enquanto instrumento de conservação de uma pureza de sangue presumivelmente já antiga e, consequentemente, do estatuto social a que tal corresponde. Moderna ou anacrónica que fosse a causa da combinação, trata-se da sujeição da mulher enquanto instrumento do prestígio familiar em detrimento da sua individualidade.

Dissolvido o primeiro casamento pela morte do major, Leonila casa mais duas vezes, igualmente sem amor: com o comerciante e antigo negreiro Miguel Augusto de Lemos e, após o falecimento deste, com um magistrado (Machado, 2004, pp. 131, 182, 244-245 e 249).

O narrador fornece uma explicação para estes matrimónios: Leonila necessita destas uniões porque “pessoas como a viúva de Lemos (Leonila), desequilibradas de temperamento em questões de coração, necessitam de ter muito ao pé da cabeça um ponto de apoio para não baquearem de vez” (Machado, 2004, p. 249). Reflecte, portanto, a ideia oitocentista da mulher enquanto “pupila eterna” ou “doente”, que deve ser superiormente tutelada pelo homem (Vaquinhas, 2011, pp. 21-24).

No entanto, o percurso da personagem e o contexto da época permitem colocar outra hipótese. No século XIX, seria mais verosímil atribuir a necessidade de companhia ao fundado medo do desamparo, afinal decorrente da dificuldade de emancipação das mulheres e da escassez de escolhas de vida independentes (numa profissão, por exemplo). Mulheres sós, ainda para mais sendo as mulheres consideradas inferiores, eram muito mais permeáveis ao perigo. Fialho de Almeida, recordando a escritora Guiomar Torrezão, afirmou que na vida desta publicista “tudo servia de pretexto para graçolas cynicas, allusões desbragadas á vida particular, calumnias affrontosas do brio e do pudor” (Almeida, 1923, p. 192). E continua:

Ah! Tivesse ella um marido ou um pae capazes d’esbofetear na praça, a récua dos escribas; pudesse, sem quebra do melindre inherente á condição de mulher, moer á cacetada as lombeiras d’um tunante, desfechar a tempo um pistolázio - e menos cães lhe ladrariam ás saias, e mais justiça lhe teriam feito os que até do seu desesperado labor se permittiam chasquear. (Almeida, 1923, p. 192)

Dado que Pedro Machado utilizou métodos da escola realista para a composição deste romance, pode imaginar-se que Leonila, como as outras personagens, seja baseada em figuras reais, não sendo as suas atitudes inéditas na sociedade luandense de então, como não seriam na Europa. Leonila, certamente consciente da fragilidade de uma mulher só, age à semelhança do que sucederia com mulheres reais e protege-se pelos casamentos sucessivos, sempre sem amor, na sequência do conflito com o pai. Referindo-se ao segundo matrimónio, explica o narrador: “Este casamento, conquanto ardentemente desejado por Lemos, (…) não lisonjeava nada o coração da desposada, que apenas via nele uma necessidade, para se furtar ao suplício de voltar para a casa paterna” (Machado, 2004, p. 182). Ou seja, foi o meio de Leonila se proteger do desamparo, mantendo a recusa de ceder à autoridade de Eça Raposo. A corte de admiradores que forma entre os homens luandenses, fascinados com a sua beleza e temendo o seu furor, dever-se-ia provavelmente à mesma consciência de desprotecção (Machado, 2004, p. 130).10

Note-se, em todo o caso, que, de feitio voluntarioso, Leonila é a mulher mais culta, enérgica e independente do romance. Apesar de uma submissão formal, exigível para conservação da imagem na sociedade, permanece insubmissa e segura de si mesma e do seu valor, brio que lhe poderia ter sido conferido pela ascendência nobre. Para exemplo da sua força de carácter, vejam-se os episódios em que renega a autoridade do pai e o seu apelido e em que se impõe ao primeiro marido, desprezando-o (Machado, 2004, p. 182). Imposição que repete, embora de forma gentil, no segundo casamento, chegando mesmo a tomar parte na empresa do marido. Numa época em que as mulheres da sua classe não trabalhavam, Leonila é a única que chega a ter, ao menos no plano jurídico, uma profissão: com autorização do marido, como previa a legislação de então (Vaquinhas, 2011, p. 24), tornou-se comerciante “e passou ela então a fazer parte da firma - Lemos, Moreira & C.ª” (Machado, 2004, p. 132). Recorde-se que a mulher casada, “perante a lei, não passava de uma menor”, limitada portanto nos actos que tivessem efeitos jurídicos (Vaquinhas, 2011, p. 24). O art.º 1185 do Código Civil de 1867 estabelecia que “Ao marido incumbe, especialmente, a obrigação de proteger e defender a pessoa e os bens da mulher; e a esta a de prestar obediência ao marido”. A mulher não tinha parte na “administração de todos os bens do casal”, excepto “na falta ou no impedimento” do marido (art.º 1189), não podia ir a tribunal sem autorização daquele, salvo em certas condições (art.º 1192), e não podia no geral celebrar negócios jurídicos (art.º 1193), embora o marido não tivesse um poder total sobre os bens imóveis do casal (art.º 1191). Para exercer o comércio, caso de Leonila, a esposa necessitava de autorização do marido (art.º 1194 do Código Civil, art.os 22 e 24 do Código Comercial de 1833 e art.º 16 do Código Comercial de 1888). No caso do Romance Íntimo, a autoridade desta personagem era ampla e até inversamente proporcional às limitações previstas na lei, “porque era D. Leonila quem mandava, punha e dispunha, e o marido representava o papel de simples gerente dos negócios da firma de que era chefe honorário” (Machado, 2004, p. 132). Aliás, apesar de ir “poucas vezes” ao “escritório”, “quando ia, verificava a escrituração toda, e os guarda-livros debalde tentariam iludi-la sobre qualquer pequena circunstância dos negócios da casa” (Machado, 2004, p. 132). Ernesto, guarda-livros da empresa, afirma a Duprat: “o doutor sabe que era ela quem punha e dispunha naquela casa” (Machado, 2004, p. 139). O seu poder era tal, que, por amor a Ernesto, o seu segundo e último amor, Leonila rouba certas quantias à empresa para o favorecer (Machado, 2004, pp. 139-140). E, por vingança, dado que Ernesto não lhe corresponde, fá-lo despedir pelo marido (Machado, 2004, p. 143). No grupo de admiradores de Leonila está um juiz, que esta, através de sedução, tenta influenciar contra Ernesto e Andrade (Machado, 2004, pp. 129 e 132-134).

Como se pode verificar, há uma contradição entre o feitio voluntarioso de Leonila e a sua dependência, enquanto mulher, da tutela de um homem. O seu génio forte dava-lhe liberdade, mas a condição feminina limitava-a. As suas escolhas são condicionadas pelo modelo de conduta previsto para as mulheres no século XIX que, nas aparências, Leonila mantém. Agindo na sombra, coloca os homens a fazerem por si o que na prática e juridicamente não pode fazer por si mesma. Cria, assim, um espaço de autonomia e de liberdade, o possível, usando a manipulação e as poucas possibilidades legais.

Para além do feitio insubmisso, Leonila apresenta uma outra diferença relativamente às demais personagens femininas. Estas são invariavelmente bondosas; Leonila, pelo contrário, tem características antipáticas.11 Inspiram simpatia o seu amor autêntico por Gouveia/Duprat, o casamento forçado e a solidão. Mas Leonila é também orgulhosa, manipuladora e vingativa. Apesar da sua atipicidade no Romance Íntimo, talvez se possa afirmar que mantém uma natureza de personagem-tipo: o tipo da mulher inconveniente e a evitar. O descontentamento com um destino traçado por interesses familiares e/ou patrimoniais e a inclinação por alguém a quem se é afeiçoado, implicando liberdade em vez de obediência, seriam a subversão do modelo de família burguesa. A vocação de Leonila para a liberdade e para a autonomia (concretizadas afinal na liberdade e na autonomia possíveis, através da manipulação de outrem) seria então indesejável na formação de uma família. Por isso, apesar da complexidade que a torna mais completa que as demais personagens, Leonila é ainda um tipo no romance: o tipo da mulher desadequada à família burguesa, incompatível com o seu feitio. Possivelmente, Pedro Machado conheceu casos reais parecidos com o de Leonila, mas, ao parecer sugerir, nas descrições desta personagem e nas dos seus comportamentos, que havia maldade no seu feitio, não pôde entender os aspectos opressivos da vida das mulheres no seu tempo. Pretendendo talvez sugerir uma natureza perversa de Leonila, o que acaba por resultar é a exposição dos meios por que uma mulher no século XIX poderia simultaneamente sobreviver, proteger-se e manter-se relativamente livre com alguma dignidade.

5. CONCLUSÃO

Laura e Engrácia, personagens da obra Cenas de África? Romance Íntimo, de Pedro Félix Machado, reúnem, juntas, as características femininas ideais da burguesia europeia do século XIX. São estas a paciência, a resignação e a vocação para a pacificação dos conflitos em Engrácia e a fragilidade, a ignorância e a dedicação à casa e ao marido em Laura.

Leonila tem um comportamento demasiado questionável para fazer parte deste grupo. Se aquelas mulheres são apresentadas como bondosas e acomodadas ao modelo social, Leonila é uma excepção imediatamente reconhecível. Para além de muito instruída, é a única mulher que não se conforma com o que se lhe destina, o casamento combinado. Há nela por isso uma propensão para a liberdade. É também a única mulher com características antipáticas, o que faz dela a personagem mais complexa da obra. Porém, mantém-se uma personagem-tipo: apesar da simpatia que inspiram o seu casamento forçado, a sua solidão e o amor por Gouveia/Duprat, é também uma mulher manipuladora e vingativa, em suma, um tipo de mulher inconveniente e a evitar no século XIX.

Note-se, porém, que, se Leonila se impõe través da sedução e da manipulação dos maridos, o feitio pacífico de Engrácia dá-lhe meios para anular conflitos: ou seja, ambas conseguem certo poder, num contexto de limitadas possibilidades.

Um facto, porém, aproxima estas três personagens femininas: encontram-se igualmente sob certa forma de tutela masculina, do pai ou do marido, não tendo, como os homens (Andrade, Ernesto, Duprat, Eça Raposo), apesar das suas desventuras e até imoralidades, pleno poder sobre as suas próprias vidas. No Romance Íntimo, prevalece, nesse sentido, a tradição sobre a modernidade.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

Almeida, F. de (1923). Figuras de destaque (Prominent characters). Livraria Clássica Editora. [ Links ]

Governo Civil de Lisboa. (1752/1990). Processos de requerimento de passaportes (cx. 26, doc. 44). Arquivo Nacional da Torre do Tombo, Lisboa, Portugal. https://digitarq.arquivos.pt/details?id=6268808Links ]

Assis Júnior, A. (1979). O segredo da morta (The secret of the dead woman). Edições 70. [ Links ]

Braga, P. D., & Braga, I. M. R. M. D. (2002). Aspectos de vida quotidiana: O afecto (Everyday life aspects: The affection). In J. Serrão & A. H. de O. Marques (Eds.), Nova história de Portugal: Portugal e a instauração do liberalismo (pp. 518-526). Editorial Presença. [ Links ]

Codigo Civil Portuguez. (1868). Imprensa Nacional. [ Links ]

Codigo Commercial Portuguez. (1836). Typographia Commercial Portuense. [ Links ]

Codigo Commercial: Approvado por Carta de lei de 28 de Junho de 1888. (1892). Livraria Lello & Irmão Editora. [ Links ]

Diário do Governo. (1869, Maio 21). https://digigov.cepese.pt/pt/pesquisa/listbyyearmonthday?ano=1869&mes=5&tipo=a-diario&filename=1869/05/21/D_0113_1869-05-21&pag=2&txt=licen%C3%A7as%20para%20advogarLinks ]

Dias, J. (1998). Angola. In J. Serrão & A. H. de O. Marques (Eds.), Nova história da expansão portuguesa: O império africano 1825-1890 (pp. 319 ss.). Editorial Estampa. [ Links ]

Freudenthal, A. (2001). Angola. In J. Serrão & A. H. de O. Marques (Eds.), Nova história da expansão portuguesa: O império africano 1890-1930 (pp. 259 ss.). Editorial Estampa. [ Links ]

Gildea, R. (2013). Barricades and borders: Europe 1800-1914. Oxford University Press. [ Links ]

Godineau, D. (1997). A mulher (The woman). In M. Vovelle (Ed.), O homem do iluminismo (pp. 309-334). Editorial Presença. [ Links ]

Henriques, L. (2023). A identidade crioula luandense: A obra ‘Cenas de África? Romance Íntimo’ e a Luanda oitocentista (Luanda’s creole identity: The novel ‘Cenas de África? Romance Íntimo’ and nineteenth century Luanda). (No prelo). [ Links ]

Hobsbawm, E. (2010). A era do capital: 1848-1875 (The age of capital 1848-1875). Editora Paz e Terra. [ Links ]

Hobsbawm, E. (1990). A era do império - 1875-1914 (The age of empire 1875-1914). Editorial Presença. [ Links ]

Lopes, M. A. (1989). Mulheres, espaço e sociabilidade (Women, space and sociability). Livros Horizonte. [ Links ]

Machado, P. F. (2000). Sorrisos e desalentos (Smiles and dismay). Imprensa Nacional-Casa da Moeda. [ Links ]

Machado, P. F. (2004). Cenas de África? Romance íntimo (Scenes from Africa? Intimate novel). Imprensa Nacional-Casa da Moeda. [ Links ]

Pinto, T. (2000). O ensino industrial feminino oitocentista - A Escola Damião de Góis em Alenquer (The XIX century female industrial education - The Damião de Góis School in Alenquer). Edições Colibri. [ Links ]

Ribas, O. (1969). Uanga: Feitiço (Uanga: Enchantment). Edição do Autor. [ Links ]

Silva, L. A. R. da (1969). Relatórios do Ministro e Secretário de Estado dos Negócios da Marinha e do Ultramar apresentados às Cortes na sessão legislativa de 1870 (Reports of the Minister and Secretary of State for Marine and Overseas Affairs presented to the Cortes in the legislative session of 1870). Ministério do Ultramar. [ Links ]

Telles, I. G. (2001). Introdução ao estudo do direito (Introduction to the study of law). Coimbra Editora. [ Links ]

Troni, A. (1973). Nga mutúri. Edições 70. [ Links ]

Vaquinhas, I. (2011). Senhoras e mulheres na sociedade portuguesa do século XIX (Ladies and women in the XIX century Portuguese society). Edições Colibri. [ Links ]

Westad, O. A. (2018). A guerra fria: Uma história do mundo (The cold war: A world history). Temas e Debates/Círculo de Leitores. [ Links ]

NOTAS

1 Note-se o contraste com obras como O segredo da morta, de António de Assis Júnior, Uanga, de Óscar Ribas, e Nga mutúri, de Alfredo Troni, em que a cultura africana, na língua, no vestuário, na sociabilidade, é omnipresente e parte relevante do enredo.

2 Nesta parte do estudo, sigo o que deixei desenvolvido em Henriques, 2023 (no prelo). O essencial da biografia de Pedro Félix Machado foi apurado por F. Soares (em Machado, 2000, pp. 7-18) e E. Bonavena (em Machado, 2004, pp. 7-28).

3 Governo Civil de Lisboa. (1752/1990). Processos de requerimento de passaportes (cx. 26, doc. 44). Arquivo Nacional da Torre do Tombo, Lisboa, Portugal. https://digitarq.arquivos.pt/details?id=6268808, consultado a 11 de Junho de 2023. Trata-se do requerimento de passaporte para Benguela, aquando do regresso de Pedro Machado a Angola, em 1892, após a sua última estadia conhecida em Portugal.

4 Advogados provisionários eram indivíduos que, não tendo terminado o curso de Direito ou não tendo “as respectivas cartas academicas”, eram autorizados a advogar na Metrópole e especialmente nas Colónias, dada a escassez de juristas. Leia-se o preâmbulo e o art. 1.º do decreto de 13 de Maio de 1869, constante do Diário do Governo n.º 113, de 21 de Maio de 1869, p. 640, 2.ª e 3.ª colunas, consultado a 11 de Junho de 2023, disponível em https://digigov.cepese.pt/pt/pesquisa/listbyyearmonthday?ano=1869&mes=5&tipo=a-diario&filename=1869/05/21/D_0113_1869-05-21&pag=2&txt=licen%C3%A7as%20para%20advogar

5 A obra de Irene Vaquinhas tem diferentes textos. Aquele que se cita neste passo é o primeiro: “‘Miserável e gloriosa’: A imagem ambivalente da mulher no século XIX”, pp. 19-33.

6 Há episódios da acção que têm lugar em 1850 (capítulo décimo da segunda parte), em 1870 e ainda posteriormente a esta data (últimos capítulos).

7 O segundo texto referido de Irene Vaquinhas, do livro que se tem vindo a citar, é o que se intitula “A mulher e o poder. Os poderes da mulher. Visão histórica”, entre as pp. 35 e 50.

8 No mesmo caso se poderia incluir o casamento de David Bendrau com Hellen Beaton (Machado, 2004, p. 191).

9 Tirando Hellen, personagem antipática e igualmente voluntariosa.

10 Sob o mesmo ângulo da desprotecção feminina se poderia estudar o caso de Lourença Gouveia, mãe solteira. V. episódio das pp. 195 ss.

11 No caso, só Hellen se lhe iguala.

Recebido: 03 de Abril de 2023; Aceito: 12 de Junho de 2023

Creative Commons License Este é um artigo publicado em acesso aberto sob uma licença Creative Commons